Revista Ellenismos, 27: des-construindo o gênero

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pousa noutras coisas a tua asa / banha-te em música de antiquários de corda / balança-te em fibras de violinos frágeis e vê / como a areia carece do arrepio das mãos - instrumento de cinco toques

apaga então a flauta num sopro de cílios / e dorme - Katyuscia Carvalho, ao nível do ar

EDITORIAL

O que é gênero? Como desconstruir um conceito ou um estado de coisas sem antes ter clara a coisa em si? Nesta edição pensamos em gênero no sentido mais amplo do termo, desde os gêneros literários e artísticos até os que nomeiam homens como homens e mulheres como mulheres. E há quem não caiba em qualquer termo, por isso cabem ainda aqui muitas outras significações. A literatura, a arte tem o poder de ir na direção de outra coisa, de afastar e transfigurar a realidade. Blanchot observa que o aspecto mais marcante nas reflexões de Mallarmé está na sua concepção da linguagem, vista como impessoal, com existência independente absoluta. A linguagem, “não supõem alguém que a expresse,


ninguém que a ouça; ela se fala e se escreve” (MALLARMÉ, apud BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 45). Mas ela fala através do escritor, do artista, que se encontra em estado de solidão; essa é a sua magia. Ainda conforme Blanchot, a linguagem é uma espécie de “consciente sem sujeito que, separado do ser, é afastamento, contestação, poder infinito de criar o nada e se situar numa falta” (Ib., p.47). Assim, escolhemos nesta edição não publicar nenhum texto ou imagem conhecidas do grande público, tampouco encontraremos nestas páginas resposta alguma, senão ainda mais angústias, mas uma angústia criativa que, se não nos leva à reflexão, devolve a arte à ela mesma. Boa leitura! Nina Rizzi, agosto, 2013

James Jean: Double Mastectomy. Graphite on Paper, 10 x 9", 2012.


MANIFESTO (FALO POR MINHA DIFERENÇA)1 Pedro Lemebel; trad. Nina Rizzi

Não sou Pasolini pedindo explicações Não sou Ginsberg expulso de Cuba Não sou uma bicha disfarçada de poeta Não preciso de disfarces Aqui está minha cara Falo por minha diferença Defendo o que sou

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Este texto foi lido como intervenção em um ato político da

esquerda em setembro de 1986, em Santiago, Chile. Leia o poema original aqui: http://lemebel.blogspot.com.br/2005/11/manifiesto-hablo-pormi-diferencia.html [todas as notas são da traduora]


E não sou tão esquisito Me repugna a injustiça E suspeito dessa dança democrática Mas não me fale do proletariado Porque ser pobre e bicha é pior Há que ser ácido para suportar É ter que dar voltas nos machinhos da esquina É um pai que te odeia Porque o filho desmunheca É ter uma mãe de mãos marcadas pelo cloro Envelhecidas de limpeza Embalando de doença Por maus modos Por má sorte Como a ditadura


Pior que a ditadura Porque a ditadura passa E vem a democracia E desvia para o socialismo E então? Que farão com nossos companheiros? Irão nos amarrar às tranças em fardos com destino a um sidário2 cubano? Irão nos enfiar em algum trem para parte alguma Como no barco do general Ibáñez Onde aprendemos a nadar 2

Apesar de Sidario ser um nome próprio muito comum no

Chile, o autor o usa como substantivo para denominar clínicas para tratamento de soropositivos. Cf.: livro de crônicas de Pedro Lemebel chamado "Loco afán: crónicas de sidariorio", com textos que tratam, sobretudo, da marginalização de travestis e AIDS.


Mas ninguém chegou até à costa Por isso Valparaíso apagou suas luzes vermelhas Por isso as casas de caramba3 Brindaram com uma lágrima negra Aos carneiros comidos pelos caranguejos Este ano que a Comissão de Direitos Humanos Não lembra Por isso companheiro te pergunto Existe ainda o trem siberiano da propaganda reacionária? Esse trem que passa por suas pupilas Quando minha voz fala demasiado doce E você? 3

Casas onde se cantam tonadillas. O termo alude à cantora

tonadillera do século XVIII Maria Antónia Fernández, cujo apelido era Caramba.


Que fará com essa lembrança de meninos Nos pajeando e outras coisas Nas férias de Cartagena? O futuro será em preto e branco? O tempo correrá noite e dia sem ambiguidades? Não haverá uma bichona em alguma esquina desequilibrando o futuro de seu novo homem? Vão nos deixar bordar pássaros nas bandeiras da pátria livre? O fuzil eu deixo a você Que tem o sangue frio E não é medo O medo foi indo embora de mim Atacando com facadas


Nos inferninhos sexuais onde andei E não se sinta agredido Se te falo dessas coisas E te olho o volume Não sou hipócrita Acaso os peitos de uma mulher Não o faz baixar os olhos? Você não acredita Que sozinhos na serra Algo nos aconteceria? Embora depois me odiasse Por corromper sua moral revolucionária Tem medo que se homessexualize a vida? E não falo de te enfiar e tirar e tirar e te enfiar somente


Falo de ternura companheiro Você não sabe Como custa encontrar o amor Nestas condições Você não sabe O que é carregar essa lepra As pessoas ficam à distância As pessoas compreendem e dizem: É viado mas escreve bem É viado mas é um bom amigo Super-boa-onda4 Eu não sou boa-onda Eu aceito o mundo Sem lhe pedir essa boa-onda 4

No original "buena-onda", um trocadilho: alegre/ fresco.


Mas ainda assim riem Tenho cicatrizes de risos nas costas Você acredita que eu penso com o pau E que à primeira parrillada5 da CNI6 Eu ia soltar tudo Não sabe que a masculinidade Nunca a aprendi nos quartéis

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Prato típico chileno com diversos tipos de carne e frutos do

mar, naturalmente no poema se trata de um trocadilho. 6

CNI - Central Nacional de Informaciones de Chile - foi um

organismo de inteligência do regime militar chileno. Criada em 1977, foi responsável por inúmeros casos de infiltração política, assassinatos, sequestros e tortura aos opositores do regime, além de estar relacionada ao roubo de banco e o tráfico de drogas e armas. Foi dissolvida em 1990, pouco antes do retorno da democracia. Muitos de seus agentes então foram realocados em outros cargos públicos, inclusive de segurança.


Minha masculinidade me ensinou a noite Atrás de um poste Essa masculinidade de que você se gaba Te enfiaram em um regimento Um milico assassino Desses que ainda estão no poder Minha masculinidade não recebi do partido Porque me rechaçaram com risadinhas Muitas vezes Minha masculinidade aprendi militando Na dureza desses anos E riram da minha voz afeminada Gritando: vai cair, vai cair E embora você grite como homem Não conseguiu que caísse


Minha masculinidade foi amordaçada Não fui ao estádio E me peguei aos trancos pelo Colo Colo7 O futebol é outra homossexualidade encoberta Como o boxe, a política e o vinho Minha masculinidade foi morder as provocações Engolir a raiva para não matar todo mundo Minha masculinidade é me aceitar diferente Ser covarde é muito mais duro Eu não dou a outra face Dou o cu companheiro E esta é a minha vingança Minha masculinidade espera paciente Que os machos fiquem velhos 7

Time de futebol chileno.


Porque a esta altura do campeonato A esquerda corta seu cu flácido No parlamento Minha masculinidade foi difícil Por isso não subo nesse trem Sem saber aonde vai Eu não vou mudar pelo marxismo Que me rechaçou tantas vezes Não preciso mudar Sou mais subversivo que vocês Não vou mudar somente Pelos pobres pelos ricos Ou outro cachorro com esse osso Tampouco porque o capitalismo é injusto Em Nova Iorque as bichas de beijam na rua


Mas esta parte deixo para você Que tanto se interessa Que a revolução não se apodreça completamente A vocês entrego esta mensagem E não é por mim Eu estou velho E sua utopia é para as gerações futuras Há tantas crianças que vão nascer com a asinha quebrada E eu quero que voem companheiro Que sua revolução Dê a eles um pedaço de céu vermelho Para que possam voar


A IDEIA DE PATRIMÔNIO CULTURAL (URBANO), EM (RE)CONSTRUÇÃO Não sei se estarei falando de des-construção, e nem tão pouco de gêneros. É mais provável que irei falar de (re) construções, e de conceitos. Na verdade, em misturas de conceitos: Arquitetura, patrimônio cultural, arte. Em suma, o que gostaria de apresentar é como podemos perceber as reconstruções feitas nos conceitos de patrimônio cultural, a partir do processo construção histórica da política de preservação no Brasil. Tratarei aqui, especificamente, do patrimônio cultural urbano: nossas cidades como objetos de representatividade cultural. Retomarei uma discussão já iniciada há alguns meses atrás, publicada no jornal O POVO. As ações direcionadas à preservação de nosso patrimônio urbano, em sua maioria, partem de uma representação de que este bem cultural deve ser tratado como relíquia, onde se deve garantir, prioritariamente, a manutenção de seus aspectos formais. Ao longo do tempo, o desejo de eternização de uma representação de cidade passa a conflitar com a necessidade dessa cidade seguir o curso de sua história. Essa tensão pode ser observada ao longo da história da prática preservacionista no Brasil.

Relíquias barrocas 1 e 2 – Panorâmicas da cidade de Ouro Preto, MG


Relíquia Moderna 1 – Palácio Capanema, Rio de Janeiro, RJ

Ao longo desse processo, mudanças conceituais evidenciam novas formas de percepção das cidades históricas. A ideia inicial de monumento, onde prevalecia a noção de artefato de notoriedade sob o ponto de vista artístico - deu lugar à definição de cidade-patrimônio como documento tratada como acontecimento histórico, portanto, como testemunho material da história. Essa mudança conceitual ocorre em um momento em que as cidades começam a apresentar problemas urbanos mais intensos, vinculados a um processo de urbanização acelerado e sem planejamento adequado. Esse problema gerou a necessidade de articulação entre as políticas preservacionistas e as políticas de planejamento urbano com o objetivo de atenuar as possíveis perdas, ocasionadas pelas pressões advindas desse processo.


No contexto mais recente, em que se busca legitimar a representação de cidade-atração, na qual a lógica de apreensão e intervenção na cidade prima pela inserção dos lugares no mapa mundi regido pela globalização, a cidade-patrimônio é incorporada a este ideário, como objeto de atratividade a ser patrimônio é incorporada a este ideário, como objeto de atratividade a ser consumido. O predomínio dessa concepção na atualidade não impede a constituição de outras representações. Para refletirmos sobre o tema, identificamos que a apropriação, os usos e ressignificações desses espaços atrativos, por parte das práticas sociais estabelecidas pela lógica do cotidiano desses lugares, podem se tornar um forte indicativo de que a cidade, em sua complexidade, é formada por uma simultaneidade de lógicas, que excede as representações formais absolutas em que determinadas forças sociais a procuram enquadrar.

Vivência 1 – Sobral, CE: canoeiros e lavadeiras, vivenciando a cidade-patrimônio

A cidade patrimônio deverá sempre ser pensada, portanto, como espaço dinâmico, vivo, pulsante, e não, como algo que se deve preservar apenas para mera contemplação.


Diogo Mizael: Colagem, 2013.


DIZ* pro seu pai que a comida está na mesa e se ele não vier logo vai esfriar, diz que eu fiz o franguinho com quiabo, do jeito que ele gosta, com curry e tudo, sem errar na mão, vai, diz o trabalho que dá fazer a comida que ele gosta, com o tempero que ele gosta, com a mesa posta do jeito que ele gosta, pois sim, ele nem liga, você sabia?, depois a comida esfria e ele ainda fica reclamando, bota a culpa em mim, sempre faz isso, parece ter prazer em fazer assim, você nunca reparou como ele implica comigo?, o que você achou disso esses anos todos?, nunca falamos a respeito, tanta coisa a gente não fala, não é?, a separação, sua mãe, as mudanças, ah, mas primeiro vai lá e diz que ele é um implicante, o maior implicante que eu e você conhecemos, ele pensa que me engana?, hã!, ele implica porque gosta, eu não sei?, sei!, conheço todos os gostos dele, pode dizer, conheço de cor e salteado, você não vai acreditar, ele também não,


diz que eu passei anos catalogando aqui na cabeça cada detalhe de cada um dos gostos, cada alteração em cada detalhe de cada um dos gostos, a manga da camisa tem que ser passada logo antes de usar porque sempre amassa dentro do armário, o palmito tem que ser fervido, não pode ir direto do vidro pro prato, ‘você sabe quantas bactérias vivem num único palmitinho?’, o perfume sempre nos pulsos e na aorta, o ar condicionado junto com o ventilador de teto, a luz sempre acesa, sempre... diz, pode dizer, talvez você não diga nada, o que nos dissemos até hoje? talvez nunca mais fale comigo, quem sabe?, o que calamos até agora? é tudo ponto de interrogação, não é?, mas então por que a gente cisma em viver com esses pontos de exclamação pulando

por

todo

lado?,

ai,

tudo

virando

melodrama, samba-canção, fado, dez vezes no CD, ou melhor, na vitrola, que eu sou do tempo da vitrola, você sabe, risque meu nome do seu caderno, ninguém usa mais caderno, é agenda eletrônica, laptop, mas o inferno do amor fracassado – ah, esse, meu querido, esse continua,


com essas dores mexicanas, e se eu soubesse naquele dia o que sei agora, eu não seria, o quê?, nem imagino, mas certamente não seria, não, não, não, mas eu não soube, eu não sei, quem é que sabe?, você?, então vai lá dizer pra ele, vai, diz que eu cedo a todos os caprichos, todos os que eu jurei que nunca e nunca e nunca, e depois uma única vezinha e cedi a contragosto, vergonha, sem coragem de olhar nos olhos, sem coragem de olhar no espelho, ajeitar o cabelo antes de ir pro escritório, cedi sim, cederia novamente, diz que ele não faz ideia do que ainda sou capaz, diz que eu digo sim a tudo que era não, até ver novela, você pensou no quê, garoto, pra ficar vermelho desse jeito?, vai, diz logo de uma vez, tudo aqui é uma novela, e daqui a pouco eu me encosto na porta e vou escorregando devargarzinho até o chão, chorando e soluçando o nome dele e você fica furioso e me empurra pro canto e sai batendo a porta, se negando a dizer uma única palavra pra ele, ou jurando que nunca contará onde está a carta, nunca revelará quem é a gêmea má e ainda rogará


uma praga para que eu nunca chegue ao happy end, ah, temperamento latino é dose, românticos de Cuba e o fogo de Che nas entranhas, mas o que é que ele quer, afinal?, se já não quer meu corpo, eu apago a luz e sussurro outro nome, ne me quitte pas, sou tudo que ele quiser, l’ombre de ton ombre, pouco importa, l’ombre de ta main, minha boca pode mentir pro meu corpo ter um pouquinho dele, l’ombre de ton chien, de sua verdade, verdade demais atrapalha, sabe?, um pouquinho só tá muito bom, senão olhaí o melodrama de novo, même en français é uma choradeira, uma profusão de lenços de papel, algodão e mais algodão com água gelada nos olhos, mas cá pra nós, quem é que pode amar sem ter nervos de aço ao encontrar seu amor em um braço que nem um pedaço do seu pode ser?, hein?, meu deus, quanto exagero!, se ao menos você tivesse lido o livro que eu te dei no Natal, se tivesse escutado os conselhos e Dolores Duran, se tivesse ficado com Almodóvar e Odair José, saberia um pouco como o amor pode ser e até onde pode chegar, e se perder, e talvez você entendesse


melhor a mim e a seu pai, talvez você risse um pouco, talvez fosse lá dizer a ele que a comida esfria e que eu esfrio junto com ela, morremos os dois, o frango e eu, ele com quiabo e curry, eu sem ninguém, vai lá dizer pra ele, eu te imploro, de joelhos, diz, diz, diz que eu vou aprender os vinhos certos, perder o medo de avião, decorar os pintores todos pra gente ir ao MoMA e conversar muito na volta com todas aquelas pessoas chatérrimas, que eu vou ver todos aqueles filmes complicadíssimos e nunca mais te levo pra ver cinema americano, porrada e lágrimas, heróis e lutas, o bem e o mal, nada disso, lembra?, quanta pipoca comemos juntos, dava pra encher essa sala, essa sala tão vazia, pode dizer que tudo é uma página virada na nossa história, ai, meu deus, hoje em dia ninguém mais vira página nem conta história, não é mesmo?, mas eu não tenho jeito, só que isso você não diz pra ele não, fica só entre nós, um segredo, tá bom?, o que você acha dos segredos?, segredo não é bom não, nem de liquidificador, água o bom do amor, azeda dentro da gente, vira câncer, apodrece, ele e


o dono do segredo, vai lá e diz só mais uma coisa pro seu pai, diz que eu estou muito cansado e que já não existe segredo entre nós. * Cesar Cardoso, O conto DIZ faz parte do livro AS PRIMEIRAS PESSOAS (Oito e meio, 2012). [www.cesarcar.blogspot.com]

Fotograma de “Antichrist/Anticristo (Dinamarca, 2009), de Lars Von Trier.


5 POEMAS DE ADRIANO SCANDOLARA

Do progresso nas profissões

A insaciedade da fome de carne que tem que se satisfazer

Não se vê daqui, mas sei

com borracha.

que a prostituta na rua tem um olho de vidro.

É tempo de fetiches, pessoas que se fazem fetiches.

É mais aparente o gancho na mão esquerda ou, mais à luz, sob o poste a prótese da perna.

Servir-se da prostituta na rua não era tanto sexo com gente quanto era sexo com coisa tevê, geladeira, sonho transerótico do transumanista.


Glosa sobre mote de pichação VI

– pichação nos bairros Batel, Bigorrilho, Mercês, Barigui em Curitiba

ELAINE PUTA cada muro grita Elaine Puta em toda esquina letra escarlate, eretos Elaine Puta postes. Pintaram branco em cima, Elaine urra pedra em fúria


Puta permanece. Elaine que você e Catulo amaram em becos e vielas descasca Puta agora os netos de nobre Remo.

Mas não Elaine se conserta nem mesmo com todos os Puta vitupérios do mundo a elaine impotência do orgulho de macho puta ferido, no silêncio elaine da tinta encerrado puta.


Do ciúme

Fogo nenhum marcou meu nome nos céus como seu dono nem mesmo o arranjo arbitrário de uma constelação. Mesmo que sim, esses rabiscos nada diriam ao céu, de tanto sol e chuva promíscuo vestido com uma aliança lisa de íris

que em si carrega todos os nomes do mundo.


Eurídice

Até o tempo se perde nesses negros córregos, vias pálidas entre os prados amontoados de lixo. Embora rápido, o olhar jamais voltado pra trás em muito se confunde com o de um cabresto. Até encontrar o sol e se dar conta de estar só. E ela? Muda sombra, o que disso tudo achava ninguém jamais perguntou.

Adriano Scandolara, IN: Lira de Lixo (Ed. Patuá, 2013). Mais: www.escamandro.wordpress.com .


Deborah ErĂŞ. Aquarela, 2013 [http://deborahere.wordpress.com/]


UMA PICA REDENTORA Sidney Fortes Summers

Transformar o rotineiro tédio em melodia. Talvez eu compusesse uma marcha fúnebre para os dias que me escorriam como a areia da ampulheta que não tenho. Dentre o que me falta... A ampulheta é o de menos. Apenas um sonho pueril inútil há muito deixado para trás, mas nunca esquecido por completo. Não sei onde tantos anseios e desejos não alcançados poderiam habitar numa criatura tão magra. Em que lugar do meu corpo eles se escondem? Entre meus devaneios percebi que estava mais magro, um pouco mais a cada dia, era inegável. A olhos vistos, o estomago famélico decompunha minha carne para me fazer viver protelando a inevitável morte por inanição, isto é, se eu não voltasse logo a fazer refeições normais. Não era a primeira vez que eu passava por isso. Minha refeição diária consistia numa barra de cereais, foi tudo o que tive nas duas ultimas semanas. Exatamente uma barra de cereal por dia, nada mais. Comê-la havia se tornado parte de um ritual. Eu mantinha uma expectativa enorme até a chegada do glorioso momento em


que minhas papilas gustativas provariam algo mais que a saliva e o amargo da bílis. A noite, antes de apagar, eu saboreava aquele retângulo saboroso que me dava a força suficiente para cair na cama exausto e conseguir dormir. Eu sabia de cor todas as suas texturas e me tornei especialista em reconhecer as nuances de cada possibilidade de sabor. Foi nessa época, e não quando eu costumava tomar dezenas de blotters de LSD semanais, que eu descobri o verdadeiro significado de uma alucinação. A soma dos meus recursos, que obtinha vendendo aos poucos o que me sobrava, não ultrapassava a possibilidade de gasto maior que R$1,50 diário. Uma bala de um centavo a mais e meu orçamento estaria fatalmente arruinado. Dessa vez eu tinha tempo. Mas nada mais além disso. O que o tornava mais uma coisa inútil dentre tantas inutilidades que me cercavam. Decidi aproveitar meu tempo dando voltas e mais voltas no supermercado, enchendo o carrinho de compras que eu não compraria, que eram apenas mais um sonho, e comendo uvas, ameixas e o que mais me ofertassem gratuitamente enquanto acreditassem que eu era um comprador. Valia a pena, a energia gasta nessa atividade era menor do que a saciedade alimentar obtida. E um pouco do tempo que eu tinha de sobra era gasto


também. Não arriscava voltar ao mesmo mercado por, ao menos, uma semana. Houve um tempo em que eu tinha alguma grana de sobra. O tempo em que eu me chapava com LSD, MdMa, ecstasy, speed, DMT e qualquer outra droga sintética que me chegasse na mão. Eu as revendia pelo dobro ou triplo do preço do que as comprava e as consumia até o limite do suportável. Os três primeiros meses foram maravilhosos, lucros extraordinários e fáceis numa realidade paralela fantástica e constante. Depois tudo que consegui foi me tornar uma criatura histérica e neurótica que delirava todo o tempo e que não conseguia se comunicar com qualquer outro ser pensante que não outro drogado delirante. Uma via de acesso às verdades últimas, eu tinha certeza. Um louco qualquer, segundo todo o resto do mundo. No caminho de volta do mercado para casa, eu aproveitava a distancia da longa caminhada como um exercício físico. Encontrei uma pessoa com quem já dividi um emprego. No meu caso era um emprego, no dela... Era menos torturante, ela pagava uma pena alternativa por ter espancado sua vizinha idosa por um motivo banal, sem grande importância até para os mais impacientes. Tínhamos o mesmo cargo. Conversamos parte do


caminho de volta, acompanhei-a até sua casa. Não havia nada de melhor para eu fazer. Achei justo desperdiçar umas horas do meu dia em um papo raso. Era mais atividade física, mais saúde para o corpo. Para o cérebro, nem tanto. O tempo havia sido duro com Hermínia. Não que ela fosse bela, talvez há uns quarenta anos quando seu corpo flácido fora rijo, quando sua carne fora firme e sua boceta um lugar mais confortável para pôr a pica. Mas hoje... Uma múmia era mais atraente que ela. Não me surpreendi quando ela me puxou pelos braços para que eu entrasse. Até os arranhou com suas unhas longas e fora de moda, eram as garras afiadas de uma predadora que tentava devorar sua presa. Escapei. Mas aceitei o convite para almoçar “qualquer dia desses”. Não havia como negar uma proposta dessas... Despensa vazia, estômago vazio, bolso vazio e, em contrapartida, uma boceta vazia, com ânsia em ser preenchida, disposta a mudar o vácuo que me ocupava em todos os aspectos. Obviamente eu estaria de volta no dia seguinte. Bati na sua porta. Estava decidido que o sexo não aconteceria. Não aconteceria mesmo se eu quisesse. Ter uma ereção sem o auxilio de um bom filme pornô, ou uma das suas netas


rebolando no mesmo cômodo, ou sem a ajuda da ciência, ou das drogas que alteram a libido e a percepção, era uma missão impossível. Eu já passei da idade de me lançar heroicamente numa batalha previamente perdida. Eu não tentaria foder aquele rabo mole e pelancudo mesmo que ela me ofertasse outra refeição no dia seguinte. Ela abriu a porta deixando escapar um forte cheiro exageradamente doce que exalava dos seus cabelos empapados e cremosos e que se misturava ao fino aroma de mofo do seu lar. Eu poderia servir como encanador, lavar seus pratos, consertar seu chuveiro, limpar sua pia, dar um jeito na descarga, qualquer coisa que não trocar o óleo da velha. Eu sabia que tudo tinha seu preço. Mas para Hermínia as coisas se passavam de um modo diferente. Nem bem eu tinha terminado a ultima garfada do gnoque, como ela chamava um montinho cozido de batata amassada misturado a farinha, ela abriu o zíper da sua roupa, que começava no pescoço e terminava pouco acima do joelho, num só golpe. Um preciso movimento samurai. Seu soutien era branco encardido e a sua calcinha era vermelha como o fogo que ela devia ter quando tinha uma vida sexual ativa, quando tinha um corpo atrativo em meados do século


passado. Ela retira suas roupas intimas em vãs tentativas de sensualidade, devassa seus seios murchos que rolam sobre seu ventre amolecido como uma gelatina vencida. Expõe suas cicatrizes. Eram do tipo que qualquer homem teria medo de perguntar como foram conseguidas. Ela me olha nos olhos, insensível, sem respeito pelo meu pavor, e retira sua calcinha vermelha pouco a pouco antes de jogá-la para o alto. Foi o suficiente para tornar o ambiente ainda mais insuportável, pois da sua xereca se desprendia um ar de podridão que impregnava tudo. Com certeza ela guardara um peixe podre nas suas partes íntimas. Aquele era o preço de um dia eu ter me tornado homem, mais que o preço próprio da refeição. Não havia escapatória. Antes contrair uma DST fatal do que ter propalava a fama de veado. Tirei minha roupa exibindo minha pica mole acima do meu bago normal e meu bago imenso e deformado. Se ela se assustasse eu teria uma chance. Mas dona Hermínia estava sedenta. Tão sedenta de sexo quanto um guerreiro bárbaro estaria sedento de sangue durante uma batalha. Ela acariciava minha caceta mole com sua gengiva dura após colocar a dentadura no copo em que eu tomava suco em pó durante a refeição quando sua porta foi aberta com um estrondo.


Mais tarde soube que meu salvador, ou nem tanto, se chamava Carlão. Carlão não queria saber de nada. Colocou sua pica para fora disposto a enrabar qualquer coisa que cruzasse a sua frente. Fiquei imaginando depois quantas bananeiras, cadelas e prostitutas ela havia violentado antes de chegar a casa da vovó Hermínia. Dessa vez ela conseguiu, eu havia sido preso por seus tentáculos pegajosos e não conseguia me mover. Carlão se aproximava em rota de colisão ao meu corpo nu. Dona Hermínia me agarrava com todas as forças, suas unhas bregas cravadas mais de um centímetro na minha carne. Para ela era uma questão de sobrevivência. Ela sabia o estrago que o Carlão era capaz de provocar até na mais folgada das bocetas. Eu gritei quando Carlão meteu em mim por trás. Um berro animalesco que deve ter sido ouvido por metade do globo terrestre. Eu nunca tinha dado o meu cu e estava sendo arrombado por uma tora de um cavalo maníaco e assassino. O sangue que jorrava do meu ânus deve ter feito manchas na parede das casas vizinhas. Ou as pintado com alguma coisa que se parecesse com isso que chamam de “arte contemporânea”. De qualquer forma vejo que Carlão foi o meu salvador. Com


ele estimulando minha próstata, tive uma ereção espontânea e involuntária que me fez vingar meu rabo arregaçado com a atitude na boceta da velha. Eu a torturava com tapas na cara desdentada e com uma piroca dura como rocha que martelava seu útero murcho enquanto ela urrava de dor e prazer. Entretanto, foi demais para a velha. Ela morreu, antes que eu gozasse, no exato momento que relembrava, sentindo um homem no corpo, o que era um orgasmo. Já Carlão... Molhou meus intestinos com sua papa branca e saiu sujo de merda sem dar uma palavra. Era um animal insaciável que bateria na porta de outra criatura carente e despejaria mais do seu infinito sêmen no interior de algum corpo. Do mesmo jeito, sem palavras. Imagino. Ninguém soube da história. Permaneço um homem de reputação ilibada.


PatrĂ­cia Sousa: Hibrido, 2012. Aquarela guache e nanquim, 18x15.


APRESENTAÇÃO: “OS GÊNEROS LITERÁRIOS EM FILOSOFIA”, DE DAVID EMANUEL DE SOUZA COELHO. Gabriel Almeida Assumpção8 – UFMG. www.redeassumpcao.blogspot.com

O tema dos gêneros literários em filosofia é algo que se põe no próprio surgimento da filosofia, na região do mar mediterrâneo. Temos os

Aforismos

de

Heráclito,

o

Poema

de

Parmênides, as máximas de Xenófanes, e notese: destes, temos apenas fragmentos, não dispondo dos textos na íntegra por fatores como conservação do material original e de eventuais cópias. E isso, inclusive, determina a forma como recebemos a filosofia. Se tivéssemos recebido toda a obra de Demócrito, segundo o professor Fernando Rey Puente, ao invés dos textos de 8

Bacharel em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é mestrando em filosofia pela mesma universidade.


Platão, talvez os rumos da filosofia teriam sido muito diferentes. Avancemos

um

pouco

no

tempo

e

pensemos nos Diálogos de Platão, em coletânea de artigos e de anotações de alunos como a Metafísica de Aristóteles. Temos ainda cartas, como as de Sêneca e de Epicuro. Na época do declínio do Império Romano, teremos comentários como os de Proclo a textos de Platão, e ainda o gênero autobiográfico, como as Confissões de Agostinho.

Na

mesma

obra,

encontramos

discussões teóricas em forma de tratado sobre a memória, o tempo, e hermenêutica do texto bíblico (livros X, XI e XII, respectivamente). Na idade média, teremos, por exemplo, além de textos como os mencionados acima, questões e respostas como na Suma Teológica, tratados de mística como os do Pseudo-Dionísio. Teremos também, na modernidade, ensaios como os de Locke, e obras de filosofia a partir da reflexão histórica, como em Maquiavel. Surgirão obras de estilo e escrita totalmente distintas de


tudo o que já fora feito antes, desde o sistema de Fichte em sua Doutrina da Ciência até obras de ‘preparo ao sistema’ com uma verdadeira viagem na história ao longo de figuras da consciência, como a Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Na filosofia contemporânea, predominarão os artigos e

os

ensaios,

mas

retomadas

de

formas

anteriores de gênero literário não serão raras. Pensemos nos aforismos de Nietzsche, nos tratados de Husserl ou até nos ensaios literários de Kierkeggard. Essas

diferentes

formas

de

filosofar

envolvem diferentes estratégias hermenêuticas ou são interpretáveis sob uma técnica só? Qual a relação de um texto filosófico com o tema a ser transmitido e com o tempo no qual foi escrito? E com o público a que se deseja transmitir determinado pensamento? Essa é a reflexão sobre a qual David Emanuel Coelho se debruça no presente ensaio.9 9

O objetivo primeiro do presente texto foi servir como subsídio para a condução de uma aula na disciplina de Hermenêutica do


OS GÊNEROS LITERÁRIOS EM FILOSOFIA Por David Emanuel de Souza Coelho10 – UFMG. http://ueroestsum.wordpress.com/

Qual a relação entre a filosofia e um gênero literário?

Será

meramente

uma

relação

extrínseca, onde uma dada filosofia poderá “caber” em qualquer forma expressiva, ou haverá uma relação íntima entre a filosofia e sua forma de expressão? Os vários gêneros são todos válidos para a filosofia?

texto filosófico, ministrada pelo professor Ivan Domingues e por David Emanuel no curso de Graduação em Filosofia no segundo semestre de 2012 na UFMG, na qual tratava-se justamente da questão dos gêneros literários em filosofia. Daí o caráter meio sumário do texto. O objetivo deste texto, contudo, não é fazer uma análise exaustiva da questão, mas sim dar elementos para o início de um debate. 10 Formado em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é mestrando em filosofia pela mesma universidade, onde também é bolsista CAPES/REUNI. *


Antes de abordarmos a questão do gênero literário na filosofia, pensemos um pouco sobre a questão

do

gênero

literário

em

geral.

Se

pudermos dar uma definição aproximada de gênero literário, poderíamos defini-lo como o modo pelo qual a escrita é articulada, alcançando a existência enquanto expressão linguística. Nessa perspectiva, o gênero literário é a própria escrita sendo expressa de um determinado modo. Se pensarmos para além da literatura, veremos que a escrita expressa-se dos mais variados modos. No cotidiano, as pessoas escrevem em situações as mais diversas e, em cada situação particular, a escrita ganhará uma forma de expressão específica. Assim, existe a escrita praticada nos departamentos burocráticos, nas escolas, nos jornais, na internet, no comércio, nos bancos, etc. Em cada uma dessas situações, podemos dizer que há uma forma particular de escrita. A escrita da escola não é a mesma do comércio, que também não é a mesma dos


departamentos burocráticos. De acordo com o contexto, a forma da escrita mudará. Nesses usos cotidianos, sabemos que os conteúdos das escritas variam imensamente entre os diferentes contextos. É aqui que podemos colocar uma pergunta extremamente importante para nossas considerações sobre o papel do gênero literário na filosofia: é possível que o conteúdo de um determinado contexto de escrita seja expresso na forma de um outro contexto sem perda de seu sentido intrínseco? É possível, por exemplo,

pensarmos

no

conteúdo

de

um

memorando expresso, para sermos incisivos em nosso exemplo, na linguagem do MSN? Se voltarmos à questão dos gêneros literários, podemos colocar essa pergunta de um modo semelhante: podemos considerar possível, sem perda de significado, escrever uma determinada obra literária em qualquer outro gênero? É possível, por exemplo, concebermos a Odisseia sendo escrita na forma de um romance? Ou Dom Casmurro como uma tragédia grega?


Em uma perspectiva estritamente nominalista, pode-se pensar os gêneros literários meramente como uma forma exterior, uma mera convenção e que, portanto, uma obra literária poderia ser expressa em gêneros diversos sem perda de seu sentido estrito. Penso, contudo, o contrário, em literatura a forma e o conteúdo estão imbricados, de modo que é difícil transpor uma obra de um gênero ao outro sem perda substancial de seu sentido. Voltemos à filosofia. Diferentemente dos usos cotidianos da escrita, a filosofia pretende não pretende

fixar-se

meramente

no

“mundo

corriqueiro”, mas busca chegar à profundidade, ao essencial das coisas. Em diferença à arte, a filosofia busca a verdade efetiva do mundo. Ou seja, a filosofia possui uma especificidade própria é, aqui em definições sempre aproximadas, uma forma que busca a verdade efetiva do mundo, para além do meramente “corriqueiro”. Deste modo, quando a filosofia expressa-se pela escrita, ela expressa-se tendo um objetivo fundamental e


determinado:

alcançar

a

verdade.

Porém,

sabemos que a filosofia não é algo uno, existiram diversas

verdades,

alcançadas

por

diversas

filosofias. Do mesmo modo, existiram diversos gêneros literários, nos quais as filosofias foram expressas. No texto de Julian Marias11, vemos diversos exemplos de gêneros literários usados ao longo da história da filosofia. Para cada gênero foi expressa

uma forma

de filosofia,

que era

sustentada por uma ideia específica do que é filosofia. A escolha do gênero literário, ou simplesmente sua criação, dependia do como se considerava como sendo filosofia e qual os seus objetivos. Isso fica mais claro nas situações histórias em que existiam diversos tipos de gêneros literários. Platão poderia ter escolhido o 10

Formado em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é mestrando em filosofia pela mesma universidade, onde também é bolsista CAPES/REUNI. 11

Marias, Julian. Os Gêneros Literários em Filosofia. (Infelizmente, este texto não encontra-se publicado, sendo de uso interno no curso de graduação em filosofia da UFMG)


poema, mas escolheu o diálogo. Descartes o tratado, mas escolheu o ensaio autobiográfico. Nietzsche a summa, mas ficou com os aforismos. Ao que parece, estas escolhas não foram gratuitas. Se não foram gratuitas, parecem apontar para uma relação intrínseca entre a filosofia e seu gênero literário. Platão escolhe o diálogo porque a filosofia, para ele, é um diálogo, no qual o saber é conquistado conjuntamente através de perguntas e respostas. Ou seja, dialogar é filosofar, e por isso a filosofia só pode ser expressa através do diálogo, devendo este ser o gênero literário por excelência.

Tomás

de

Aquino

escolhe

a summa porque, em sua perspectiva, a filosofia deve ser considerada na prática escolar da discussão das opiniões de autoridades diversas sobre um tema e na busca de um terceiro caminho. O

gênero

literário,

então,

parece

estar

diretamente ligado ao modo como uma filosofia constitui-se e ao que pretende abordar. Contudo,


temos contra exemplos que parecem atrapalhar um pouco tal perspectiva. Agostinho é um bom exemplo disso. Ele possui obras em diversos gêneros literários: diálogos, meditações, cartas, tratados e sermões. Em todos estes gêneros ele trata praticamente das mesmas temática e, muitas vezes, diz as mesmas coisas. Descartes

é

escreveu

uma

apresenta

outro forma

suas

nas Meditações

exemplo, de

pois

tratado,

reflexões Metafísicas.

também na

qual

presentes Kierkegaard

utilizava-se de diversos gêneros literários, assim como

Sartre.

Com

estes

contra

exemplos,

podemos colocar a questão: será que a relação entre filosofia e gênero literário é tão intrínseca assim? Para refletir melhor sobre isso, devemos também levar em conta outro elemento apontado por Julian Marias em seu texto: o leitor. Quem o filósofo quer atingir? Em que circunstância? Como?

Se o

endereçado

são os amigos,

escreveremos uma carta. Se são não “iniciados”,


desenvolveremos um diálogo. Se são alunos, uma summa, etc. Nesta perspectiva, os gêneros passam a ser pensados também a partir de seus usos previstos, e não somente a partir da ideia sobre o que é filosofia. Estes dois pontos, uso e concepção do que é filosofia, parecem ser os pontos fundamentais que condicionam a escolha do gênero literário. Na verdade, o ponto decisivo para um filósofo na escolha de um gênero literário será sua concepção da relação entre a filosofia e a linguagem. Neste caso, poderemos ter dois tipos fundamentais de filósofo: os que concebem esta relação

como

intrinsecamente

necessária,

a

linguagem deve refletir, necessariamente, a forma de

ser

do

saber

(Espinosa

e

seu

more

geometrico), ou extrínseca, a linguagem é só um meio de expressão do saber (Agostinho e seus muitos gêneros). Ou seja, de acordo com o modo como o filósofo entender a relação com a linguagem, ele entenderá a questão da escolha dos gêneros literários. Um filósofo que entende


essa relação como intrinsecamente necessária, dificilmente tenderá a usar gêneros literários diversos. Para ele, a linguagem deve submeter-se totalmente ao pensar, inclusive em sua forma. Nesse sentido, ele conceberá o gênero como sendo expressão de sua visão do que é filosofia. Ao contrário, um filósofo que entenda essa relação como extrínseca, tenderá a ver a linguagem como possuidora de uma liberdade em relação ao pensamento, dando mais importância aos usos. Diante

disso,

podemos

conceber

que

a

variação de gêneros literários ao longo da história da filosofia tem a ver não exatamente com a concepção de cada filósofo sobre o que é filosofia, mas sim, mais fundamentalmente, com a concepção que cada filósofo tem da relação desta com a linguagem. Julian Marias diz ser necessário ao intérprete estar atento ao gênero literário utilizado pelo filósofo. Realmente deve-se atentar para isso, mas não só. Antes de tudo, devemos também nos


ater à concepção que tal filósofo tem da relação com a linguagem e se aquele gênero literário está sendo

utilizado

por

uma

questão

de

simples uso ou por uma visão intrínseca de que a filosofia só pode expressar-se daquele modo, e de nenhum outro. Do que podemos depreender, a relação entre filosofia e gênero literário é uma relação mais complexa que passa pela relação filosofia e linguagem e do estatuto dado pela linguagem por cada filósofo, devendo estarmos sempre atentos a este estatuto para podermos ter uma correta compreensão do pensamento de um filósofo. Para terminar, podemos perguntar a nós mesmo como vemos a relação entre filosofia e linguagem e, consequentemente, como vemos a questão da escolha do gênero literário.

BIBLIOGRAFIA: Marias, Julian. Os Gêneros Literários em Filosofia. Tradução de Maria Luisa Gouveia. (Não encontra-se publicado).


atraso de tristeza esfarrapa tranca sem casa só e calada

chorei pelo desejo que não perdoa os ossos pelas lágrimas dos que não choram por quem ri de lamentos nossos e por ter nas mãos o antídoto do veneno choro moreno


pelas vidas suportadas e suas almas presas pelos perversos pelos ratos de laborat처rio soltos no vermelho das ilus천es mantidas e pelo breu na luz que os renovam em versos contidos de defesa. vida?

choraria pela busca do pertencimento para nos sentirmos amados todo momento

chore pelas mulheres sem m찾os


por temerem seus prĂłprios poderes

em lĂĄgrimas

choremos pela banalidade da luta constante daquelas que nĂŁo puderam murchar ou com o sol ofuscar mesmo desorientadas para atacar de frente

.gica natali [poema e pintura: flor]


CARTAS DO MUNDO Eu era todos: a menina do tabuleiro, o cientista e a sombra. Nós todos éramos ultravidas – ninguém conhecia a direção do outro ou qual a matiz predileta. Contudo eu ouvia seus zumbidos enquanto travavam suas missões. Eu reconhecia seus pensamentos, seus sistemas digestivos e os seus tutanos. Eu era todos: varão e fêmea, domínio e servilismo, guerra e silêncio. Nós todos compúnhamos uma orquestra de músicas mestiças e marchávamos em fios ou nos estreitos paredões. Eu era todos: guarda-chuva, estepe, carrinho de mão. Éramos os substitutos, os do final da fila, os stand-by. Sem mais. Eu era todos: rins, tesoura e pedra.


Filtros, cortes e lapidações – editados pelos comerciais de um dia feliz. Eu era todos: o carbono, o silício e a saliva que fluía da boca esfomeada ou gananciosa. Eu era a fila para lugar nenhum e o orifício certeiro. Eu era a banda larga.


METAMORPHOSIS Homenagem à Emma Goldman, Rosa Luxemburgo, Marie Curie e Martire Meena. Dois buracos, duas feridas mal tratadas (com direito a pus e pele morta).

Sangrei pelas unhas, um derrame de hemoglobina tingiu o quarto de vermelho (igual à flâmula e uniforme que transportas no pensamento).

Eu sou assim, como você gritou: “Um drama encarnado no frágil!”

Sempre sonhei sonhos que você batizaria de pesadelos, aqui dentro sou um caos caçando uma ordem secreta, um equilíbrio de bêbados, uma corda invisível que ampare meus pés decepados.


Ainda hoje me sinto como uma embarcação vazia partindo para uma ilha sem nome e sem homens.

Essa sensação de solidão completa é um perigo – uma chama tendenciosa para a megalomania. Ontem percorri homens que pareciam sombras, homens que já me tiraram o sono, homens que o tempo ao invés de poli-los os desgastou, homens oxidados, sem voz, sem ritmo – homens cujo charme resumiu-se em uma boa escarrada no chão.

Eu já não tenho apetite para o convencional, não suporto ver o passado percorrer os meus olhos, não aprecio as rodas bêbadas de pseudointelectuais, não me apaixono mais por putas blasés que recitam Marx e em seguida trocam mil pilas por uma lingerie.


Eu sou aquilo que profetizei: um monstro inerte que bombardeia através de palavras duras e sem maiores pretensões, um monstro sem verdades, sem bandeiras, um monstro cruel (cuja missão é destruir toda construção com sinais perecivos).

Sim, eu sou Monstros-com-Vaginas!

[Lisa Alves: http://www.ellenismos.com/p/colheitapsicotronica-lisa-alves.html]


Daka: Bonecas de papel em livro-de-artista, 2012.Projeto Da última inocência, Repertório 3 Ficções.

CALIBRE Lara Amaral [http://laramaralteatrodavida.blogspot.com.br]

Camadas neste espaço restrito faz parecer que tudo é imenso


arranca-se uma pele etiqueta-se em outra superfície antiaderente haja grude cola supercuspepungente ácida saliva calibre 38. O irmão ainda pequeno segurava o revólver pulsava o fascínio por ferro e fogo pesava a arma em seus dedos: microenvergaduras sem moral o pai assistia ileso e sorria enviesado a mãe tremia: “tirou as balas?” dizia, carregando a culpa da inferioridade o pai já próximo de afugentá-la o cano apontado para mim rezava para que apertasse o gatilho mas as mãos miúdas, inútil o toque... Menina, já sabia desde cedo, não há escapatória: esconda-se atrás da rudeza máscula, mumifique-se. Atirava olhares fulminantes de dor, pouca mira e esperava que me temessem a arma, sempre aquela invisível. O irmão a postos com pistola de chumbo:


“é inofensiva, só um pombo matei”, mas a consciência pesava seguindo a história do pai que matava a estilingue pardais na infância e chorava arrependido. Eu despertei a covardia quando o cão comeu o gato na minha frente nada fiz, chorei que nem uma louca o vizinho disse que me ouviu, encurvei constrangida quantas noites mais escutou meus gemidos? os muros vivos, com olhos e ouvidos lembre-se sempre de sufocar o desespero no travesseiro. Não pude pôr-me à frente dos pássaros e gatinhos mais indefesa era eu esperando a salvação mulher que se vire com suas chagas de Lilith vivem a ilusão da proteção masculina e eles que se escondem atrás dos cabelos de medusa petrificam-se em seus lábios marfins puro sangue escorre dos batons fator de proteção à 'fragilidade-aguçada' por cima o gloss de tom: 'ódio-sedução'. Quando virá a espécie capaz de amar


encarando o medo de ser frágil? Um gesto que transcenda a lança... Nada inofensivas são as facas estourando os olhos do peixe quase morto lembro do pai limpando-o primeiro a lâmina raspando as escamas ele ainda se debatendo na bancada da cozinha olhava-me suplicante, empanado comia-o frito com remorso e desprezo de mim sonhava com o peixe nadando em minha barriga sentia-me tão livre, desprendida uma placenta envolvia o resto de vida em meus sonhos mas ao acordar, vomitava tudo. Olhava-me refletida na janela do carro viagem de volta para casa a nostalgia sempre me perseguia antes da hora sentia enjoos, não abaixava tanto os vidros o vento no irmão que dormia mal me mexia para não acordar a fera dentro dele eu desviava sua vista, os incêndios à beira das estradas hipnotizavam-no: queria parar, descer, aproximar a loucura mórbida, a falsa valentia às chamas


sempre me fuzilava: “você é fraca, estupidamente fraca” o carro não cansava de fazer curvas a paisagem inclinada não endireitava, não acabava milhões de quilômetros nos separavam de qualquer lugar mãe, tá chegando? “quase, filha, logo virá o despenhadeiro” as placas todas de mão única: “Cuidado, destino tortuoso à frente” se alguma apontava “Animais na pista” eu tentava abrir a porta para pular mas me fechavam com travas de segurança. Cresci em meio a todos os abismos mirando os vales sinuosos meus olhos metamorfoseavam-se, castanho-nãoidentificados eram agora os do peixe, negros por baixo deles, as luzes que o mundo escondeu “um de cada cor”, diziam-me “seus olhos parecem de lobo” e passei noites uivando.


Nunca encontrei minha arma mas uma camada de defesa instalou-se em meu ventre-coldre blindei minha bolha de proteção à seiva viscosa do útero agonizante nenhum projétil atravessava. Os animais me perdoaram. Os homens não me sentiram mais.

Ofey (Richard Feynman): Female Posing, 1968.


GIGI Júlia Godoy Gigi nasceu Giancarlo Fontanelli. Um garoto sorridente e de feições delicadas, cujo sorriso enigmático atraía todos os olhares, provocando em sua mãe um ciúme doentio que era, entretanto, perfeitamente camuflado em seus floridos lenços de xita. Com o florescer da adolescência, o corpo do adorável menino começou a mudar; pelos escuros cobriam sua pele rósea e sedosa; e sua voz, outrora melodiosa, insistia em se tornar grossa e áspera. Mas, para o desespero do garoto, o pior ainda estava por vir: De sua face brotavam, como bulbos, indecentes espinhas, que se assemelhavam a pequenos falos. Enquanto os outros rapazes exibiam orgulhosos e faceiros seus pintos faciais, que atraíam mocinhas como mariposas ao redor da lâmpada, o pobre Giancarlo se enchia de vergonha e desespero e, às escondidas, espremia compulsivamente as saliências eróticas de sua alva cútis, deixando jorrar em seu rosto o líquido leitoso e purulento. Avisado foi, pelo Sátiro Peralta que se escondia no espelho, que espremer espinhas causava infecção na pele e que, para cada uma eliminada, outras duas desabrochariam no mesmo local. O rapaz não deu ouvidos àquela criatura mitológica e deu de ombros, apontando seu longo dedo para a flauta empunhada pelo semideus.


- Sabe o que fazem com sátiros na Gervália? - Sorriu, debochado e cínico. (Giancarlo nunca havia conhecido a Gervália, mas se encantava com os contos e anedotas daquelas terras bárbaras, que se escondiam, secretas e profanas, em seus livros de História). Mas a maldição que aquela criatura vil lhe rogara tomou forma quando, numa bela manhã, ao admirar-se no espelho, como fazia costumeiramente ao despertar, o rapazote notou um reluzente par de pênis gêmeos que surgiam buliçosos em sua testa, como os cornos de um viril minotauro. Arrebatado pelo espanto, deixou escapar de sua garganta um grito ensurdecedor, que para sua alegria, soou agudo e feminino como o de uma garotinha. De início, pensou se tratar de um sonho, mas o sorriso malicioso do Sátiro no espelho era a terrível garantia de que se tratava de uma assustadora realidade. - Oh, por favor, bela e sábia criatura, eu que levianamente te desprezei e respondi com escárnios à dádiva de teus dizeres, rogo agora por teus prudentes conselhos! Dou-te tudo o que desejares, mas me ajuda a retirar da minha face angelical esta terrível praga! - Tudo messsmo? - Sibilou a maliciosa criatura, deixando entrever seus dentes brancos e afiados.


Seu olhar percorreu o corpo do rapaz e, embora fosse ingênuo e desprovido de maldade, Giancarlo logo soube do que precisaria abdicar para se livrar daquela maldição que tanto o atormentava. Decidido, despiu-se de seus trajes e pudores e se entregou àquela terrível criatura, certo de que isso resolveria o seu problema. Tendo afinal cumprido com a parte que lhe cabia no subliminar acordo, Giancarlo correu ansioso em direção ao espelho, mas... Quão terrível foi sua decepção ao descobrir que o indecente adorno ainda permanecia em sua testa reluzente. Estava prestes a amaldiçoar o Sátiro que se aproveitara de sua inocência e o enganara cruelmente, mas, ao virar-se, seu velho amigo já não estava mais presente no quarto. Tendo coberto sua cabeça com uma túnica de sua mãe, deixando descobertos apenas seus olhos, Giancarlo correu esvoaçante pelas ruas da Camúria, tomado pelo desespero. Uma velha xamã, transmutada em réptil, o observava, lânguida e curiosa, sobre uma rocha. Correu em sua direção, a cauda ziguezagueando, e a fina fenda de seus olhos amarelos brilhando sob o sol, ansiosa por conhecer aquela estranha personagem. Senil e desacreditada pela sociedade, há tempos não tinha contato com humanos. Por algum motivo, a visão daquele ser que corria desvairado pelos becos e encostas, devolveu a ela um pouco da força que se esvaíra de seu corpo desde que perdera sua


mandrágora, fonte da aparente juventude que mantivera por mais de uma década. - Doce criatura... - Sussurrou ao aproximar-se de Giancarlo. - Aonde vais assim, com tanta pressa? - Oh, gentil lagartixa! - Disse o rapaz, acariciando o longo corpo do animal-mulher. - Se soubesses das minhas angústias... - Conte-me! - Pediu a xamã. - Não devo! - Berrou Giancarlo, virando, com trejeitos teatrais, o belo rosto que queimava pela vergonha. Mas Conchita, rápida e sagaz que era em sua forma de réptil, arrancou-lhe da cabeça a túnica e logo soube o que o afligia. - Então é isso? Posso te ajudar, por um pequeno preço. - Pago o que for preciso! - Implorou o jovem. - Por favor, faça sumir essa praga do meu lindo rosto! Com um sorriso, Conchita guiou o rapaz até a sua casa, onde preparou em poucos instantes a cura para o seu mal.


- Beba! - Ordenou a xamã, já sob sua verdadeira forma. - Se os meus poderes ainda são os mesmos, isso vai livrá-lo dos imensos falos em sua testa e, também, de qualquer outro que você possua. É isso que você deseja, não é? (E agora ela lhe lançava um olhar enigmático e um discreto sorriso). Os olhos do rapaz brilharam e ele bebeu de um só gole a poção que o transformaria para sempre. A partir desse mágico momento, Giancarlo morria e dava lugar a Gigi Fontanelli, a glamorosa diva da Camúria. Emblemática e orgulhosa, Gigi, o primeiro transexual da cidade, cambaleava pelas calçadas, plumas ao vento, tentando sempre sincronizar seus passos desajeitados, pela falta de costume ao salto agulha, com o balançar sedutor de seu quadril. Mas ao aproximar-se da velha casa, Gigi já saltitava a largos passos com sua malemolência natural de garota recém-criada. Giancarlo era apenas uma recordação obscura do passado. Em vez dos lenços com estampas de gosto duvidoso cobrindo sua testa e rosto, poderia usar os mais coloridos e belos cachecóis da Camúria. Todos eram puro luxo. Gigi não sentia a mínima falta dos antigos excessos masculinos que profanavam seu corpo de mulher. Os falos abandonaram seu corpus sem deixar marcas ou cicatrizes. Radiante, Gigi se dirigiu


aos seus múltiplos espelhos de quarto e corria diante deles, esboçando as mais diversas poses que conhecia, numa louca performance, para ver seu novo corpus de todos os ângulos possíveis. Mas, enquanto admirava sua nova e fantástica beleza, almejada desde a aurora da sua breve existência, toda sua família adentrou inesperadamente na sua glamorosa alcova. Eles tinham preparado uma festa surpresa. Giancarlo se esquecera do próprio aniversário, mesmo que este coincidisse com o nascimento de Gigi. Aproveitou o ensejo e confessou a todos (forçando gestos afetados do que supunha ser uma cansada criatura de hábitos noturnos devassos) que ali nascia a mais bela entre as belas, o mais doce fruto que algum paladar poderia provar. Seu pai, admirador confesso da extrema masculinidade e excesso fálico do filho, não conteve o espanto e a decepção ao vê-lo transformado num transumano. A bandeja de salgados que segurava com os membros mecânicos adaptados ao ombro despencou, provocando um ruído estridente que atravessou o corpo de todos os familiares fazendo-os perceber a censura paterna. Ele não podia acreditar que seu filho fora capaz de tamanha rebeldia, de um ato tão subversivo, de uma agressão tão violenta à tradição... E saiu do quarto resmungando baixo sons incompreensíveis, enquanto os outros familiares o seguiam em fila indiana, abandonando a transexual em um mar de amargura e solidão. Gigi não compreendeu de imediato o que aquilo significava, mas a partir


daquele momento ela não seria mais considerada um membro daquela família. Sem roupas, abriu a porta do quarto para mostrar a todos quem ela era agora, mas sua casa, assim como toda a sua família, tinha desaparecido. Tentou não deixar que a porta se fechasse atrás de si, mas foi tarde. Abriu a porta, mas também seu quarto não existia mais.

Fotografia de Rodrigo Sena. Ramilla Souza: Retratos: escolha de uma memória de infância (performance), para saber mais: http://ramillasouza.blogspot.com.br/2011/08/retratos-escolhade-uma-memoria-da.html


Cigarrilha Violácea em Pupila Azul

no gargalo da garrafa, na aderência do hálito, na saburra da língua entre células descamadas, bactérias aramadas em muco da saliva e restos [desalimentares] ... que aderem à superfície do hábito e escoam até o espaço do grosso ao intestino delgado vendo-lhe... fêmur,

tíbia,

patela,

interstícios,

flanco,

nádegas.trocando pênis por dedo manco, sobrevoando o charuto, o cachimbo e a cigarrilha violácea - um salto de tamanco - que um dia foi charuto chocolate. suas gengivas explodindo entre os dentes, no espaço sísmico entre a maxila e a mandíbula, por músculos que tremem tiques, por gengivas retraídas, por esse ranger, por esses dentes insensíveis em mordedura de coisas que jamais abocanharia... o amor. a tentativa é sempre pueril em estados noturnos.

e

como

trapo

de

muerte,

las

esferas

[vinieran del fuego], madrastra enmudecida,

se

abren


a cumplir este pacto en la cueva del sarcasmo, de sus mentiras pobremente diseñadas. y como se lepra en la garganta enterramos el silencio y su tontería en tonos ceniza. pero es niño frágil y perdido ... y el sol, todavía, brilla en tiempo, en las colinas de los ojos en negrumes... y el amor tiene ojos verdes.

y

há uma coisa entre o olho e o pescoço assustando o ogro em loisa-lisa. há um fosso entre o laço de um saco amarrado ao pescoço sufocando, esse mesmo olho, entre o sobrolho e o ferrolho da brisa. há o macabro atrelado ao ato da cela, dos gritos dos guardas, matando-o com a espada em procela. há o nojo e a baba na ala do despojo em que ela, segue. há um estranhamento, por onde se vê as patas do cavalo, passando na calçada, pela janela, uma fenestra em


aterramento . alheio, há um templo em cruz de peleja. ao meio, há bordas de saias e sapatos e um estar preso em martini e cereja, cafeína ou cocaína nesses aros em vida-tangerina. e

una pupila azul - agrava el aliento sepulcral y soñolienta las cosas para salir volando. los rumores cansados

en

simuladas

catástrofes

y

el

reposo

asfixiante adherido a la ausencia. ni tienta el reposo, con sus interrupciones cardíacas de los orangutanes, o equívocos de andares evasivos, degenerados en asfixia que van en ansia, desatino tísico, delirio sombrío ... pero no lo hace entendido desde el inicio: - ella no es una puta, pero pura poesía rubra y naranja.

Adriana Zapparoli [http://zappazine.blogspot.com.br/]


BURROUGHS: O COMISSÁRIO DOS ESGOTOS Por Sidney Fortes Summers

William Seward Burroughs. Garoto educado tradicionalmente, oriundo de uma família abastada (herdeiro da Burroughs Corporation fundado por seu avô). Estudante da John Burroughs School, onde em 1929 publicou seu primeiro ensaio: “Magnetismo Pessoal”. Na Universidade de Harvard, quando estudava artes, conheceu os amigos que iriam mudar sua vida e o rumo da literatura e da própria história do planeta. Juntos eles formariam a chamada Geração Beat.


O que começa na década de 40 como um movimento literário torna-se um fenômeno sociológico de importância e repercussão mundial, uma revolução cultural. Nas palavras de Allen Ginsberg, poeta beat, um movimento de “libertação espiritual, feminina e racial”. Na década de 60, com o advento do hippismo, se converteu no movimento político que trouxe a tona várias inquietações dos jovens e que tornaram possíveis diversas mudanças. Nas palavras do Burroughs, se “protestava a favor do fim da guerra do Vietnam, da legalização da maconha, o fim da censura, reconhecimento dos direitos das minorias e quase todos esses objetivos se alcançaram”. Em suma, a beat aglutinou um grupo de poetas notáveis que anunciaram o novo por via da linguagem. Bem se aplica a frase do diretor italiano Federico Fellini: “A realidade pertence ao visionário”. Burroughs inventou seu estilo de literatura (experimental, escatológico e urbano). Foi o primeiro a ficar famoso por coisas que se ocultam, tais como o uso abusivo de drogas, sua orientação sexual confusa, um poeta sujo e original. Sua mulher, Joan Volmer, foi a primeira ocidental a ser internada num manicômio por abuso de drogas na época em que exagerava na mistura do álcool a benzendrina. Segundo Amir


Baraka, poeta beat, se referindo a Burroughs, sua postura drogada serviu para “denunciar ao mundo que existiam drogados nos EUA e isso foi um avanço social”. Ainda que Walt Whitman (quem considero o maior poeta de língua inglesa de todos os tempos) tenha assumido sua homossexualidade muitíssimo antes, o impacto foi completamente diverso. Como Jean Genet e Pier Paolo Pasolini, ele assumiu quando havia perigo em sua afirmação. Na década de 60, nos EUA, homossexualidade era ainda um tabu, era praticamente proibido falar sobre o mundo gay, que era considerado um meio criminoso, uma doença. Burroughs foi um pioneiro no movimento de libertação gay e trabalhou conjuntamente com o Andy Warhol nos primórdios desse movimento. “Tenho que escrever essa novela gay, sou o único que pode fazê-lo, é o meu dever” – Disse Burroughs sobre seu livro Queer. Introduziu na literatura “cus” e “heroína”. Junkie, um livro de inspiração autobiográfica, trata do vício em opiáceos do seu autor. Entretanto, quem lê sua obra, antes nota-se uma advertência ao não uso da heroína, apesar de ter feito boa parte do que escreveu sob efeito da droga, do que o incentivo e glamorização do uso dela. “Por que sempre uso a paródia? Porque nem na vida nem


na escrita Burroughs.

encontro

sinceridade”

afirmou

Em 1962, sua obra mais famosa, Naked Lunch (lançada em 1959), foi julgada e condenada por conter em suas páginas infanticídio e pedofilia, para somente em 1966 ter sua sentença revogada e ter efetivamente reconhecido o seu redentor valor social. Nas palavras de Anne Waldman, fundadora junto a Kerouac e Ginsberg da School of Disembodied Poets, Naked Lunch foi “uma alegoria contra a pena capital, a maneira de A Modest Proposal de Jonathan Swift”. Burroughs rompeu as barreiras das artes e influenciou diversas outras expressões artísticas, quais a musica e o cinema. É o que se observa no título do clássico do cinema Blade Runner, no batismo da banda Soft Machine ou mesmo no termo Heavy Metal, que lhe foi atribuído. Por isso, Victor Brockis o considera “o escritor mais genial do mundo na segunda metade do século XX”. Trabalhou conjuntamente com sua poesia junto a diversos músicos ilustres, como Frank Zappa, John Cage, Philip Glass, Tom Waits, entre outros, além de estar entre os que aparecem na capa do antológico Sargent Peppers dos Beatles.


Considerado também o padrinho do movimento punk, pois o futuro comportamento da juventude da década de 70 foi profetizado em seus livros, como Naked Lunch ou The Wild Boys. David Cronemberg, que adaptou ao cinema o inadaptável Naked Lunch, Burroughs participando e opinando nas filmagens em 1991, disse: “Creio que os escritos de Burroughs eram bastante revolucionários. Falavam de coisas que não se diziam, especialmente nos EUA de sua época, devido a tradição puritana”. Acho estranho, chocante e um cúmulo de ignorância, que ainda hoje um autor revolucionário e original ainda sofra com a deturpada imagem do beatnick da década de 50. Um adjetivo pejorativo que funde o vocábulo beat ao Sputinik, um estereótipo comercial usado na venda de periódicos que exploravam a imagem do “garoto mal”. Nesse sentido, referente ao desconhecimento da sua obra, Burroughs e a beat precisam ser redescobertos, no mínimo lidos. Burroughs é o exemplo do uso da linguagem para descobrir verdades, verdades novas. Sirvo-me de um provérbio blakeano para o trabalho dos jovens destoantes da sua época, que permanecem vivos hodiernamente: “A cisterna contem, a fonte transborda”.


Chris Silas Neal: A story about losing a sibling, tĂŠcnica mista.


PEQUENOS POEMAS DO COTIDIANO UNIVERSAL Camillo José: http://umaestadianotravesseiro.wordpress.com/

cantarolar refrãos desconhecidos em voz alta com o

ditas pessoalmente *

intuito de chamar

namorar mulheres

a atenção de

de ônibus

desconhecidos

que misteriosamente

sentados no

nunca descem

banco do metrô

no mesmo ponto

ou da praça

que o nosso

espichar o pescoço

bater com os

pra espiar celulares

ossos dos dedos em

em busca das tais

qualquer superfície

mensagens pessoais

disponível afim de

demais para serem

transformar o


estresse rotineiro em algo audível * sair cedo e chegar tarde (e não ir na verdade a lugar algum além do próprio quarto)

amarrar cabelos amarrar cadarços.


Rimas da idade ou a púbere sede de ser África Por Eduardo Quive (fotografia e texto)

À Conceição Lima e ao Wole Soyinka, dou-vos o abraço de sermos África

“Os velhos morreram cedo. Seus filhos irão também. Filhos pequenos estão com medo da situação que se mantém…” Bonga [Tenho uma lágrima no canto do olho]


Quando não se nasce pequeno, nasce-se uma pedra, uma mula. Os sonhos precisam envelhecer, precisam tempo e espaço; das tentações das poeiras, que os enigmas do nosso ente alcancem o horizonte imprescindível. A pequeneza é a atitude do infinito. O horizonte é tão pequeno quanto o sonho de ser gente. A infância é um jardim da imensidão. Apenas retardam as vísceras da vida a chegar nesse tamanho nobre. Ser pequeno é ser primário. Ser criança é ser primeiro. Ora sorrio, ora sou-rio. Ora o sol-ri, rimas do tempo, rimas da saudade, rimas da idade. Rimas da infância. Na rua “O” tem África. O solo áfrico dos pés enraizados na vida futura. As nossas crianças têm sonhos. Vem ver o sol a nascer na boca de Céu. Há Céu, há Júnior, há Ngito. Estas memórias só tem cotas a preencher no sorriso incandescente que pariu a manhã de Fevereiro. Não é fácil ser África; há mandelas, há samoras, há netos, há Joyces Banda das cores da rainha Nzinga das estórias da lareira. As nossas vozes não têm tom. Os nossos gritos são maiores sem tímpanos. Ah! se os nossos gritos fossem timbrados e os homens ouvissem a paz que cantamos. A saudade do futuro que os Nkrumah cantaram. A África deve unir-se. Mas como unir os


homens que não pisaram ainda os chãos do ventre da nossa mãe de pés descalço. Para conhecer o gosto dos ares destes trópicos os dentes precisam de libertar-se da boca. A chuva de esperança e a sede da paz, precisam da inalcançável alegria de ser pequeno. Quantos homens são crianças? Ora choro, ora oro. O ouro é o touro que estoura as horas que a mátria africana precisa para beber os sangues da menarca. O sonho da renovação é tão pequeno quanto o desejo de ser eterno. Quais outros sorrisos sabem ser sinceros e visionários quantos de mim, criança madura de ser criança? E para terminar um poema do nosso defunto Craveirinha extraído do seu “Xigubo”:

UM CÉU SEM ANJOS DE ÁFRICA À Guilhermina e ao Egídio Detinha a menina de cinco anos tinha pai e tinha mãe


e tinha duas irmãs, Senhor!

Detinha a menina de cinco anos tinha uma filha de retalhos de chita e fazia duas covinhas de ternura na face quando sorria, Senhor!

Detinha a menina de cinco anos tinha uma filha de ágeis pernas de pano olhos brilhantes de cabeças de alfinete e fulvos cabelos de maçarocas maduras que a febre derradeira da Detinha não contaminou.

Olhos cerrados suavemente


boneca Detinha dos seus pais adormeceu de tétano para sempre mãozinhas postas sobre o peito um vestido de renda branca mais um anjo nosso que partiu no adeus silencioso de boneca verdadeira num fúnebre berço branco nossa Detinha tão pura na Munhuana que até ainda não sabia que era mulata.

Oh! África! Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado


e dormiram sem pesadelos na vasta solidão de um coval mínimo de criança infelizmente sem as duas covinhas na face quando sorriam, Senhor?

E ainda não temos um talhão de céu azul para todos e novamente uma África para amar à nossa imagem num anjo verdadeiro anjo também cor da nossa pele e da mesma carne mártir de feitiços estranhos e o nosso sangue vermelho vermelho quente como o sangue vermelho de toda a gente. Para o tal céu onde existe o tal Deus que não sabe línguas de África línguas de África línguas de África e só sorriem anjos brancos de asas impossíveis de arminho precisamente onde esse arminho só pode ser algodão de


[ sofr ime nto ainda não há lugar para meninas puras da cor das meninas filhas e netas de mães e avós pretas da nossa Detinha que partiu ainda boneca e tão pura que ainda não sabia que era mulata.

E brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana com bonecas loiras de sapatos e tudo porque os pais arianos rezando nas carteiras não deixaram, Senhor!

(1956)




QUAL A COR DO SEU GÊNERO? – por Carina Castro Se tivéssemos uma Fantasia, assim como temos uma Lógica, estaria descoberta a arte de inventar Novalis, Fragmentos

Carla Barth / Imagens reproduzidas do site

Enquanto eu pensava em como começar esta coluna, uma amiga de 4 anos desenhava ao meu lado


com giz de cera, quando separou uns 4 gizes de cores diferentes e disse que eu escolhesse uma, escolhi o azul, e ela disse “mas azul é de menino!”, daí encontrei uma maneira de adentrar o assunto que abordarei. As artes infantis, ou arte produzida para crianças, nos exige uma abordagem cuidadosa porque sempre acaba esbarrando nas práticas pedagógicas, que justamente por ter como constituição de educação transmitir uma visão adequada de mundo, e a arte ter a intenção de proporcionar uma leitura ampla e não perfeita (feita por completo,

como se fosse um

“contorno entreaberto”), o que deveria ser uma união de ferramentas na Educação disposta a alcançar em seus alunos pessoas pensantes e capazes de opinar, é na verdade um conflito, pois enquanto uma esforça-se parar construir uma verdade, a outra oferece a possibilidade de inventarmos verdades próprias. Esse é um problema que a literatura infantil e juvenil enfrenta em muitas partes do mundo até, pois aquilo que é produzido com um viés meramente didático não é considerado como literatura, e aí entra uma longa lista


de discussões acerca da definição de conceitos tanto de “literatura”, quanto de “criança”. Voltando a situação inicial, eu para contornar a situação que envolvia a definição das cores disse: “não, azul não é só cor de menino, o céu é azul, o mar é azul, seus olhos são azuis e você é menina”, ela riu muito disso, mas não deixou de demonstrar seu amor à cor rosa, que todos podemos amar também, mas isso gera uma situação que só vem a castrar os exercícios experimentais de uma criança, vejam, não se tratava sequer dela estar escolhendo uma roupa para vestir, ou coisa do tipo, mas estava colorindo um desenho, e associou que por eu ser uma menina não deveria escolher a cor azul. Então a construção do gênero na Educação vem mostrando que esta divisão binária do mundo começa desde as tenras idades. “A imagem da criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo não é ilusão; tende, ao contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da criança assim elaborada transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e à sociedade, em função de suas necessidades essenciais.” – Regina Zilberman. In “A literatura infantil na escola”, 1985.


E aí, volta-se à discussão que existe na literatura sobre quem é a criança, e em algum consenso, esta será fruto do que ela presenciar na cultura da qual a rodeia e faz parte. E, deste modo, poderíamos também encarar a criança como um gênero único, o dicionário ao menos assim define: “Agrupamento de indivíduos que possuem caracteres comuns”, (para muitos produtos existe a indicação “gênero infantil”), e neste caso não é delimitado por haver um sexo (masculino/feminino) apenas, e o que elas vão fazer com estes “sexos” não tem a mesma utilidade e importância que para os adultos. Então fatos como roupas e artefatos infantis serem muito coloridos, pois são feitos para crianças e logo todas poderiam usar todas as cores, seria a possibilidade de criar um espaço de liberdade de experimentação para ou desde a infância. Porém, não é assim que acontece, pois uma coisa é usar uma roupa colorida e outra uma peça somente cor-de-rosa, o que é determinado desde o nascimento dos bebês, e que é usado neste período como forma de criar e fixar um gênero dicotômico masculino ou feminino, e um


mundo dicotômico, e aí é onde o pepino é torcido, e mesmo que depois saibam lidar com o uso das cores sem se confundirem com seus gêneros, a ideia já foi incutida. E com isso a menina que é bombardeada com todo o tipo de coisas cor-de-rosa só poderá mesmo amar e achar que esta é a sua cor. E após passar por este “treinamento”, junto com outras formas de influência, como o uso dos brinquedos e brincadeiras, ela entende o que é ser menina (e o menino vice-versa), sem que haja necessidade para tal (preocupação), já que este tipo de definição de gênero será usada para fins sexuais e comerciais: sociais, mais adiante. Algo com que ela (criança) não precisa se preocupar, e que todos poderíamos não nos preocupar, a isso podemos chamar de normatização, ou melhor, heteronormatização do mundo, onde as coisas nunca poderão alcançar uma evolução no sentido de se transformar em outra coisa, qualquer uma que não necessita ser homem ou mulher, ainda que estas ideias misturadas. Isto é tudo o que vai de contra ao papel da Arte no mundo, e na Educação.


“(...) um elemento constitutivo das relações baseadas nas diferenças que distinguem os sexos. Gênero implica a construção social do ser mulher e do ser homem. Dessa forma, gênero encontra-se imbricado nos conceitos de identidade sexual, papel sexual, e no de relações entre os sexos.” – M. P. Carvalho. In.: “Gênero e trabalho docente: em busca de um referencial teórico”,1998.

Porque se tomamos a liberdade de nos nomearmos como homens e mulheres, não podemos inventar outras coisas, ainda que sejam coisas mais interessantes para fazerem homens e mulheres? E é aí que está o papel da arte na Educação Infantil, tanto a arte feita para crianças, como a feita por elas mesmas, que não é algo que se comercializa, mas existe, e não há nada mais próximo do universo infantil do que a arte, já que nos permite a liberdade de experimentar e fazer de conta que as coisas são outras coisas, a função de expandir os olhares. Gianni Rodari, jornalista, escritor e educador italiano, uma mente inventiva que realizou um trabalho revolucionário em educação, afirmava que não é possível a mudança da sociedade sem mentes criativas que saibam usar a imaginação, e é essa criatividade e o não engessamento dela que


buscamos, é preciso exercitar esta capacidade, pois são essas as pessoas capazes de mudar o mundo. O papel da arte na educação infantil é, então, de uma importância primordial, tanto através da música, do cinema, da dança, das artes visuais e da literatura, essas duas últimas são as que mais se aproximam da criança na escola, mas a literatura um tanto mais por haverem nos livros personagens com um olhar infantil, onde elas podem encontrar uma identificação e não apenas moralidades e regras, é diversão, o que propõe a arte, uma forma de suprir desejos que não nos dá a realidade, cumprindo também seu papel social e político, assim como todo ato.


“A literatura deve propiciar uma reorganização das percepções do mundo e,desse modo possibilitar uma nova ordenação das experiências existenciais da criança. A convivência com textos literários provoca a formação de novos padrões e o desenvolvimento do senso critico.” – Elisandra F. de Carvalho e Simone N. Bedendo. In.: “Questões de gênero na educação infantil”, 2001.

A boa notícia é que mesmo recebendo tantas imposições para definir o mundo e a nós mesmos, ainda com tantas incertezas, nós nos (trans)formamos e (re)descobrimos muitas vezes ao longo de nossas fases etárias, algo que comprova esta possibilidade são essas próprias reflexões que aqui vão, (ideias que não seriam possíveis de ser discutidas em épocas outras), com a colaboração de alguém que já teve rosa como cor preferida, e que hoje é o azul (e o rosa, o verde, o preto, o vinho, o amarelo, o vermelho, o lilás) nossas preferências de cores podem mudar, assim como a relação entre as pessoas e de nós para conoscos mesmos, repensar o mundo é necessário, pois acabamos nos esquecendo que nós é quem o criamos enquanto mundo.


4 POEMAS DE ROSANA BANHAROLI

1 mulher em pausa

4

a 35º

Inquisição: nunca mais

verão o ano todo

sinto calor das lenhas

:menopausa

sob meus pés são grilhões impuros

2

sem redenção

na vésper chuvosa chovo alívios

não tomo água benta

:nódulos benignos

mas exorcizo demônios

3

enquanto menstruo

Apunhalada

outras idades

Estaca de ponta afiada Inverno e pedra

: expurgo


CORPO-COLÔNIA Jota Mombaça

Corpo, território ocupado pelo sex-Império. Objeto a ser moldado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo de macho. Corpo de macho castrado de cu. Corpo-colônia. Corpo

marcado.

Corpo

usurpado

pelos

sistemas

classificatórios. Corpo lacrado, embalado a vácuo ou triturado e encapsulado para facilitar o tráfego. Tráfico de corpos. Corpo produto. Corpo de macho emburrecido enlatado. Corpo-colônia. Corpo desencarnado. Corpo submisso ao Eu, à identidade transcendente. Corpo de


macho dominador submisso. Corpo de macho enclausurado em seus privilégios. Corpo de macho vigiado. Corpo de macho drogadiço e vigiado. Corpo de macho covarde drogadiço e vigiado. Corpo devastado. Corpo photoshopado devastado. Corpo photoshopado sarado devastado vazio. Corpo desabitado. Ruína de corpo. Corpo bombardeado em Gaza. Corpo que se atira da ponte. Corpo suicidado. Corpo sem vida. Corpo impensável. Corpo, território isolado pelo sex-Império. Corpo prozac. Corpo scotch. Corpo cocaine. Corpo desidratado. Corpo de nóia. Corpo amputado de nóia desidratado. Economia de corpos. Corpo, objeto a ser moldado e descartado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo gramacho. Corpo de lixo. Lumpencorpo.

Então... Como vergar esse corpo? Como dobrá-lo? [Obra de intervenção pública ativada em 24/04/2013, em parceria com Vendaval Caprichosa, por ocasião do evento “Que

pode

o

II/UFRN/Natown/BR.

korpo?”, Para

https://vimeo.com/68502310]

realizado assistir,

em

Setor

clique

aqui:


A NOVÍSSIMA PROSOPOÉTICA : KATYUSCIA CARVALHO

Lizzy Stewart: Tiger meeting, aquarela.

BIO/GRAFIA …e eu que nasci manuscrita a gravetos . grafada na cor urucum que escolhi . contra todas as outras que me empalideciam . sou essa sensibilidade exposta . lambendo a palavra por dentro do fogo . lapidando meu texto na pedra ilegível . em nu tão explícito ilícito e cru . escrevo a ver se renasço selvagem . tornando-me fêmea saída de um grito.


METAGRAFISMOS Linhagem de mulheres que escrevem como aranhas , fios de fala em urdiduras,

e um arremedo de enredo vibra na fibra do seu canto

textura de chita de tĂŁo indigentes

na outra margem onde range a lĂ­ngua uma cal de tinta que tinge e que tange me dita um cordel


mais nordeste que eu

procuro entre álbuns minha caligrafia

meus dedos: argila sobre o pão do papel FLAUTA DE TÍBIA Lanço alpiste à minha fera e ela desponta com timbre de flauta curada da tíbia de um deus derrocado: – Nascemos carne para alguém?

TRESPASSAGEM A cota da minha existência passei debulhando pontas de estrelas rasteiras antigas pra minha lança


fui à caça da flor filosófica feita de carne que se lambe ao lume agora posso voltar pra casa Embrenho-me nos cacos do último golpe encarnado de sol e com meus passos vou compondo esse arranjo pra tambor AO NÍVEL DO AR

I levanta toda a poeira prostada no nada, a tua respiração és chão nesse ar que tu levitas / ar de quem carrega nas crostas a própria casa II adentras em ti num arfar rangente


por uma porta de voz entrecortada / voz de ferida fechada à chave III pousa noutras coisas a tua asa / banha-te em música de antiquários de corda / balança-te em fibras de violinos frágeis e vê / como a areia carece do arrepio das mãos - instrumento de cinco toques apaga então a flauta num sopro de cílios / e dorme À DISTÂNCIA DE UMA ASA Teu olhar . à distância de uma asa . ou escama . apedreja . o que no meu corpo fora anzol E é só pela tua língua . materna . que escuto o mar TECIDO / e o teu corpo está preso / por um alfinete / num farrapo de tempo / / e nem notas / em quantos filamentos / a vida te esgarça /


CICLO Meio-dia à beira do sal . uma clave de sol é grafada . à brasa . no dorso da fêmea . simula um cavalomarinho . a uma hora dessas, e geme . e freme para a lua . ondas cumprem sua dança . executam crostas no rito da pele . ardem as costas – dela e da praia . enquanto fibras de harpas híbridas são esgarçadas . uma a uma . a dedos, unhas e dentes . o corpo nela é de estrela atlântica . água-viva e cadente, a língua . vai amalgamando seixos . uma linha arrasta pelo horizonte uma enguia . como condão para candeeiro . como quando o dia se recolhe em farol . às dignas nesgas . de retalho escarlate . rubor de restos de tarde . essa sangria . antes da primeira estrela . tão pálida . penando no negrume da noite . a partir daqui, qualquer leitura é fatal . para tímpanos mais sensíveis . PENUMBRA NA PONTE Não há tela que o prenda . ou pincel que o retoque . É um rio onde passa uma sede por cima : sede que afoga e ninguém atravessa . É muito aquém de uma ponte que caia . é para além . É para longe a perderse de vista : linha inimaginária . É o prenúncio daquela que não se represa . que mora sem muros . mas tem trepadeiras . por onde subir para a copa de um sonho . O que ninguém vê . é o exílio em seus olhos . não demarca o caminho de volta com pedras : amnésia de mapas . Vai ter com uma índia


. reaprende a rezar . e resigna os búzios . Às vezes reparte poesia entre monges : mas não se ajoelha . Um nômade a ama . com ele copula . e compõem heresias no alto da noite : arregalam-se estrelas . Nas duas orelhas adorna risadas . e sabe ouvi-las até soluçar . Estende tapetes à beira de um charco : convite ao que é bento, batismo de barco . dá nome ao rio . nomeia com seiva suas iniciais . e sabe lhe ser sob a lua estuário . só por isso perene : cabeceira do mundo na margem de lá .

UM CURTO CANTO PARA OS LONGOS DIAS SECOS Banhava a voz naquela fonte / onde cortaram a foz

DESPARAFRASEANDO Tirar o coro das bestas descontentes e o atirar contra os dentes do chacal


Cutucar deus com unhas curtas ORA A AÇÃO Pedir perdão ao corpo pelo lodo

pela hérnia na medula da iniciativa

DA MAÇÃ, A CARNE

meio bruxa à francesa fiz fogueira com as folhas sem viço do gênesis


excomungaram-me (com voz marrom de bonecos de barro)

encarneci : não se converte a maçã!

ah! meu degredo: – me exila!

me verte em fêmea foragida da espécie

em espécie de fêmea fora de gênero


A ÚLTIMA FLOR DO CÁUCASO Espécie não inata àquela casta de terra : ei-la [ um antiornamento ] , etérea à estirpe, sua sombra faz raiz jaz um caule a seus pés : pedinte pendente – ou ama ou murcha! [ clama a matriz ] lei de toda a natureza semente primeira , em ultimato, à ginecologia da flor EXTRÊMULOS


. sem álibi . nessa casa de árvores fantasmas . . réstias de dedos desgarrados . . passam . . extrêmulos . . das teclas ao tigre . . num roçar da cauda de um piano .

MOLDURA PARA POEMA Escrevo quadros, humanos quadros que não pinto. E que não pairam [ movimentos sem cenário. – Quadris! Meu texto é sempre um corpo. A QUE ME OBSERVA . Há sempre uma menina tímida no escuro . embaixo da cama da minha insônia . com seus olhos acesos que me encandeiam . enquanto ouso um poema e perco uma lente . e sou quem a arrasta pelos cabelos . “– e que pensa, minha pele, de papel” – ela grita! .

Katyuscia

Carvalho. Carvalho

Kanauã

http://katyuscia-carvalho.blogspot.com/

Kaluanã

:


Camille Rose Garcia: Advice from a Caterpillar, 2010.


PARA EMBALAR E CHACOALHAR, UM SOM: "Great Strings" que está no mais recente álbum da banda Holger, premiado no m-v-f- Future Talent, O roteiro do clipe é de Luciano Ferrarezi, vencedor do prêmio, com direção de Seb Caubron. Aqui: https://vimeo.com/66031228

E POR FALAR EM CINEMA... Assista: WHERE IS MY ROMEO? (França/ Irã, 2007), de ABBAS KIAROSTAMI. Apesar da simplicidade, emociona. Sim, porque o curta inteiro é a emoção da última cena de "Romeu e Julieta" de Zeffirelli e das lágrimas das mulheres iranianas que o assistem. Muitas lágrimas. O curta é uma reflexão. E a prova de que não é necessário um show pirotécnico para que plateias se emocionem. Uma câmera bem usada, a registrar emoções de outrem, um bom roteiro e um propósito, faz muito mais do que milhões de dólares podem fazer. Porque há coisas que nenhum dinheiro pode comprar ou produzir. SE EMOCIONE, COMPLETAMENTE: http://www.youtube.com/watch?v=_pFhoe7tfeA

E não deixe de visitar nossa seção ENSAIOS, nesta edição, Alberto Lins Caldas apresenta GÊNERO, PÓSMODERNIDADE E DESEJO. Aqui: http://www.ellenismos.com/p/clipping.html E PRA TERMINAR...


2 POEMAS DE CÉSAR KIRALY http://cesarkiraly.blogspot.com.br

Tirésias Se teu nome não fosse Tirésias. Se teu sexo não mudasse de tempos em tempos. Se não fosse cega como as cobras que se engolem no caduceu de suas costas. Se não palpitasse entre duas vidas. Se já não sofrera tudo. Talvez. Te esquecesse.

Sergio Mora: Natural Heath – Dreams, 2012.


§ queria caso fosse uma estátua que seus olhos fossem pintados de vermelho afundasse lentamente no oceano azul embalada pela risada boba de um americano do norte queria caso fosse minha que suas cobras não se comessem às costas & seu sexo fosse o feminino para a perfeita resistência na queda até o fundo queria caso fosse folha que suas unhas me coçassem as pernas naquele ponto das coceiras depois de baixar a apertada meia branca - limparíamos os pés antes de deitar à cama - acordaríamos pelo copo d’água - mais uma vez nos sujaríamos as solas - uma contra a outra os grãos se perderiam - embora sujos, dormiríamos sob a certeza de que limpos deslocados de pés sujos e meias limpas ou no caso da infância: pés limpos e meias sujas fosse uma estátua quereria meus olhos pintados assim vermelhos & felizes por nunca terem tido a alma gotejante pelos furos

***


revista ellenismos, 27 des-construindo o gênero Editora Responsável: Nina Rizzi Iconografia/ Capa: Nina Rizzi, sobre pintura de Joe Sorren, "Dance of All Hallow's Eve", 24 x 24" [http://afanyc.com/joe-sorren-graphics] Vinheta de apresentação: https://vimeo.com/72560393 Página Oficial: www.ellenismos.com Endereço eletrônico: ellenismosrevista@gmail.com © 2013 Ellenismos - Diálogos com a Arte. ISSN: 2316-1779. agosto, 2013.

*** [Esta edição faz homenagem a toda e qualquer pessoa que um dia tenha sido violentada por lutar por seus direitos e a todas que se calaram por medo ou qualquer razão mais ou menos nobre.]



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