Revista Ellenismos 24 - ARTE E MERCADO

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SUMÁRIO

Nina Rizzi | Fotografia Pedro Jorge Gomes | Poesia

Adam Brandejs | Escultura

Carol Almeida | Artigo

Diogo Misael | Poesia

Cristina Couceiro | Colagem

Jan Steen | Pintura

António Saias | Poesia

Nina Rizzi | Apreciação de Arte

Hiernymus Bosch | Pintura

Lau Siqueira | Poesia

Jussara Salazar | Ensaio

Fotografia

Jota Mombaça | Prosapoética

Hilda Hilst | Poesia

Karina Freitas | Colagem

David Hockney | Colagem

Sidney Fortes Summers | Conto

Vinícius Jatobá | Opinião

Robert Larson | Fotografia

SEbastião Salgado | Fotografia

Ronald Augusto | Ensaio

Charles Baudelaire | Prosa

Lisa Alves | Prosapoética/ Arte Digital

Vicente do Rego Monteiro | Pintura

Diego Mileli | Artigo/ Opinião

Sophia de Mello Breyner Andresen | Poesia

Eduardo Quive | Prosa

Levy Mota | Fotografia

Anne Ali | Fotografia

Paulo Lins | Prosa

Lalo Arias | Poesia

Nina Rizzi | Desenho

Wilson Torres Nanini | Poesia

Carlos Drummond de Andrade | Poesia

Mercedes Lorenzo | Fotografia

Nina Rizzi | Artigo/ Poesia

Victor Hugo | Pintura

The Crowd/A Turba | Filme

Davi Pessoa | Tradução

The Happy Lige | Curta de animação

Douglas Thomas | Desenho-colagem

Clewton Nascimento | Desenho e

Raul Macedo | Poesia

arquitetura Milton Nascimento | Música

Godard | Cinema


CORRESPONDÊNCIAS, EM LUGAR DE EDITORIAL Por Nina Rizzi

Adam Brandejs (canadense, contemporâneo), Flesh shoes, 2004

POEMA Diogo Mizael, lambe l(h)amb(r)e lambe [http://lhambredecolagens.blogspot.com.br/]

eu penso em como deve ter sido ter levado o budismo a sério por cinco anos dentro daquele monastério

eu penso em buda eu penso em dogen eu penso em keish eu penso em leonard cohen eu penso em cage


eu me controlo me solidarizo com a pia eu brigo com o queijo da mini-pizza e me arrependo no fim do dia

+

penso logo em bob dylan por que escolheu o cristo

penso em pessoas que usam jaquetas de couro

eu penso no sermão de nucifera

entoo sutras penso na monja coen saindo da suécia

eu deixo o pote de maionese aberto eu tento ouvir com calma joão gilberto

eu penso na franja de sousândrade eu penso em syd barret cortando seus cabelos na frente do espelho

vem cá, só uma pergunta – por que você não buda? mas vem cá por que você não vai assoar esse nariz?

agora é com vocês, ateus

***


A FAMÍLIA DISSOLUTA, UMA PINTURA DE GÉNERO

Cenas corriqueiras do cotidiano foram consideradas, em alguns períodos, desprovidas de dignidade artística e, embora pudessem ser registradas nas margens de manuscritos durante a Idade Média, não forneciam temas para pinturas sérias. Em outros períodos, entretanto, clientes e artistas deleitavam-se em contemplar e descrever o dia-a-dia. Os quadros produzidos para satisfazer esse mercado eram frequentemente belos e fascinantes, apesar de seus temas anódinos. Os pintores holandeses nos mostram rixas em tavernas, ruidosas festas de família, alegres patinadores cabriolando no gelo, mulheres comuns entregues a seus afazeres cotidianos com serena dignidade – enfim, toda a rica variedade da vida cotidiana da época.

Jan Steen (holandês, 1626-79). A família dissoluta, ca. 1665. 77 x 87,5 cm.

A família dissoluta, de Jan Steen, fornece bom exemplo disso. O relógio perto da porta, no quadro, mostra-nos que falta cinco minutos para as cinco horas, e uma luz de fim de tarde filtra-se através da janela com barras, no alto, à esquerda. O dono da casa jantou obviamente bem e está entregue ao prazer de um cachimbo de barro. Uma dama ricamente vestida, rechonchuda e de fartos


seios – que pode ser sua esposa – está lhe oferecendo um copo de vinho. Ele olha na direção do espectador, com a mão na anca e um brilho maroto no olhar. A governanta, sentada na outra extremidade da mesa, caiu num sono profundo, alheia ao fato de o garoto ajoelhado a seu lado estar surrupiando o conteúdo de sua bolsa. Cartas de jogar estão espalhadas pelo chão, ao lado de enormes conchas, de uma ardósia abandonada e do chapéu do dono da casa, displicentemente jogado. À direita, vêem-se queijos e pão em abundância e uma apetitosa peça de carne que está despertando grande interesse no cachorro. Quanto mais se olha, mais detalhes divertidos se descobrem: a vizinha curiosa espiando, de sua janela, a criada que flerta com o músico, às costas do dono da casa; as duas crianças à direita, uma delas erguendo provocativamente uma moeda, e, finalmente o macaco empoleirado no dossel da cama e brincando com os pêndulos do relógio. Talvez, afinal de contas, não sejam cinco para as cinco! Mas que importa o tempo em semelhante casa?! Steen, porém, não estava apenas preocupado em criar um quadro interessante. Desejou também transmitir uma mensagem moral: o comportamento indigno dos mais velhos está obviamente dando mau exemplo às crianças e suscitando até um efeito calamitoso na criadagem (que beleza!); o cachorro está prestes a sucumbir a seus apetites animais e o macaco está literalmente “matando o tempo”. Nesse quadro, Steen lança um olhar de irônica reprovação às atividades das famílias abastadas. Em outras pinturas, seus temas foram a gente comum, cujas excêntricidades ele podia observar de perto na taverna de sua propriedade.

*** mercado central de joão pessoa lau siqueira, Livro da Tribo, 2010

são tristes as folhas murchas do repolho que um homem faminto não pode comer


Fotografia de autoria desconhecida [para informaçþes escrever para: ellenismosrevista@gmail.com]


POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO – IX Hilda Hilst, Júbilo Memória, Noviciado da Paixão

Ao teu encontro, Homem do meu tempo, E à espera de que tu prevaleças À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras, Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros, Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa. As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei Minha própria rudeza e o difícil de antes, Aparências, o amor dilacerado dos homens Meu próprio amor que é o teu O mistério dos rios, da terra, da semente. Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra Se ainda encontrasse em ti, o que te deu. *

MERCADO COMPLEXADO

David Hockney (britânico, contemporâneo), Pear Blossom Highway.


Por Vinícius Jatobá, IN: Jornal Rascunho, abril de 2012.

Buscar escrever sobre literatura brasileira é sempre uma armadilha. Por um lado, porque ela será sempre marcada por uma sensível invisibilidade: continental, plural, matizada, é de se esperar que ela seja mais complexa do que aquilo que as editoras com maior poder de distribuição editam. Por exemplo, não existe mais uma literatura rural editada apesar de o Brasil ainda ser, essencialmente, um país rural. O que se edita é notadamente urbano, e é possível que se perca nessa escolha grandes obras de literatura. Mais, até: o espaço por onde poderiam circular autores do passado, como Lins do Rego e Mário Palmério, e autores mais recentes, como o genial Francisco Dantas, está sendo eliminado, gerando uma zona estranha de incomunicação e mutismo. Mas ainda se tirando essa imaginação rural do horizonte editorial resta uma incapacidade de dar conta de toda complexidade urbana — uma cidade como São Paulo, por exemplo, deve possuir uma pujança de narrativas que se fossem editadas em sua totalidade inundariam violentamente as livrarias do país. Mesmo se concentrando em uma literatura urbana, ainda assim é inescapável o desastre de se cometer equívocos e manter invisíveis autores com obras interessantes. Descompasso

Por outro lado, uma armadilha se arma em questões de gêneros literários. O Brasil não é um país de romancistas, e conta-se nos dedos os grandes romances recentemente publicados. Essencialmente temos poesia e contos e crônicas, o que é outra forma de dizer que nossa literatura é sofisticada a ponto de demandar menos espaço para dizer aquilo que outras literaturas precisam de centenas de páginas para esgotar. No entanto, não apenas a crônica perdeu espaço nos jornais e nas editoras e os contos são descartados por uma lógica comercial medíocre que revela a incapacidade das editoras em vender um gênero tão próprio para os dias corridos e atarefados de hoje, como também o sistema literário despreza abertamente a prosa breve. Basta para isso, notar que, para constrangimento incômodo e insuportável, entra ano e sai ano e o Prêmio Jabuti entende crônica e conto como a mesma categoria de premiação. É uma falta de respeito e de compreensão que apenas evidencia uma incapacidade do nosso sistema em lidar com aquilo que de melhor produzimos. O lugar da poesia, então, é um desastre. Ela é invisível até o limite do sanguinário a ponto de ser difícil citar os poetas vivos de relevância em atividade. A impressão que as editoras passam é de que os últimos poetas brasileiros foram Ferreira Gullar, Adélia Prado e Manoel de Barros, e se considerarmos que as obras desses autores estão essencialmente fechadas, a impressão é que vivemos um deserto poético. Não é verdade. Apenas existe um descompasso entre os interesses das editoras e aquilo que vocacionalmente o Brasil produz de melhor enquanto tradição em termos de literatura. Ao que parece, existe uma guerra declarada contra o conto e a crônica no Brasil tanto nas editoras quanto nos jornais e revistas. E a poesia, que já foi um gênero nobre em grandes editoras,


agora é relegada à preguiça confortável de compras de catálogos de autores mortos. É como se os editores, no terreno da poesia, estivessem amedrontados diante do desafio de descobrir os clássicos do futuro, de apostar na construção de um horizonte poético. Complexo de Roth

Se na edição de contos, crônicas e poesia a situação é caótica e irregular, naquilo que poderia ser chamado de romance a fome é imensa. E é aqui que mora o perigo. Um país não precisa se envergonhar de não produzir romances. Toda narrativa demanda seu próprio tempo, e a impressão pessoal é que boa parte das narrativas brasileiras é complexada pelo vexame do fôlego curto. É como se escrever um romance fosse algum teste de respeitabilidade, de maturidade, como se a medição do valor de um escritor não estivesse na verdade humana que ele acessa e sim em como ele exaure e esvazia essa verdade no maior número de páginas possíveis. A página não é unidade de medição literária; a página é solução gráfica. Mas não apenas esse fetiche pelo número de páginas constrange talentos e deforma narrativas, como faz com que todo um sistema literário se sinta complexado por não produzir romances como Roth, Naipaul ou McEwan, o que é patético. Exigem-se romances de uma nova geração de escritores sem jamais se perguntar se o romance é a forma mais adequada a partir da qual essa geração, tão mediada por uma cultura do texto curto e epigráfico, realmente irá se expressar integralmente. A sensação de fraqueza de nossa literatura se deve muito a isso: estarmos buscando em um gênero tão impróprio à nossa tradição uma redenção cuja energia sublime alcançaríamos na brevidade. Nunca se publicou tantos romances e nunca foram escritos tantos romances. Mas a pergunta que fica: está se produzindo satisfação?

***

Fotografia sem título de Sebastião Salgado, da série Trabalhos, 1999.


OS OLHOS DOS POBRES Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris – Les Petits Poèmes en prose, 1869; trad. Gilson Maurity Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”


Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam! *

Vicente do Rego Monteiro (Recife, 1899-1970). Mulher com Galinha, 1925.

AS PESSOAS SENSÍVEIS Sophia de Mello Breyner Andresen

As pessoas sensíveis não são capazes De matar galinhas Porém são capazes De comer galinhas


O dinheiro cheira a pobre e cheira À roupa do seu corpo Aquela roupa Que depois da chuva secou sobre o corpo Porque não tinham outra O dinheiro cheira a pobre e cheira A roupa Que depois do suor não foi lavada Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto E não: “Com o suor dos outros ganharás o pão”.

Ó vendilhões do templo Ó construtores Das grandes estátuas balofas e pesadas Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem. *


Fotografia de Levy Mota, do espetáculo Barrela (Plínio Marcos), do Grupo Imagens (Fortaleza/ CE)

FRAGMENTO Paulo Lins, Cidade de Deus Vem, bom vento! Inventa outro riso em meu rosto! [...] Um outro vento sem pátria ou compaixão, levou-me o riso que este chão me deu, este chão em que chegaram uns homens com botas e ferramentas medindo tudo, marcando a terra… Depois vieram as máquinas arrasando as hortas de Portugal Pequeno, espantando os espantalhos, guilhotinando as árvores, aterrando o charco, secando a fonte, e isso aqui virou um deserto. Sobraram o bosque, as árvores do Outro Lado do Rio, os casarões mal-assombrados, a boiada que nada sabe da morte e restos de risos em rostos nos rastros de uma era nova [...] Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes e olhares cariados, nos conchavos de becos, nas decisões de morte. A área move-se nos fundos dos mares. A ausência do sol escurece mesmo as matas. O líquido-morango de sorvete mela as mãos. A palavra nasce no pensamento, desprende-se nos lábios adquirindo alma nos ouvidos, e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala. *


Nina Rizzi, Croquis, 01

O SOBREVIVENTE Carlos Drummond de Andrade

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia. O último trovador morreu em 1914. Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. Se quer fumar um charuto aperte um botão. Paletós abotoam-se por eletricidade. Amor se faz pelo sem-fio. Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.


Os homens não melhoram e matam-se como percevejos. Os percevejos heróicos renascem. Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.) *

CONSUMISMO, PROPAGANDA E MULHER Por Nina Rizzi

Anúncio publicado no jornal Tribuna da Imprensa, em 1961.

Foi na década de 1920 que se firmou não só um “estilo de vida americano”, mas também a cultura de massas americana, graças a conjugação da produção em série, da propaganda e das vendas a crédito. O rádio, o cinema, os jornais e as revistas foram os grandes divulgadores do american way of life. O número de aparelhos de rádio nos lares americanos saltou de 1000.000, em 1922, para 2 milhões, em 1925. A frequência semanal aos cinemas duplicou, atingindo no final da


década de 100 a 115 milhões de espectadores. As estrelas de cinema tornaram-se os grandes símbolos de seu sucesso e passaram a ditar moda e costumes. Já no início do século XX, as cadeias de lojas e os catálogos de vendas pelo correio popularizaram os artigos fabricados em série (roupa pronta, comida enlatada, móveis, eletrodomésticos, etc.) e difundiram informações e valores para muito além dois grandes centros metropolitanos. Contribuíram para um novo nível de estandartização da vida cotidiana e de homogeneização das diferenças entre campo e cidade. Industriais e publicitários estadunidenses usaram todos os meios para estimular no público o desejo de possuir bens. Anunciavam os aparelhos eletrodomésticos como equipamentos que poupavam trabalho e tempo à mulher. Seduziam o público com imagens de aspiradores, máquinas de lavar roupas e ferros elétricos associadas a figuras de mulheres modernas e elegantes, que mesmo na cozinha usavam salto alto e maquiagem. Os publicitários tornaram-se verdadeiros manipuladores do comportamento humano. Souberam explorar as descobertas da Psicologia sobre a motivação das ações, utilizando imagens e associações de ideias que despertavam emoções no consumidor, incitando-o a comprar. Aos poucos, a propaganda foi deixando de fornecer informações objetivas sobre um produto para transformá-lo em “necessidade que melhorava o nível de vida da família”. Inventando necessidades, a propaganda impelia o consumidor a comprar. Os publicitários logo perceberam que o mercado consumidor era predominantemente feminino. Na década de 1920, as pesquisas mostravam que 80% das compras nas grandes cidades dos EUA eram feitas por mulheres. Por isso, a maior parte dos anúncios passou a ser dirigida às mulheres, em especial às donas-de-casa. “Ir às compras” era moderno, elegante e “importante” – dizia a mensagem subliminar dos anúncios nas revistas femininas. A nova imagem da mulher substituía a figura tímida, delicada e submissa de antes pela da mulher decidida e sociável. A mulher moderna ideal gostava de se divertir, mostrava-se atraente para os homens e sabia o que queria. A publicidade deu uma concepção consumista às propostas feministas, isto é, a mulher moderna “sabe o que quer” porque decide comprar. Um anúncio de produtos domésticos publicado no Chicago Times em 1930 proclamava: “A mulher de hoje obtém tudo o que quer. O voto. Finos forros de seda para substituir volumosos saiotes. Objetos de vidro em safira azul ou em âmbar resplandecente. O direito a uma carreira. Sabonetes combinando com as cores de seu banheiro”.

diálogo olha que bonitinhos os dois, cheios de sonhos pequeno-burgueses. vão se casar. estão apaixonados? não, querem acumular capital.


ASSISTA: The Crowd/ A Turba (EUA, 1928), de King Vidor. Um homem nascido em 4 de julho não é solução. Um homem e um matrimônio, cinco anos de solidão. Um homem com duas filhas n’uma mão. Aqui: [http://www.youtube.com/watch?v=Iywkgn9xS1g] ASSISTA TAMBÉM: O curta de animação The Happy Life, "One Minute Belgian Open\", 5º lugar no

"One

minute

Film

&

Sound

Awards"

Leffinge

2006.

Aqui:

[https://www.youtube.com/watch?v=M2-EPiA2Hi0]

*** GUARDANAPOS: SUPORTES DE MEMÓRIAS Por Clewton Nascimento

Suporte 1 – Mesas, cadeira e paredes no “Real Botequim, Natal/RN

Não tratarei aqui, especificamente da relação entre ARTE e MERCADO, na acepção MERCADOLÓGICA. Apresentarei uma produção de desenhos de minha autoria – cada vez mais


presente em minha produção – a da ARTE NO MERCADO, este entendido como o LUGAR do comércio, das trocas (de experiências, inclusive). Este lugar a ser tratado, tem um caráter particular. São os bares, os botecos, os restos e afins. A história contada tem um suporte material bem característico destes lugares: o GUARDANAPO.

Suporte 2 – Restô “Solar” – Museu Rodin, Salvador / BA

Nestes lugares e neste “suporte de memórias”, surgiram muitas ideias, pontos de partida para inúmeros projetos (de arquitetura e / ou de vida). (Lembro-me, nesse momento, de um encontro casual que tive com o arquiteto Sylvio de Podestá, em um dos bares de BH. Durante uma conversa sobre “cidades”, Sylvio “tomou emprestado” um guardanapo da mesa, me apresentou Ouro preto de maneira fantástica, e arrematou com a frase: “laptop de arquiteto é guardanapo de boteco”). Guardo com muito carinho esse “suporte de memória”. Em botecos, e em guardanapos, continuo construindo os diálogos com esses lugares. Trago aqui algumas dessas conversas.


Suportes 3 e 4 – Nas imediações do “Buraco da catita”, Natal / RN

O sentido aqui de MERCADO, traduz, portanto, como TROCA: das conversas, das experiências, das vivências. Em bares e afins, nada melhor que o registro destas trocas em um suporte que, por sua textura, absorve plenamente a marca da tinta. *

SIGA com Milton Nascimento, ‘Guardanapos de papel’, aqui: [http://www.youtube.com/watch?v=INWpbfY4_2k&feature=youtu.be]

Nina Rizzi, Onde andam a caminhar meus olhos, 2010


VÍSCERA POÉTICA DUM SER FORJADO NO SERTÃO. Por Pedro Jorge Gomes

Transito pelo quadrante do infinito... Sophya me disse que nossa evolução provém de seres inanimados, cuspidores de ideias sub-reptícias e arquétipos de ilusões. Ó Sophya, a velocidade do mundo não amnistia a beleza que há em nossas retinas almadas. Outrora homens louvavam e temiam as ondas salgadas ó Sophya, jazem deuses esquecidos, heróis fortes, vagabundos vencidos, almas caladas, navegantes perdidos e o enigma do desconhecido). Ah..., a metafísica do mundo esconde-se nos seios, nas ondas, nos labirintos, no universo d'alma... Não é isso que o homem absorve, após modelar e resguardar a poesia dentro de si mesmo, ó deusa Sophya?

Estamos numa cidade grande, onde nas ruas esquecidas, encontra-se a fome(canina) nos olhos, n'alma e na pouca carne de crianças enfraquecidas. Mas nesta cidade, as fumaças industriais trazem-nos a divina evolução, estamos no âmago duma cidade evoluída, com pessoas apressadas, mal amadas,mal almadas, naufragadas no mar de suas próprias feridas...

(no mar,


Andamos por estas calçadas, a metafísica dos passos envolvem-nos gloriosamente.

Tenhamos cautela ao andarmos por esta cidade que cospe fogo e massifica os sonhos dos infelizes que anseiam por utopias.

Ah..., eterna Sophya, recordo-me daquelas paisagens que comprovaram minha existência sobre a Terra, é o sertão,Sophya, nossa felicidade sob a vida terna. O sertão é as entranhas d'alma humana, Sophya, tu sabes... O nosso habitat é o sertão calado que branda n'alma de quem alvorece junto com o dia e canta junto com os galos! Ah..., o sertão está em mim e povoa minh'alma. O sertão ondula nos seios do Sem-fim e atravessa os mares tenebrosos d'alma... numa jangada. O sertão não é fome... é provação almada.

Porém estamos na cidade. Continuamos na cidade. Continuaremos na cidade...


Apesar de compreendermos que o habitat humano é o sertão, é a natureza guardadora de almas.... eu, miserável homem utópico, adaptei-me à esta cidade. Cidade esta que me enche os pulmões com fumaça taciturna e que contamina minhas retinas com olhares infelizes e ansiosos...

Ademais, sou perenemente vigiado por homens vestidos de deuses (portanto,estes homens são capciosos, malditos seres) que voam nalguma besta alada anunciando o fim de minha pouca utopia.

Ah..., e as utopias metamorfoseiam-se em borboletas...

*** ROMANCE, O OBJETO DE DESEJO EDITORIAL

Colagem de Cristiana Couceiro, 1


Por Carol Almeida, IN: Suplemento Pernambuco, outubro de 2012.

Caminhando pelas ruas de Buenos Aires com os olhos virados para o chão, o jovem, “hétero, branco, abastado, tudo confabulando a seu favor”, Sebástian tenta projetar suas lembranças em uma ficção que lhe escapa constantemente pelas mãos e pelas janelas que ele insiste em preencher de significados. Ele foi a Buenos Aires para começar, mediar e terminar seu primeiro romance. No entanto, o vazio lhe sopra o rosto a cada esquina que cruza. “Por que esse impulso de roubar para o texto o que é da vida, de converter em ficção o que a ficção não comporta, por que quer brindar seu personagem ou o personagem de seu personagem com essa manifestação patente do voluptuoso acaso quando poderia guardar para si, e só para si, essa volúpia (?)”, questiona Sebástian, seu personagem, o personagem de seu personagem e, sobretudo, o autor de todos eles, Julián Fuks, no livro Procura do romance (editora Record). Após o bem recebido livro de contos Histórias de literatura e cegueira, Fuks decidiu escrever seu primeiro romance sobre as dúvidas de um jovem escritor brasileiro a se indagar quanto aos caminhos que deveriam ter seu primeiro romance. Com isso, o (jovem) escritor brasileiro, filho de pais argentinos tal qual Sebástian, exercita não apenas uma metalinguagem, como termina por provocar não intencionalmente uma questão que ronda quase silenciosamente decisões de editoras e escritores que atuam no mercado literário brasileiro. Seriam os jovens escritores de hoje tomados pela inquietude de escrever obrigatoriamente um romance? Estaria esse mercado asfixiado pela imposição do romance como único gênero literário legítimo? Se diz “quase” silenciosamente porque em um recente artigo publicado no jornal literário Rascunho, sob o título de Mercado complexado, o crítico e também escritor Vinícius Jatobá decidiu colocar o dedo na ferida: “Existe um descompasso entre os interesses das editoras e aquilo que vocacionalmente o Brasil produz de melhor enquanto tradição em termos de literatura”, escreveu ele, afirmando com isso que o país menospreza sua tradição em contos e crônicas (e hoje escanteia por completo a poesia) em detrimento de uma necessidade premente de se publicar romances porque assim o mercado impõe. E porque assim, hipoteticamente — não há pesquisas quantitativas ou qualitativas sobre mercado literário no Brasil, — o público deseja. Em entrevista ao Pernambuco, Jatobá sustenta seu argumento: “Sinto que existe, sim, uma pressão das editoras pelo romance e uma espécie de desconforto com o conto porque é difícil vendê-lo. E acho que tudo isso começa com aquela ideia do Mário de Andrade”, diz, referindo-se à célebre frase do poeta e romancista que certa vez afirmou, sem constrangimentos, que “conto é tudo o que o autor chamar de conto”. Jatobá contesta: “A verdade é que conto tem estrutura dramática e concentração poética próprias e não é qualquer coisa que se pode chamar conto”.


O escritor Fernando Monteiro, autor de romances premiados e bem recebidos pela crítica (Aspades - Ets Etc e A cabeça no fundo do entulho são alguns deles) fez uma observação semelhante à de Jatobá durante o 10º Festival Recifense de Literatura, quando criticou em cena aberta romancistas de várias gerações. Convidado à provocação neste texto, ele cria um paralelo para a situação: “É aquela mesma pressão que um cineasta de curta-metragem sente quando alguém lhe diz que está na hora de fazer um longa. Quando as duas coisas são completamente distintas. O curta tem uma linguagem sua, assim como um conto. Mas é aquela coisa, enquanto você faz curtas ainda está se preparando para um dia fazer cinema ‘meeesmo’.” Sem discutir os desdobramentos comerciais do tópico, editores brasileiros garantem que essa estreita relação com o romance é tudo menos uma imposição de cima pra baixo. “De forma geral o romance é o gênero que mais atrai os leitores — e isso é um fenômeno secular e mundial. Para muita gente, a forma da literatura é a forma do romance, ou seja, ele seria o meio ideal para o contato com a literatura. Isso não é um fenômeno brasileiro, é algo mais ou menos difuso na consciência do leitor ocidental. Claro que outros gêneros, como o conto, poesia, ensaio, têm demanda e apreço, o que conta é a qualidade da realização. Mas de fato o romance parece contar com maior estima entre muitos leitores”, opina Leandro Sarmatz, um dos editores da Companhia das Letras. “O público não especializado busca mais o romance. Isso não é só no Brasil, é mundial”, ratifica Marcelo Ferroni, um dos editores da Alfaguara. E se mostra otimista em relação ao atual desdobramento do gênero no País: “Acho que estamos prestes a ter um momento muito bom no romance nacional.” Deduzimos assim que o debate poderia facilmente se arrefecer com a justificativa de que o romance é secularmente o gênero literário de mais prestígio e que, portanto, seria natural que ele fosse sempre prioridade entre as editoras. Mas o argumento ganha outros contornos a partir do momento em que essa primazia estilística se transforma em uma discreta imposição comercial a escritores que, vocacionalmente, estariam inclinados a escrever outros gêneros literários. A se tomar um depoimento da editora Luciana Villas-Boas para a Revista da Cultura, em 2010, quando ainda era editora do grupo Record: “Considero um equívoco começar a carreira com livros de contos, ou poesia, ou crônica. Esses gêneros não têm público e os livreiros começam a associar o nome do autor a fracasso de vendas. Melhor publicar esses gêneros em outros veículos e investir tempo, pesquisa e estudo na construção de um romance.” Não é preciso dizer que tanto Monteiro quanto Jatobá questionam esse raciocínio pelas questões artísticas que nele se encontram. “Chega até ser grosseiro raciocinar assim, mas imagino que comprar um romance hoje é deduzir que aquilo tem mais páginas e, portanto, mais pensamentos, mais personagens, é a lógica do pague um e leve dois”, provoca Monteiro, que vai


mais além e afirma entender o romance hoje como uma “camisa de força” do comércio. “De uns anos pra cá o romance foi artificialmente açulado no Brasil”, acredita. Açulado ou não, o fato é que é natural que os escritores se sintam impelidos (ou ao menos tentados) a começar a escrever pelo romance, como aconselharia Luciana Villas-Boas. Até porque em uma das pontas dessa cadeia existem as premiações, muitas delas generosas em seus troféus, porém quase todas negligentes no que diz respeito aos gêneros literários que não sejam romances. O Jabuti não tem categoria específica para o conto e a crônica e coloca ambos os gêneros debaixo do mesmo guarda-chuva. O mesmo acontece agora com o Portugal Telecom, que somente este ano se dividiu em três categorias (antes todos os gêneros concorriam entre si): romance, poesia e, claro, a dobradinha conto/crônica. “Sim, é natural que o prêmio valorize a obra premiada e, sendo ela um romance, isso é bom para o mercado”, afirma Adriana Ferrari, coordenadora do Prêmio São Paulo de Literatura, cujo único gênero contemplado é justamente ele, o romance. “Mas não sou da tribo de quem não lê romance não é um leitor. Seria o mesmo que dizer que quem não gosta de música clássica não gosta de música”, garante. Para Fernando Monteiro, assim como para Jatobá, a compulsoriedade do romance ditada por todos esses mecanismos do mercado não é diagnóstico, e sim sintoma de um cenário maior, que diz respeito a uma quebra da íntima e intransferível relação do leitor com a literatura, uma relação que vai ficando cada vez mais longe no retrovisor, distância imposta pelas normas de mercado e por uma certa acomodação de todos os envolvidos nessa cadeia produtiva, dos leitores às editoras, passando pelos próprios escritores.

O PARADOXO DO ROMANCE

Colagem de Cristiana Couceiro, 2


Antes de falar desse cenário, precisamos voltar a Sebástian. Ou ao que lhe deu nascimento. Aquilo que afligia Julián Fuks ao escrever Procura do romance não tinha nada que ver com debates comerciais, posto que o livro surgiu de uma contenda bem mais existencial: a da morte do próprio formato romance. Escrito paralelamente ao livro acima citado, a dissertação de mestrado de Fuks, chamada de Juan José Saer e o paradoxo necessário busca entender como que, diante de todas as questões que se desdobravam diante de um gênero que parecia haver esgotado todos os seus limites, com escritores como James Joyce e, depois, Samuel Beckett, ainda sobrevivia altivo e serelepe sendo “o” meio literário por excelência. Na introdução, ele explica: “Seja porque o sujeito protagonista da modernidade (e, portanto, do romance) teve sua totalidade rompida e tornou-se mera aparência, ‘objeto de si mesmo’, ou porque sua existência se diluiu ‘na insubstancialidade do mundo em ruínas criado por ele próprio’ — ambas complexas ideias propostas por Lukács —; seja porque esse sujeito está fustigado por uma crise da experiência exemplar e da sabedoria que se transmitia de geração para geração, e tem como uma de suas características a incapacidade de reconhecer os episódios na passagem do tempo e de ‘intercambiar experiências’ — como quis Benjamin e ecoou mais recentemente Giorgio Agamben —; o caso é que pareceu ter-se tornado patente uma verdadeira impossibilidade de narrar, baseada em uma descrença em relação ao sentido e à função de tal ato.” Acometido por essas questões, que em muito se esmiuçam nos dilemas do protagonista de seu romance, Fuks chega a algumas conclusões. Em nossa conversa, ele reafirma a existência do paradoxo ao qual se propôs estudar: “Se por um lado o romance foi um dos gêneros que mais se deixou acometer por uma crise das artes, da literatura, da representação e do sujeito como um todo, ele foi um dos que mais se deixou transformar por isso. E beirando ele próprio a crise da forma do romance, manteve uma vitalidade mercadológica”. Essa vitalidade pode ser lida hoje não mais como uma prerrogativa de escritores que atingiram uma maturidade do pensamento, mas também como resultado de uma demanda estipulada do mercado por romances (sic) duela a quien duela. A lembrar mais uma vez que não existem pesquisas que tracem o perfil do leitor brasileiro. Mas Fuks, que concorre este ano ao Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de autor estreante, afirma não ter se intimidado por tal panorama. “Não chego a me preocupar com a questão mercadológica, não escrevi um romance porque pensava que isso me daria mais projeção ou me permitiria vender mais exemplares. Mas realmente essa tensão excessiva da grande atenção que se dá aos romances acaba sendo uma provocação a todos os escritores brasileiros. E isso foi o que me interessou problematizar no Procura do romance, colocando um jovem (Sebastián) que sente uma necessidade um tanto inexplicável de escrever esse romance.”


O PARADOXO DO MERCADO

Colagem de Cristiana Couceiro, 3

“Houve uma assimilação da literatura ao mundo pop rock. O escritor hoje tem que ter grandes audiências, tem que ser bonito e, sobretudo, jovem. O que é curiosamente um antimodelo do que sempre existiu na literatura, quando os escritores eram mais valorizados na velhice”, alfineta Fernando Monteiro, que, vale ressaltar, afirma não ter planos de voltar a escrever romances. “Enquanto esse mercado for dessa forma, eu não tenho lugar. Voltei para a causa abandonada da poesia porque todas as causas abandonadas me fascinam.” Diante da provocação dessa “literatura pop rock”, voltamos então a discutir não apenas uma possível imposição do romance dentro do mercado nacional, mas, anterior a isso, a maneira como a literatura é colocada (ou retirada) agora no cotidiano dos leitores. “As pessoas hoje, quando pegam um livro, têm duas atitudes. Ou elas vestem um fraque, colocam óculos de grau, sentam em uma poltrona pesada e vão ler um romance sério, de um autor sério, num momento sério, ou o cara vai para a praia, coloca um chinelão e vai ler uma coisa vazia, que o distraia. E o mercado é um pouco vítima dessa fantasia da alta literatura”, pontua Jatobá. Ainda segundo ele, essa bipolaridade da literatura ora totêmica, ora trivial, termina por colocar de lado questões mais importantes como o fato de que estaríamos perdendo aquele orgânico interesse pela narrativa literária (e por outro lado aumentando nosso apego a todos os outros tipos de narrativa), e a discussão da forma enquanto um meio de adequação à nova velocidade de se consumir a narrativa. Afinal de contas, parece ser contrassenso imaginar que, justo no momento em que o tempo e o silêncio se tornam bens escassos, contos e crônicas sejam tão acintosamente preteridos pelo mercado. Fernando Monteiro questiona: “Por que poesia e conto não vendem? E é curioso pois nessa nova velocidade de vida que temos hoje seriam justamente esses os gêneros mais fáceis de serem


vendidos”. Sobre a ausência de poesia, o escritor tem suas teorias: “A poesia exige que você decifre códigos. E ninguém está mais disposto a ir atrás do código.” Ainda no mesmo tópico da relação tempo/texto, Jatobá vai além: “Se pergunta: ‘como é que o marketing vai vender o conto?’ E eu pergunto: ‘como é que o marketing vai vender literatura?’ E devolver a literatura às pessoas? Porque essa literatura está sendo sequestrada dos leitores pelo preço e por essa impostura.” Leandro Sarmatz, da Companhia das Letras, pondera: “Há essa impressão, reforçada pelo ibope do romance, que de fato um livro de contos é mais difícil de divulgar que uma narrativa longa. Mas depende do autor, do tratamento editorial dado ao livro, entre outros aspectos.” A lembrar que a Companhia das Letras é uma das poucas, entre as grandes editoras, hoje no Brasil a publicar poesia contemporânea nacional, tendo lançado livros de José Paulo Paes (Poesia completa), Paulo Henriques Britto (Formas do nada), Armando Freitas Filho (Lar), Francisco Alvim (O metro nenhum), Ana Martim Marques (Da arte das armadilhas), Eucanaã Ferraz (Sentimental), entre outros. Algumas soluções simples já foram dadas por ainda esparsas iniciativas que viabilizam a distribuição maior não apenas dos contos, como dos textos curtos de uma forma geral. Em abril deste ano, a Penguin-Companhia das Letras começou a vender ensaios como Antropofagia, de Caetano Veloso, e 100 aforismos sobre amor e a morte, de Friedrich Nietzsche, por preços que iam de R$ 7,50 a R$ 10,90 no formato de e-books. No fim de 2011, a Editora 34 vendeu, separadamente, textos da Antologia do conto russo. O preço unitário do conto variava de R$ 0,99 a R$ 2,99. “Quando a gente pensa em literatura, pensa em estruturas um pouco necrosadas, como o livro. Eu sou um entusiasta do livro. Mas acho que você podia vender brochuras com contos individuais a R$ 1. O conto poderia chegar aos leitores por PDF ou por textos para celular”, sugere Jatobá. Soluções como essa, ainda pouco convencionais para o mercado, ajudariam a resolver, em sua opinião, não apenas a questão dos contos ou mesmo crônicas, como seriam um pontapé para se discutir o verdadeiro problema do mercado: “Acho que as editoras teriam agora que sentar, conversar e se perguntar: ‘vamos devolver a literatura para a vida das pessoas?’ E o conto poderia ser o começo desse trabalho.”


À MEMORIA DE MANUEL ANTÓNIO PINA António Saias

olha que fazer agora? nada

deixas órfãos os teus amigos gatos e algumas - muitas - folhas de papel A4 viúvas da tua esferográfica

e agora Manuel já deves estar na casa do destino

trata de puxá-lo pela aba do casaco e admoestá-lo

: já viste o que fizeste menino?

***


“mestre, retire a pedra – meu nome é lubbert das” Jussara Salazari

[Jeroen van Aeken] Hieronymus Bosch, também conhecido como Jeroen Bosch (holandês, 1450-1516), A Extração da Pedra da Loucura, 1475-1480. Óleo sobre madeira, de 48 x 35 cm. Museu do Prado/ Madri.

O ponto de partida da dúvida é sempre uma fé, disse Vilém Flusser. A arte é nosso jogo de espelhos, nosso ato de fé. O ponto de partida é a superfície. A representação da materialidade, seu espaço. O mundo inteiro planificado no “vaguear” do olho. O extraquadro somos nós. Determinamos uma historicidade para a arte, cada narrativa de nossa narrativa vai preenchendo os vínculos essenciais do tempo, do espaço e das significações que cercam a superfície vazia.


Olhemos A extração da pedra da loucura1, de Hieronymus Bosch. Um cirurgião retira “a pedra da loucura” do cérebro de um paciente e no lugar da pedra sai uma flor, uma tulipa. Na Holanda um ditado popular chama os loucos de “cabeça de tulipa”. Pois estes possuíam uma pedra que deveria ser retirada de suas cabeças. A alusão ao charlatanismo do cirurgião, que usa um funil na cabeça e carrega uma pequena bolsa de dinheiro na cintura, evoca o espírito duvidoso de sua atitude, típico da época. Dois religiosos acompanham a operação, o primeiro carrega um vaso de vinho e a freira sustenta um livro sobre a cabeça. Cerca a pintura a inscrição: “Mestre, retire a pedra - meu nome é lubbert das”2. Lubbert Das era o nome de um personagem picaresco da literatura holandesa. Loucura e equilíbrio, corpo e espírito, dúvida e ciência. Vitruvius, o arquiteto do Império Romano, em seu tratado das medidas do corpo humano conclui que um homem com as pernas e braços abertos caberiam perfeitamente dentro de um quadrado e de um círculo, figuras geométricas perfeitas (homo ad circulum e homo ad quadratum) e que, o centro do corpo coincidiria com o quadrante do umbigo. Na Idade Média, o umbigo antropocêntrico do Homem vitruviano de Da Vinci reinterpretou valores na busca entre razão e equilíbrio. Do outro lado Bosch, Brueguel, Dürer e todo silêncio das imagens. No espaço da pura visão a loucura desenvolverá seus poderes. Fantasmas e ameaças, puras aparências do sonho e destino secreto do homem – a loucura terá nesses elementos uma força primitiva de revelação: revelação de que o onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma profundeza irrecusável, em que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo às voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites. Esse confronto entre a consciência crítica e a experiência trágica animará tudo o que pode ser sentido sobre a loucura e formulado ao seu respeito no começo da Renascença. Talvez a inquietante loucura na literatura demonstre o esforço por dominar esta razão que se procura e reconhece a presença da loucura, de sua loucura, cerca-a e avança sobre ela para finalmente, triunfar. Jogos entre o real e o imaginário onde, quem sabe, habita a confusa comunicação entre a invenção fantástica e as fascinações do delírio em Cervantes ou Shakespeare. A loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. Nada a traz de volta à verdade ou à razão. Ela opera apenas sobre o dilaceramento e, daí, sobre a morte. No Quixote: “y una de las señales por donde conjeturaron se moría fue el haber vuelto con tanta facilidad de loco a cuerdo”. E se o homem clássico percebe seu tumulto, não é pela consciência, mas, do alto de um ato de razão que inaugura uma escolha ética. Na era clássica, a razão nasce no espaço da ética, pois toda loucura oculta uma opção, assim como toda razão oculta uma escolha livremente realizada. A

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1475-1480 “Meester snyt die Keye ras, myne name is lubbert das”


loucura torna-se algo para ser visto: não mais um monstro no fundo de si mesmo, mas animal de estranhos mecanismos, bestialidade da qual o homem há muito tempo se vira livre. Para Foucault, a solidez animal da loucura, a espessura que ela toma emprestado do mundo cego do animal, endurece o louco contra a fome, o frio, a dor. Assim, numa curiosa dialética cujo movimento explica todas as práticas inumanas do internamento, a livre animalidade da loucura só é dominada por essa domesticação, cujo sentido não consiste em elevar o bestial até o humano, mas sim em restituir o humano àquilo que ele pode ter de puramente animal através da animalidade. A loucura não se reúne às grandes leis da natureza e da vida, mas às mil formas de um Bestiário. Razão, arte e loucura, um sistema interminável. Com Van Gogh, diante de sua noite estrelada, chamamos de arte a arte. De cada redemoinho de luz e sombra saltam pinceladas, de cada nervo noturno nasce um sol em forma de lua amarela. De cada pincelada espessa salta a sua sombra de homem-superfície, homem-pele em seu ponto de partida, em sua anamorfose de homem-girassol. Foi necessário para a cultura ocidental associar sua percepção da loucura com as formas imaginárias da relação entre o homem e o animal, sendo este último pertencente ao lugar da contranatureza, lugar de uma negatividade ameaçadora à ordem, pondo em risco, por seu furor, a sabedoria da natureza e do senso, pelo fato de termos vivido durante dois mil anos sob a definição de “ser racional”. Todos os véus do Bispo do Rosário, toda a rebelião de Artaud, toda estranheza de Dalí, toda a dor de Frida, apontam em direção ao espírito, ao corpo e à dúvida da loucura santa que insiste em brotar na flor disfarçada de pedra, como num poema de Cabral. _______________ i

Jussara Salazar é poeta, tradutora e designer gráfico publicou os livros: Inscritos da casa de

Alice (1999), Baobá - Poemas de Leticia Volpi, (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (2008) e Carpideiras (2011) . Edita a revista eletrônica www.lagioconda.art.br

*** DEIXA QUE FALEM OS SILÊNCIOS FORÇADOS Por Jota Mombaça para T. De quantos silêncios depende a fala verdadeira? Quantas versões soterradas garantem a proeminência de uma história oficial? Quem para ouvir o inaudito, quem? Para adivinhar o impensável possível da realidade? Não ouviram o berro das bruxas incendiadas pela fogueira santa, nem das bichas e monstrxs


aprisionadas no grande Hospital Geral. E que ouvidos malditos testemunharam a cantilena desterrada do lager Alagadiço? Não viram o derreter dos corpos desesperados na aurora nuclear de Bophal; as crianças bombardeadas, suas partes pelos ares, na árida tarde Palestina; a multidão de mendigos encostados à marquise das cidades-miséria; o palavrório desmembrado dos nóias expulsos da Crackolândia paulista. E quem para dançar a derradeira dança dos índios suicidados pela tanatopolítica progressista do zepelim-brasil?

MANIFESTO DA POESIA IMPOSSÍVEL

Ilustração de Karina Freitas [http://karinafreitas.tumblr.com/]

1. para jota medeiros * à margem da língua – nódoas se projetam como pontos de contato com o obscuro da palavra*realocar sonoridades/re-enunciar discursos/minorizar poéticas*poesia que bóia no caldo fervente de uma gestação sem desfecho – NAORIGEM era a DIÁSPORA, tudo desmembramento e transe – da palavra convulsiva que se despedaça*o desejo de imortalidade, que leva o poeta a querer duplicar-se no poema, é, também, desejo de grandeza – procura-se a palavra que se fixe na história, que faça do acontecimento poético um monumento – mas a grande arte com seus monumentos teve de soterrar geografias inteiras, est/éticas subterrâneas, poieses impossíveis*palavra-crise porque palavra*o inescrito - a literatura dos silêncios – poesia-lágrima-na-chuva – e quantos poemas não deambulam inauditos às vagas da literatura*já fomos imortais, fantasmas de nós mesmos, cabisbaixos, nas estantes*eu vi também os hospitais e museus – em hiroshima – e as bibliotecas repletas de números – em hiroshima – mas alguma coisa terrivelmente bela se perdeu*


Ilustração de Karina Freitas [http://karinafreitas.tumblr.com/]

2. às margens da língua – nódoas se projetam como pontos de contato com o obscuro da palavra*NAORIGEM era a DIÁSPORA, tudo desmembramento e transe – da palavra convulsiva que se despedaça inescrita – literatura de silêncios, lágrimas na chuva – e quantos poemas não deambulam inauditos às vagas da literatura*já fomos imortais, fantasmas de nós mesmos, cabisbaixos, nas estantes – eu vi também os hospitais bibliotecas e museus*em Hiroshima*quando alguma coisa terrivelmente bela se perdeu*em Hiroshima*e uma fenda estreita fez com que o impossível do mundo escorresse pra dentro.

*** CONTO: CARÍCIAS DE PELÚCIA

Robert Larson (estadunidense, contemporâneo), City of Angels, 2010.


Por Sidney Fortes Summers

O que um homem tem de mais valioso é o mesmo que pode conduzi-lo expressamente à ruína. Um metrô numa via de mão única rumo à merda absoluta. Uma passagem sem volta ao inferno. Meu âmbito de trabalho sempre foi muito semelhante, um subemprego público. O motivo? Seu mecanismo simples: •

Alguma grana é necessária para sobreviver – nisso está incluso comprar comida de qualidade duvidosa, pagar o aluguel (com algum atraso na maioria das vezes), ir ao dentista de vez em quando (atrasando a total perda de dentes e protelando o dia que toda mulher dirá “não”, ainda que esteja bêbada), pagar as contas do qual o supérfluo está excluído, pagar a bebida forte e barata que dá força para suportar o dia-a-dia e que permite que sorrisos se formem no meu rosto.

Existem trabalhos que poucos estão dispostos a fazê-los – esses são a minha especialidade.

O critério de seleção é uma prova breve e ridícula – saber ler é uma das coisas que faço compulsivamente e com maestria.

Exames psicológicos são pouco rigorosos – afinal, só loucos e desesperados se propõem a isso.

Parcos exames médicos – posso paga-los e não são exigidos testes que verificam o uso de substâncias proibidas pela lei.

Trabalho frequentemente bêbado. A cordialidade e o contato necessário com humanos me força a isso. É muito mais do que eu gostaria. É muito mais do que eu poderia suportar. Ainda assim é pouco, muito pouco e superficial. Me levanto trôpego do bar na esquina próximo da rua de casas grandes, casas realmente grandes, em que devo trabalhar. Não sou especialista em psicologia (apesar de profundo admirador da terapia reichiana), mas estou certo que aquele exagero arquitetônico anti-claustrofóbico se deve a processos psíquicos por conta das suas cacetas pequenas e mal-formadas. Eu ando de casa em casa, apertando mãos de uma raça detestável e doente (humanos), fazendo perguntas superficiais e desnecessárias numa repetição tão enfadonha quanto os programas da Xuxa, que apesar de ser uma gostosa ex-atriz pornô, é capaz de levar qualquer homem de verdade ao suicídio através da sua irritante voz de gralha vazia e sem conteúdo. Essa é a atividade que consome o tempo que vendo da minha vida para pagar minhas dívidas.


Às vezes tenho muita sorte. Uma pré-adolescente em roupas minúsculas abre a porta. Eu entro em sua casa e enquanto ela penetra em meu ser através do olhar fixo que mantenho nos seus lábios finos e rosados (não perco o foco em nenhum instante), ela pede que eu sente e me diz com olhos de anjo que está sozinha em casa. Minha calça se mexe sozinha. Meu tesouro dança no seu ritmo acelerado sua própria coreografia. Como eu disse, o que um homem tem de mais precioso é o mesmo que pode levá-lo expressamente à ruína. Começo automaticamente a sequência de perguntas sem sentido que consiste na minha obrigação laborativa da vez. Exclui algumas perguntas desde o primeiro dia quando quase fui espancado por um sujeito acéfalo, mas grande e forte o suficiente para assassinar por motivos fúteis um homem que exerce dignamente seu trabalho, como eu. Meu olhar escorre fluido pelo seu corpinho de menina e estagna nas suas coxas. São coxas esguias que serão preenchidas com carne em pouco tempo, coxas que causarão mortes, coxas que ensejarão deliciosos orgasmos, coxas que serão apertadas por mãos dos que estão ávidos por possuí-la, coxas que serão mais que perfeitas. Nesses instantes eu não conseguiria recordar-me de nada mais belo em todo nosso planeta. A pesquisa que ela responde é uma das mais rápidas. Duram por volta de 15 minutos. Eu poderia fazer melhor nesse tempo, eu poderia fazê-la nunca esquecer-se de mim em menos tempo que isso, mesmo que o ideal fosse mais do que o dobro, mais que o triplo desse tempo, mas aprendi a trabalhar bem sob condições temporais ínfimas. Saio da sua casa empapado em suor. Deixaria lágrimas e outras secreções se fosse um pouco mais novo. A maturidade nos deixa menos impulsivos. Uma inconveniente proeminência na minha calça denuncia o que eu preferia manter em segredo para o mundo. De onde venho, os gritos de tarado oriundos de uma garota daquela idade poderiam ser o fim da linha para minha glande rosada. Ultrapassei ileso essa experiência singular. Ambos incólumes. Atravesso a rua e me sento no banco de praça esperando que as coisas amenizem dentro e fora de mim. Pouco a pouco me recomponho, em breve poderei adentrar nas casas vizinhas às já visitadas. Ao meu lado está sentado um homem de cabelos cor de prata, aparenta ser mais saudável que muitos, mesmo em sua idade provecta, mantêm um olhar de coruja sorrateira. Era um tarado velho, reconheceria em qualquer lugar aquele olhar inquisidor e perfurante que despia qualquer criatura feminina que alcançava. Senti umas das delicadas tiras de madeira que compunham o banco que dividíamos vibrarem crescentemente como num terremoto de algo grau na escala Richter, fora uma flatulência poderosa que exalou um forte odor de podridão. O velho tinha suas próprias técnicas para afastar sujeitos indesejáveis. Toco a campainha de mais uma casa. Aparentemente a casa está vazia. As janelas estão abertas, insisto. Uma voz doce, tenra e melíflua atende o interfone. Estou tendo muita sorte, ainda não fui recebido por assassinos, travestis drogados nem fanáticos religiosos hoje. Ela me diz que


está só. Minha determinação patriótica propõe que façamos a entrevista por ali. Sou um funcionário público a serviço do meu país, a eficiência é um objetivo a ser alcançado. Entretanto, o portão automático se abre com um estalo seco logo após a terceira pergunta. Sou recepcionado por uma garotinha magra de pele trigueira. Ela tem no máximo 12 anos e é uma pequena deusa em miniatura. Olhos negros como seus cabelos longos... Há ali um corpo de mulher em formação. Não, não seria possível que esse tipo de coisa estivesse se repetindo em tão curto espaço de tempo. Deus ou os deuses devem estar me pondo à prova. Ou talvez estejam me ofertando um presente, um sacrifício simbólico de uma virgem. Meu corpo treme. Ela veste apenas uma blusa curta que não chega a cobrir por completo sua calcinha de renda quase transparente. Seus pelos pubianos ainda não começaram a nascer. Eu seria capaz de possuí-la em qualquer lugar sob quaisquer condições. A dominaria e a subjugaria como Sigfried fizera com a amazona rebelde de Odin Brunhilde. Meus olhos e espíritos faiscaram mais que os mitológicos deuses do trovão. Sem nenhuma palavra me viro de costas e sigo até o portão que me permite o acesso a rua. Sigo o meu caminho, a jornada de um monturo de tristeza ambulante. A trajetória decadente de quem luta sem forças pela vida.

*** FLORES DO MAL: TAKES PARISIENSES [ii] Por Ronald Augusto


Sendo assim, Baudelaire não se projeta para o mundo, mas, antes, o sonha, a seu modo, nos transes da linguagem, na “oficina irritada” de uma percepção do poema derivada da metalinguagem de Poe, a partir do qual, no que toca a imperícia compositiva, não há indulto possível: “Only this and nothing more”. Como assinala Walter Benjamin, “Baudelaire conspira com a própria língua. Calcula seus efeitos a cada passo”, sabe que o incógnito e a ambigüidade são as leis não só da sua em particular, mas da poesia que se fez e se fará, antes e depois de suas flores deletérias. O cálculo e a meticulosidade do Baudelaire mestre (me sirvo do termo na acepção em que Ezra Pound o empregava), são galvanizados na figura do artífice trôpego por mauvaise conscience, o trapeiro que fuça o moderno da vulgaridade quotidiana sob os despojos da sua ideologia e do seu étimo, em busca de um eco épico, ou de um heroísmo seduzido pela entropia do trágico: “Temos aqui um homem − ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói − ele registra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis” 5. O poeta-trapeiro baudelairiano mapeia a metrópole a partir de um escrutínio semiótico, seleciona e combina sintagmas-coisas, fragmentos, objetos-antiguidades colecionáveis, desentranhados pósteros à dissolução do presente, visando um poema, um modelo de sensibilidade, um sonho exato sob pórticos voluptuosos. Antonio Candido, no ensaio “O albatroz e o chinês”, considerando a poesia de Baudelaire em comparação com a de outros autores, argumenta que a expressão literária ou poética implica uma “dialética (dilema) do espaço aberto e do espaço fechado”, que, por sua vez, apontam para um caminho que se bifurca em duas direções, numa o “desejo de representar o mundo” e, noutra, o anseio pela “invenção de um mundo autônomo”. O grande ensaísta sustenta que Baudelaire prepara o terreno “para uma aventura nova que, levada às últimas conseqüências, será uma das marcas da poesia no século 20: confiar totalmente na força criadora da palavra, instituidora de mundos arte-feitos”. Portanto, conclui Candido, o poeta não se sente afetado pelos tumultos exteriores “porque ele já está mergulhado na alegria imensa que permite substituir a representação do mundo pela invenção de outro”. Estamos próximos daquilo que dirá Mallarmé alguns anos mais tarde a propósito do autor de “O corvo”, e que da mesma forma se pode aplicar a Baudelaire, isto é, que ele, no confinamento do seu escritório, buscou e logrou “um sentido mais puro às palavras da tribo”. Outro comentador (Jacques Rivière), salienta que Baudelaire parte da palavra rara, e aos poucos a aproxima do tema. Se considerarmos justo este comentário, Baudelaire estaria então antecipando um dos tópicos mais importantes do pensamento-arte de Paul Valéry, que pode ser traduzido neste esboço, nesta anotação recuperada aos seus diários, onde ele diz e dissimula assim: “Se pois me interrogam acerca de que eu ‘quis dizer’ em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas que quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse”. § LEIA a primeira parte do ensaio aqui: [http://www.ellenismos.com/p/decoupagens-assim.html]

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AOS CONQUISTADORES FECUNDOS Por Lisa Alves


Volver a existência em um leito macio e deleitoso em qualquer estação, argumentar a falta de sentido entre o nascimento e ocaso.

Explicar-se, figurar um traço do Eu e de todos os Sujeitos dessa big conjugação, presumir outros mundos e outras possibilidades: onde narizes habitam no sítio de umbigos e as mãos possuem o dom de alterar sem o toque. A matéria significará mero estepe de sobrevivência e não um centenário de labuta.

Carecemos de algo além do estrondo industrial, algo além da reprodutividade, algo além do além e dos quadrados afins que fanam nossa criatividade dos pés à cabeça. Nada de contração, nada de nichos e nada de guetos! – a expansão é o movimento natural do universo, abriremos caminhos para qualquer pé que decida abstrair a espécie dos joelhos e das submissões.

Não temeremos simbioses, não temeremos as enzimas da eternidade – a arte nos devolverá a noção de divindade e a discriminação entre a espécie será uma recordação histórica de nossa primitiva hora (um descuido de gestações milenares). Trocaremos o termo exploração pela beleza da descoberta e assim beijaremos a bilionésimas dimensões sem o gene egoísta das cercas, da Lei do Meu e dos retalhos territoriais com seus brasões e reis.


A arte precisa renascer das cinzas de uma vaidade coletiva queimada (e nunca mais ser reprisada). A arte nomearĂĄ todas as criaturas como olĂ­mpicas (proprietĂĄrias de si mesmas).


A arte é o amor em obra: uma criatura à espera de um povo que a fecunde.

Conquistá-la, dançar fluxos livres e descompassados, beijá-la com volúpia, amá-la até o ponto de atravessá-la e torná-la crescente.

Sê-la.

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DIA NACIONAL DO LIVRO Por Diego Mileli, Blog Literatura em Construção [www.mil-l.blogspot.com]

Nesta semana foi comemorado o Dia Nacional do Livro. No dia 29 de outubro de 1810 herdando o acervo que compunha a Real Biblioteca Portuguesa, fundava-se a Biblioteca Nacional, que a princípio chamava-se Real Biblioteca, depois Biblioteca Imperial e Pública da Corte e só em 1876, Biblioteca Nacional. Por isso, 29 de outubro é o Dia Nacional do Livro, aniversário da Biblioteca Nacional, que hoje conta com um acervo de logo, logo dez milhões de títulos, e, depois de passar pela Rua do Carmo e Rua do Passeio, 60, onde hoje é a Escola de Música da UFRJ, desde 29 de outubro de 1910 fica logo ali na Cinelândia, em frente à Câmara dos Vereadores, ao lado do Museu de Belas Artes e do Centro Cultural da Justiça Federal, também na diagonal do pomposo Theatro Municipal, na desalojadora Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco. Permaneceu no Rio de Janeiro, apesar de terem tentado transferi-la para aquele edifício feio e sem graça, ao lado do esquisito disco voador do Museu Nacional no Eixo Monumental da hostil e “pouco convencional” Brasília. Aos trancos e barrancos a Biblioteca resitste com suas inadequadas saunas para livros, infiltrações, quedas de rebocos, infestações de insetos e abandonos, como denunciaram este ano seus servidores em uma série de protestos, incluindo aquele interessante, em meio à greve dos servidores públicos federais que envolveu mais de trinta categorias. Neste protesto os servidores usaram capacetes de obra e panfletaram em frente ao majestoso prédio da Biblioteca, esclarecendo à população o descaso com que é tratado o tesouro que foi motivo de orgulho a ponto de relacioná-la no Brasil com o livro em si. O Governo pouco se importou com as greves ou protestos e sob o argumento da democracia, manteve a sua postura irredutível e inegociável. Deixou os servidores no desamparo em reajusta “arrochista” por abaixo da inflação, e os da Biblioteca usando os capacetes durante o trabalho. Uma medida de segurança que deveria ser adotada! Mas, não. Não o fizeram, os servidores. Em outros tempos talvez houvesse fogo e rebuliços, mas hoje vivemos numa democracia. Nesse mesmo desamparo e angústia encontra-se o livro, coitado. Não apenas o livro no Brasil é imensamente abandonado, como podemos ver pela média nacional de leitura de dois livros por pessoa por ano. Como quem lê costuma ler alguns livros por ano e um bocado lê às dezenas, realmente o livro está completamente esquecido, relegado à margem da maioria da sociedade. Não bastasse isso, há ainda o caráter duvidoso de muito do que é produzido. Não estou nem pensando na qualidade, mas no caráter mesmo. Enfim, há gosto para tudo. Pior, esses são os lidos até o fim. Outros dois são abandonados pela metade. Por que os livros são tão chatos para serem abandonados sem terminar? E nem tudo que é lido é literário! Muitos dos livros são acadêmicos, científicos, consumidos no geral por pesquisadores ou estudantes


e lidos, às vezes, apenas por obrigação. O que aconteceu com o prazer da leitura? O que buscam aqueles que buscam um livro? O tipo de leitura e não leitura refletem o tipo de sociedade em que vivemos e o tipo de indivíduo que nos fazemos. Mas, apesar de ter minhas opiniões a respeito, não pretendo responder nenhuma dessas questões. Imprimir um livro hoje é até simples. Eu mesmo já vou para o quarto e tenho nem trinta anos. Fazê-los chegar às livrarias é mais difícil e ao leitor fora do círculo próximo do autor, quase impossível! Como não há uma cultura do livro, não o discutimos, não o idealizamos, não o compartilhamos e, até em razão do modelo de sociedade, não nos engajamos em movimentos com esse objetivo. Não dispomos de grandes jornais ou revistas literárias, apesar dos não sei quantos saraus. Por quê? O livro não faz mais parte da nossa vida, da população em geral. O autor, talvez não busque literatura, mas sucesso individual. Outros países possuem trabalhos interessantes como a que gosto muito de ler e acredito na qualidade e potencial dela, Revista Literatas, de Moçambique. E nós, o que fazemos da literatura brasileira? Se mal lemos Drummond e se nossa experiência de leitura é a obrigação para passar de ano no colégio com o enfadonho e rebuscado O Guarani, de José de Alencar, aos 10 anos ou Espumas Flutuantes, de Castro Alves, aos 12 e desconhecemos qualquer outro tipo de literatura, o que se podia esperar? E a literatura contemporânea? Essa então… Cada um que leu até aqui tem suas respostas, outras perguntas e talvez até discorde do abandono que digo sofrer o livro. Tanto faz. Inegavelmente os livros surgem de ideias e da organização de ideias, não importa de que ordem sejam os livros ou as ideias. As perguntas e respostas são informações, reflexão, pensamento e crítica. Estes são talvez a fonte da ânsia por conhecer, pela leitura. Fico, assim, satisfeito de ter ajudado um pouco o livro que em homenagem do dia nesta segunda-feira, ninguém comemorou. Ninguém fez festa. Lembrei-me, como sempre, de Fernando Pessoa.

Na vesperá de nada, Ninguém me visitou. Olhei atento a estrada Durante todo o dia Mas ninguém vinha ou via, Ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar Queira dizer que há Outra estrada que achar, Certa estrada que está, Como quando da festa Se esquece quem lá está.


A DEMÊNCIA DE GUINÁS Por Eduardo Quive

Fotografia de Anne Ali (queniana, contemporânea)

Nunca se esquecera daquele domingo de calor húmido e electrizante. Guinás estava ao estremo norte na sua alma de mãe enquanto Telma, sua filha, galgava caminhos na eleição dos homens. A tarde corria ao peito inflamado do bairro. O escuro padecia de medo do dia, mas tudo em vão, pois instantes seguintes ele chegou a imperar. A chuva já tinha cessado, mas ainda uma nuvem malandra resistia nos céus que pariram a noite enquanto iluminava de vez que quisesse. Nessa hora, lembrara-se dos velhos tempos em que os mais sabidos da zona, ficavam nos portões com os filhos apontando ao além que podia levar até Catembe. São feiticeiros da Catembe – Diziam os adultos quando só trovejava naquelas nuvens. Sempre se cresceu nesse temor e terror. A culpa da nuvem malandra afinal fora sempre dos feiticeiros da Catembe que podia vingar-se à luz do dia. Chover que é o ideal, nunca. Apenas relâmpagos assassinos. Mas Telma não temera esses tempos. Percorria todos os caminhos nas festas da saia curta, usufruindo de sabores carnais e anais da vida. Não obedecia os cânones familiares de crescer, ser virgem, deixar-se aconselhar, amarar a capulana na cintura, cuidar da casa de modo que tivesse um homem que li casasse. Telma nunca foi de “sim senhor”. Telma, desde a adolescência, beijava sem


receio; apoderava-se das bocas dos homens sem compromisso e sem que estes remetessem os seus pedidos de namoro. No bairro todos sabem até onde valem as pernas claras e finas da Telma; todos conhecem a moral da história que ela conta a madrugada depois de pular o muro e entrar pela janela na casa modesta onde a chefe é Guinás, mãe solteira e viúva de ninguém. Guinas, mulher culta e voltada aos valores morais da vida, nunca contentara-se na Telma que gerara e que cresce no século XXI sem temer o tempo; Guinás, ou mana Guinachi, como era civilizadamente tratada na zona, comia do seu próprio suor. Vendia roupa usada, a escalamidade que toda a zona vai em filas sempre que se inaugura um fardo. Essa actividade lhe gere rendimento, mas mais lhe é rentável a actividade que exerce nos tempos livres, a de visionária advinha e com grandes poderes de salvar vidas. Isso era o que a tornava poderosa financeiramente e o que a ajudou a juntar as pedras para construir o seu canto de repouso. Entretanto, Telma não encontrara inspiração na mulher de lutas que é Guinás, o que agudizava cada vez mais a vontade de se espalhar pelo mundo que a miúda tinha. Eram as festas mais famosas da cidade em que ela só ia de 4x4’s e acompanhada dos mulatos dos prédios altos da Alto-maé. Todos os rapazes da zona, escorriam saliva de cobiçar as pernas da jovem moça que era Telma, com auto-estima a tornar-lhe mais sedutora. Perfumes caros faziam-na mais actuante. Podiase saber da sua chegada a metros e metros de distância e lá se enfileiravam os rapazes do bairro pacato babando por uma simples saudação, afinal, das outras moças, só o corpo evoluído se nota, de resto, elas estão de capulanas a colorir o corpo. Telma era mais aberta aos que ela os chama de modernos. Na sua última chegada a casa, seguia-lhe três mulheres. Vinham lá das cidades em que ela anda de noite e de dia de carros e homens de alto nível. Desta vez, depois de pular o muro, teve a surpresa de pessoas a pedir licença e Guinás, mulher de princípios, não se calou em plena três horas de madrugada, assustada com as vozes. De olhos ainda a gaguejar, Guinás tentava enxergar a realidade que a cercava e reconhecia pelas vestes, que se trata de três mulheres de longe do bairro apenas não lhe passava pela cabeça que elas vinham pelo sangue da sua filha. Telma já se encontrava no quarto no perfeito fingimento de ter dormido as 20. Mas Guinás que a conhece perfeitamente, sabe que só pela janela entrou fugindo da sua própria covardia. E nessa madrugada, Telma assinalou o seu recorde de asneiras. Não pulou sozinha a janela estilhaçada do quarto. Estava acompanhada por dois homens que cumpria as suas orgias. Guinás abriu a porta do quarto e não acreditou ter visto com os próprios olhos as venenosas posições que Telma fazia para satisfazer sexualmente os homens que deliravam de prazer.


Daqueles vistos, Guinás, não voltou mais a falar. Calou a voz da razão que sempre foi e só reagia quando chovesse saindo nua de casa para tomar banho de chuva em plenas manhãs sob olhar de todo o bairro, das mulheres, bebés e dos homens.

*** ARTE E MERCADO - CADERNO ESPECIAL TRADUÇÃO: DAVI PESSOA

Victor-Marie Hugo (francês, 1802-1885), Fingerprints - manchas com marcas de dedos, 1864-65


APRESENTAÇÃO:

TRADUZIR

É

SAIR

DE

SI

[O

GESTO

ENLOUQUECIDO] Por Davi Pessoa Costuma-se dizer daquele que se entrega diariamente a alguma atividade, como, por exemplo, o tradutor, que ele trabalha como uma máquina. Pois bem, como poderíamos compreender tal máquina? Se voltarmos ao mundo dos gregos, poderíamos pensar que aquilo que importava não era o tempo empregado na ação que estava sendo realizada, assim como não eram consideradas as dificuldades encontradas por ele durante a sua ação, visto que ele tinha uma técnica com a qual poderia resolver os problemas que se colocavam naquele momento, no ali e agora. Assim, chegaríamos à conclusão de que o foco estava na obra e não no artista: no nosso caso, o tradutor. Mas se retomamos o passo em direção ao nosso presente, o que poderíamos dizer? Vamos confabular: não, agora, o tradutor, assim como todo artista ganhou a sua independência, é detentor de sua produção criativa. Alguém poderia falar, talvez essa seja a voz de alguma editora: Sim, a nossa publicidade está voltada também ao tradutor, sem a sua presença não haveria publicidade satisfatória do “produto” final! Surpreendente, mas o que está mesmo em destaque nesse tipo de publicidade? O tradutor ou o produto final? No final das contas a tríplice aliança, aqui é a voz do editor da editora que vem à tona [soa como uma voz litúrgica], a saber, o artista / a operação criativa / a obra, é fundamental, se falta um dos componentes se rompe o pacto da eterna aliança! Estamos, de fato, atolados até a alma nas falsas contingências de nosso querido e amado estado laico. O que fazer para desativar essa máquina perversa? O que está em jogo, realmente correndo risco, no sentido mais absolutamente negativo, não é o artista, cada vez menos, caso acredite fielmente, com muita fé, que é o princípio gerador da máquina, o eu que se impõe com todas as forças, nem muito menos a obra, a tradução [aquilo que acreditamos vir à presença], mas, muito mais, o gesto artístico. Este, a cada dia, corre o pior dos riscos: cair numa tristeza que não consegue lidar com os sintomas dos infinitos traumas que estamos submetidos na nossa forma de vida presente. Parodiando um pintor a quem é direcionada a pergunta: Segundo a sua opinião, pintar é mais importante do que viver? E sua resposta, de modo simples: Pintar é, para mim, certamente, a única forma de vida, a única forma que tenho para me defender da vida, poderíamos dizer: Traduzir é, para mim, lidar constantemente com a morte. Calma, nada de tragicidade absoluta, afinal de contas ainda estamos vivos... desesperadamente vivos... *

LETTERA


A Italo Calvino, San Remo [Turim, 29 de julho de 1949] Caro Calvino, não me desagrada o fato de você não ter gostado de Tra donne sole [Entre mulheres sozinhas]. As suas razões são a transcrição fabular de um tema literário; esboço de um conto de Italo Calvino. Cavalidades e pau-de-faia são invenções puras e lindas (todas as mitologias se encontram aí: a faia é a árvore do Monte Pélion, o monte dos centauros). Você aplica dois esquemas, como se fossem dois óculos, ao livro, tirando dele impressões discordantes, que você não tem o cuidado de compor. Há a definição de Talino e de Momina como irmãos, a descoberta que faço sempre durante uma viagem ao outro mundo, pois, para mim, o mundo bestial e decadente se identificam (também em Diálogos com Leucó: titãs e deuses contrapostos ao homem; de qualquer modo, os titãs sentem maior simpatia pelas bestas); depois você aplica o esquema realista evocatório (Proust, Radiguet, Fitzgerald) da falta de fundamento desse mundo descoberto. Evidentemente esse mundo é uma experiência dos modos diferentes de representar o eu (Berto Pablo Clelia etc.), sendo eles a seriedade verdadeira (não fabular) da narrativa. Mas você - esquilo de caneta - calcifica o organismo decompondo-o em fábula e em tranche de vie. Vergonha. De qualquer maneira, consolou-me a descoberta da veia unitária entre as várias obras. Eu gozo dos êxitos canibalísticos. Imagina se vou até San Remo. Se eu fosse louco. Pavese

Italo Calvino leu o manuscrito, enviado por Pavese, de Tra donne sole e depois escreveu uma carta ao escritor de Diálogos com Leucó dando sua opinião sobre a narrativa. Cito, aqui, um fragmento da carta de Calvino.

A Cesare Pavese, Turim [San Remo, 27 de julho de 1949]


[...] Descobri que Tra donne sole e Paesi tuoi são a mesma coisa: duas viagens de pessoas "civis" entre os "selvagens". Talino e Momina são o mesmo símbolo. O mundo camponês e o mundo decadente burguês são igualmente selvagens e são julgados (ou melhor, vistos; quem pode se erguer como juiz dos canibais?) por quem se encontra fora do mundo deles, per meio de um trabalho que transcende o seu ambiente e as suas instituições (família patriarcal, comunidade de sala de estar): ou seja, quem trabalha nas máquinas agrícolas (e não simplesmente quem trabalha com a terra), quem faz os vestidos para as mulheres-cavalo (e não quem faz os quadros, ou, também, as casas, porém,muito mais do lado de dentro). E a verdadeira mensagem do livro é um aprofundamento do seu ensinamento de solidão, com algo novo a mais sobre o sentido do trabalho, sobre o sistema trabalho-solidão, sobre o fato de que as relações entre os seres humanos não fundadas no trabalho se tornam monstruosas, sobre a descoberta das novas relações que nascem do trabalho (e é essa a parte mais bonita, Clelia e Becuccio, essa mulher que encontra a sua regra de vida como solteira, relacionando-se com os homens assim como nos relacionamos com as mulheres). Sozinhas, salvam-se as comunhões entre os amigos, ligados por regras não escritas de pureza e de solidão: os amigos do Diavolo in collina, o trio Clelia-Momina-Rosetta em Tra donne sole. [...] Para escrever bem sobre esse mundo elegante é necessário conhecê-lo e sofrer com ele até o miolo, tal como o fez Proust, Radiguet e Fitzgerald, amá-lo ou odiá-lo, não importa, mas é necessário ter clara a sua posição em relação a esse mundo. E você não a tem com clareza. [...] Calvino IN: Cesare Pavese, Lettere 1945-1950. Organizado por Italo Calvino. Torino: Einaudi, 1966, pp. 408-409; tradução Davi Pessoa. *

J. Rodolfo Wilcock O nosso concurso Estamos felizes de anunciar que o Primeiro Prêmio do Nosso Concurso (50.000 Lit 50.000), para a melhor resposta à pergunta: "O que mais vocês gostariam de encontrar ao abrirem o nosso romance logo pela manhã?", foi dado à senhorita Fusa Mirelli Sciarretta, de Aprilia - cuja resposta é sem dúvida a melhor entre todas que recebemos - pelo seguinte texto, intitulado "O Nosso Concurso":


"Estamos felizes de anunciar que o Primeiro Prêmio do Nosso Concurso (50.000 Lit 50.000), para a melhor resposta à pergunta: O que mais vocês gostariam de encontrar ao abrirem o nosso romance logo pela manhã?, foi dado à senhorita Fusa Mirelli Sciarretta, de Aprilia - cuja resposta é sem dúvida a melhor entre todas que recebemos - pelo seguinte texto, intitulado O Nosso Concurso: ""Estamos felizes de anunciar que o Primeiro Prêmio do Nosso Concurso (50.000 Lit 50.000), para a melhor resposta à pergunta: O que mais vocês gostariam de encontrar ao abrirem o nosso romance logo pela manhã?, foi dado à senhorita Fusa Mirelli Sciarretta, de Aprilia - cuja resposta é sem dúvida a melhor entre todas que recebemos - pelo seguinte texto, intitulado O NOSSO CONCURSO: Estamos felizes de anunciar que o Primeiro Prêmio do Nosso Concurso (50.000 Lit 50.000), para a melhor resposta à pergunta: O que mais vocês gostariam de encontrar ao abrirem o nosso romance logo pela manhã?, foi dado à senhorita Fusa Mirelli Sciarretta, de Aprilia - cuja resposta é sem dúvida a melhor entre todas que recebemos - pelo seguinte texto, intitulado O NOSSO CONCURSO..."""; mas por falta de espaço não podemos imprimir o texto integralmente. O 2° Prêmio, um ursinho maravilhoso de tomar banho, foi dado, ao contrário, ao estudante de engenharia Ivano Bordomollo, de Roma (Marrana da Caffarella), pela descrição original de uma orgia de engenheiros no inferno, que por motivos de discrição, muito compreensível, não podemos reproduzir, aqui, nem mesmo por fragmentos.

IN: J. Rodolfo Wilcock, I due allegri indiani. Milano: Adelphi, 1973, pp. 233-234; tradução Davi Pessoa. *

Carlo Emilio Gadda Uma opinião sobre o neorrealismo Poderia dizer que a poética neorrealista conta uma história não-estrutural, granular. É necessário também ter em mente de que os temas e as figuras mais vivas e presentes nos neorrealistas representam apenas uma parte do tema, dos motivos, das "personagens" que a realidade nos propõe; as figuras, assim, se tornam símbolos: e eu abomino a personagem-símbolo, assim como detesto a personagem-mensageira. Até mesmo na história historicizada adoro quando o mensageiro se esconde na rica e multiforme natureza de um homem. A virtude também me irrita... sinto fortemente as razões do seu contrário. [...]


Um leitor de Kant não pode acreditar numa realidade objetivada, isolada, suspensa no vazio; mas da realidade, ou muito mais do fenômeno, ele pode compreender o sentido de uma aparência caleidoscópica, por trás da qual se esconde "algo" mais verdadeiro, mais sutilmente operante, assim como por trás do quadrante do relógio se esconde o seu mecanismo secreto. Ao escutar que disparos de uma metralhadora é realidade, para mim, tudo bem, sem dúvida; mas eu peço ao romance que por trás desses dois hectogramas de chumbo exista uma tensão trágica, uma consecução operante, um mistério, talvez as razões ou as desrazões do fato... O fato em si, o objeto em si, é apenas o corpo morto da realidade, o resíduo fecal da história... Desculpem-me. N.T.: I viaggi la morte traz uma seleção de textos escritos por Gadda entre os anos 1927-1957, publicados em revistas e jornais italianos; "Uma opinião sobre o neorrealismo" foi escrito em 1950. IN: Carlo Emilio Gadda, "Un'opinione sul neorealismo", in: I viaggi la morte. Milano: Garzanti, 1958, p. 211-212; tradução Davi Pessoa. *

Pier Paolo Pasolini A Divina Mimese Nota n. 1 [1 de novembro de 1964] O livro deve ser escrito em camadas, cada nova versão deve ser em forma de nota, datada, de modo que o livro se apresente quase como um diário. Por exemplo, todo o material escrito até agora precisa ser datado (aproximadamente há um ano, um ano e meio atrás): não deve ser eliminado da versão nova, que precisa, portanto, ser formada numa nova camada suplementar, ou numa nota mais extensa. E, do mesmo modo, com as versões posteriores. Por fim, o livro precisa mostrar-se como uma espécie de estratificação cronológica, um processo formal vivo: onde uma nova ideia não apaga a ideia anterior, mas a corrige, deixando-a até mesmo inalterada, conservando-a formalmente como documento da passagem do pensamento. Depois, o livro será um misto de coisas feitas e de coisas a serem feitas - de páginas acabadas e de páginas esboçadas, ou apenas intencionais -, a sua topografia temporal estará completa: terá, ao mesmo tempo, a forma magmática e a forma progressiva da realidade (que não apaga nada, que faz coexistir o passado com o presente etc.). N.T.: Trecho do posfácio, "O inferno póstumo de Pasolini", de Enzo Siciliano: "La Divina Mimesis é o primeiro livro póstumo, em prosa, que temos de Pasolini, mas foi por ele mesmo entregue ao editor, sendo preparado para sua impressão com escrúpulo habitual. Pasolini, artesão


extraordinário como era, dedicava à preparação de um livro não apenas tempo (era rápido e controlado na execução), mas também arte. Especialmente quando se tratava de um livro heterogêneo, composto por materiais diversos". [...] O texto de Siciliano foi publicado originalmente na revista "Il Mondo", 25 de dezembro de 1975. IN: Pier Paolo Pasolini. La Divina Mimesis. Milano: Mondadori, 2006, p. 45; tradução Davi Pessoa. La Divina Mimesis foi escrita por Pasolini entre os anos 1963-1965, tendo sua primeira publicação em 1975 pela editora Einaudi. *

Massimo Bontempelli Ao não possuir quadros Quando os meus amigos insistiram para que hoje eu também falasse aqui, terminei por aceitar, sobretudo, pela seguinte razão: na verdade, sinto a obrigação de justificar, de algum modo, o fato estranho de me preparar para sustentar, mesmo que unicamente com uma presença muda, uma série de intervenções onde irá se falar de coisas que eu desconheço completamente. Aqui, irá se falar - mas segundo uma visão superior - de quadros e do seu comércio: no entanto, nunca comprei e nunca vendi um único quadro. Mesmo quando isso acontecer - e certamente acontecerá dado os hábitos de pensamento e de cultura das pessoas que tomam parte do nosso trabalho -, mesmo que as conferências possam ir além dos confins dos seus temas, tocando as regiões mais inteligentes do julgamento crítico, também neste caso eu deverei silenciosamente confessar (tal como já o confessei muitas vezes, abertamente) que me falta absolutamente qualquer competência em matéria de artes do desenho: neste congresso terei muito o que escutar e aprender, e certamente não terei nada para sugerir ou refletir; serei uma espécie de aluno que está aqui para governar uma reunião de professores, quase todos os maiores que sobre este assunto a cultura europeia possa oferecer. Apesar dessa situação paradoxal, os amigos continuaram insistindo, e eu acabei por aceitar o convite. Por quê? Há de existir um motivo mais sério que não seja apenas um gesto de cortesia deles e um ato de condescendência minha. Um motivo do qual não nos dávamos conta. Uma ideia geral, que sirva para eu expulsar do meu espírito uma espécie de remorso que ainda perdurava, como promessa feita e, agora, irrevogável. Nós, neste momento, a encontramos; será um modo de preencher a meia hora que ainda falta para dar o volume necessário a esta reunião, que presenças majestosas tornam tão solene.


A razão é provavelmente a seguinte: a minha presença deve servir para representar não uma ação crítico-artística, mas como uma fala, mesmo que unicamente simbólica, do fato literário. Já nos demos, de fato, conta da situação da existência literária não apenas diante das outras artes, mas de toda a vida do homem? A literatura, arte do gesto de escrever, tem alguma coisa de fundamental, diferentemente de todas as outras artes. Digo diferente, não disse superior, pois me revolto quando escuto falar de hierarquia entre as artes. [...] Se eu possuísse alguns quadros, queria tê-los assim como um pintor organiza suas mesas ou telas no seu ateliê, apoiadas no chão umas sobre as outras e com a pintura voltada para a parede; e quando ele quer ver ou mostrar uma delas a alguém vai tirar lá de uma enorme pilha. Igualmente como quando se quer ler um livro, ou transpor uma música para o piano, ou quando colocamos um disco para tocar. (A pintura sempre irá procurar, cada vez mais, evitar o uso da moldura). Assim eu o faria, tal como o disse, se tivesse alguns quadros. Mas eu lhes disse que não os possuo, e acrescento, nem mesmo quero tê-los. Gosto de muitos quadros, eles me exaltam, antigos e modernos; de Giotto a Morandi. No entanto, não sinto o desejo que algum deles seja meu, de minha propriedade. Ao contrário, sentiria uma privação enorme por isso. Para explicar esse fato, digo-lhes logo que em relação às outras artes a coisa se dá de outra forma. Por exemplo, no que diz respeito a uma obra de grande poesia. Se eu possuo a Divina Comédia, então, possuo apenas um seu exemplar, um dos noventa mil já existentes, e que pode aumentar de número continuamente. Mas um quadro, dado que é um acontecimento espiritual tal como um poema, é também (que coisa mais assustadora) "um objeto", e um objeto único. (...) Então, sou tomado por uma angústia: é justo que aquele unicum, que pode ser um dos milagres do espírito humano, é justo, coloquemos a questão, que a Tempesta de Giorgione seja minha e não sua? [...] IN: Massimo Bontempelli, "Al non possedere quadri", in Introduzioni e discorsi. Milano: Bompiani, 1945, p. 249-250; tradução Davi Pessoa. Discurso de inauguração do "Primeiro congresso dos críticos de arte antiga", Veneza, 16 de julho de 1942. *

Giorgio Agamben


Tradição do imemorável 1. Toda reflexão sobre a tradição deve começar com a constatação de que, em aparência trivial, antes da transmissão de algo, os homens têm que, antes de tudo, transmitir a linguagem entre eles. Toda tradição específica, todo patrimônio cultural determinado, pressupõe a tradição dessa transmissão, através da qual somente algo como uma tradição é possível. Mas o que o homem transmite ao se transmitir a linguagem? Qual é o significado da transmissão da linguagem, independentemente daquilo que, na linguagem, é transmitido? Estas perguntas, longe de serem irrelevantes, representam desde o início o tema da filosofia: esta pensa aquilo que está em questão não neste ou naquele discurso significante, mas no fato singular de que o homem fala, de que exista linguagem e abertura de sentido, aquém ou além, ou, muito mais, em todo acontecimento determinado de significação. Aquilo que, desse modo, já é sempre transmitido em toda tradição, o architraditum e o primum de toda tradição, é a coisa do pensamento. [...] IN: Giorgio Agamben, "Tradizione dell'immemorabile", in La potenza del pensiero (saggi e conferenze). Vicenza: Neri Pozza, 2010, p. 152; tradução Davi Pessoa. O ensaio foi publicado originalmente em "Il centauro", 1985, n. 13-14. *

Pier Vittorio Tondelli Videoarte No pavilhão central da XLI Bienal de Veneza, um grupo internacional de artistas propõe o vídeo como objeto de restruturação do espaço e de produção de sugestões eletrônicas inéditas. Completamente inquietante o ambiente que o húngaro Gusztâv Hâmos, de 28 anos, prepara com tons funerais e catacumbal: uma pilha de poliuretano branco esmigalhado, semelhante a neve ou a sal, possui, em seu vértice, um monitor que ora transmite imagens de marés e de fluxos de ondas, como se seguissem as esculturas de água de Fabrizio Plessi, ora, ao contrário, projeta fotogramas de uma quarto vazio que passa a ser um setor do mesmo ambiente revestido de lâminas de ouro muito sutis. Música funerária e de oratório, marulhos, pausas, grandes sugestões como se a ativação de um circuito eletrônico ligasse não ao futuro, mas se constituísse, ao invés, como percurso arcano e ancestral: como se aquele espaço escuro, logo que reverberado dos refluxos cândidos e dourados, fosse a tumba plácida e austera da ilusão eletrônica.


Se ficarmos atentos, o tema cemiterial também retornou em outros trabalhos, como uma espécie de leitmotiv, tanto que chegamos, de fato, ao ponto de nos perguntarmos: será uma vez por todas o caminho da morte da arte? Nisso se encontra o classicismo da era eletrônica? Ou não seria o fruto de muitos Day After, ou War Days, ou Atomic Café? Marina Abramović e Ulay, conhecidíssimos performer, propõem rochas e pedras. Vê-se um macinho de forma brutalmente piramidal com seus olhos arregalados pintados, que fixam imagens lentas e circulares de ruínas e de tumbas projetadas por um monitor ali de frente. Ulrike Rosenbach, por outro lado, escolhe, excessivamente, a elegia fúnebre com Memorial for A Desperate Woman: quinze lençóis decorados com guirlandas de rosas delimitam o espaço em que a imagem de uma mulher, de tamanho natural, jaz adormecida. O televisor, por outro lado, transmite o momento da refeição completa de uma mulher tagarela ultranonagenária, desde o aperitivo até a sobremesa, e poderia ser um daqueles filmes intermináveis de Andy Warhol, ou uma entrevista de Marco Bellocchio para o seu Matti da slegare (videotape como instrumento de pesquisa social). Justine Colette (Art and Stage) e Friederike Pezold (Nirvana rosa) compreendem, ao contrário, o vídeo como elemento do corpo humano; ambos colocaram um monitor de algumas polegadas na barriga de um manequim. Surpreende, por outro lado, e com grande prazer, todos os amantes do videogame e da audácia excessiva o efeito criado por Ingo Gunther com seu Ceterum Censeo, onde uma Mercedes 380 está pendurada com suas rodas sobre televisores: imagens porém não realistas, mas, sim, tiras de frequências visuais que aceleram, freiam, saltam, se combinam com efeitos sonoros mutáveis: chiados de pneus, roncos de motores, empinadas, arrancadas; como se a nossa carruagem viajasse sobre tapis roulants de cor e de imagens captadas acidentalmente, ao longo dos asfaltos galáticos, das autoestradas orbitais. Mais uma mensagem de privação e de morte em Split Monument de Valie Export: imaginem um triângulo equilátero, de uns dois metros de lateral, com três televisores colocados em seus vértices. Nos dois lados em relação à base, vemos os primeiros planos de um homem e de uma mulher que se olham; em outro vértice, uma metralhadora que dispara continuamente contras os dois, que, de fato, estão deitados no centro da área, fotografados deitados e desmaiados. Fim do casal? Fim da comunicação interpessoal? Fim das relações? Por consumpção ou por causa de muita televisão? Depois, transita-se por pequenas salas onde é possível sentar-se na companhia de uma seleção de vídeos, pode-se solicitar qualquer um deles. Entre as novidades, vê-se Perfect Leader de Max Almy, que conta, em poucos minutos, e com muito sentido de ritmo, a figura do homem-massa americano (um dos raríssimos vídeos irônicos e declaradamente políticos). Construído, ao contrário, como aqueles desenhos prospectivos que ilustram as tabelas demográficas nos velhos livros de


texto, assim o é Noli me tangere de Owen Lind, sem dúvida o primeiro medical video: no fundo reticulado se alternam perfis masculinos sem rosto, que são investigados dos cabelos aos pés, enquanto a base da tela está ocupada por desdobramentos do rosto, os quais correm na horizontal, tal como o traçado de um eletrocardiograma. Trilha sonora de gemidos, gritos e suspiros. Será a clínica do neto pós-moderno do barão Frankenstein? Dois geniozinhos da eletrônica, Dean Winkel e John Sanborn, apresentam Act III. Sobre a serpentinada música de Philip Glass, vemos se agitar, em perfeita harmonia, uma série de figuras geométricas planas que se multiplicam rapidamente em si mesmas: as possibilidades combinatórias, depois, tomam o barlavento com grande fantasia até criar objetos sólidos e superfícies fractais; rosas do deserto vorticosas, caixas chinesas que se abrem ao infinito, colunas estratificadas que caem e se recompõem junto ao crescimento e ao retorno dos giros musicais de Glass. As estatuetas chegam até mesmo a ter uma alma no rodopio, assim como os discos voadores sobre Manhattan, que parecem elfos com suas cores pastéis, tornando-se fogos fátuos, brincalhões e alegres como os marcianos. Act III se torna, portanto, o primeiro videoclipe que, narrando-se, constrói uma narrativa da tecnologia a respeito do seu gênero: como se fossem traços de simples sigla de transmissão televisiva, como traços de computer art da raça mais sofisticada, como traços de quase videogame, e, depois, como cinema de animação, com efeitos especiais, e, ao mesmo tempo, uma tentativa muito exemplar de dar plasticidade visual ao texto musical.

IN: Pier Vittorio Tondelli, "Videoarte", in Un weekend posmoderno: cronache dagli anni ottanta. Milano: Bompiani, 2009, p. 220-22; tradução Davi Pessoa. *

Murilo Mendes Federico Brook Já faz alguns anos que Brook está empenhado na integração do escultor no espaço arquitetônico, ou seja, na invenção de um espaço livre, que possa satisfazer o homo ludens, colocando de lado a sua idade ou cultura. É óbvio que tal comportamento pressupõe uma desmistificação do monumento "sério" ou "heroico", daquela família de monumentos que desfiguram praças e jardins de tantas cidades europeias e das duas Américas. Servindo-se de uma feliz combinação de elementos, por exemplo, metal e acrílico, Brook realiza algumas "diversões" plásticas para o olho e para as mãos. Essas esculturas-objeto poderão se


integrar muito bem no espaço de jardins e parques, assim como nos museus e bibliotecas. Eles solicitam a colaboração direta do espectador, agora transformado em protagonista, participando, desse modo, em forma viva, da invenção do artista. A escultura-objeto se transforma, portanto, numa das metáforas da cidade. [maio de 1969]

IN: Murilo Mendes, L’occhio del poeta. Organizado por Luciana Stegagno Picchio. Roma: Gangemi editore, 2001, p. 50; tradução Davi Pessoa. Texto publicado no catálogo da mostra "Federico Brook" junto ao Instituto Italo-Latino Americano, 30 de maio-25 de junho, 1969. *

Querido Kahnweiler, [primavera de 1924] Há muito tempo não nos escrevemos, o que é uma verdadeira lástima. Contar tantas coisas por carta não vale a pena. O que talvez lhe interesse saber é que no outono próximo será publicada a História da Arte. Além disso, na Alemanha persiste o mesmo alvoroço infundado e estúpido de alguns sous-offs e cocheiros que reivindicam a gritos a sua importância. Uns limpam os sapatos do senhor Matisse e outros aprendem de cor a Correspondance de Flaubert, ou acabam por descobrir Zola. Cada vez mais me sinto mais farto deles; esses jovens ridículos me aborrecem solenemente. Assim, decidi me mudar para Paris. Porém, não queria morar em Montparnasse nem em Montmartre, queria algo mais para a periferia, num bairro normal e agradável que não obrigue ninguém a ser genial. Uma moradia com dimensões justas, na qual se possa trabalhar. Não vou esconder que gostaria de morar perto de você, pois acredito que, às vezes, poderíamos passar algumas vigílias agradáveis juntos. Você irá compreender que não dou nenhuma importância às anedotas repetidas dos quartiers. Em princípio, queria passar o verão com minha esposa, Aga Hagen, na Holanda e na Inglaterra, porém a coitadinha está muito doente, e me vejo obrigado, lamentavelmente, a interná-la num hospital. Eu ficarei apenas duas semanas nesses países, não tendo ainda ideia aonde irei depois. O Midi não é para mim, não sou pintor; além do mais, não saberia dizer porque preciso suar sem necessidade. E você vai para onde? Vai viajar novamente com Léger? Caso não o perturbe, talvez eu fique próximo de vocês. No entanto, precisa me dizer sem rodeios. Talvez você não tenha vontade de ver ninguém, ou tenha outras razões, o que seria compreensível. No meu caso, por outro lado, é diferente, e com frequência penso que poderíamos fazer algo juntos, ou, pelo menos, que poderíamos compartilhar o tempo agradavelmente. Durante


os meses de agosto e de setembro qualquer lugar fora da Alemanha está bom para mim, e, a partir do primeiro de outubro, já queria saber onde poderei viver em Paris, ou em seus arredores, com certa amplitude. Estou já um pouco cansado de hotéis para estudantes. Como estão as novas obras de Braque e de Gris? Acrescente na sua carta algumas fotos para eu ver, posso publicá-las em seguida na Kiepenheuer [Gustav Kiepenheuer Verlag editor, fundada em 1910, em Weimar]. No final desse mês lhe devolvo todas as fotos. Ou prefere que eu as dê a Flechtheim?

Muitas

lembranças a sua família. Saudações do seu velho amigo, Carl Einstein Você poderia me passar o endereço de Maria Blanchard?

Meu querido Einstein: [13 de junho de 1924] Sua carta me encheu de alegria. Venha a Paris quando quiser. Parece-me uma ótima ideia, e melhor ainda se pudesse morar próximo de nós, passaríamos juntos ótimos vigílias. Não será muito difícil. Você vai encontrar moradias agradáveis e mobiliadas, aos montes, tanto em Boulogne quanto - e é o que gostaria de lhe aconselhar - em Auteuil, ou em Saint Cloud. A escolha entre esses dois lugares depende das suas intenções. Caso queria sair com frequência, recomendo Auteuil, que ainda é Paris e também porque oferece mais facilidades para voltar para casa. Caso contrário, Saint Cloud, que está mais arejado e é mais agradável do que Boulogne, porém fica um pouco mais distante. Em relação ao próximo verão, ainda não temos nenhum plano definitivo. Comprei um carro pequeno e tenho em mente de fazer um pequeno tour de France para visitar alguns amigos em suas casas de veraneio. Porém isso seria apenas uma viagem, já que gostaríamos de ficar um mês em algum lugar para descansar. Ainda não sei exatamente onde, mas certamente no sul, ou mais próximo de Antibes, ou de Arcachon. Toda a minha família quer tomar banho de mar, e o certo é que não tememos o sol. Além disso, no verão as outras praias estão tão cheias de gente que ficar ali não oferece nenhum prazer. Lamento que você não se sinta bem no Midi. É uma pena, pois você se sentiria bem ao nosso lado. O melhor, como lhe disse, seria você se instalar no lado oeste de Paris. Caso necessário, um pouco mais para lá de Saint Cloud: ali há lugares encantadores, como Marly, Louveciennes, etc., que não ficam muito distantes de Paris. Venha com calma, pois, sem dúvida, você não terá dificuldade de encontrar algo. Nem preciso dizer que estou à sua inteira disposição, será um prazer.


No que diz respeito à pintura, não há grandes novidades. Os malditos ballets monopolizaram todos. Gris está terminando uma série de trabalhos muito importantes. Envio-lhe um cartão de visita com uma natureza-morta minúscula. Em seguida vou lhe enviar fotos de obras novas. Braque, além dos ballets, se mudou, assim, ele só pôde realizar um par de naturezas-mortas pequenas. Que o diabo leve consigo o balé russo e o conde Beaumont!* Os pintores ficam exaustos durante meses, depois de realizarem os seus balés. Enfim, espero ter logo notícias suas. Nós vamos sair de férias no dia 2 de julho e voltaremos para Paris por volta do dia 7 de setembro. Minha família lhe manda muitas lembranças. Cordialmente, seu D.-H. Kahnweiler Maria Blanchard vive no número 21, Av. Du Maine (15ᵉ) N.T.: Conde Étienne de Beaumont, famoso mecenas, organizou as famosas "Soirées de Paris", do dia 17 de maio ao 30 de junho de 1924, com a colaboração de vários pintores. IN: Carl Einstein; Daniel-Henry Kahnweiler, Correspondance Carl Einstein - Daniel-Henry Kahnweiler 1921-1939. Présentation et notes Liliane Meffre. Marseille: André Dimanche, 1993, p. 59-62, tradução Davi Pessoa. *

Boltanski e o lugar do artista [conversa entre Diana Wechsler e Boltanski] Diana Wechsler: O lugar do questionamento é para você uma das chaves de sua proposta artística. "No meu trabalho", você escreveu, "quero que cada obra possa provocar uma pergunta, sobre a qual não tenho resposta, pois é uma pergunta que leva a outra". Qual seria na sua opinião o papel do artista e o conceito de obra a partir dessa definição? Boltanski: Acredito que o papel do artista é mais ou menos sempre o mesmo, e as perguntas que se fazem também. Eu faço perguntas que são feitas desde os primórdios da humanidade e não acredito na ideia de progresso na arte. Esta não é melhor hoje do que há quinze anos atrás. Isso é certo, porém, de fato, é mais ou menos sempre a mesma coisa. As perguntas feitas são as mesmas, e se utiliza uma linguagem própria, do seu tempo, para fazê-las. Desde sempre, o artista, o filósofo, ou


simplesmente todo ser humano que busca compreender algo questiona e se questiona. Faço perguntas para mim mesmo, para as quais, lamentavelmente, não tenho respostas, porém essas me ajudaram a seguir, fazendo sempre novas perguntas. A arte é um constante ir e vir entre o pessoal e o coletivo. Se o trabalho do artista funciona, então ele consegue falar com pessoas muito diferentes, que irão sentir a mesma coisa, ou, ao menos, algo análogo. Um artista somente pode falar do que está entre ele e os outros. Fala-se sempre de uma espécie de experiência comum. Muitas experiências humanas são comuns, todos nós perdemos um ente querido, todos temos medo diante da morte, um anseio de harmonia, a busca por Deus, o sexo, o assombro diante da beleza da natureza. Existem cinco ou seis temas tratados pelos artistas desde o início dos tempos. O mais importante é que cada um de nós é único, no entanto, ao mesmo tempo, cada um alcança rapidamente o esquecimento. Diana Wechsler: A partir desse conceito de obra, existe uma seleção peculiar de materiais, fotos, roupas, batidas do coração e um uso espacial dos espaços. Como você os elege e estabelece a relação entre eles? Boltanski: Desde o começo, senti a igualdade entre uma fotografia de alguém, entre a roupa usada e o corpo de um morto. Minha matéria, embora pareçam ser formas diferentes, é sempre a mesma. Trata-se de um objeto que remete a um sujeito ausente. Há mais ou menos dez anos coleciono batidas de corações. Fabriquei em Teshima, Japão, uma máquina pequena que permite gravar as batidas do coração, que viaja por todo o mundo. Tenho 45.000 batidas guardadas nessa máquina. Se alguém vai até Teshima, pode pedir para escutar as batidas do coração da senhora Rodríguez, por exemplo. Os técnicos dão um clique no computador e as pessoas podem escutar esse coração. Atualmente, dentro da primeira fase do projeto Boltanski Buenos Aires, foram instaladas duas Cabines de gravação para os Arquivos do coração em "Tecnópolis", em que já se encontram mais de 10.000 gravações. Diana Wechsler: Em Buenos Aires você irá apresentar obras que não podem ser colocadas em um museu. O que o levou a tomar essa decisão? Boltanski: Fiz obras em museus e são lugares respeitáveis. Procuro produzir uma emoção e para isso é mais fácil fazê-lo em um lugar onde não se possa dizer "Museu". Acredito que uma das coisas que impede que o grande público possa se aproximar da arte contemporânea é que cada um de nós possui um arquivo na cabeça onde figura aquilo que deve ser a arte. Aprendemos isso ainda em nossa infância e, em geral, se tem a ideia de que a arte precisa ser parecida com uma pintura impressionista, ou, caso contrário, não é nada. Acredito que seja necessário fazer com que as pessoas sintam uma emoção direta. Pretendo que alguém ao ver uma de minhas obra possa dizer: "Alguma coisa aconteceu. Não sei o quê, porém sinto que algo aconteceu...". Desse modo, a meu ver, é que posso me aproximar melhor das pessoas...


IN: Diálogo entre Diana Wechsler (curadora da mostra Boltanski Buenos Aires, 2012) e Christian Boltanski, em Buenos Aires, 2011, em que se desenvolvem alguns fundamentos sobre o lugar do artista e da sua obra. Aqui, lê-se a tradução de alguns fragmentos dessa conversa; tradução Davi Pessoa.

Elsa Morante O beato propagandista do Paraíso

Uma das suas características singulares é ter três nomes distintos. O primeiro (seu nome anagráfico) é Guido di Pietro: conhecido, pelos íntimos, como Guidolino (talvez porque, ao menos desde jovenzinho, crescesse frágil, sendo de estatura baixa? Por motivos semelhantes, um dos seus “pais”, o dominicano Pierozzi Antonio, tornou-se Antonino, e depois Santo Antônio). O segundo nome, Giovanni da Fiesole, foi assumido por ele no momento da sua vocação religiosa: provavelmente pela intenção consciente de honrar mais um dos seus “pais”, o dominicano Giovanni Dominici; mas, talvez, por causa de outra sua escolha inconsciente e necessária, como depois iremos destacar. Esses dois nomes fazem parte de sua história; porém o terceiro, Beato Angelico, foi oferecido a ele, como vivo e como morto, por sua lenda popular. E não por nada, coube-lhe apenas ficar com este último nome, pois era mais comum, familiar a todo mundo. A lenda do Beato Angelico, antes mesmo de pintor, o quer como santo; e os críticos modernos, atentos para situá-lo objetivamente na História, trabalham com o intuito de retirá-lo de algumas confusões legendárias. Mas eu, assim como o povo, não sei realizar tal operação: embora precise reconhecer naquela auréola sobreterrestre o primeiro ácido que produziu os meus preconceitos pouco gentis acerca da lenda do Beato. [...]

N.T.: O ensaio “O beato propagandista do Paraíso” foi publicado, foi publicado originalmente no volume Beato Angelico, Rizzoli, Milão, 1970. IN: Elsa Morante, “Il beato propagandista del Paradiso”, in: Pro o contro la bomba atomica e altri scritti. Milano: Adelphi, 1987, p. 121-122; tradução Davi Pessoa. ____________________


¹ Davi Pessoa Carneiro é autor de Terceira Margem:Testemunha, Tradução (Editora da Casa, 2008). Traduziu A razão dos outros, Ou de um ou de nenhum (Lumme Editor, 2009), de Luigi Pirandello; Georges

Bataille:

filósofo (Edufsc,

2010),

de

Franco

Rella

e

Susanna Mati, Desgostos (Edufsc, 2010), Ligação Direta (Edufsc, 2011), ambos de Mario Perniola. Edita o blog: http:// traduzirfantasmas.wordpress.com/


CADERNO ESPECIAL DE POESIA: LALO ARIAS E WILSON TORRES NANINI, E O OLHAR DE MERCEDES LORENZO¹ VESTÍGIOS E AUSÊNCIAS: POESIA EM MOVIMENTO O mundo real se fragmenta diante do eu criador. O eu-pedra, o eu-montanha-e-rio. O eucosmos. O sem-eu-camponês, -pescador, -operário, e –estudante, de Barnabé João, do eu-povo moçambicano. Mas “a língua das palavras não chega para tudo”, canta Mutimati. “É preciso aprender a língua dos números. É preciso aprender a língua dos desenhos.” São as línguas que deixamos aos olhos e à inteligência perseguirem, com o prosar do vento. Porque o eu é quando juntamos a natureza entre as mãos. E sussurramos palavras que passam a ser a natureza. “Devolvidos ao chão”, rimbaudianamente, “com uma realidade rugosa a assumir”. Sim, as palavras percebem que estamos vivos. Os animais, como as palavras, não mentem. As pessoas, sim. Mas nalgum recanto, suas palavras os desvelam. Não calam. Querem a revelação. O animal possui o mesmo instinto nostálgico dos vocábulos. Se os símbolos de Lalo Arias e Wilson Torres Nanini, só as palavras as dizem. E sem dizer, são cintos postos na gaveta das rochas. Tendem a apodrecer. Por inanição, inércia. Sob a fluvial ferrugem. O des-pudor dos Vestígios e Ausências de Mercedes Lorenzo ao dar pistas à criação, ou levantar sua cauda de mistério, não impedirá que o espectador ou leitor possam desenvolver juntos premissas de algo maior. O recesso de onde a obra brotou. A dicção que cria é independente do que apresenta a respeito. No entanto, vêm da mesma ebulição. Poderiam completar a translação do sonho. Porque o tema também está no leitor ou espectador. O tema está atrás do olhar, advertiu Salvador Dalí. “A verossimilhança não é senão um golpe de vista” (Georges Braque). No momento que se capta com a lente, o tema vê sob o olhar que as palavras têm. E são muitos olhos que se vai desvendando. E passam a nos ver. A criadora se divide entre silenciar, perplexa, sobre a obra, ou dar noções do seu desígnio. Explicando-a, poderá aperfeiçoá-la? É lógico que não. O que está vivo suporta o juízo. Mas Jean Renoir, em Escritos sobre o Cinema, aponta outro aspecto: “Tenho também uma idéia antiga na cabeça, a de que não são apenas os diretores, os fotógrafos, os atores ou os técnicos que fazem os filmes, a de que não são apenas os artistas que fazem as obras de arte. Minha idéia é a de que, pelo menos nas grandes artes, nas artes maiores, a obra é criada também pelo público.” E é a esse público, presente ou futuro, que nos dirigimos. Não basta descobrirmos o que fazemos. É justo que nos descubram. Nina Rizzi


madalena II mas vale ouro/incenso/mirra do natal disseram-me meu comércio-carnal de : “damascos ninar-vos com eternidades perecíveis?

malemolência da chibata de aço talvez só depois que o zumbidor néon nas nádegas dos órfãos das vitrinas com presépios tatuar na pele de minhas retinas cruas e anestésico o lusco-fusco quando dos pregos nas chagas de sua comovente hemorragia do crucificado menino” [Wilson Torres Nanini]



tempestade a caminho

moça debruçada na janela

ela tem o mapa da cidade

não precisei explicar nada

tatuado nas coxas

bastou ela me olhar

senta-se ao meu lado com uma força

desde o instante da chegada

que desconcerta

devo ter adormecido

e pousa os antebraços sobre o balcão

entre as tintas pincéis potes

quase sem gravidade

carvão e folhas de esboço

gosto de pensar que seu nome

da lata de terebentina

é Cass

e da garrafa de vinho tinto

seus pés balançam encontrando os meus

até o chão da sala

dois breves toques

parecia não fazer sentido um artista como eu

nunca nos falamos

levantando, enquanto ela dizia

mas ela atravessa as noites

toma um banho, se prepare

ao meu lado eu sinto o suor que desce

então

pelas nossas costas

o mundo na mais perfeita ordem

ouço uma musica que inventei

ela debruçada na janela

quando fui jovem

olhando o mistério que passa

são notas de um piano tocando o solo

me falou sem se voltar:

deve ser tarde

vou te pedir uma coisa

é sempre tarde demais

por favor, faça algo

[Lalo Arias, Cidade Desaparecida]

não dá mais pra suportar ver você assim tão triste


capitu

redemunho

para Lúcio Jr

para líria porto

a moça de olhar oblíquo e seu

circum-arisco vento célere

enigma indelével

– que fico o sigilo do chão de um rio – em plena empoeirada rua

: acaricia enquanto apunhala? o sol me cega me sega o sol o sol me seca “eu toda sou

o tato e sinto a sede tanta

cisterna ou cântaro?

de um mar interno

a de afeto

e para que meu cerne se reensolare

nômade

– poesia não duela afagos (meço apaziguamentos

fico algo ciranda

peso ausências) –

circo em plena missa

você me traz alumbrado mar

: empunho meu catavento e saio

me relenta me

à cata de salvar pipas após o cerol

cataventa

(à deriva nos céus invertebrados

me estende versos em lamparina

já demolidos com remanso)

adivinhando enfim onde é mais noite em mim

[Wilson Torres Nanini]



20 de janeiro

28 de janeiro

Quase esqueci que sei falar.

Meu amor,

Quando volto a falar é num tom muito baixo,

finalmente desisti da música e da leitura.

quase imperceptível.

Elas me confundiam.

É uma voz estranha, meu amor,

Passo a maior parte do tempo na sala.

que me assusta um pouco quando ouço.

Só me afasto dali pra viajar.

E sinto uma falta de ar impossível,

A velha poltrona é o ponto de partida

apesar de tudo à minha volta

para minhas aventuras.

mostrar que é só insistir.

Ontem fui até a nossa pequena ilha,

Sonhei com o deserto outra vez.

nadando muito devagar,

Ele estava lá, o oásis.

como fazíamos antes.

Mas muito distante,

Duas forças invisíveis,

como daquela última vez.

mas muito conhecidas,

Ele parecia afastar-se mais e mais

me impulsionavam suavemente

na medida em que caminhávamos

pelos flancos. Era irresistível.

em direção a ele.

Sentei na areia

A tenda de campanha já estava montada

antes de explorar novamente

na beira da trilha e

os encantos do lugar.

os cobertores estavam dobrados

Durou pouco o passeio.

sobre a vasilha com carvão quente.

Súbito, já voltara ao conforto

Fez muito frio na madrugada,

do meu cantinho no apartamento.

nos protegemos, um ao outro abraçados.

Depois de um breve cochilo,

Depois o céu ficou quieto e o vento também.

consegui entender

Quando acordei fui olhar através da janela.

que todas as coisas da vida

Pensei novamente naquela música

vêm aos pares.

que dançávamos.

O oásis e a ilha,

Pensei em quantas vezes sonharia outra vez

o deserto e o oceano,

com o deserto de nós dois.

a noite e o silêncio,

Pensei no silêncio que se instalou por aqui.

o dia e o silêncio.

Pensei tanto que precisei me afastar da janela.

O gato e o meu colo.

Agora estou mais calmo,

O meu olhar e o infinito,

sentado à frente da mesa da sala,

que ocupa um pequeno ponto

apertando minhas duas mãos entrelaçadas

da parede

até os nós dos dedos ficarem completamente

no outro lado da sala.

brancos. [Lalo Arias, Cartas pra Naíma]


lenda para fouad talal

transmutar-se-ia em gado (bois sem patas vacas aladas)

ah! as donzeladas fábulas

e manejariam elas mesmas

minha avó contava

o arado implícito impelidas pela

: “parideiras até a velhice

perícia do cutelo

de todos os óvulos em segredo amamentavam como

– mas nunca ninguém soube ao certo

propina, serpentes

do galope do veneno nem em que seio o câncer imposto

do contrário a cria com o tempo

[Wilson Torres Nanini]

doeria para sempre”


quaresma

os ombros num os anjos noutro os abutres

“o vento prazeroso nos cabelos é epidêmico?”

“ai a ribanceira me caminha por dentro insinuante – sem aragem”

o pungir-se: o bentar-se na amplidão solitária

“é do penhasco deserto que melhor se vê o (po)mar”

[Wilson Torres Nanini]


11 de setembro Voltei pra cozinha, Em que segundo da manhã tudo começou? Uma espiralada fumaça negra subia, repetindo o que houve em Santiago no ano de 1973. Eu li, como se dormisse , de um verso despregado do céu,

a comida pronta. Uma garrafa, um copo, um prato, dois talheres. A mesa posta. E a sua voz, Naíma, corroendo meus ouvidos.

algo que cantava a vida eterna. Os bombardeios começaram pouco após o sol sair. Através da vidraça a vida fingia continuar. As colunas negras, como os meninos negros da Nigéria empilhados, saiam da terra e subiam. Meu pai está morto, pensei.

[Lalo Arias, Cartas pra Naíma]



carta

me chega a caixa hieroglífica contendo despudores ameaças de castração de suicídio e de outras mortes

juras desdilatam as distâncias – esses mares ásperos – “mas a saudade de ti é tanta é como se eu tivesse tido o clitóris amputado com um caco de vidro” sob a notícia dos entes mortos me conta segredos beeemmm mulherzinha – sua nudez oferta desfila alegre nas entrelinhas (labir)íntimas

: me quer ser sede e moringa a um só tempo

e eu quero todos os signos ígneos dos seus sins suaves

[Wilson Torres Nanini]


espantalho

Mostre você a você mesmo ensaia cantar

O fundo da casa é vazio como um poço

o pássaro

muito antigo

Mas não canta

Há porém os doces pássaros

A tarde parece um

quietos

espantalho de tanta

demais para uma tarde

mansidão e

quietos

desespero

de menos para uma vida

E eu só peço a ele

Uma vida não tem começo

um gesto

nem fim

mas

Ela está lá agora

que seja verdadeiro

penetrando em si suave e só procurando um cantinho seu

[Lalo Arias, Deus Morreu ontem à noite e outros poemas]



fóssil-fabiano

: ainda lateja a escrever então só para

nos vamos deixamos os

evitar

restos mortais

escaras na

de um lugar

linguagem –

cadela com lepra

desmetrificar a sede

nos fareja a fuga

abrasiva – ir-se por seco leito

árdua asa lambe

(bem cerzida cicatriz

no ar a chaga

de

do apedrejado voo

subsolado rio)

[Wilson Torres Nanini


o maior amor do mundo

Ontem saltei pela sétima vez da ponte A mesma ponte sem rio por baixo sem trovoadas por cima Imaginei um oceano coroando a noite como um mar de pétalas que se junta a um mar de pérolas que resulta num mar de pedras rolando por baixo da ponte E o frio era tanto que abraçar a mim mesmo não bastava Agarrar o ar revendo um barco que aderna por trás do horizonte enquanto salto pela sétima vez * deus morreu ontem à noite

meus sapatos pesam poderia estar descalço

Com a lua cheia

poderia estar nu

entre os dentes

Mesmo assim você me tocaria?

e eu te pergunto:

Se eu fosse verdadeiro

você poderia tocar

seria só alma

meu centro?

Estou ao teu lado

No lugar onde estamos

e você não me vê

tudo virará pó

Não vou perguntar

Sou um homem

outra vez

pobre [Lalo Arias, Deus morreu ontem à noite e outros poemas]




sinhá vitória

anjos

não me bastaria baleia

setas alforjes seus

que os mares

ferrões recitar

se convertessem em potáveis

intempéries verbos epidêmicos –

nas entrelinhas do áspero avesso

ornitorrincos águas

já em vias de azedas

vivas orbitam

minhas sedes pedem temporais

seus olhos – eles varrem humanidades –

mas farejo tragédia

“por hóstias maledicentes

na arribaçã – rosno

saberemos ninar apa

rezas – nódoas de lágrimas

ziguar demônios?” só se entre cânticos e agua

rente à carícia – semissem-

rdente benta na goela um

matéria gozo

(apartado de sua falange)

monossilabicamente

se convertesse em mamífero e me dispensasse suas asas – embora resultasse eu receber também o seu poder de graça o seu dever de lepra

[Wilson Torres Nanini]



o fim, o início

escrevo fogo e o fogo é o encanto

escrevo dor e enxergo a terra

é a flutuação

em toda sua extensão

o fogo tem a mesma densidade

homens enlameados

das nuvens

carregando o peso do ouro

que sonham com o frio

nas costas

e com a neve

e a fadiga dos lobos

escrevo ar

e o descanso terno dos gatos

e desço

escrevo inferno e ele está aqui

como um suspiro

sendo criado a meus pés

desço

retorcendo as raízes

com a cabeça em seu colo

enterrando o ar

com as mãos em seus seios

escrevo purgatório e ouço a voz

escrevo água

que é do purgatório

e o incêndio se espalha

é ele quem grita poesia

por todo o hemisfério norte

poesia

e os animais em chamas

poesia

correm

o purgatório é um homem extenuado

correm

escrevo céu e é o céu que traz noite

para que eu possa continuar a escrever

noite

infinito

e mais noite ainda

e o infinito são as páginas de um livro

e traz a herança

que me contam todos os assassinatos

o sossego

deste e do próximo século

eu escrevo homem

e eu caminho entre os mortos

e o homem está aqui

eu escrevo verbo

escrevendo paraíso

e sua voz está lá

então eu imagino o lugar

mãe de misericórdia

onde estaremos

cercando tudo

sem jamais perceber

até encontrar meu centro

escrevo terra e ela se levanta

escrevo silêncio

sobe

e a espada desce

sobe

justamente

e envolve a você e a mim

quando estou de olhos vendados

como num círculo

e escrevo caos

um tufão dentro de um círculo

e escrevo paz

que veste você

e escrevo frio e o frio é o seu ódio

e que veste a mim

é o que você disse


que sentia por mim

que não seja aqui

é o que restou em mim

quando escrevo desprezo

depois

quando escrevo medo

depois

escrevo oração reza prece

encontro o velho amigo encharcado

escrevo solidão

de álcool e escrevo noite e a noite é a imaginação é tudo aquilo que faz com que continuemos vivos ou mortos tanto faz escrevo calor e o calor é lembrança suicídio desesperança e reconciliação eu escrevo dia e o dia é a ternura é um coração que sangra lentamente no mesmo ritmo de passos que se arrastam para longe de uma velha aldeia escrevo miséria e a miséria é um carrossel é uma família inteira voando sem conseguir pousar e escrevo liberdade fé ouro sopro melancolia e a melancolia é a verdade humana assim como quando escrevo música escrevo amor essa palavra cheia de medo de mágica e loucura escrevo despertar e o mundo desaparece com sua dor de mundo ele não está mais em nenhum lugar

[Lalo Arias, Deus morreu ontem à noite e outros poemas]


¹ Lalo Arias é paulistano, tem 59 anos, é jornalista e atua na área de edição de arte, é autor do livro Cidade Desaparecida (Editora Scortecci, 2010, poesia). Mantém o blog http://www.laloarias.blogspot.com Mercedes Lorenzo é paulistana e filha de imigrantes espanhóis. Formada em Fotografia pela EPA Escola Panamericana de Artes / SP. Ama o que faz, e espera jamais dar por encerrada sua evolução na linguagem fotográfica. Ultrapassar o limite da percepção cotidiana e somar alguma reflexão, alguma poesia, alguma surpresa... são ambições compartilhadas nas parcerias dos trabalhos realizados. www.mercedeslorenzo.com Wilson Torres Nanini nasceu em 1980. É de Botelhos, sul de Minas, onde atua como “policial militar por ofício e poeta por extravio”. Participou da Poemantologia da Revista Arraia PajeúBR. Está para lançar alcateia, seu primeiro livro de poemas, pela Editora Patuá. Edita o blog “Quebrantos, Relances e Abismos ao Relento (www.wilsonnanini.blogspot.com)”.


PARA TERMINAR... "O que o cérebro humano, senão um natural palimpsesto imenso? Palimpsesto é o meu cérebro e seu também, leitor. Incontáveis camadas de idéias, imagens, sentimentos caíram sucessivamente em seu cérebro, tão suavemente como a luz. Parecia que cada novo momento era enterrado o anterior. Mas nada realmente morreu. No entanto, entre a porta do palimpsesto, sobreposto ao outro, uma tragédia grega, uma lenda monástica e uma história de cavalaria e outra divina, o palimpsesto criado por Deus, que é a nossa memória imensurável [...], uma harmonia entre os elementos mais díspares. que quer que seja a inconsistente existência, a unidade humana não é perturbada. Ecoa toda a memória, como se você pudesse acordar simultaneamente formar um concerto, agradável ou doloroso, mas lógico e de dissonâncias [...]. " - O Paraíso Artificial / VIII Visions of Oxford Palimpsesto por Charles Baudelaire; livre tradução de Nina Rizzi E PORQUE O CINEMA É GODARD: Fique com Jean-Luc Godard: Les Dernières Minutes de/ Dez Minutos Mais Velho: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=2tJYZqdVCGs#!

Desenho-Colagem de Douglas Thomas


IN MEMORIAN Raul Macedo

Sugiro que Wislawa tenha fumado no hospital e dito – daria tudo por um café, e alguém com uma almofada apoiaria sua cabeça, e ela pensaria em dizer que não perdeu ainda a cabeça, mas não diria, não era preciso, e ela ,sorrindo, sabia desde o começo, o algodão do estofo da cama o soro, os aparelhos, ao rés da música abrindo lá fora alguns pássaros na alva da janela, olharia a relva sem olhar para trás, para os civis (apenas pra moça de xale que alimentava as pombas) sentava num banco, elegante, esperava, esperava e tomava seu café como quem abraça um amigo.

Editora Responsável: Nina Rizzi Endereço eletrônico: http://www.ellenismos.com/ E-mail: ellenismosrevista@gmail.com © 2012 Ellenismos - Diálogos com a Arte. ISSN: 2316-1779


A presente edição presta homenagem a Oscar Niemeyer, Décio Pignatari e Dave Brubeck que deixaram esse dezembro de 2012 com a cara de "Abril, o mais cruel dos meses". O mundo pode mesmo estar acabando...


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