Textos estafeta

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Estafeta de leitura


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

Gonçalo M. Tavares - A biblioteca O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos. O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto. O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro. Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei! A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro. Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei! No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel. Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática que desvendasse a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2|9|30|93 Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, num bloco gigante coberto de números, disse: já sei!, e apresentou depois a fórmula de progressão da série que baseava a organização da biblioteca. O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta! No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto. Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz. Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Juarroz


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

José Eduardo Agualusa - O caçador de borboletas Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas gostou sobretudo do equipamento para caçar borboletas. O equipamento incluía uma rede, um frasco de vidro, algodão, éter, uma caixa de madeira com o fundo de cortiça, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o éter, espetam-se na cortiça, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. É assim que fazem os colecionadores. Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insetos mas não sabia que era possível colecioná-los, como quem coleciona selos, conchas ou postais, talvez até trocar exemplares repetidos com os amigos. Nessa mesma tarde saiu para caçar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrás de casa, um lugar onde se juntavam insetos de todo o tipo. Já tinha apanhado cinco borboletas que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu alguém cantar com uma voz de algodão doce – uma voz tão doce e tão macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-íris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caçador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mãos lhe tremiam, sentiu uma espécie de alegria muito grande. Lançou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, já presa, nas malhas de nylon. Passou a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela. — Agora és minha – disse-lhe. — Toda a tua beleza me pertence. A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que há instantes o encantara: — Isso não é possível – era a borboleta que falava. — Sabes como surgiram as borboletas? Foi há muito, muito tempo, na Índia. Vivia ali um homem sábio e bom, chamado Buda… Vladimir esfregou os olhos: — Meu Deus! Estou a sonhar? A borboleta riu-se: — Isso não tem importância. Ouve a minha história. Buda, o tal homem sábio e bom, achou que faltava alegria ao ar. Então colheu uma mão cheia de flores e lançou-as ao vento e disse: “Voem!” E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas é para ser vista no ar, entendes? É uma beleza para ser voada. — Não! – disse Vladimir abanando a cabeça. — Eu sou um caçador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e se não forem colecionadores como eu, desaparecem para sempre. A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, não era um riso de troça): — Estás enganado. Há certas coisas que não se podem guardar. Por exemplo, não podes guardar a luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. Não podes guardar as estrelas dentro de um a caixa. No entanto podes colecionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Será tua. Mas deixa-a guardada na noite. É ali o lugar dela. Vladimir começava a achar que ela tinha razão. — Se eu te libertar agora – perguntou – tu serás minha? A borboleta fechou e abriu as asas iluminando o frasco com uma luz de todas as cores. — Já sou tua – disse – e tu já és meu. Sabes? Eu coleciono caçadores de borboletas. Vladimir regressou a casa alegre como um pássaro. O pai quis saber se ele tinha feito uma boa caçada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio: — Muito boa – disse. — Estás a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo.

José Eduardo Agualusa, Era uma vez in Revista Pais e Filhos, s/d


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

José Eduardo Agualusa - Sábios como camelos Há muitos anos viveu na Pérsia um grão-vizir - nome dado naquela época aos chefes dos governos -, que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados para caminhar em ordem alfabética. O primeiro camelo chamava- se Aba, o segundo Baal, e assim por diante, até ao último, que atendia pelo nome de Zuzá. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um livro, o grão-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, não descansando antes de encontrar o título certo. Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelo s, seguiam o grão-vizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o grão- -vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. Não conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem lhe contaria histórias? Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia até uma região remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos. Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir. Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu: - Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim por cada livro destruído passará um dia na prisão. O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia. Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licença para falar: - Não faças isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir. - Esse homem salvou-nos a vida. O grão-vizir olhou para ele espantado: - Meu Deus! O camelo fala?! - Falo sim, meu senhor - confirmou Aba, divertido com o incrédulo silêncio dos homens. - Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala. Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memória quatrocentos títulos. - Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós viremos até ao vosso palácio para contar histórias. O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência: - Aquele homem é sábio como um camelo. Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os camelos ainda conversam entre si. Pode ser. José Eduardo Agualusa, Estranhões & Bizarrocos [estórias para adormecer anjos], Publicações Dom Quixote


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

Isabel Stilwell - Farta de receber ordens Era uma vez uma menina que estava farta de estar em casa. Farta, farta, farta que a mandassem para a escola; farta, farta, farta que se zangassem com ela para comer; farta, farta, farta que a obrigassem a vestir o que não queria e farta, farta, farta de não mandar nada em ninguém e toda a gente mandar nela! Além disso, a menina estava amuada desde que tinha nascido, por lhe terem chamado Cátia Vanessa, quando preferia mil vezes que a tivessem batizado como Penélope. Um dia queixou-se à mãe: — Mãe estou farta, farta, farta! Quero outra vida, quero mandar muito! E a mãe desatou-se a rir (os adultos às vezes riem nas alturas mais estúpidas) e respondeu: — Então faz-te à vida, filha: arranja casa e emprego, e depois mandas em quem quiser obedecer-te. A Cátia Vanessa, ou Penélope como gostava de se imaginar, foi ter com o pai e repetiu-lhe a pergunta: — Pai, pai, estou farta, farta, farta desta casa... O pai, que estava a aparafusar uma estante, olhou para ela lá de cima, e disse-lhe: — Ó minha amiga, põe a trouxa às costas e faz-te à vida! Estava tudo doido naquela casa, pensou a Cátia Penélope Vanessa. E, ainda por cima, o pai e a mãe tinham aquela irritante mania de dizerem sempre a mesma coisa, mesmo quando não estavam juntos. Se fossem os pais dos seus amigos tinham-se atirado aos pés dos filhos a pedir-lhes para não se irem embora, a prometerem presentes se ficassem... Mas os pais da Cátia Vanessa, tinham dito, mais coisa menos coisa: — Se não estás bem, muda-te! Era demais! Agora ia mesmo fugir de casa, e depois é que os pais haviam de ver! Pegou numa mala e atirou as suas coisas mais preciosas lá para dentro: uma camisa de noite, a t-shirt com o golfinho de que mais gostava, uma bolsinha com moedas de ouro que a avó, mãe da mãe, lhe tinha dado em pequenina, e duas escovas de prata, herdadas da avó mãe do pai, que já tinha morrido. Depois, bateu a porta com o maior estrondo que pôde e começou a descer a rua, com um passo rápido. De vez em quando olhava por cima do ombro: de certeza que, com aquela barulheira, os pais tinham percebido que fugira e vinham atrás dela... Mas, estranhamente, nada. E a Cátia Penélope Vanessa teve de virar a esquina, sabendo que nenhuma pessoa grande estava com ela... Quando se viu naquela rua onde nunca tinha estado sozinha, sentiu-se um bocadinho assustada. Assustada porque se tinha esquecido de pensar para onde ia. Não podia ir para casa de avós, nem de tios, nem de amigas, porque, se não, ligavam logo aos pais a dizer onde ela estava, e assim eles não se assustavam. Sentou-se num degrau e pensou e pensou... Uma velhinha de lenço preto na cabeça, que ia a passar, parou para lhe falar: — Perdeste-te, menina? — perguntou a senhora. A Cátia deu um salto e agarrou-se com mais força à sua mala. Mas, como fora de casa era bem-educada (a maioria das pessoas são mais educadas fora de casa, vá-se lá saber porquê!), respondeu: — Eu fugi de casa, mas não tenho para onde ir. E a velhinha, tentando esconder o sorriso, perguntou, curiosa: — Porque é que fugiste? Aí a menina ficou um bocado envergonhada: — Porque queria mandar muito! E porque estava farta de receber ordens de toda a gente... — murmurou baixinho. — E então os meus pais disseram para ir procurar alguém que obedecesse às minhas ordens, porque na casa deles, mandavam eles. É injusto! A velhinha ficou muito séria. Pensou, pensou e depois respondeu: — Já sei! Tenho exatamente aquilo de que precisas. Espera aqui um bocadinho que já volto. E a menina Cátia esperou, porque também não tinha para onde ir. E, minutos depois, a velhinha voltou com um cachorrinho pequenino, de um castanho muito clarinho, orelhas compridas e um focinho com bigodes. E disse: — É para ti. Assim não vais sentir-te tão sozinha, e podes mandar nele. Mas manda bem, porque os cães sabem muito bem o que é justo e o que não é. E se não for, é natural e bem feito que te dê uma dentada. Mas se for bem mandado, dá-te lambidelas e salta para brincar contigo. A Cátia Penélope Vanessa ficou muito, muito contente. Disse obrigada várias vezes e voltou a subir a rua inclinada até à porta de casa. E agora, como é que ia voltar sem que fizessem troça dela? E se estivessem zangados? Mas, mesmo antes de ter tido tempo de abrir a porta, a porta abriu-se e a mãe agarrou-a ao colo, e apertou-a com muita força: — Minha pateta, ainda bem que voltaste! Não conseguíamos viver sem ti! E o pai desceu do escadote, atirou-a ao ar e disse: — Não voltes a fugir, está bem? E a Cátia mostrou-lhes o cão pequenino, e a mãe e o pai disseram que sim, que podia ficar com ele, desde que lhe desse de comer, o levasse ao veterinário e a passear à rua, o educasse a não fazer chichi dentro de casa e a não morder, e a obedecer às orde ns dos donos. A Cátia olhou espantada: — Mas isso é o que vocês fazem comigo! Desataram todos a rir e a Cátia Penélope Vanessa decidiu que pelo menos um erro não ia repetir: não ia batizar o cão com um nome de que ele não gostasse. Por isso perguntou-lhe como é que ele queria chamar-se. Como ele respondeu «Ão-ão», foi como «Ão-ão» que foi batizado.

Isabel Stilwell - Histórias para contar em 1 minuto e ½. Lisboa, Verso da Kapa, 2005


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Mia Couto - Preguiça Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer. — Levanta, ó dono das preguiças. E o mando de minha vizinha, a mulata Dona Luarmina. Eu respondo: — Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos. — Conversa de malandro... — Sabe uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu só presto é para viver... Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza. — Você, Zeca Perpétuo, até parece mulher... — Mulher, eu? — Sim, mulher é que senta em esteira. Você é o único homem que eu vi sentar na esteira. — Que quer, vizinha? Cadeira não dá jeito para dormir. Ela se afasta, pesada como pelicano, abanando a cabeça. Minha vizinha reclama não haver homem com miolo tão miúdo como eu. Diz que nunca viu pescador deixar escapar tanta maré: — Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida. — A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus... Além disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar o que me resta fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi nos muitos anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é queficar levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações. — Não é verdade, Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha Dona: qual é a palavra para dizer futuro? Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do atual presente. E basta. — Só eu quero é ser um homem bom, Dona. — Você é mas é um aldrabom.

Mia Couto, Mar me quer


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José Mauro de Vasconcelos – A flor da professora Ninguém tinha levado uma flor sequer para minha professora D. Cecília Paim. Devia ser porque ela era feia. Se ela não tivesse uma pintinha no olho, não era tão feia. Mas era a única que dava um tostão pra mim para comprar sonho recheado no doceiro de vez em quando, quando chegava o recreio. Comecei a reparar nas outras aulas e todos os copos sobre a mesa tinham flores. Só o copo da minha continuava vazio… Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um cavalheiro. E todos os dias fui tomando gosto pelas aulas e me aplicando cada vez mais. Nunca viera uma queixa contra mim de lá. A escola. A flor. A flor. A escola… Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza. Quando terminou a aula, me chamou — Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco. Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava coragem entre as coisas. Afinal se decidiu. — Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade? Balancei a cabeça, afirmativamente. — Da flor? É, sim senhora. — Como é que você faz? — Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta. — Sim, mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”. — Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também… Ela ficou espantada com a minha lógica. — Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro… E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio. Ela engoliu em seco. — De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá? — Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some… — Eu não podia aceitar todos os dias… — Por quê? — Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda. Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos. — A senhora não vê a Corujinha? — Quem é a Corujinha? — Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão. — Sei. A Dorotília. — É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre de mais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela. Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo. — A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre. As lágrimas estavam descendo. — Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado. — Não é isso, Zezé. Venha cá. Pegou as minhas mãos entre as dela. — Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé. — Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa. Não tem importância. — Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete? — Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio? — Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu esta flor foi o meu melhor aluno. Está bem? Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura. — Agora pode ir. José Mauro de Vasconcelos – Meu pé de laranja lima


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Mia Couto – O menino que escrevia versos — Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. — Há antecedentes na família? — Desculpe doutor? O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias: — Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito. — São meus versos, sim. O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto? Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado. — O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica. Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar. Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino: — Dói-te alguma coisa? —Dói-me a vida, doutor. O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: — Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo: — E o que fazes quando te assaltam essas dores? — O que melhor sei fazer, excelência. — E o que é? — É sonhar. Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! (…)


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Mia Couto – O mendigo Sexta-feira jogando no Mundial Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas, eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que freqüento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais. Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra** do Dubai Shoping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-me no passeio, tenho meu lugar cativo lá. Junto comigo se sentam esses mendigos que todas sextas-feiras invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos. Lembra? Foi assim que ganhei meu nome de dia da semana. Veja bem: eu, que sempre fui inútil, acabei adquirindo nome de dia útil. É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto nesse momento. Um tecto que nos cobre neste e noutros continentes. Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento muito ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino? Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu ombro. Pois aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. Vieram e me bateram, já eu estendido no chão e eles me ponteavam, com raiva como se não me batessem em mim, mas na sua própria pobreza. Proclamei que hoje voltaria mais outra vez, para assistir ao jogo. É que jogam os africanos e eles estão a contar comigo lá na assistência. Não passam sem Sexta-Feira. O dono da loja me ameaçou que, caso eu insistisse, então é que seria um festival de porrada. O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai Shoping não vai dizer não, se for um pedido vindo de si, doutor. Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. O doutor me olha, desconfiado, enquanto me vai espreitando os traumatombos. Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. Se eu soubesse até me tinha preparado, doutor, escovado a dentuça e penteado a piolheira. (…) Mia Couto, O fio das missangas


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Fernando Pinto do Amaral – A minha primeira Sofia A mãe de Sophia passava muito tempo a ler e a filha adorava ouvir os poemas e as histórias que ela e as criadas lhe contavam. Ao princípio, quando ainda mal sabia ler, Sophia julgava que os poemas «não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos» e já nessa altura queria escrever, mesmo sem conhecer as letras: «Quando comecei a escrever eu não sabia escrever. Eu tinha uma pena enorme. Eu pedi à minha mãe papel e caneta. Escrevia (…) uns desenhos de uma s letras inventadas por mim.» Era uma criança muito curiosa e atenta a tudo o que a rodeava, mas parecia sempre sonhadora, deixando a sua imaginação voar ao sabor de mil personagens e aventuras: «Na minha infância gostava de ler histórias diferentes, desde a Nau Catrineta até ao Gato das Botas. Também me maravilhavam os contos tirados das Mil e Uma Noites, Aladino e a Lâmpada Maravilhosa ou Ali – Babá e os 40 Ladrões.» Durante as férias de Verão – antigamente duravam mais de três meses! – Sophia ia com toda a família para a Granja, uma praia que fica perto do Porto e onde há casas muito bonitas, construídas há mais de cem anos. Mais tarde, numa carta a Miguel Torga, ela escreveu: «A Granja é o sítio do mundo de que mais gosto.» Foi nesse tempo que a mãe lhe contou a história de uma menina muito pequenina, que vivia nos rochedos da praia – uma história à qual Sophia chamou A Menina do Mar. Nesse livro ela fala-nos da amizade entre um rapaz e a «menina do mar», que dançava no seu palácio submarino. Ele deixa-se fascinar pela beleza do mar: «Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores.» Enquanto ela o escuta com atenção e assim aprende a admirar a variedade das coisas terrestes: «Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor de uma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. Essa viagem, todavia, não chega a realizar-se, porque a Grande Raia castiga a menina, ao aperceber-se dos seus planos, e ordena que os polvos a levem para muito longe, vencendo a resistência do rapaz.

Fernando Pinto do Amaral, A Minha Primeira Sophia


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

António Mega Ferreira – Na biblioteca

Tudo começou no dia em que apanhei o Capitão Fracasse a dançar uma valsa com Alice, no meio da biblioteca do avô. É verdade que não era a primeira vez que eu me dava conta de movimentos estranhos naquela divisão da casa. Às vezes, ao cair da noite, ouvia ruídos de vozes vindos lá de dentro. Pé ante pé, subia as escadas que dão para o primeiro andar e ia encostar o ouvido à porta, a ver se percebia o que é que estava a passar-se . Uma vez, devia ser no verão em que fiz seis anos, ouvi claramente uma voz rouca gritar: “ Assisti-me, senhora minha, na primeira afronta que este vosso avassalado peito se apresenta! Não me falte neste primeiro transe o vosso amparo!” Depois, ouviu-se um grande estrondo e um coro de gargalhadas femininas. Vozes de homens diziam coisas numa língua estranha que me pareceu espanhol, porque soava mais ao menos como a do senhor Martinez, que era o merceeiro da aldeia onde o0s meus avós tinham a sua residência de verão: “ Hombre! Qué crescido estás, Manuelito !”, dizia-me ele todos os anos, mal eu entrava na loja pela primeira vez, acabado de chegar para três meses de férias . Bom, foi depois disso que passei a aventurar-me mais vezes até à porta da biblioteca do avô. E um dia, a meio de uma tarde de muito calor, pus a mão na maçaneta da porta, rodeia lentamente, o coração batia-me apressado e eu nem sequer sabia porque é que estava a fazer aquilo. Lá dentro, estava escuro, e, nesse tempo, eu ainda tinha medo do escuro. Mas no meio, mesmo no meio da biblioteca, havia uma zona iluminada, e um homem alto, de botas de cano, chapéu de plumas e capa de veludo vermelha, rodopiava, levando nos braços uma menina loura, muito loura, com os cabelos atados por uma fita lilás e um vestido da mesma cor. Tudo se passava em silêncio, o homem sorria, sorria sempre, e a menina, em bicos de pés, procurava seguir-lhe os passos largos, enquanto a capa de esvoaçava levemente, refletindo a luz que caía sobre o meio da sala. A primeira coisa que percebi é que o homem era Capitão Fracasse. Eu conhecia-o de uma história em quadradinhos que o meu pai me tinha dado no Natal. E a menina? Eu acho que só podia ser a Alice, porque lhe reconheci os cabelos e a figura frágil, e, além disso ele trazia na mão esquerda uma carta de jogar, acho que era o ás de copas. Mas, se tudo se passava em silêncio, como é que eu podia saber que estavam a dançar uma valsa? Foi esse mistério que me levou a falar com a minha mãe. E foi então que os acontecimentos se precipitaram.

António Mega Ferreira, As palavras difíceis


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

António Mota – A velha e o garrafão Era uma vez uma velha tão sovina, tão avarenta, tão unhas-de-fome que nem a roupa lavava em condições para não gastar muito sabão. O dinheiro que lhe vinha parar às mãos dificilmente conhecia bolsos novos ou carteiras velhas. Ficava eternamente dentro daquela casa que tinha as janelas fechadas para que o sol não gastasse a cor da pintura das paredes. E para não cair em tentações, adivinham onde ela metia o dinheiro?! Exatamente! Dentro de um garrafão. Assim já não havia problemas. Porque para tirar as notas era preciso partir o garrafão. - Hum... Era o que faltava! Um garrafão custa uma fortuna! - dizia ela. E lá ia metendo notas e mais notas dentro do garrafão. Um dia, pela tardinha, a velha viu um bichinho escuro, de orelhas levantadas e com rabo comprido a passar no corredor de sua casa. - Um rato? Mas é um rato?!... Ui, que medo! - gritou ela, cheia de susto. O rato desapareceu, o susto passou e a velha pensou: - Tenho de arranjar um gato esfomeado! É isso mesmo! Com um gato em casa, os ratos desaparecem num instantinho! Estava quase decidida a ir arranjar um gato. Mas depois voltou a pensar: - Um gato dá muita despesa! Só em leite é uma fortuna... Era o que faltava! E não arranjou o gato. Os dias passaram. Os ratos aumentaram. E uma manhã a velha começou a gritar com as mãos na cabeça: - Fui roubada! Fui roubada! Mas não. Os ratos só tinham transformado as notas em pedacinhos de papel.

António Mota, Abada de Histórias


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

José Jorge Letria – O livro que só queria ser lido Era uma vez um livro triste. E não era triste pelo que contava nas suas páginas e ilustrações, mas sim porque tinha um desejo imenso de ser lido e muito poucas pessoas pareciam ter vontade de o ler. Por isso, era um livro triste, e não se envergonhava de o ser, perguntando mesmo com frequência: — Se um livro existe para ser lido e a mim não me leem, como posso eu andar contente da vida? Embora tivesse sido publicado há já alguns anos, não podia dizer-se que fosse um livro velho. Os livros mais antigos e raros, agasalhados nas suas belas encadernações de cabedal que os protegiam da humidade e das rugas da idade, estavam bem guardados na biblioteca do dono da casa, herdada de um avô que sempre gostara muito de ler e de viajar e que os comprara nas mais importantes cidades do mundo. O livro de que este livro fala tivera a sua época, fora lido por várias pessoas da casa e depois esquecido, como acontece, infelizmente, com a maior parte dos livros. Mas há livros que aceitam o esquecimento e outros que não se resignam com ele. Era o caso deste livro, que encontrara o seu pouso certo numa prateleira alta de uma estante colocada ao lado da secretária, onde agora era rei e senhor o computador. Na prateleira de baixo, o livro tinha como companhia vários dicionários de que gostava muito, pois, enquanto a casa caía num sono profundo, eles ensinavam-lhe palavras em línguas que nunca imaginara poder vir a falar. Foi assim que aprendeu a dizer «obrigado», «até amanhã», «desculpe» e «posso entrar» em francês, inglês, espanhol e alemão. Não se pode dizer que estas palavras fossem de grande utilidade no seu diaa-dia, mas, como o saber nunca ocupa lugar, tinha-as armazenadas na memória, para o caso de um dia vir a precisar delas. Sim, porque nunca sabe que destino está Reservado a um livro.

José Jorge Letria, O livro que só queria ser lido


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

Mia Couto – O beijo da palavrinha Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz. Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos. Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saia do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão. Um certo dia, chegou á aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar. Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, um aluz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do sol mas das águas profundas. A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime: — Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar! Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa. Para que se curasse, dizia ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela. — Mas o mar cura assim tão de verdade? — Vocês não entendem? – respondia ele. – Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

Mia Couto, O beijo da palavrinha


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

José Jorge Letria – O livro que falava com o vento Era um livro parecido com muitos outros livros, até na encadernação de carneira verde escura que lhe dava um toque de solenidade e um ar muito respeitável. Encontrei-o há muitos anos no fundo de uma arca, no sótão da casa dos meus avós, e gostei do que ele tinha para me contar. Era uma história de amor e aventuras que fez as minhas delícias quando tinha tempo para ler sem parar livros que me chegavam às mãos. Passei a gostar dele por aquilo que tinha para contar, mas também como objeto, porque o seu aspeto era agradável e sedutor e porque tinha um prazer especial em passear os meus dedos pela sua capa encadernada. Um dia, encontrei esse livro numa grande livraria, mas numa edição mais recente, e não senti o desejo de o comprar porque lhe faltava o encanto da velha edição que eu tinha em casa e que tratava com se fosse um verdadeiro tesouro. Guardei-o em lugar de destaque na prateleira mais alta de uma estante do meu escritório e prometi a mim mesmo que havia de o reler logo que tivesse tempo, pondo-o e pondo-me à prova em relação à importância que teimava em atribuir-lhe. O que eu quero dizer com isto é que me dispus a fazer um teste para ver se ainda gostava dele da mesma forma gostei quando o li pela primeira vez. Peguei nele com cuidado, para ver se tinha páginas arrancadas ou algum rasgão na pele da encadernação, mas verifiquei que estava intacto, o que significava que era sólido e resistente e que não seria uma fugaz tempestade de Outono a pôr a sua integridade em causa. Quando me preparava para o recolocar no lugar que para ele reservava na estante das obras que mais me tinham influenciado e feito de mim o grande leitor que hoje sou, ouvi uma vozinha que me disse: — O vento desta madrugada vinha à minha procura e queria levar-me com ele. Pensando que estava a sofrer de uma alucinação momentânea, pois nunca antes ouvira um livro a falar, peguei nele com todo o cuidado e tentei perceber se era eu que não estava bom da cabeça ou se era mesmo o livro de capa encadernada que tinha o raro dom de usar a voz para comunicar comigo. E acerca disso ele deixou-me sem dúvidas, dizendo-me com aquela voz fininha e doce: — Eu sei que não acreditas em mim, mas olha que podes acreditar, porque sou um livro que fala com o vento. … José Jorge Letria, O livro que falava com o vento e outros contos


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António Torrado – O papagaio bem ensinado Era um papagaio muito bem ensinado. Tinha poiso à porta de uma mercearia. De uma vez que o merceeiro estava lá para dentro, um freguês, por pirraça, ensinou o papagaio a dizer: “Está tudo podre". E o papagaio, de aí em diante, não disse outra coisa. O anúncio, lançado aos quatro ventos, afastava a clientela. Mal chegava alguém ao balcão da mercearia, o papagaio avisava: — Está tudo podre. Ficava furioso o merceeiro: — Este papagaio leva-me à ruína — dizia o merceeiro. — Tenho de dá-lo. E assim fez. Deu-o a um barbeiro. Por sinal, o tal malandrote, que convencera o papagaio a dizer “Está tudo podre", também frequentava a barbearia. À socapa, ensinou-o a dizer: “Corta-lhe a orelha". O papagaio passou a repetir. Por tudo e por nada, assim que o cliente se sentava na cadeira, o papagaio pedia: — Corta-lhe a orelha. Isto enervava o barbeiro e enervada o barbeado. — Tenho de ver-me livre deste animal — disse o barbeiro. E atirou-o pela janela. Mas o papagaio, que não estava habituado à liberdade, voltou a poisar no parapeito. Isto uma, duas, três vezes, até que o barbeiro, já exasperado com a teima do passaroco, foi buscar uma caçadeira e deu uns tiros para o ar, só para afugentá-lo, enquanto gritava: — Rua! Rua! O papagaio esvoaçou, a princípio atarantado, mas depressa ganhou altura e voou feliz. Passado muito tempo, foi ter a um armazém em ruínas. Cansado da viagem, acolheu-se a um recanto protegido e adormeceu. Ora o armazém era frequentado, à noite, por duas quadrilhas de contrabandistas e ladrões, que aí faziam as suas trocas e baldrocas. Estavam os membros das duas quadrilhas a descarregar e a carregar fardos, quando o papagaio, acordado com o barulho, soltou o aviso, ainda trazido do sonho e das suas recordações: — Está tudo podre. — Quem é que disse que está tudo podre? — perguntou o chefe de um dos bandos. Nisto, ouviu-se uma voz a gritar: — Corta-lhe a orelha. Pior ainda. Armou-se uma zaragata entre os dois grupos, em que ninguém ficou de fora. Então, o papagaio, assustado, lembrou-se dos tiros da caçadeira com que o último dono o afugentara. Deu-lhe para reproduzi-los, enquanto imitava também a voz do barbeiro: — Rua! Rua! Os bandidos, assim que ouviram os disparos, saltaram de medo, supondo que era a polícia. Fugiram todos, rua fora, largando tudo. O papagaio bem ensinado acertara, ao menos uma vez, no que dizia. António Torrado, História do dia


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José Jorge Letria – O rato de Alexandria O rato de Alexandria era um rato como qualquer outro. Tinha o pelo cinzento e pequenos olhos castanhos. Gostava de comer queijo e de dormir longas sestas em recantos resguardados da investida dos gatos famintos que povoavam a cidade. Alexandria era, nesse tempo, uma cidade imensa onde se juntavam gentes vindas de todo o mundo. Tinha avenidas largas e casas de vários andares, templos grandiosos e belos jardins onde se encontravam os poetas e os poetas e os filósofos para discutirem os mais variados assuntos. Ratos também os havia de todas as partes, mais gordos uns, mais magros outros, mas todos igualmente atarefados nas andanças que faziam em busca de alimento e de local seguro para dormirem. O rato de que fala esta história morava num sítio muito especial: a Biblioteca de Alexandria, onde havia milhares de pergaminhos e papiros, contendo todos os conhecimentos que os homens tinham até então conseguido acumular e passar por escrito. Um dia, não tendo anda para fazer, começou a passar por cima de folhas cobertas de estranhos caracteres e, em vez de as roer como faziam os outros ratos, procurou descobrir se juntos faziam sentido. Foi assim que se transformou no primeiro rato a saber ler. Muito quieto, nos recantos das amplas salas da biblioteca, assistia às animadas discussões que ocupavam, durante dias inteiros, os cientistas e os filósofos de Alexandria. Às vezes, apetecia-lhe dar a sua opinião, mas faltava-lhe coragem e atrevimento. «Que irão eles pensar de mim se me puser para aqui a dar sentenças com a minha fraquinha voz de rato?» - interrogava-se ele, sem nunca encontrar resposta que lhe desse alento para falar. De leitura em leitura, foi ficando cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, envelhecendo sem quase dar por isso. Mas envelheceu com gosto, repleto de conhecimentos fantásticos sobre a vida, a natureza e o mundo.

José Jorge Letria, O livro que falava com o vento e outros contos


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Maria alberta Menéres – Tempo vai, tempo vem Era uma vez uma árvore grande, muito grande: alta e gorda! Quem a visse de longe e de cima era capaz de pensar que aquela árvore era uma importante galinha de penas muito verdes, acocorada no meio do chão a choca os seus ovinhos. Tinha um nome engraçado: toda a gente dizia que era um Chorão. Dava-se bem ao pé da água, abanava as folhas fininhas ao vento da tarde e era quase, quase feliz. Lá bem no fundo das suas raízes, guardava um segredo que não contava a ninguém: nunca, mas mesmo nunca em toda a sua vida, sentira os seus ramos segurar um ninho! Nunca, mas mesmo nunca em toda a sua vida, um enxame nela se pendurara… Vivia sozinha, agitando no ar as suas longas mãos de folhas verdes, sem conseguir embalar nenhuma vida nova. Viu um dia, pelos ares, chegarem as andorinhas. — Poisem aqui! Poisem aqui! – gritou ela. Mas as andorinhas não a ouviram e espalharam-se pelos beirais das casas próximas, a escolher o melhor sítio para os novos ninhos. Viu baixarem no vale, bandos de patos bravos. — Poisem aqui! Poisem aqui! – gritou ela. Mas os patos bravos foram poisar nas margens da albufeira velha, a procurar, nos tufos de verdura e juncos, o melhor lugar para esconder os seus novos ninhos. Viu as rolas e as perdizes, viu os milhafres e as codornizes, e os coelhos e as velozes lebres passarem por ela, sem ouvirem sequer o seu doce convite: — Poisem aqui! Poisem aqui! Passaram dias, meses, anos, e o Chorão sempre a pensar: Tempo vai, tempo vem, Meu amigo é ninguém… Porém um certo dia, um casal de pardalitos tontos, jogando às escondidas de árvore em árvore, aconteceu enredar-se nas folhas e folhinhas do velho Chorão e ir parar ao belo recinto que o arco frondoso dos seus ramos escondia. — Oh, que maravilhoso sítio para viver! – exclamaram, encantados. Vamos fazer aqui o nosso ninho? O Chorão nem se mexia, com medo de quebrar o encantamento. Desde então, dizem que nunca mais se sentiu triste e sozinho, tão acompanhado se vê pela chilreada alegre dos seus amigos pardalitos. E em tardes buliçosas, entretém-se a cantar uma canção de embalo, ao sabor do vento, talvez dedicada a algum pardalito mais tonto de soneira: Tempo vai, tempo vem. Dorme, dorme, meu menino, Dorme, dorme muito bem… Maria Alberta Menéres, Histórias de tempo vai tempo vem


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António Torrado – Os dois feiticeiros

Eram dois feiticeiros. Detestavam-se. Uma chamava-se Xarabim e o outro chamava-se Zipalam. Ambos fabricavam feitiços e usavam palavras mágicas, daquelas de pôr a arder uma árvore, sem quê nem porquê, só por efeito de um gesto e um bichanar de lábios que acordam labaredas. Eram os dois muito competentes nas suas magias. Um dia, tinha de acontecer, um dia, defrontaram-se. Duelo terrível. Fugiram , à sua volta, pessoas e bichos. Só ficaram os mágicos, um diante do outro. Xarabim ameaçou: — Vou transformar-te em sapo. Belg? Zelg? Velg? À última palavra dita e o Zipalam passou a ser um sapo que metia medo. Mas o sapo Zipalam falava. Deitou uma enorme língua na direção do adversário e silvou: — Vou transformar-te em ratazana. Vong? Bong? Tong? À última palavra e o Xarabim passou a ser uma ratazana de muito mau aspeto. Mas a ratazana Xarabim também falava. Ergueu o focinho, na direção do inimigo, e bufou: — Pois eu a ti vou transformar-te num insignificante rato cinzento. Trag? Trig? Trug? Assim foi. Ficou um ratito, diante de uma ratazana. E o combate podia continuar, sabe-se lá até quando? Podia continuar, não fosse, nesse momento ter aparecido a cadela Nina, caçadora de tudo o que corre, rasteja e mexe. Com total desrespeito pelas artes mágicas, a cadela Nina deu, logo ali, cabo do rato e da ratazana. Para sempre.

António Torrado, História do Dia


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Valter Hugo Mãe – As mais belas coisas do mundo

Ainda que o vento e a chuva nos assustem, são também das coisas mais belas do mundo, porque movimentam tudo e tudo transformam. Víamos juntos pela janela os temporais. O meu avô dizia que a natureza se lava com a chuva e esfrega com o vento. Parece catar pulgas e impedi-las de ferrar. Atrás das janelas, nós sentíamo-nos seguros e maravilhados com a grandeza das tempestades. Eu pensei que o meu avô era como todas as coisas mais belas do mundo juntas numa só, e que haveria sempre de ser uma árvore frondosa sobre mim, onde os pássaros descansam e o vento sopra, por onde a chuva se coa e a noite esconde as estrelas. Uma árvore sob a qual as flores se plantam sorrindo e o sol incide com a ternura e a lua derrama prata em cada noite. Uma árvore à qual as nuvens ensinassem a paciência e a beleza. Eu pensei que o meu avô me tinha mostrado como entender o coração e como sonhar com o coração para nele guardar cada momento, porque só os momentos nos pertencem verdadeiramente, tudo o resto pertence á natureza, seja feito de madeira ou ferro, pedra ou outra coisa qualquer. Eu pensei que o meu avô era quem melhor definia a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa e coisa. O meu avô era quem fazia o que sabia e podia para que a vida de todos fosse melhor. Eu, enquanto viver, quero nunca me esquecer dele para que, um dia, alguém possa lembrarse de mim exatamente assim, feito das coisa mais belas do mundo, guardadas dentro de mim, como se também eu fosse um mistério de profunda sabedoria e beleza que é importante descobrir.

Valter Hugo Mãe, As mais belas coisas do mundo


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José Eduardo Agualusa – A girafa que comia estrelas Às vezes a mãe ralhava com ela: «Olímpia, Olímpia, lá estás tu outra vez com a cabeça nas nuvens!» E era verdade, a pura verdade. Aos cinco anos Olímpia já ultrapassava em altura todas as girafas da savana. Era tão alta que quando levantava o pescoço e se punha na pontinha dos pés a cabeça dela desaparecia entre as nuvens. A mãe de Olímpia, Dona Augusta, não gostava daquilo: «AS nuvens são húmidas e frias, Olimpiazinha, olha quer te constipas.» O pior que pode acontecer a uma girafa é ficar constipada. Primeiro porque quando espirram assustam todos os outros bichos, e sacodem as árvores e as coisas, e algumas chegam mesmo a perder a cabeça (a cabeça pode saltar com a força do espirro); depois porque é difícil conseguir um cachecol capaz de cobrir pescoços tão compridos. Olímpia, porém, gostava de andar com a cabeça nas nuvens — queria ver os anjos. A Avó Rosália, mãe de Dona Augusta, dissera-lhe que os anjos dormem nas nuvens. Também lhe dissera que quando as pessoas morrem se transformam em anjos. Dissera-lhe isto pouco antes de morrer. Por isso Olímpia passava o dia inteiro com a cabeça enfiada nas nuvens. Tinha saudades da avó. À noite comia estrelas. Enquanto as outras girafas dormiam, Olímpia subia ao morro mais alto da savana, levantava o pescoço e comia estrelas. As estrelas ardiam um pouco na garganta, mas eram doces e macias, e sabiam a pêssego. Ao contrário do que seria de supor, a noite não ficava mais vazia por causa disso. À medida que Olímpia comia estrelas, outras estrelas nasciam, novinhas em folha, brilhando mais do que as antigas. Assim, de certa maneira, ela renovava a noite. Olímpia nunca encontrou nenhum anjo. Um dia, porém, descobriu uma galinha-do-mato que fizera ninho no meio das nuvens. O ninho estava cheio de objetos brilhantes que a galinha trouxera da terra — três pares de óculos, oito berlindes coloridos, um colar de pérolas, um arco-íris de bolso, um olho de vidro que havia pertencido (dizia ela) ao famoso pirata da perna de pau. As galinhas-do-mato são muito bonitas, todas pretas com pintinhas brancas, e por isso também lhes chamam galinhas pintadas. Aquela pareceu a Olímpia ainda mais bonita do que as restantes. As penas dela brilhavam com luz própria, como se pelo facto de viver tão alto tivesse adquirido um pouco de fulgor do sol. «Olha lá», perguntou-lhe Olímpia, admirada, «tu és um anjo?» Não, era apenas uma galinha que gostava de viver nas nuvens. Chamava-se Dona Margarida. Não era muito inteligente, coitada, mas gostava de pensar. Pensava, pensava e depois dizia coisas óbvias, que já toda a gente sabia, como se ela mesma as tivesse inventado. Por exemplo: «Quem tudo quer tudo perde» «Devagar se vai ao longe.» «Nem tudo o que reluz é oiro.» Etc. José Eduardo Agualusa, A girafa que comia estrelas


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Vergílio Ferreira – Inoque Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa os dinheirosa das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça - mesmo da velha -, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulinho ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada livros ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. Silvestre encolhia os ombros, não tinha nada com isso. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe no sítio, a paz. Ora um Domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-se, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa: — Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão? — Homem! — clamava o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí se faz favor. Falei por falar. — E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras na cabeça. Assim, também eu. — Faço o que posso desabafou o outro. — E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é. Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra "inócuo", estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo disse: — Inoque será você. Também o Ramos não via o fundo ao significado de "inócuo". Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho, partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia: Vergílio Ferreira, Contos


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Os passos de Dona Leonor Viviam em tempos em Peniche dois homens ricos e poderosos que se odiavam mortalmente. Sucedeu que o filho de um deles, Rodrigo. e a filha de outro, Leonor, se amaram com a mesma intensidade com que as suas famílias se detestavam. Tal idílio repugnava igualmente aos pais dos dois e Rodrigo foi obrigado pelo seu a professar no mosteiro Jerónimo da Berlenga. Este mosteiro estava separado do Cabo Carvoeiro apenas por um pequeno estreito. Os monges habitaram-no durante um século mas os assaltos dos ingleses e dos corsários argelinos obrigaram-nos a mudar-se para Vale-Bem-Feito, onde construíram um novo edifício. Rodrigo acatou as ordens do pai e tomou os hábitos com o coração destroçado. O seu único consolo era uma vaga esperança que o tempo suavizasse o ódio que separava as duas famílias e tornasse possível a sua união com Leonor. Eis como, no entanto, depressa encontrou uma maneira de escapar à sua prisão e de tomar a separação menos cruel. Muitas noites, quando os outros frades já se haviam recolhido. Rodrigo abandonava silenciosamente o mosteiro e, acompanhado por um velho pescador, cruzava o estreito que separa a Berlenga do Cabo Carvoeiro numa pequena embarcação. Desembarcava ao sul da península de Peniche, num pequeno porto que hoje se chama o Carreiro de Joana. Ali, numa gruta escavada na rocha, esperava-o Leonor, que anunciava a sua presença acendendo uma luzinha assim que avistava o barquito. Uma noite, ao aproximar-se do sítio do costume, Rodrigo não viu a luz. Chamou por Leonor mas só lhe respondeu o eco da sua própria voz. De repente, notou uma coisa que flutuava ao lado da embarcação: era a capa da amante. Sem refletir um segundo e antes que o seu acompanhante o pudesse evitar, atirou-se à água, afundando-se nas profundezas do mar. Rodrigo tinha adivinhado a trágica sorte de Leonor. Ela esperara-o na gruta, como em outras noites mas havia sido surpreendida pela chegada do pai e dos irmãos. Ao ouvir as suas vozes, quis esconder-se e fugiu, saltando de rocha em rocha mas calculou mal um passo e caiu à água. O mar arrastou o seu corpo. No dia seguinte foram encontrados os cadáveres dos dois apaixonados. O dela jazia entre os penhascos que bordejam o lugar hoje chamado Os Passos de Dona Leonor e o dele num banco de rochas situado a leste d’Os Remédios, conhecido hoje com o nome de O Sítio de Dom Rodrigo.

Lendas da Europa, Texto Editora


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

O milagre das rosas Chegara o mês de Janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruíram-se rapidamente. Isso fora possível porque a rainha Dona Isabel velava por elas. Quando algum desgraçado se via sem pão dentro dum lar minado pela doença, logo procurava a sua rainha. (…) Porém, como acontece neste mundo, a rainha não tinha somente amigos. E certa vez um despeitado da corte procurou azedar o ânimo de elrei D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a sós com o rei, encetou o diálogo que há muito andava bailando no seu cérebro: — Perdoai-me, Senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado. O rei olhou-o com certa altivez. — Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis. O cortesão mordeu os lábios e disse: — Senhor meu Rei... A Rainha, vossa digna esposa, dispõe com bastante liberdade do vosso tesoiro. D. Dinis franziu as sobrancelhas: — Que dizeis? Explicai-vos e já! (…)Falai! Mas falai duma vez! O fidalgo baixou a cabeça e declarou numa voz um tanto incerta: — Oh, meu Rei e Senhor! Só vos quero ajudar… O dinheiro desaparece, esgota-se, some-se... São as esmolas, as obras das igrejas, os empréstimos, as dádivas, as doações a conventos… enfim... uma loucura, Senhor! É necessária a vossa intervenção... Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase: — Basta! Eu sei bem o que hei de fazer! (…) Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando Dona Isabel saía dos paços de Coimbra acompanhada pelas damas e pelos cavaleiros do seu séquito para se dirigir às obras de Santa Clara e espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de súbito, pela frente, a figura desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente: — Bom dia, Senhora! Ia partir para uma caçada, mas lembrei-me de vos saudar. — Agradeço-vos a boa ideia, Senhor. (…) — Podeis dizer-me, Senhora, onde ides tão cedo? Dona Isabel empalideceu. O coração bateu-lhe mais apressado e, após certa hesitação, respondeu com voz branda: — Vou... armar os altares do mosteiro de Santa Clara. Então el-rei olhou-a de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-se menos agradável. O sorriso cortês desapareceu-lhe dos lábios, enquanto perguntava: — E que levais no vosso regaço, Senhora? À-la-fé que pareceis receosa. Nem quero acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos vossos protegidos... Isso seria contra todas as minhas ordens e contra todos os meus conselhos. Dizei-me, pois, o que levais no regaço. A rainha tornou-se ainda mais pálida e por momentos permaneceu silenciosa. (…) — Então, Senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam à minha volta? Sempre é verdade que levais no vosso regaço dinheiro para oferecer aos maltrapilhos que protegeis? Dona Isabel olhou o rei como quem torna dum sonho. O rubor voltava-lhe às faces, o sorriso brincava-lhe de novo nos lábios. E na sua voz melodiosa e pausada, respondeu: — Enganai-vos, Real Senhor.. O que levo no meu regaço... são rosas para enfeitar os altares do mosteiro! D. Dinis sorriu com ironia. — Rosas? Como vos atreveis a mentir, Senhora? Rosas em Janeiro?... Pois ficai sabendo: se aqui estou neste momento… se aqui vim, é porque alguém me garantiu que leváveis dinheiro... Compreendeis agora? O rosto da rainha não se contraiu sequer, humildemente. E, ante o pasmo e a aflição de quantos a rodeavam, insistiu com firmeza: — Enganai-vos, Senhor! E enganou-se também quem vos informou. São rosas o que levo no regaço! D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de cólera e a sua voz tornou-se ainda mais dura: — Insistis na vossa mentira, Senhora? Então... mostrai-me essas rosas! Serenamente, ante o olhar atónito do rei e de todos os que ali se encontravam, a rainha Dona Isabel abriu o regaço e deixou ver um ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava: — Vede, Senhor. Vede com os vossos olhos! Houve um ligeiro murmúrio de pasmo entre a comitiva. El-rei D. Dinis, diante de tão grande prodígio, olhava atónito para as flores e para as mãos da rainha, sem conseguir pronunciar uma palavra. Estava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de estranho que o impressionava e confundia. E só momentos depois conseguiu sorrir e murmurar: — Perdoai-me, Senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver rosas tão lindas neste tempo! Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus olhos, na suave expressão do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus lábios. Cumprimentando-a com galhardia, o rei afastou-se, deixando que a rainha seguisse o seu caminho. Então, de novo, Dona Isabel elevou os olhos ao Céu. O seu ar harmonioso e a paz que resplandecia do seu rosto entraram na própria alma de quantos compunham a sua comitiva. Ninguém se atrevia a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade do momento com uma alegria interior de difícil exteriorização. Foi a própria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha a caminho do mosteiro de Santa Clara(…) Gentil Marques, Lendas de Portugal


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

Ondjaki – Os da minha rua À noite deixávamos ele jantar e beber o chá que ele gostava sempre depois das refeições. Devagarinho, eu e os primos, e até alguns amigos da rua, sentávamos na varanda à espera do tio Víctor. É que o tio Víctor tinha umas estórias de Benguela que, é verdade, nós os de Luanda até não lhe aguentávamos naquela imaginação de teatro falado, com escuridão e alguns mosquitos tipo convidados extra. Eu já tinha dito ao Bruno, ao Tibas e ao Jika, cambas da minha rua, que aquele meu tio então era muito forte nas estórias. Mas o principal, embora ninguém tivesse nunca visto só uma foto de admirar, era a piscina que ele disse que havia em Benguela, na casa dele: – Vocês de Luanda não aguentam, andam aqui a beber sumo Tang! Ele ria a gargalhada dele, nós ríamos com ele, como se estivessem mil cócegas espalhadas no ar quente da noite. – Nós lá temos uma piscina enorme – fazia uma pausa dos filmes, nós de boca aberta a imaginar a tal piscina. – Ainda por cima, não é água que pomos lá – eu a olhar para o Tibas, depois para o Jika: – Não vos disse? O tio Víctor continuou assim numa fala fantasmagórica: – Vocês aqui da equipa do Tang não aguentam…, a nossa piscina lá é toda cheia de Coca-Cola! Aí foi o nosso espanto geral: dos olhos dos outros, eu vi, saía um brilho tipo fósforo quase a acender a escuridão da varanda e assustar os mosquitos, nós, as crianças, de boca aberta numa viagem de língua salivada, outros a começarem a rir de espanto, de repente todos gargalhámos, o tio Víctor também, e rebentámos numa salva de palmas que até a minha mãe veio ver o que se estava a passar. Agora já ninguém me perguntava nada, falavam directamente com o tio Víctor, queriam mais pormenores da piscina e ainda saber se podiam ir lhe visitar um dia destes. – Vai todo mundo – o tio Víctor riu, olhou para mim, piscou-me o olho. – Vem um avião buscar a malta de Luanda! Preparem a roupa, vão todos mergulhar na piscina de Coca-Cola, nós lá não bebemos desse vosso sumo Tang… – Ó Víctor, pára lá de contar essas coisas às crianças – a minha mãe chegou à varanda. Ele piscou-lhe o olho e continuou ainda mais entusiasmado. – Não tem maka nenhuma, pode ir toda malta da rua, temos lá em Benguela a piscina de Coca-Cola… Os cantos da piscina são feitos de chuinga e chocolate! Nós batemos palmas de novo, depois estreámos um silêncio de espanto naquelas quantidades de doce. – A prancha de saltar é de chupa-chupa de morango, no chuveiro sai fanta de laranja, carrega-se num botão ainda sai sprite… – ele olhava a minha mãe, olhos doces apertados pelas bochechas de tanto riso, batemos palmas e fomos saindo. Quando entrei de novo em casa, fui lá para cima dizer boa noite a todos. Passei no quarto do tio Víctor, ele tinha só uma luz do candeeiro acesa. – Tio, um dia podemos mesmo ir na tua piscina de Coca-Cola? Ele fez assim com o dedo na boca, para eu fazer um pouco-barulho. – Nem sabes do máximo… No avião que vos vem buscar, as refeições são todas de chocolate com umas palhinhas que dão voltas tipo montanha-russa!, lá em Benguela há rebuçados nas ruas, é só apanhar – e ficou a rir mesmo depois de apagar a luz, até hoje fico a perguntar onde é que o tio Víctor de Benguela ia buscar tantas gargalhadas para rir assim sem medo de gastar o reservatório do riso dele. Ondjaki, Os da minha rua


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

O Ponto Final

Era uma vez um ponto final desempregado. Tinha caído de um ponto de exclamação, o pobrezinho. A linha em que ele estava, partira-se ao meio, num daqueles desastres que acontecem às folhas dos jornais, quando vão para o lixo. Traço para um lado, ponto para o outro… Ele, o ponto, ainda ensaiou um ai, mas foi um ai que lhe deu, muito débil, sem a intensidade retumbante de um autêntico ponto de exclamação! Que fazer? Tentou encostar-se a umas reticências, mas elas mandaram-no logo embora, com maus modos: - Nós três chegamos. Não queremos penduras… Pronto. Ponto final parágrafo. Perguntou então a um i se precisava de ajuda. Logo calhou com um i acentuadíssimo. Um i muito importante. O i de príncipe, estão a ver a responsabilidade. - Quem me quer? – dizia o ponto, ao lado de um ponto de interrogação. - Estou servido – respondeu o ponto de interrogação, o que não é costume, porque, como se sabe, os pontos de interrogação só perguntam. O ponto desafortunado foi ter com uma vírgula. - Chego bem sozinha – disse ela. – A pausa que eu faço não justifica um ponto e vírgula. Que azar. - Ando perdido. Ninguém me quer – choramingou o ponto, à minha beira. Condoí-me. Sou muito sensível, em casos destes. Por isso escrevi esta história. Acrescentei-lhe mais umas tantas e juntei-as num livro. Tudo de enfiada. E para dar ao tal ponto a sua grande oportunidade, empreguei-o aqui. No fim. Ponto final.

António Torrado. Da Rua do Contador para a Rua do Ouvidor


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

O senhor distraído

Era uma vez um senhor que era muito distraído. Estava sempre a perder coisas - as luvas, os óculos, o pente, o chapéu-de-chuva (dúzias de chapéus-de-chuva!), a carteira, a caneta e, até, uma vez, os sapatos. Dessa vez em que chegou a casa descalço, a mulher dele fez um grande escarcéu: - Ó homem, tu andas mesmo de cabeça perdida. Uns sapatos novos, que custaram um dinheirão! Onde é que os deixaste? O senhor, que tinha olhos azuis, muito claros, por trás dos óculos de aros redondos, fitou a mulher e disse: - Não sei. Costumo descalçar os sapatos debaixo da secretária, lá no escritório. Fui à casa de banho sem eles e, quando voltei, os sapatos tinham desaparecido. Alguém os levou, por brincadeira. E o senhor ria-se, achando graça à partida que lhe tinham pregado. A mulher é que não se conformava: - Perdes tudo! Qualquer dia até perdes a cabeça. E não é que a perdeu mesmo? Umas vizinhas lá de casa vieram dizer à mulher: - O seu marido, calcule, perdeu a cabeça. Trazemo-la aqui, quer ver? Era mesmo. Os olhos azuis... Os óculos de aros redondos... E o sorriso de sempre. - Estamos bem aviados - disse a mulher. - Se ele, com cabeça, era tão distraído, sem cabeça não sei como vai ser... Mas um homem sem cabeça acaba sempre por dar nas vistas. Trouxeram-no à mulher. Só havia um problema. A cabeça não encaixava.- Este não é o meu marido. Deve ser outro, que também perdeu a cabeça. Pois era. E havia mais. Bastantes! Quando por fim lhe apareceu o marido e a cabeça voltou ao seu lugar, a mulher não barafustou nem se ralou muito. Encolheu os ombros. Afinal havia mais distraídos do que ela julgava.

António Torrado. Da Rua do Contador para a Rua do Ouvidor


Semana da Leitura Março 2014 | 800 anos da Língua Portuguesa

Celestino, o rato da biblioteca

Nasci na Rua dos Abraços. Pensava eu, quando era pequenino, que as pessoas da minha rua, ao passarem umas pelas outras, diziam: - Bom dia vizinho! – e, de seguida, davam três beijinhos e um chi-coração muito apertadinho. Nada disso. Na minha rua havia muitas zaragatas sempre que o Boavista ganhava ao porto. Quando empatava, o sorriso era assim… a meio pau: nem triste nem alegre. Quem cumpria a sério as obrigações da Rua dos Abraços eram os rapazes e as raparigas. Esses, quando se encontravam, não só se abraçavam dos pés á cabeça como davam beijos de cinema, daqueles que nunca mais tem fim. Tive sete irmãos de uma só vez, todos com o pelo da cor da madrugada. A mim, porém, fez-me a Natureza da cor ad lua cheia. Por causa da brancura do meu pelo, passei por muitas aflições na vida. … Nasci com os meus sete irmãos no sótão da casa da D. Gracinda, que estava quase a ficar com a idade fora do prazo de validade e era muito poupadinha. Como eu e os meus irmãos fazíamos muito barulho no sótão, ela, para não gastar dinheiro numa ratoeira, levou para casa um gato malhado, às riscas pretas e brancas que encontrou a esgravatar no balde do lixo. A D. Gracinda, quando chegou a casa, falou ao gato: . Não tens nome, pois não, bicho? O gato, de olhar remelado e com o pelo em pé, nem um miauzinho terno lhe deu. - Deixa lá, tens cara de trinca espinhas mas ficas a chamar-te… “Tigre da Malásia”! Ao ouvir aquele nome fortalhaço, o gato enfezado arrebitou, convenceu-se que era mesmo um felino a sério e… foi a nossa desgraça.

José Vaz, Celestino, o rato da biblioteca


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