OLD Nº 74

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expediente

revista OLD #número 74

equipe editorial direção de arte texto e entrevista

Felipe Abreu e Paula Hayasaki Tábata Gerbasi Angelo José da Silva, Felipe Abreu e Paula Hayasaki

capa fotografias

Andrés Solla Andrés Solla, Dan de Carvalho, Gabriel Uchida, Javier Álvarez e Rafa Moo

entrevista email facebook

Max Pinckers revista.old@gmail.com www.facebook.com/revistaold

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índice

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livros livros, livros e mais livros exposição

andrés solla por tfólio

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dan de carvalho por tfólio

gabriel uchida por tfólio

max pinckers entrevista

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javier álvarez por tfólio

rafa moo por tfólio

reflexões coluna



carta ao leitor

Assim como o senhor na capa desta edição, estamos todos procurando algo a ver na escuridão que parece ter nos rodeado. Há uma intensa crescente de violência e ignorância em nosso país, que culminou na eleição de nosso próximo presidente. De todas as suas asquerosas declarações, nos tocam especialmente a perseguição de minorias e um desejo quase institucional de destruição da cultura e do pensamento crítico. A OLD, como revista independente com mais de sete anos de estrada, faz aqui uma promessa: não iremos parar, não importa o que aconteça. Entendemos que um país é formado pela sua cultura e que criar indivíduos críticos e capazes de ler e entender imagens e textos é um dos caminhos centrais para uma sociedade mais justa, inte-

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ligente e inclusiva. Na nossa última edição de 2018 trazemos trabalhos conectados a temas que vivemos neste processo eleitoral: a crença, a reinvenção, a memória visual de um povo, a ocupação de espaços e a preservação da lembrança e do passado. Todos os artistas desta edição trazem discussões profundas e pertinentes a este momento. Além destes cinco ensaios, publicamos uma marcante entrevista com Max Pinckers, na qual os limites entre realidade e ficção são amplamente debatidos sob a perspectiva da fotografia documental. Assim seguimos com nossa missão: discutir fotografia da maneira mais plural e profunda possível.

por Felipe Abreu


livros

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HA L F STO RY HA LFLI FE de Raymond Meeks

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aymond Meeks é um fotógrafo obcecado por livros. A grande maioria de sua produção encontra sua casa final em publicações de autor, criadas de maneira bastante artesanal pelo próprio fotógrafo. Sua visão é bastante contemplativa e seus livros tem um tempo específico em si. Pedem idas e vindas, passeios por suas páginas para se entrar nas narrativas propostas pelo americano. Seu mais recente lançamento, Halfstory Halflife, conta com esta mesma atmosfera, mas com uma produção mais industrial, porém igualmente atenciosa. Realizado pela Chose Commune, o livro é um dos grandes lançamentos do ano. Suas imagens de um preto e branco rebaixado e focadas nos ritos de passagem de um grupo de adolescentes no interior dos EUA é absolutamente impressionante. Disponível no site da Chose Commune valor R$220 144 páginas 6


livros

WAR PRIMER

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de Adam Broomberg e Oliver Chanarin

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livro da sempre brilhante dupla britânica é um relançamento publicado pela MACK no primeiro semestre deste ano. Originalmente lançado em 2011, War Primer 2 é mais um dos excelentes trabalhos de Broomberg e Chanarin a lidar com a fotografia de arquivo, especialmente aquela ligada ao conflito. Realizada sobre uma edição de War Primer, de Bertolt Brecht, a publicação revisita as conexões entre fotografia e texto propostas pelo pensador alemão, criando novas associações e trazendo imagens contemporâneas para este jogo. O fotolivro, que preserva todas as páginas da primeira edição de Brecht, cria um universo ácido e profundamente irônico, revitalizando e complexificando a obra original. Um triste e poderoso livro, com diversas camadas de apropriação. Disponível no site da Mack valor R$150 200 páginas

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exposição

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LIVROS, LIVROS E MAIS LIVROS Paris será tomada pela fotografia nesta semana. Entre exposições e feiras, a capital francesa receberá o que há de mais interessante no universo dos fotolivros.

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brimos uma exceção nesta edição da OLD para comentar uma exposição que não está na capital paulista. Isso se dá porque não vamos comentar apenas uma, mas uma série de atividades que irão ocorrer nesta semana em Paris, criando um dos polos mais intensos de apresentação, discussão e vendas de fotolivros do ano. São pelo menos três grandes eventos com foco em publicações: Paris Photo, com seu Photobook Awards, Polycopies e Offprint. Todos começando nesta quinta feira. Participam das feiras editoras de todo o mundo, especialmente da

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Europa e Ásia, trazendo lançamentos e organizando palestras e eventos de assinaturas. Entre as editoras participantes, destacam-se a chinesa Jiazazhi Press, a americana TBW, além da italiana Skinnerboox e mais uma centena de outras casas trazendo o melhor de sua produção. A Editora Madalena, a Havaiana Papers e o 643 Collective estarão representando o Brasil. A primeira, realiza uma série de lançamentos no Paris Photo, com artistas que passaram pela OLD como Andressa Ce., Henrique Carneiro e Vitor Casemiro. Este é um momento único para se conhecer o

que está sendo criado de mais interessante em editoras espalhadas por todo o mundo. Além da quantidade enlouquecedora de livros a ver, este final de semana abre a controversa temporada de melhores livros do ano, com os ganhadores do Photobook Awards. Estaremos acompanhando toda esta movimentação e traremos destaques em breve. 

Paris Photo, Polycopies e Offprint acontecem em Paris entre 8 e 11 de Novembro.


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ANDRÉS SOLLA Cosas que se ven en el cielo

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ma parte considerável da maneira com que moldamos nossas vidas está baseada naquilo que acreditamos. Seja na política, na religião ou no cotidiano, nossa crenças definem a maneira com que vemos o mundo. Em Cosas que se ven en el cielo, Andrés Solla apresenta um grupo de pessoas que se reúne mensalmente para observar OVNIs nas montanhas da Catalunha. Aliado a uma série de documentos tornados públicos pelo governo espanhol, este trabalho apresenta uma maneira de ver o mundo além do que é cientificamente mensurável e como um crença comum pode construir fortes grupos.



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andrés solla

Andrés, esta é sua segunda publicação na OLD. Que mudanças você vê entre a sua primeira passagem pela revista e esta? A temática dos meus trabalhos não mudou tanto como a minha maneira de contar histórias com fotografias. O que aprendi neste período me ajudou a colocar meu olhar em perspectiva: assumi que a fotografia se trata de expressar uma visão do que nos rodeia e não uma maneira objetiva de contar o que acontece no mundo. Ainda que existam aspectos pontuais que não me convençam, não deixei de valorizar o trabalho dos fotojornalistas, que é o campo no qual comecei a fotografar, mas é este tipo de foto mais transparentemente subjetiva que tem me envolvido.

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Nos conte sobre a criação de Cosas que se ven en el cielo. O Ministério da Defesa tornou público há dois anos dos os seus arquivos de “Avistamentos de fenômenos estranhos” ou “Arquivos OVNI”, com declarações de pessoas que diziam ter visto OVNIs por todo o espaço aéreo espanhol, desde um em Murcia em 1962 até quase os dias de hoje. Nunca fui um grande seguidor deste fenômeno e o que me surpreendeu foi que podia facilmente imaginar este tipo de documento nos EUA, mas não espera algo assim na Espanha. Achei o material muito forte, com histórias e desenhos do que viram mais de 1900 testemunhas oculares. Me pareceu um bom ponto de partida porque o que se fala nestes

Para poder descrever o que não conhecemos temos que abrir mão do arquivo mental e cultural de cada um, de tudo que conhecemos. documentos é a subjetividade com que cada um interpreta as luzes no céu e como transmitem estas histórias. Para poder descrever o que não conhecemos temos que abrir mão do arquivo mental e cultural de cada um, de tudo que conhecemos. Há uma série de ‘tipos’ de fotografias neste projeto: apropriadas, de arquivo, contemporâneas. Como você escolheu suas fontes visuais? Como as organizou neste projeto? Depois de descobrir os arquivos do governo, segui investigando e encontrei um ponto na montanha de


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Montserrat, a poucos quilômetros de Barcelona, no qual todos os dias 11 de cada mês, há quarenta anos, um grupo se reúne para trocar experiências sobre este tipo de fenômeno, contemplar o céu e, se tiverem sorte, ver algum OVNI. Passei a frequentar estes encontros e pude conhecer as histórias pessoais de um grupo de senhores, ‘os veteranos’, enquanto ia fazendo fotos das reuniões e do planalto no que se veem as luzes (alguns dizem que são estrelas cadentes, outros que são ‘naves traçadoras’). Pensei em como temos muito assimilado em nosso imaginário coletivo certo códigos, elementos, formas e cores que associamos aos OVNIs, extraterrestres e naves. Ao refletir sobre a interpretação que cada um de nós faz sobre esta simbologia, decidi misturar ao longo da narrativa minhas imagens, arquivos e apropriações

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fotográficas. Rapidamente passar a jogar com a descontextualização das imagens: um poste na rua, dependendo da maneira com que você o fotografa e as imagens próximas a ele, pode se converter em um fenômeno sobrenatural. O tema deste projeto pressupõe um jogo entre crença e ceticismo. Como você encarou esta comparação? Você acredita no que acreditam os personagens do seu trabalho? Tenho consciência de que é um tema que pode facilmente cair na paródia ou na comicidade. Sempre tive muito em conta qual seria a imagem projetada das pessoas que aparecem nestas fotografias. Eu acredito que para eles estes sinais existem de verdade e que eles os viram. Também penso que eles podem ser interpretados de maneiras diferentes. Aí é que está o

interesse deste fenômeno: a interpretação pessoal de algo que vai além de limites conhecidos. Assim como crer em Deus de uma ou outra maneira. Este projeto está pensado como livro, certo? Quais foram os principais desafios neste processo de criação? O projeto do livro já está pronto? É um desafio ampliar as possibilidades narrativas para um material que vai além de suas próprias imagens. Sempre fico em dúvida se isso funciona se pensarmos no ritmo e na sequência do livro. Também fiz uma exposição no festival ArtPhotoBcn, mas sim, ele está pensado principalmente como livro. Estou, aliás, em um momento de nunca o sentir terminado e querer colocar novas fotos na edição. Acredito que seguirei neste momento por mais algum tempo. 

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DAN DE CARVALHO Reboot

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eboot mistura um processo de redescoberta pessoal e fotográfica. Dan de Carvalho mudou sua relação com a fotografia em um momento delicado de sua existência. Desta mudança nasce um fluxo de imagens viscerais, intensas e próximas, quase coladas no rosto de quem as vê. Deste duro processo de reinvenção se formam imagens de um grão intenso, que se conectam com o caos e as mudanças constantes dos locais em que foram feitos.



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dan de carvalho

Dan, como começou seu interesse pela fotografia? Eu lembro que sempre fui instigado por uma câmera quebrada que minha mãe tinha em casa. Passei diversas tardes brincando de ser fotógrafo. Quando tinha uns 7 anos, ganhei uma câmera descartável de presente e fotografar se tornou meu hobby de viagens até chegar aos 17, quando decidi estudar fotografia e acabei me formando em Cinema. Ao terminar a faculdade, percebi que a cinematografia não era meu trabalho preferido mas pagava bem. Juntei dinheiro e fui passar três meses em Nova York para estudar inglês e impressão fine art. Consegui alguns freelas e comecei a trabalhar no laboratório digital do ICP - Internatio-

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nal Center of Photography. Estudei na escola e permaneci na cidade por 3 anos, hoje trabalho como printer e tenho um estúdio de impressão aqui em São Paulo. Nos conte sobre a criação de Reboot. Antes de ser pensado como um projeto de narrativa poética o Reboot começou como uma reação pessoal a um determinado momento de vida no qual os planos que tinha feito não deram nada certo. Morava em Nova York e me mudei para Los Angeles com minha namorada. Tive a renovação do visto de trabalho recusada, o início de um processo depressivo, o fim da relação poucos meses depois de me mudar e a volta não planejada ao Brasil. Para mim, o ato de fotogra-

O ato de fotografar sempre representou a existência de uma energia vital e nesse tempo eu não tinha vontade nenhuma de carregar uma câmera far sempre representou a existência de uma energia vital e nesse tempo eu não tinha vontade nenhuma de carregar uma câmera pesada, de fotometrar, compor. Por isso comprei uma câmera de bolso, alguns rolos de filme PB e fui para a rua fotografar de uma maneira que não me era comum, mas se tornou muito eficiente: uma fotografia de reação, onde não preciso fotometrar, pensar em composição de cores e enquadramento. Só mirar, apertar o botão e a câmera fazia o resto. Dessa ação automatizada e robótica surgiu a idéia do Reboot. Um diário sobre a reconstrução


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da persona de um homem, de volta à cidade que ele não entende como lar, tentando se integrar e ocupar espaço num velho novo mundo, vivendo intensamente em busca de prazer e satisfação pessoal. Quais foram os desafios na edição e construção narrativa de Reboot? Os primeiros rolos de filme foram feitos no final de 2014, mas só comecei a trabalhar nesta ideia em 2016. Eu já tinha uma boa quantidade de fotos para editar e estava produzindo muitas novas imagens. Com o tempo, percebi que meu jeito de fotografar estava mudando. As primeiras imagens de Los Angeles eram muito escuras, sombrias e sem muito sentimento além do vazio. O que passei a produzir em São Paulo e outros lugares a partir de 2015 tinha outra vibração e se relacionava muito mais

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ao meu momento. Entendi, então, que a narrativa a ser seguida era sobre o processo de reconstrução do eu, aquilo que eu vivia e criava, um estilo de vida mais inconsequente, em busca de diversão e liberdade. Não queria remexer os sentimentos e lembranças do passado. Depois de ter a ideia narrativa mais esclarecida na cabeça, tive que me desapegar de algumas imagens que adorava, mas não tinham nada a ver com a história. Eu trabalhava em um universo com mais de 500 imagens mas só quando consegui reduzir para 90 é que comecei a criar duplas, trios e pensar em um boneco. De que maneira você busca trabalhar o conteúdo simbólico de cada imagem no momento da edição? Eu acredito que a edição também é um trabalho muito intuitivo, onde re-

sultados muito legais saem de forma espontânea. Me ajudou muito estar participando do Lombada, laboratório de fotolivros que o Walter Costa coordenava em SP. Muitas das colagens e ideias de design vieram da troca e discussão com o grupo. Para mim, é muito bom ouvir as diferentes percepções que as pessoas têm sobre as minhas fotos e entender as possibilidades com que eu posso usá-las em uma narrativa. Inspirado em um movimento de transformação, tentei criar arcos narrativos que iniciam de uma maneira densa e abstrata passando por um humor infanto-sarcástico, um erotismo superficial e uma contemplação meio saudosista antes do fim. Ainda não tenho certeza de todas as minhas escolhas, preciso pensar um pouco mais antes de tomar uma decisão final. 

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GABRIEL UCHIDA

Travelling through the territory

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abriel Uchida criou a série apresentada nesta edição da OLD através do contato direto com os Uru-eu -wau-wau. Nesta troca, o fotógrafo foi até a comunidade indígena e utilizou parte da iconografia colecionada por este povo. O que se vê neste trabalho é uma conexão direta entre memória, representação e o poder da fotografia como forma de dominação e registro, algo que acompanha as comunidades indígenas brasileiras desde muitos anos. Está aqui uma potência visual e uma fragilidade material que se completam muito bem dentro desta história de um grupo com um futuro tão incerto adiante.



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O que mudou na sua fotografia neste período? Antes eu entendia a fotografia como a minha obra, e agora a vejo como um suporte do meu trabalho. Por exemplo, estou terminando um projeto que conta com mais vídeos e instalações e apenas alguns poucos elementos de foto. O instante decisivo deste processo foi um período de pesquisa e reflexão que passei vivendo na Alemanha e em seguida nos Estados Unidos em 2015. Foi um hiato mais intimista e de proposital baixa produção mas que foi fundamental para repensar a minha obra e clarear ou reforçar um norte para o meu trabalho. Nos conte sobre a criação do Tra-

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velling Through The Territory. Eu já tinha tido contato com povos originários anteriormente quando trabalhei com os Himba na Namíbia, mas no Brasil o primeiro grupo indígena que conheci foi o Uru-eu-wau-wau. Nosso primeiro encontro foi em Porto Velho, Rondônia, na biblioteca de uma ONG chamada Kanindé, que trabalha com eles há décadas. Na ocasião, enquanto aguardavam o início de uma reunião, lideranças da etnia folheavam álbuns de fotografias deles mesmos. Nos próximos contatos que tivemos, a mesma cena se repetia – e eram os exatos mesmos álbuns, sempre vistos com muita curiosidade. Então a partir disso eu fui investigar esse fascínio dos Uru-eu-wau-wau pela fotografia,

Eu acho importante descentralizar a figura de protagonista do artista e incorporar agentes e fatores externos na construção da narrativa. contudo, refiz o processo no sentido inverso. Como o indígena é visto na cultura brasileira como o “outro” e eles estavam partindo de suas terras para analisar imagens na cidade, tratei de sair do meu “espaço” e buscar documentos vindos da aldeia. E o que encontrei foi uma série de documentos, revistas e jornais descobertos nos anos 90 na região do Comandante Ary, que é uma aldeia que não existe mais. Todo esse material estava muito castigado não só pelo tempo mas também por intervenções feitas pelos próprios indígenas com tinta de urucum e jenipapo. A partir disso,


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tratei de investigar os detalhes desse material e usá-lo para construir uma narrativa que ilustra não só o contato do povo uru-eu-wau-wau com o homem branco mas também toda a agressividade e disputas de território e poder que marcaram essa história. Este trabalho aponta que a fotografia pode funcionar como forma de dominação ou de construção de culturas. O que te levou a esta abordagem? Como o contato com os Uru-eu-wau-wau moldou o trabalho? Quando comecei a viver na Amazônia brasileira, passei a visualizar melhor o tamanho da lacuna deixada por uma narrativa eurocêntrica em um país latino e o quão pouco sabemos não só do nosso passado mas também do nosso presente. Dessa forma, o Travelling through the territory aconteceu como uma expedição

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de reconhecimento, ou seja, uma viagem pelo território – geograficamente e historicamente. As escolhas e reações do povo Uru-eu-wau-wau ao contato com a sociedade não-indígena refletem nas imagens deste trabalho, que é também um resultado direto das intervenções dos indígenas não só nos eventos como também nos documentos históricos. Como você busca lidar com o jogo de poder inerente à produção da imagem fotografia? Esta é uma questão que costuma estar presente nas suas criações? Eu acho importante descentralizar a figura de protagonista do artista e incorporar agentes e fatores externos na construção da narrativa. Atualmente toda a minha pesquisa está focada na questão indígena e amazônica, onde o jogo de poder é marcante

na disputa não só de narrativas como também de territórios físicos. Quanto da narrativa apresentada na série é sua e quanto é dos Uru-eu-wau -wau? Como a construção de dípticos e o sequenciamento da serie moldaram essa dupla histórica? A série é um olhar meu construído a partir de documentos e artefatos deles, e também com a colaboração mais direta dos indígenas, com quem passei a conviver e a aprender sobre a floresta e o mundo. A maneira como a série foi montada reflete um ensinamento dos indígenas de criar uma narrativa linear a partir de uma outra estrutura de pensamento, que responde a significados e arranjos particulares da cultura do povo Uru -eu-wau-wau. 

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Todas as imagens: Margins of Excess / Max Pinckers


MAX PINCKERS OLD entrevista


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Max Pinckers é uma das grandes vozes da fotografia documental contemporânea. Com uma visão muito precisa de sua prática, o jovem fotógrafo belga discute de maneira muito marcante os limites entre realidade e ficção na produção de imagens fotográficas. Além de sua criação artística, Max atua como professor e pesquisador, trazendo seus anseios e questionamentos para a formação de uma nova geração de artistas. Tivemos a imensa alegria de conversa com Max por Skype, em uma conversa franca e muito rica. Max, nos conte sobre o começo do seu interesse pela fotografia. Eu cresci na Ásia, vivi lá até os dezoito anos. Quando voltei para a Bélgica, todos os meus amigos estavam estudando na Art Academy de Ghent. Decidi me juntar a eles porque sentia que lá era o lugar em que eu deve-

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ria estar. A escolha pela fotografia foi espontânea, algo que parecia certo. Em um primeiro momento, fiz muita Lomografia e isso criou em mim um interesse pela fotografia analógica, maneiras diferentes de se revelar e trabalhar um filme e a comunidade que se cria em torno desta forma de produção. Foi basicamente assim que começou para mim. Meu primeiro trabalho elaborado foi feito durante minha graduação na Academy: Lotus, com Quiten De Bruyen, que também estava estudando lá. Este projeto foi muito importante porque com ele percebi que criar trabalhos documentais ou questionar este formato e suas convenções era o que eu realmente me interessava. Você pode dizer que este foi meu ponto de entrada na fotografia. Você percorreu toda sua carreira aca-

dêmica em Ghent. Como os estudos em artes visuais moldaram seu trabalho? Quão importante foi desenvolver seu olhar em relação à fotografia como um estudante desta área? Foi um processo muito valioso. Não diria que é algo necessário ou que garante que você será um artista melhor em comparação com alguém que não tem estudos formais no campo. Depende muito do tipo de trabalho que você deseja fazer. Foi um período especialmente importante para mim porque não tinha a mesma quantidade de contato com arte que alguém que cresceu na Europa pode ter. Era tudo muito novo para mim. Todos que frequentam esta escola, não importa se você está estudando fotografia, escultura ou pintura, irão aprender história da arte e filosofia. Cria-se um quadro comum de referências que é muito interessante.

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Lotus / Max Pinckers

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Você passa a ter o contexto no qual você está buscando se inserir mais claramente definido. Além disso, outro aspecto muito importante foi o contato com outros estudantes, artistas, pessoas que estão pensando nas mesmas coisas que você está. Foi provavelmente com estas trocas que eu mais aprendi. Fotografia é algo fácil de se entender tecnicamente, mas o que não se aprende tão facilmente é criar uma atitude crítica, de questionamento, construindo um verdadeiro pensamento sobre esta forma de expressão. Se você não for orientado, empurrado nesta direção, é muito tentador simplesmente não fazê-lo. É a opção mais fácil. Os seres humanos são preguiçosos por natureza, então este empurrão para realmente pensar em seus processos foi muito valioso para mim, aprendendo com pessoas que são mestras em seus campos de

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The Fourth Wall / Max Pinckers

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atuação. Você atua como professor e pesquisador na mesma universidade em que se formou. Como esta mudança impactou sua produção? O que você deseja criar como professor? Ainda não me considero um professor. Não me sinto encaixado neste papel e quando eu estou trabalhando com os alunos tento não me apresentar em uma posição de poder ou autoridade. Sou muito novo, tenho trinta anos. Tenho alunos que são mais velhos que eu. Estou fazendo um doutorado em criação artística, um programa de seis anos que tem como uma de suas partes centrais a atuação como professor, que deve ocupar 30% deste período de estudos. Eu não tinha muita experiência como professor, mas fui me adaptando. Você começa abordando o que te interessa,

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tentando guiar os alunos. Só posso falar das minhas próprias experiências, do que estudei e dos momentos de dificuldade neste processo. Sinto que as turmas podem ganhar muito com este contato, mas não gosto de me posicionar como um professor no sentido clássico do termo. Eu só faço meu trabalho e o compartilho com pessoas que querem ouvir mais sobre ele. Tendo este momento de apresentação e discussão da minha produção dentro da academia, tenho a chance de realmente elaborar e pensar mais sobre o que estou criando. Há também um apoio financeiro por parte do universidade, o que significa que eu não tenho que me preocupar em encontrar um trabalho para pagar as contas. Você recebe muito apoio e estrutura, além de estar em contato com outros pesquisadores, algo que é muito bom para mim e para o meu

trabalho. Com este cenário, posso fazer meus projetos com calma e isso é muito importante para a minha maneira de trabalhar. A grande maioria dos seus trabalhos é pensada como publicação. Como começou este interesse? Porque você decidiu por auto-publicar a maior parte da sua produção? Fiz meu primeiro livro, Lotus, em 2011. Foram apenas quarenta cópias, quase um boneco. Todos que queriam ganharam um exemplar. Esta experiência criou um interesse neste formato. Eu gosto bastante de trabalhar com designers, de pensar na forma como a fotografia documental pode funcionar muito bem em um livro. Dois anos depois da minha primeira publicação terminei meu mestrado e ampliei minhas explorações em fotolivros com The Fourth Wall.


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Mais uma vez eu mergulhava no formato livro e tinha mais certeza de que este era o suporte ideal para o meu trabalho. Este foi o primeiro livro que eu realmente auto-publiquei, através de financiamento coletivo. Eu escrevi para uma série de editoras sobre Lotus, mas tudo caminhou lentamente, parecia que ninguém estava realmente interessado no projeto e eu não tinha o menor interesse em passar por isso de novo. The Fourth Wall foi publicado no meio de um boom de projetos auto-publicados, no mesmo ano de The Afronauts, de Cristina de Middel. Conseguimos vender os mil livros que foram feitos, algo completamente inesperado, mas muito animador. Daquele momento em diante continuei publicando de maneira independente simplesmente porque posso. Gosto de trabalhar assim e funciona muito bem para mim.

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Tenho uma rede já consolidada e um alcance extenso, então enquanto puder continuar com este formato o farei. Voltando ao meu interesse pelo formato livro: a estrutura narrativa, o contexto que pode ser criado com o uso de texto e materiais encontrados, a facilidade de distribuição e o preço consideravelmente baixo, são todos fatores que me mantém muito cativado com este formato de apresentação de trabalhos fotográficos. O livro é a antítese do trabalho exposto em uma galeria, exclusivo, sofisticado. Publicações são democráticas e feitas para a fotografia: uma maneira perfeita de se contar histórias. Você criou a Lyre Press em 2015. Como se deu este processo? Como você escolhe os artistas com quem irá trabalhar nas publicações da editora? A Lyre Press é um experimento inte-

ressante porque, no momento de sua criação, eu já tinha publicado três livros de forma independente e pensava que eu precisava de um nome se fosse continuar fazendo isso. Também pensava em publicar o trabalho de outras pessoas e não podia fazer isso sem um nome, então, por razões práticas, criei a Lyre Press. O primeiro livro que publicamos foi de um escultor. Não queria trabalhar apenas com fotolivros. Porém, rapidamente percebi que eu não tinha tempo hábil para trabalhar nos projetos de outras pessoas. É muito difícil produzir seu próprio trabalhos, livros e ainda tocar a produção de projetos de outras pessoas. Isso além do financiamento, promoção, distribuição. Há uma razão para que editoras existam e me pareceu completamente absurdo tentar ser artista e publisher ao mesmo tempo. A Lyre ainda existe, mas de-

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Lotus / Max Pinckers

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Dupla: The Fourth Wall / Max Pinckers

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cidi que só publicaria colaborações entre outros artistas e eu. Já era algo que estávamos fazendo, então foi um caminho bastante natural a seguir. Em termos de divulgação, percebi que um livro que eu auto-publique alcança muito mais gente do que um lançado pela Lyre Press. Eu não trabalhei o suficiente a conexão entre a editora e eu, o que acabou trazendo um número menor de leitores do que o esperado em um primeiro momento. Por conta disso, decidi publicar de maneira independente meu último livro, Margins of Excess. Senti que se ele fosse lançado pela editora acabaria alcançando um número menor de pessoas. Você tem uma abordagem bastante aberta com as suas criações, compartilhando muito conteúdo de maneira gratuita em seu site. Qual a importân-

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cia de fornecer estes materiais, como os pdfs de seus livros, para a sua audiência? Por que meu trabalho deve ser exclusivo? Por que não compartilhá-lo com mais pessoas? Especialmente com livros que estão esgotados, é terrível ver pessoas pagando grandes quantias de dinheiro por um livro que deveria ser facilmente acessível. O pdf nunca será igual ao objeto final, mas você pode ver o design inicial, a maneira com que o texto trabalha com as imagens, o sequenciamento. Ele te dá uma boa ideia de como o livro deve ser. O único motivo para manter meus fotolivros exclusivos seria por uma valorização de mercado, então eu compartilho tudo. Logo os pdfs de Margins of Excess e Lotus estarão online e é sempre interessante porque eles ganham uma nova vida. Estudantes que não podem comprar

um livro de cinquenta euros podem baixá-lo e discuti-lo. No final das contas, não sinto que afete as vendas. Uma pessoa que realmente quer o livro vai simplesmente comprá-lo. Estou feliz com este sistema e também tenho a esperança de que alguém vai fazer uma versão pirata de um dos meus livros, baixando o pdf e o imprimindo novamente. Você tem um interesse especial pela fotografia documental. O que te atrai por este gênero de criação? Sinto que é a forma mais interessante de fotografia porque ela demanda uma espécie de reinvindicação da verdade. Se algo é apresentado neste formato, deve ser verdade, se não seria apenas um trabalho ficcional. O gesto documental implica na tentativa de dizer algo sobre a realidade, o lugar em que vivemos ou sobre al-


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guma forma de verdade. Ao mesmo tempo, é uma tarefa impossível, então há este paradoxo – ou ponto cego – interessante, com o qual você deve lidar o tempo todo. Isto é o que me mantém cativado. Há o desejo de ser autorreferente, mas também fazer referências ao assunto com o qual você está lidando. Além disso, há a vontade de comunicar que você não está em uma posição de autoridade. Você está tentando transmitir algo através de imagens, o que é muito difícil. Existem tantos aspectos em jogo apenas pelo fato de você apresentar seu trabalho como documental. Isto é, para mim, um grande motivador. A fotografia é uma forma comumente utilizada para apresentar nossa realidade, especialmente com o fotojornalismo. Você acredita que esta é uma lógica válida? Você vê a fotografia mais

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próxima da verdade ou da ilusão? Acho que é um pouco dos dois. A imagem fotográfica precisa de algo para apresentar, algo para ser fotografado mas, ao mesmo tempo, após a criação da imagem o objeto deixa de ser real, passa a ser representação. Apesar disso, ela ainda diz algo sobre a realidade que não pode ser colocado em palavras. É uma forma muito interessante de se dizer algo. Ela também pode ser muito enganosa, manipulativa e, por outro lado, muito direta. Há diversas maneiras que uma fotografia ou um documentário podem se posicionar. É uma questão de trazer estes assuntos à tona. Isto é o que a torna verdadeira ou interessante. É assim que você pode dizer ‘é desta forma que uma imagem se relaciona com a realidade ou com este assunto’. Isto é o que ocorre quando você mostra as estruturas por trás da

criação de uma imagem mas se mantém respeitoso de sua franqueza e conexão com a realidade. Este é um paradoxo que aparentemente ainda não entendemos completamente e que pode ser discutido infinitamente. Como você sente que a fotografia pode ser utilizada para sugerir as ideias de realidade ou ficção? Muitos trabalhos estritamente documentais ou ficcionais usam documentos e outros tipos de materiais para ‘convencer’ o espectador de sua conexão com a verdade. A imagem fotográfica precisa estar conectada a outros materiais para transmitir estes valores? Acredito que há uma tendência – ou uma estratégia – com artistas como Laia Abril, Cristina de Middel, Joan Fontcuberta, eu e tantos outros em que este processo metalinguístico e autorreferente se tornou intrínseco


entrevista

à maneira com que abordamos nossos temas. Isto é parte do trabalho, parte da tentativa de dizer ‘olhe, há coisas que nós apenas podemos representar, há coisas que não sabemos como comunicar e isto é apenas uma fotografia’. Isto significa tentar destacar que algo não é real, que você está olhando a representação de algo. Isto é importante em uma prática artística, mas acredito que todas as imagens tem este embate dentro de si. Não é algo que precisa ser construído, apenas admitido. Talvez seja impossível para alguns artistas criar sem abordar este aspecto dentro de seus trabalhos. Você precisa passar por isso antes de trazer mais elementos para a discussão. Há muitas maneiras de abordar este conflito entre realidade e ficção na fotografia. No meu caso, uso uma luz bastante teatral, mas sempre apresento as pessoas que re-

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almente estão conectadas ao aspecto documental da história. Há sempre formas de combinar estes aspectos contraditórios em uma fotografia. É essencialmente sobre encontrar espaços nos quais você, como artista, se veja livre para criar as imagens que você quer sem se sentir preso. Você já lidou com tópicos difíceis de materializar, como o amor e a mentira. Por que você, como um fotógrafo documental, se sente atraído por estes tópicos? O motivo pelo qual eu escolhi estes tópicos se dá por terem, dentro de si, um tipo de dualidade entre uma representação existente de algo, por vezes estereotípica, que todos conseguem se relacionar e um elemento contrário a isto dentro deles. Eles não são nem verdade nem mentira per se. A ideia do amor na Índia, por

exemplo, é muito influenciada pela estética de Bollywood mas, por outro lado, você ainda tem um sistema de castas e uma série de outros empecilhos que vão contra tudo aquilo que está sendo representado no cinema e na cultura visual do país. Em Margins of Excess você tem pessoas que moldaram suas realidades e são perseguidas por estarem supostamente mentindo, mesmo que, para estas pessoas, suas histórias se pareçam tão verdadeiras que eles não consigam medir as repercussões de contá-las. Nunca é realmente algo tão simples, preto e branco. É assim que eu costumo escolher meus temas, quando sei que um assunto vai me dar espaço para brincar, criar e encenar coisas, criando minha própria realidade dentro do tema em questão. Qual é a importância da fotografia na

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esta era de pós-verdade em que estamos vivendo? Não sei... Eu não supervalorizaria o valor da fotografia em um certo sentido. Se você considerar o volume de imagens feitos todos os dias você começa a se perguntar se é algo realmente significativo. Ao mesmo tempo, pode ser algo muito importante. Há um pouco dos dois lados dentro deste cenário. Me sinto relutante de colocar uma posição concreta sobre o meio da fotografia. Pode ser algo muito maior do que ela. Talvez seja algo sobre uma ideia de cultura visual, que tudo precisa ser visualizado para ser representado. Estas representações podem ser manipuladas, no entanto. Isto se dá quando você escolhe sua melhor fotografia para ser sua imagem de perfil em uma rede social ou como protestos são fotografados e apresentados nos jor-

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Nunca é realmente algo tão simples, preto e branco. É assim que eu costumo escolher meus temas, quando sei que um assunto vai me dar espaço para brincar, criar e encenar coisas, criando minha própria realidade dentro do tema em questão.

nais. Todas são imagens que tem um objetivo específico dentro de si. Qual a significância disto é algo difícil de responder... Talvez seja apenas sobre assumi-lo e entender que imagens podem fazer você pensar em algo que não seja real ou que podem fazer você pensar apenas naquilo que deseja pensar. Estou curioso para ver o rumo que tudo isso irá tomar. Logo a fotografia – em um sentido direto, de apontar e registrar algo – se tornará obsoleta com câmeras que irão criar

uma realidade aumentada e produzir a melhor imagem possível daquilo que você está fotografando. Estamos em um ponto em que a conexão entre fotografia e realidade está mudando muito rapidamente. Será que ainda poderemos chamá-la de fotografia neste momento? Não sei... Realmente não tenho certeza. 

por Felipe Abreu


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JAVIER ÁLVAREZ Prédio

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ão Paulo convive com um profundo problema habitacional. Sobram prédios, mas faltam moradias. Dentro desta contradição, o Movimento Sem Teto e outros grupos sociais ocupam uma série de edifícios, especialmente no centro da cidade. Assim se buscam maneiras dignas de se viver e aponta-se o dedo para o imenso problema urbanístico da cidade. Em Prédio, Javier Álvarez fotografa a ocupação Marconi com um olhar atento. Entre várias e longas visitas, o fotógrafo chileno lida com a questão da construção de um lar e de todas as adversidades que podem aparecer neste caminho.



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Todos os que vivem em uma ocupaJavier, como começou sua trajetória na fotografia? Sempre houve câmeras em minha casa, mas comecei tarde, com 18 ou 19 anos. Comecei brincando, fotografando meus amigos, meu bairro, minha casa, minha vida cotidiana. Algo assim. Nos conte sobre a criação do seu projeto Prédio. Foi uma coincidência. Comecei a viajar entre Chile e Brasil em meados de 2010. Sempre me interessei por São Paulo, sempre voltei. Em uma dessas vezes, percebi que os edifícios ‘pixados’ estavam por todos os lados da cidade e decidi entrar e fazer fotos. Em 2013 bati na porta de um destes lugares e pedi licença para entrar. Fi-

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quei esperando por quase uma hora até que me apresentaram Manu, coordenador da ocupação Marconi, na República, no centro de São Paulo. Passei algumas horas passando pelos apartamentos, sem entender nada do que aquilo espaço realmente significava. Essa primeira visita foi na última noite da minha viagem, antes de voltar ao Chile. Mandei revelar o material quando cheguei em Santiago e me dei conta que era um espaço forte, para criar um trabalho longo. Continuei em contato com a ocupação e voltei todos os anos, ficando entre um e dois meses, até duas vezes por anos. Passei seis semanas conectado à ocupação por seis semanas em Julho deste ano.

ção perderam algo. Todos estão em suspenso, esperando, angustiados. As histórias dos seus personagens são centrais para a construção desta narrativa visual. Como você buscou traduzir visualmente estas histórias de vida? No geral, passando muito tempo com eles. Tenho uma relação afetiva com quase todos, que se mantém até hoje. Com isso, o resultado que se vê é também o que sinto quando estamos juntos. Tem a ver também com a maneira que eles me deixam entrar ou abrem suas histórias e sentimentos, simplesmente pelo motivo de que realmente me interessam suas vidas, seu passado e o que eles estão


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passando. Fui muitas vezes sem fotografar, só para estar lá, entender esta história. Você falar sobre a ideia de ‘lar’ e suas dificuldades nesta realidade. O que te marcou na busca da construção desta ideia em um edifício ocupado? A perda. Acho que fiz conexões por aí. Também tive uma experiência em que minha família passou um tempo sem casa, jogados na rua pela polícia com minha mãe e irmã. Fora esta conexão, a abordagem está conectada em como entendemos um problema social. Todos os que vivem em uma ocupação perderam algo. Todos estão em suspenso, esperando, angustiados. Queria saber disso, estar dentro e a fotografia te ajuda a abrir algumas portas. Acho que por isso que insisti em voltar todos os anos. Com

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o tempo, já mais maduro, pude entender uma maneira de estruturar visualmente algo massivo como os movimentos sociais e de resistência. Uma mistura de vida pessoal, política e amizade. Qual é a potência de um projeto documental como este? Como você sente que pode mudar esta realidade? Acredito que só a fotografia não basta. Ganha-se força com a junção com outras disciplinas. Como a arquitetura e o urbanismo podem encontrar soluções? O jornalismo, as leis, os meios independentes? Todos ajudam a mostrar um tema de maneira mais profunda. Este projeto é uma de várias engrenagens e tomara que possa servir para algo. Acredito que se não houver um projeto de educação, políticas públicas ou comunicação, o

‘pobre’ seguirá sendo criminalizado e as sociedades seguirão classistas. Enquanto isso, o povo seguirá ocupando edifícios e a fotografia não fará nada além de ruído. Eu sigo fazendo minhas fotos e também coloco meu trabalho à disposição sempre que ele sirva para gerar diálogo e não termine apenas pendurado em uma parede sobre um sofá de couro vermelho.

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uracão é um mergulho de Rafa Moo na história de seu pai, o jogador de futebol Dino Furacão. Desta viagem, nasceram duas publicações: Furacão 82 e Hariken 87, ambas lançadas pela Gris, editora de Rafa e Lara Perl. Este projeto lida com a memória pessoal e do futebol, com a construção de uma narrativa humana e de descoberta, afastada das histórias gananciosas tão vistas no esporte atual. Impressiona a candidez das imagens e a constante sensação de descoberta e alegria presente em cada uma das imagens deste extenso arquivo visual.



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O livro é sobre o futebol de um outro Rafa, você é um dos fundadores da Gris, designer e fotógrafo. Como começou sua relação com a imagem e com o universo editorial? Meu pai tinha uma câmera fotográfica e uma filmadora e em algum momento ou outro eu e meu irmão as utilizamos durante a nossa infância. Depois disso participei de uma ONG em Salvador e fiz um curso de Design gráfico enquanto cursava o ensino médio. Quando entrei no curso tive contato com a fotografia logo no primeiro semestre, foi muito interessante, mas na época não tinha câmera e estava um pouco perdido sobre qual rumo tomar. Durante meu intercâmbio em Madrid tive contato com o universo editorial e fiz amizades com fotógrafos que de-

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ram origem aos experimentos com fotolivros. Hoje não me considero propriamente um fotógrafo mas sim designer e editor. Utilizo a edição e os recursos do design gráfico para editar trabalhos de outros artistas e também encontrei o meu lugar como artista nesse universo, trabalhando arquivos relacionados ao futebol. Nos conte sobre a criação de Furacão e sobre sua publicações como livros. O furacão surgiu no final do ano de 2016, em uma conversa informal numa mesa de bar com meu pai. Estávamos assistindo a um jogo do Bahia e ele me contou sobre a história de sua viagem aos Emirados Árabes, mostrando-me suas fotos e cartas. Fiquei fascinado pois nunca tinha

tempo e outro lugar, mas também é sobre a intimidade daquele garoto visto aqueles arquivos e a história toda me parecia tão surreal e distante, como um sonho. Lara foi uma pessoa importante ao me fazer perceber que a memória, o arquivo de nossa família também somos nós, e o modo delicado com que ela conta as histórias me motivou muito. Daí pegamos todo aquele material, digitalizamos e fomos recriando aquela viagem, com trechos das cartas e a sequência das imagens. A risografia, a forma como decidimos imprimir o livro, reforçou uma certa atmosfera que deu essa cara meio fantasmagórica para a publicação, o formato também reproduz


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o tamanho exato dos álbuns em que as fotos estão guardadas. No fim das contas, o livro é sobre o futebol de um outro tempo e outro lugar, mas também é sobre a intimidade daquele garoto, seu humor, seu jeito de ser que vai além de números e dinheiro. Este ensaio está pautado no acervo de imagens do seu pai. Como foi o processo de mergulhar e editar este universo visual? É muito interessante estar em contato com esse tipo de material. Consumo diariamente uma grande quantidade de imagens sobre futebol, no instagram, sites de esportes, TV, etc. E quando vejo o material do meu pai me surpreende muito porque além da parte futebolística, em campo, tem a parte do humano, dia-a-dia, fraquezas e sucessos e do cuidado com

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aquela memória tão frágil. Resgato dados, recrio jogadas e é uma fantasia bem interessante pois me imagino naquela situação. A narrativa é bem intuitiva, busco relacionar as imagens criando ambientes e sensações. A partir daí, analisando quais imagens sugerem uma combinação mais interessante entre a anterior e a seguinte. Além disso, o Furacão 82 tem bastante texto, e combino ele sugerindo uma história de sucesso, em que o time quase se consagra campeão, mas não chega lá. Essa história vai sendo contada nas entrelinhas das relações familiares de Dino com o seu pai, sua mãe, seu irmão, os seus interlocutores nas cartas que envia para o Brasil. Quais são os principais interesses que você vê na realização de trabalhos

com fotografia vernacular? Não sei bem. Acho que as fotografias vernaculares carregam uma certa inocência ou um simples desejo de guardar aquele momento, são despretensiosas. E gosto disso, de transferir essas imagens para um outro universo. No campo do futebol, acredito que esse tipo de projeto alcança um potencial imenso porque estamos precisando de narrativas mais humanas. Além disso, gosto muito da realidade de Salvador, sempre me encanta explorar projetos com nossos temas, cultura, nosso povo, nossa energia e o personagem principal dessa história toda é um baiano com todas as suas bagagens e particularidades. Nos próximos projetos devo contar a história de um baiano do recôncavo: Florisvaldo, também jogador de futebol, alfaiate e meu avô.

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igital e analógico, volta e meia, costumam se encontrar em algumas esquinas por aí, talvez como eu tenha encontrado amigos, nestes dias, que não via há algum tempo. O assunto retorna, não por teimosia ou por relevância extrema mas talvez para nos lembrar que nada é para sempre, as coisas mudam. Vendo a edição de Outubro do British Journal of Photography reencontrei esse diálogo. Uma equipe de jovens fotógrafos fabrica câmeras analógicas de grande formato e está para iniciar a produ-

Angelo José da Silva é professor de sociologia na Universidade Federal do Paraná e fotógrafo. Suas pesquisas mais recentes focam o espaço urbano e o grafite.

ção de ampliadores para a impressão de cópias como se fazia antigamente. No interior da campanha de divulgação do novo produto eles reproduzem no BJP passagens de várias entrevistas com fotógrafos que utilizam filme ou já utilizaram para produzir suas imagens. Muitas questões são colocadas pelos entrevistados e nos ajudam a refletir sobre fotografia e seus infinitos aspectos. Destaco aqui o analógico e o digital, inspirado por dois fotógrafos que deixaram suas impressões sobre o tema. Harvey Wang migra para o digital no início deste século, depois de décadas de trabalho com filme. Em 2008 retorna para a película para tentar preservar uma forma de expressão artística que, acreditava ele, estava desaparecendo. Desenvolve então um projeto de registro fotográfico e videográfico

de profissões que estavam desaparecendo, como por exemplo, os alfaiates. Ele estabelece uma relação entre o fazer e um modo de vida específico. A ideia de Jeff Jacobson também me atraiu nessas entrevistas. Uma síntese livre dela pode ser pensarmos que o processo analógico ocorre no inconsciente e o digital no consciente. É uma diferença entre as formas que não necessariamente define o que é melhor ou pior. Para mim a fotografia lembra um processo de amadurecimento de uma ideia, de um projeto, de um modo de ser. É tempo e luz. Pensemos em uma laranja que amadurece e fica mais doce ao receber a luz do sol. O meio para produzir a foto continua sendo importante, representa escolhas mas continuará sempre sendo o meio.

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A ideia de Jeff Jacobson também me atraiu nessas entrevistas. Uma síntese livre dela pode ser pensarmos que o processo analógico ocorre no inconsciente e o digital no consciente. 129


MANDE SEU PORTFÓLIO revista.old@gmail.com Fotografias da série CAU, de Sara Sanz. Ensaio completo na OLD Nº 75.




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