Farrazine 2013 - Edição 02

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EARRAZI NE 2 0 1 3 - 0 2

Entrevistamos o incrível Art Thibert Trouxemos, quase em primeira mão, o Ps4 da Sony

Contamos um fantástico conto no mundo da psicologia

Contamos o fim de Buraco Negro

Analisamos os mitos do Dragão e do Porco

Apresentamos a historinha da Odete, a dragonesa caolha e da Princesa Jana


FARRAZINE 02

Para você leitor, em seu computador, notebook, tablet, consumidor de apple, android, ou mesmo você que é revisor do farrazine, é para você que temos o seguinte recado:

FELIZ PÁSCOA, E BEM‐VINDO AO FARRAZINE 02 Sim, nós ainda estamos por aqui, não sabemos por quanto tempo, mas ainda estamos... É Páscoa, que significa «passagem», e nós estamos passando já a um tempinho, é época de ressurreição, e nós «ressussitamos», e esperamos continuar por aqui por bastante tempo... Talvez até pareça que estou enrolando nesse texto. Mas veja só, muitos que o fazem, tiram ótimas notas no ENEM. Nosso editor, me paga por palavras escritas,então não se assuste se começar ler palavras aleatórias, ah lek lek lek lek lek, fazê uma sopa pá nóis, parapapapa. Senhores leitores, esfregadores de dedo em tela, eu recebo por palavras, mas vocês querem conteúdo de qualidade, contos, quadrinhos, entrevistas, games e muito mais! Criado carinhosamente, o farrazine 2013 nº02 está pronto para você, algumas mães, esposas, maridos e filhos não entendem o motivo de gastarmos tanto tempo criando conteúdo para você nosso fiel, ou mesmo infiel leitor, mas mesmo sob protestos, gostamos de criar, escrever, desenhar, diagramar. Para nós, é divertido ! Para vocês, é quase tão divertido! E, se preparem, a edição 03 já já pinta por aqui.

Co‐Editor

‘Farra pra tudo é um bom remédio; só um idiota completo morre de tédio.’

ÍNDICE Entrevista ‐ Art Thibert ............................03 Conto ‐ Buraco Negro ‐ Parte 06..............06 Farragames ‐ Ps4.......................................08 Conto ‐ Construto Psicofantástico I.........12 Tirinha ‐ Odete, a dragonesa caolha & Princesa Jana, a casadeira........................17 Crônica ‐ O Mito Comparado ‐ O Dragão e o Porco...................................18

EXPEDIENTE

entre em CONTATO com nossa REDAÇÃO contato@farrazine.com fb.com/Farrazine

@Farrazine

Editor Geral: Cleson Cruz Editor de Arte: Bruno Romero Divulgação & Marketing: Adilson Santos Colaboraram nesta edição: Art Thibert (Desenho de Chrono Mechanics da capa), Paloma Diniz (Entrevistando o Art Thibert), Pablo Grilo (Texto em Buraco Negro ‐ parte 6), André Levy (Texto e Diagramação de PS4), Zé Wellington (Texto em Construto Psicofantástico), Rita Maria Félix (Texto das Tirinhas Odete, a dragonesa caolha e Princesa Jana, a casadeira), Adriana Rodrigues (Arte e Texto das Tirinhas Odete, a dragonesa caolha e Princesa Jana, a casadeira), Rafael Machado Costa (Texto em O Mito Comparado ‐ O Dragão e o Porco), Cleson Cruz (Diagramação da capa, da Entrevista de Art Thibert, de Construto Psicofantástico e das Tirinhas Odete, a dragonesa caolha e Princesa Jana, a casadeira) e Adilson Santos (Texto e Diagramação do Editorial e Diagramação de O Mito Comparado ‐ O Dragão e o Porco). Farrazine é uma publicação online distribuída gratuitamente, sem custo algum, na camaradagem, não ganhamos nem um centavinho sequer. As matérias são de inteira responsabilidade de seus autores, se for processar alguém, processem a eles e não aos editores... Ah, e tem mais, as imagens sem créditos de autoria são retiradas do São Google.

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- Tô. Tô sim, d e t e t i v e Roberta.

- O que está acontecendo? - Disse Jonas, ao recobrar a consciência ainda deitado em um colchão velho. - É garoto, você perdeu a cabeça nessa madrugada. Disse a voz de um homem, que ele sabia que reconhecia de algum lugar, mas não lembrava de onde. Colocou a mão na nuca e foi subindo pelo couro cabeludo até chegar a um galo formado pela pancada na parte de trás. - Ai! - Ainda dói? He, he, he. Jonas ficou olhando aquele homem rindo enquanto cocava seu cabelo crespo em volta da região onde o haviam acertado horas antes. - Eu vou confessar que achei que era piração sua ao ver o velho, mas quando me contaram que foi ele... Erh, quer dizer... O outro ele que tinha te seqüestrado, ai sim eu entendi porque você deu chilique.

- Aqui, toma. - Ela estava com um copo de café na mão e o entregou. -

Obrigado. - Disse, enquanto se sentava mais confortavelmente sob o colchão velho e um pouco empoeirado. Bebeu um gole do café amargo, o que o ajudou a despertar um pouco mais. Ele conseguiu visualizar melhor a situação: ainda estavam no armazém, raios do sol da tarde entravam sem tanta força pelas janelas, e as mesmas pessoas continuavam conversando sobre uma mesa, enquanto Miguel e outro homem vigiavam a única porta de entrada que estava aberta. - Detetive, porque você não me disse que era o professor? - Seria um choque para você, garoto.

Lembranças começaram a vir na sua cabeça da madrugada anterior. Não, não era pesadelo, ele tinha visto o professor, mas era outro professor. - O profe... O profe... Enquanto ouvia mais um riso, Jonas ouviu o som de um salto alto andando vindo até eles. - Sai, Miguel. Vai embora! - Ordenou uma voz feminina, abanando a mão esquerda. - Me desculpa, Jonas. O Miguel as vezes é... Enfim, você tá bem? Ele deu uma suspirada. Se sentiu melhor depois de poucos segundos com os olhos fechados.

- Você mentiu pra mim. - Não, eu apenas não te disse, senão você não viria. - Já consegue se levantar? - Jonas anuiu. - Então vem comigo. Roberta o ajudou e foram andando em direção as pessoas na mesa. Quando se colocou ao lado dos demais, a mulher falou: - Vem aqui, filho. - Falou a senhora com autoridade, como se fosse a chefe geral. Jonas foi se aproximando, passando pelas costas das pessoas, se colocando ao lado delas. Ele olhou para os objetos analisados na mesa, todos espalhados e sob a superfície e tomou um pequeno choque com o que viu: a cartolina suja e velha com linhas paralelas riscadas e o traçado por cima mais forte.

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- Reconhece isso aqui, filho?

escritório, e foram comer em silêncio.

- Sim... Essa... Essa... - Falou titubeando, ainda nervoso. Cartolina ele usou para me seqüestrar.

O final da tarde foi anunciado pelos raios de sol que deixavam o armazém, e assim foi iniciada uma pequena reunião entre os policiais dentro do escritório, sendo deixados de fora Jonas, o professor mais velho e Miguel. Incomodado com a presença daqueles dois, ele ficava um pouco apreensivo naqueles minutos que duraram para ele quase uma eternidade.

- E foi essa mesma cartolina que serviu de prova para a gente confirmar todas as outras vitimas do professor e o padrão que ele segue. Já essas aqui - Mostrou cartolinas que Jonas sabia que as reconhecia de algum lugar -, você roubou para nós do laboratório dele. - Eu? - Não exatamente você. O Jonas era um pouco mais velho e mais magro. E foi o único que conseguiu enganar o professor. Foi ele que permitiu que melhorasse a nossa pesquisa e desenvolvesse a nossa máquina do tempo. - A mulher mais velha bateu de leve com o dedo médio na mesa duas vezes seguidas. - Jonas, você tá melhor da cabeça, filho? - Ele anuiu. - Se lembra do que aconteceu essa madrugada?

Quando enfim terminada, a mulher mais velha liderou a saída do escritório e anunciou: - Esse vai ser o plano: a gente vai seguir o que o professor combinou com você, Jonas. Você vai até o ponto de encontro e descobre o que ele queria. Pelo padrão, ele deve querer que você volte no tempo, mas vamos verificar com cuidado. A detetive vai junto, além do Miguel pra cobertura de vocês. Eu vou ficar aqui esperando a ligação de vocês com o professor e o Aloísio também - apontou para o outro policial -, pra ver se a gente descobre o que diabos o professor quer com o grande paradoxo e ver o que faremos depois.

- Sim, me lembro. Do professor... - Cardoso! Fernando Cardoso, sim, eu mesmo. - Falou o professor quando saiu de sua mesa e começou a vir até eles. - Oi Jonas. - Chegou até a mesa e mostrou o papel que estava na sua mão, o bilhete que ele e Roberta tinham retirado da mala na noite anterior. - Ah, e muito obrigado por me trazer o resto das minhas anotações. O que a delegada se esqueceu de falar é que foi por sua causa das suas cartolinas roubadas que eu consegui terminar a minha pesquisa e desenvolver a máquina do tempo pra polícia.

Jonas foi seguir Roberta e Miguel para dentro do escritório, e viu a detetive e o policial abrirem um armário e retirar munição para suas armas, além de outros objetos que os iriam auxiliar, incluindo dois smartphones muito avançados. Ficaram mais alguns minutos checando tudo antes de ir para a saída, quando a chefe chegou perto deles. - Detetive, presta atenção, se lembre do padrão. - Ela anuiu. Aqui tem algumas anotações que o nosso professor fez, que pode te ajudar. - Roberta pegou de sua mão e colocou dentro do seu terno. - Preparados? - Perguntou a chefe.

- Chefe! Aqui, chegou o lanche! - Não. - Afirmou Jonas. Todos olharam para Miguel e o outro vigia, que carregavam alguns sacos plásticos, que foram depositados em outra mesa mais afastada, perto da entrada de um pequeno escritório onde podia-se ver pela janela uma geladeira marrom. Assim que depositou os sacos plásticos na superfície da mesa, todos vieram e puxaram algumas cadeiras para junto da mesa.

- Ótimo, porque nenhum de nós vai estar quando começar o buraco negro. Boa sorte.

Assim que foram se sentar, surgiu outro clarão no céu, iluminando o armazém. De repente, todos foram ao chão e alguns vomitaram suco gástrico, outros café e água, e até resto de comida. Jonas foi um dos primeiros a se recompor. Ele já desconfiava, mas a partir daquele momento ele teve certeza: ninguém pertencia aquele presente ou realidade. - Vamos, vamos logo comer, o buraco negro vai começar em breve. - Falou a chefe. Depois de minutos, todos já tinham ido ao banheiro para tirar o gosto ruim da boca, ou bochechado com água potável de uma das várias garrafa pet da geladeira de dentro do

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O MITO COMPARADO: COMENTÁRIOS SOBRE ALGUMAS DAS CURIOSAS OCORRÊNCIAS DE SIGNOS E CONCEITOS QUE SE REPETIRAM EM CULTURAS DISTANTES NO TEMPO E ESPAÇO TENDO COMO RESULTADO SIMILARIDADES E DISTINÇÕES MUITO INTERESSANTES

Minha proposta aqui será apresentar uma comparação entre curiosas formas de manifestações diferentes de um mesmo tema por civilizações diversas de lugares e épocas distintas ressaltando suas distinções e semelhanças.

O Dragão. Os monstros gigantescos e reptilianos são uma constante na cultura humana. Estiveram presentes nas lendas de civilizações européias, asiáticas e americanas, e embora representando vários significados próprios de cada cultura, ainda assim mantiveram curiosas semelhanças. Para os helenos, sua forma de drákon consistia em versões gigantescas de serpentes. O mais famoso possivelmente foi a Hydra de Lerna. A Hydra era uma enorme serpente filha de Equidna, A Mãe dos Monstros

que por sua vez era filha de Crisaor e neta de Medusa

, uma criatura

com a parte superior de mulher e da cintura para baixo na forma de uma serpente de duas caudas, e de Typhon

tratado mais adiante

e foi usada por Hera contra Herakles. Como

descreveu Hesíodo: A seguir gerou Hidra, sábia do que é funesto,e em Lerna nutriu-a a Deusa de alvos braços Hera por imenso rancor contra a força de Heracles; matou-a o filho de Zeus com não piedoso bronze, A lenda diz que a Hydra, ao ser decapitada, regenerava duas cabeças no lugar da que fora cortada, e que sua peçonha fazia com que a ferida embebida com ela jamais cicatrizasse. Esse dragão foi morto por Herakles no segundo de seus Doze Trabalhos, sendo que os sete primeiros trabalhos consistiam em confrontar forças animais de imenso poder. Essa luta de Herakles contra poderes naturais brutos significava para os helenos o confronto da racionalidade, representado pelo herói, contra os instintos selvagens que viviam dentro dos homens e a que estes deviam aprender a conter. Assim, o papel da Hydra era representar tais vícios instintivos humanos do desejo de prazeres. Cada cabeça era um desses desejos que deveria ser contido, mas não importando quantas vezes fosse impedido, retornaria com mais força, e uma vez experimentados, tornar-se-iam uma ferida eterna, um desejo com que se deveria conviver para

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sempre em uma constante batalha para contê-lo. No Extremo Oriente, os dragões também são representados como répteis que lembram serpentes gigantescas, mas dotados de patas e longos bigodes e sempre associados à água. Um dos mais relevantes dragões do leste da Ásia é aquele que os chineses chamam de D ng F ng Q ng Lóng, e os japoneses traduzem como Seiryuu. Seiryuu é o grandioso dragão azul e um dos quatro grandes deuses elementais, Senhor do elemento Água e da direção Leste. Além de Seiryuu, existem outros dragões menores, alguns Senhores de rios ou lagos. Os dragões asiáticos são vistos como o que os japoneses chamam de youkai, espíritos que representam forças da natureza, geralmente sábios, mas muito poderosos que podem se tornar violentos caso desafiados. Aqui os dragões representam a força elemental que não pode ser controlado pelos homens, como o mar e as correntezas. Conforme um trecho do Si Yeou Ki, após o Rei-Dragão do Rio Ching ser alertado da existência de um adivinho infalível, que previa para um pescador qual o melhor lugar para se pescar em cada dia, e sentindo a ameaça de toda a população aquática desaparecer levada pela rede de pesca: O Rei-Dragão estava a ponto de agarrar seu sabre e de correr para degolar o adivinho. Mas seus filhos-dragões e seus netos-dragões e todos os seus ministros-peixes e seus generais-peixes o retiveram e disseram: Vossa Majestade fará melhor verificando primeiro se isto é bem exato. Precipitando-se assim, Vossa Majestade será naturalmente seguido pelas nuvens e escoltado pelas chuvas. O povo de Ch'ang-an sofrerá grandes perdas e, em suas preces, queixar-se-ão do senhor junto ao Céu [ ]

Ainda no Si Yeou Ki, as narrativas da história do monge Hsüan Tsang e traduzido para o japonês como Sanzo

que adotou o nome Tripitaka em sanscrito

que foi, saído da China, até a Índia buscar as esculturas de Buda no

século VII, entre os guarda-costas selecionados pela deusa Bodhisattva Kuan-yin para substituir os guardas da comitiva de Tripitaka devorados por monstros da montanha está Sha Wujing, ou Sa Gojou na versão japonesa. Sa era um Marechal das Milícias Celestes do Imperador de Jade que, após acidentalmente ter quebrado uma taça do Imperador, foi banido para o Mundo de Baixo onde vivem os homens condenado a viver nas profundezas do Rio de Areia devorando viajantes que tentassem cruzar o curso d'água. Ao encontrá-lo, a deusa lhe oferece redenção e o direito a voltar ao mundo celestial caso se comprometesse em parar de se alimentar de animais e homens e escoltasse o monge até seu destino. Diferente de seus outros dois companheiros na missão de conduzir Tripitaka, o porco Cho Hakkai e o rei dos macacos Son Gokou, Sa Gojou não é impulsivo ou exagerado em suas emoções, ao contrário. É um personagem tímido e indefinível, cuja representação está relacionada à sinceridade e a demonstração do que há no interior do coração . Sa é um guerreiro dragão que, apesar de ser aparentemente indiferente, segue fielmente Tripitaka vendo nele o papel de seu líder e mentor espiritual. No Si Yeou Ki há a presença de outros dragões: um jovem filho de um rei-dragão

banido por causar um incêndio acidental que

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resultou em sua acusação por seu pai como insurgente e em sua condenação a viver no Mundo de Baixo

que

devora o cavalo de Tripitaka, mas que para se redimir assume a forma de um cavalo e conduz o monge pelo restante da jornada; e um rei-dragão que, apesar de seu poder, acaba submisso às vontades do macaco de pedra e, para se livrar da inconveniente visita, o presenteia com aquela que se tornaria a arma do macaco: o bastão que pode assumir qualquer tamanho e massa. Nas lendas do norte da Europa, os dragões são representados como figuras malignas, arquétipos da ganância e cobiça que dedicam suas vidas à pilhagem e colecionando objetos de metais preciosos, com os quais fazem seus leitos, e cobertos de escamas que lhe deixam invulneráveis, exceto na região do ventre. No poema épico inglês do século XI retratando fatos supostamente ocorridos na Dinamarca e Suécia no século VI Beowulf, o herói da narrativa

já tendo realizado grandes façanhas que lhe renderam reputação, velho e rei de seu povo

tem de

confrontar um dragão que ataca seu reino após um servo roubar uma taça de ouro da coleção do réptil. Quando Beowulf e sua comitiva vão até a caverna do dragão para confrontá-lo, os guerreiros que lhe seguiam fogem e abandonam seu rei ferido na luta contra o monstro. Apenas permanece ao lado do herói o jovem e aparentemente fraco Wiglaf, que luta ao lado de seu rei o auxiliando a derrotar o monstro. Antes de morrer pelos ferimentos da batalha, Beowulf moribundo passa sua espada para o jovem, alegoria que representa que com o fim de um herói e de uma geração, surge uma nova para substituí-la. O dragão aqui, não mais uma serpente, e sim um monstro dotado de patas e tronco largo e forte, alado e associado ao elemento fogo que libera em suas baforadas

e não à água como nas versões orientais

é a ganância, o desejo insaciável do poder e de bens

materiais. Ainda no norte da Europa, na Völsunga Saga, poema épico islandês de aproximadamente 1400 sobre fatos históricos também no século VI, Fafnir, filho do rei dos anões Hreidmar, se junta ao irmão Regin para matar o próprio pai e roubar-lhe o tesouro, que incluía um anel amaldiçoado. Entretanto após o assassinato, Fafnir não querendo dividir o tesouro o esconde em uma caverna e passa a viver sobre ele na forma de um dragão. A cobiça o transforma em dragão negro, que passa a vigiar constante e incessantemente tais tesouros até ser finalmente morto em sua caverna pelo herói Siegfried. Banhando-se com o sangue do dragão, bebendo o sangue e depois devorando seu coração, Siegfried adquire invulnerabilidade, a capacidade de entender o idioma dos pássaros e a sabedoria, relacionando o dragão a uma espécie de fonte de poder. Em Tristão e Isolda do século XII, há novamente um dragão de pele escamosa e invulnerável com o hálito de chamas: O dragão tinha dois cornos na testa, as orelhas largas e peludas, os olhos cintilantes à flor da cabeça como carvões ardentes, o alto focinho erguido como o de uma serpente fantástica, a língua de fora, cuspindo por todas as partes fogo e veneno, o corpo escamoso, garras de leão e a cauda de uma serpente. Tristão confronta este dragão na Irlanda, e acaba envenenado, possivelmente uma influência da lendária peçonha da Hydra helena. Nesta história, o rei da Irlanda, Gormond, cansado das destruições causadas pelo dragão, promete a mão de sua filha em casamento àquele que derrotasse a fera. Aqui há uma curiosa semelhança com a lenda helena em que Cassiopeia, a esposa de Cefeu e rainha da Etiópia na Fenícia, após comparar sua beleza com às das divindades marinhas, recebe como castigo a visita de um monstro marinho que destruiria seu reino.

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Sua filha Andrômeda se oferece para ser sacrificada ao monstro em troca de que o reino fosse poupado. Então surge o heróico Perseu que acorda com Cefeu ter a mão de Andrômeda em casamento caso vencesse o monstro e salvasse o reino, e assim o faz. Mais curioso ainda é a existência no Kojiki e no Nihon Shoki mitológicos japoneses convertidos para texto escrito no século VIII

os relatos orais

da história em que Susano-o, deus das

tempestades, caminhando pelo mundo dos homens passa pela casa de uma família. O casal explica que pelos arredores de sua casa vivia o dragão de oito cabeças Yamata no Orochi, que a cada ano vinha e exigia em sacrifício uma de suas filhas para que a família e a plantação fossem poupadas, e que, exceto por uma, todas as outras sete filhas já haviam sido sacrificadas, e a vez da última ser oferecido ao dragão chegara naquele ano. O deus se propõe a salvar a donzela e matar o dragão em troca de ela se tronar sua noiva. É interessante o entrelaçamento dos mitos em que a Hydra helena concede elementos ao dragão irlandês que retoma a lenda de Perseu, que se parece com o mito de Susano-o e Orochi. Essa história seria retomada ainda mais uma vez pelos cristãos, como relatam os manuscritos do bispo inglês Percy, que conta uma versão sobre a história do romano São Jorge como sendo um órfão e valente guerreiro que vai à Líbia e chega a uma cidade onde um dragão aterrorizava. Esse monstro também possuía escamas impenetráveis e exalava veneno, também devorara todas as jovens, exceto uma, Sabra, que coincidentemente era a filha do rei e estava às vésperas do próximo sacrifício, e mais uma vez, ela seria dada em casamento àquele que derrotasse a besta. Jorge derrota o monstro acertando-o na parte inferior do pescoço, como fez Tristão e Siegfried, e valendo-se de sua espada mágica Ascalon, como Perseu ao usar a espada de Zeus contra o monstro marinho e Susano-o com a Espada Kusanagi. Para o cristianismo, o dragão assume outra representação: o demônio, o mal absoluto. Em uma das versões do mito, Jorge exige que todos os cidadãos da cidade se convertam ao cristianismo caso ele derrotasse o monstro. Assim sua vitória representa a vitória de Deus contra a heresia, a falta de fé e as religiões não cristãs, que eram de forma preconceituosa vistas como algo errado e pavoroso.

O Porco O terceiro dos Doze Trabalhos de Herakles consistiu em capturar o Javali que atacava a região de Erimanto e devorava plantações, homens e o que mais encontrasse. Esse javali gigante, como nos outros dos sete primeiros trabalhos, consistia na representação dos instintos selvagens humanos em oposição à racionalidade do herói. No caso do Javali de Erimanto, a ilustração se referia à gula, ao apetite incontrolável contra o qual os homens deveriam lutar em nome da razão para não se tornarem feras instintivas e monstruosas que não enxergam nem buscam nada além da satisfação dos apetites físicos. No Si You Ki, Kuan-yin encontra Cho Hakkai, outro exMarechal das Milícias Celestes condenado ao Mundo de Baixo, este por ter ficado embriagado e se insinuado à

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filha da Deusa da Lua. Após morrer, a alma de Cho se perdeu, e ele acabou reencarnado como um porco. Kuan-yin lhe faz a mesma proposta de perdão em troca de cessar com seu costume de se alimentar de carne e escoltar Tripitaka em sua missão. Entretanto quando Tripitaka e Son Gokou, seu primeiro discípulo, pedem abrigo na Fazenda dos Kao, encontram o casal cativo e tendo as terras exploradas por seu genro, que havia, há três anos, casado com sua filha. Esse genro era o próprio Cho, que, ao chegar à fazenda, aparentava ser um homem forte, saudável e muito trabalhador. Com o passar do tempo, além de trancar sua esposa em sua casa e não lhe permitir visitas, adquiriu um apetite enorme, que consumia todo o aumento da produção da fazenda que decorreu em relação ao advento de seu trabalho. Tal compulsão por comer fez com que, ao poucos, fosse se transformando em uma forma suína e, armado com um ancinho de esterco, passou a aterrorizar a todos. Quando Gokou se oferece para capturá-lo, o homemporco foge para sua caverna. Ao perseguir o Javali de Erimanto e encurralá-lo em sua caverna, Herakles vence o monstro em combate e o leva amarrado até o rei de Micenas cumprindo sua missão e dominando a fera que simbolizava a gula. A mesma situação aconteceu quando Son Gokou persegue Cho Hakkai até sua caverna, confronta-o e o traz amarrado até a presença do patriarca Kao e de Tripitaka, cumprindo sua tarefa e restaurando a ordem na Fazenda Kao. Cho se converte ao ver Tripitaka e assume a vida monástica, abandonando sua situação de casado e tentando conter seu apetite. Ao longo do resto da jornada à Índia, Cho aparece como o mais inocente dos discípulos, sempre representando os apetites e desejos do trio, constantemente explorado por Gokou a fazer o trabalho pesado e oneroso, mas com certa felicidade ingênua. É interessante como as duas culturas, helena e chinesa, escolheram coincidentemente

ou talvez não

o porco

como a alegoria para representar os desejos instintivos, em especial os apetites físicos, humanos que devem ser domados pelos heróis em sua jornada de iluminação .

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