Reportagem: As marcas do veneno

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FUNDADA EM 11 DE SETEMBRO DE 1928 POR THIERS VELLOZO. Nº 29.928. ANO LXXXVII

PAIS E FILHOS

VITOR JUBINI

VIDA & FAMÍLIA

Por que a adolescência deixa os pais loucos Pág. 6

Conheça os alimentos que ajudam a dormir melhor

SAÚDE

12 produtos que podem desregular seus hormônios Pág. 10

Pág. 4

Domingo R$ 2,50 VITÓRIA, 22 FEVEREIRO DE 2015 EDIÇÃO ENCERRADA: 22H

gazetaonline.com.br

agrotóxico deixa rastro de intoxicação e mortes A cada ano, 800 capixabas sofrem algum tipo de contaminação com o veneno agrícola, o que coloca o Espírito Santo na liderança do ranking nacional da intoxicação. PÁGS. 16 A 19

MARCELO PREST

COLUNAS DO DIA

MERVAL PEREIRA PT poderia ter investigado esses malfeitos na Petrobras Pág. 45

MÍRIAM LEITÃO Passou o carnaval, mas o motor do país não vai pegar tão cedo Pág. 48

ÍNDICE Veja outros destaques da edição na página 2


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17 DOMINGO, 22 DE FEVEREIRO DE 2015

rastro de morte e contaminação por agrotóxico Em dez anos, 6 mil capixabas foram envenenados por conta do uso inadequado de insumos agrícolas Reportagem: PATRIK CAMPOREZ FOTOS: MARCELO PREST edição:

ELAINE SILVA EDSON DE MELO

diagramação:

Nova Venécia, Norte do Estado, 2013. O estudante Carlos Pinho, de 15 anos, levanta da cama às 4 horas, coloca a bomba de veneno nascostasecaminhaatéapropriedade de um vizinho para pulverizarlavourasdecafé.Depoisdeum dia intenso de trabalho, sem usar luvasemáscarasdeproteção,orapaz tem convulsões, desmaia, e não volta para a casa da sua mãe. Carlos morreu 10 dias depois. Interior de Vila Valério, ainda no Norte. Vagner Capaz tinha acabado de completar 17 anos quando comeu um pedaço de melancia contaminada com agrotóxico. Duas semanas depois, faleceu no hospital. Seu pai entrou em depressão nos meses seguintes, e a mãe, Dona Maria Idefonso, ainda acorda todas as noites achando que o filho está batendo na porta de casa. Também vítima do veneno, MariaGeraldadoCarmo(fotoao lado) seguia pela BR 101 quando, na altura de Conceição da Barra, um avião que pulverizava uma plantação de feijão despejou várias rajadas de veneno em cima do carro onde ela estava com outras duas pessoas. Ela sofreu queimaduras, o rosto ficou desfigurado e o veneno no corpo a deixou em coma por dois dias. Maria, que por ironia do destino é conselheira estadual de Alimentação e Nutrição, até hoje carrega sequelas no corpo. Aparentemente casos isolados, os relatos acima são de apenas uma parte dos mais de 6 mil capixabas que sofreram intoxicações por uso indiscriminado de agrotóxicos agrícolas na última década.

Nas últimas semanas, A GAZETA aprofundou-se numa investigação que percorreu 1,5 mil quilômetros pelo interior do Estado e ouviu histórias de homens e mulheres que sofreram contaminação, chegando a desenvolver doenças como câncer, infertilidade, impotência e depressão. Os últimos números da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Centro Estadual de Atendimento

Toxicológico (Toxcen) elevam o Espírito Santo ao triste primeiro lugarnorankingnacionaldascontaminações e mortes por uso desses venenos (conta feita por 100 mil habitantes). Só para se ter uma ideia, a quantidade de vítimas em solo capixaba é seis vezes maior do que no Estado vizinho, Rio de Janeiro. Foram 961 casos em2013emsolocapixaba.Nosúltimos cinco anos, são em média

QUANDO OLHEI NO ESPELHO NÃO ME RECONHECIA. ESTAVA TOTALMENTE DESFIGURADA. NO HOSPITAL, FIQUEI APAGADA E OS MÉDICOS TENTANDO ME REANIMAR. ESCUTAVA MINHA MÃE ME CHAMANDO, MAS NÃO CONSEGUIA ABRIR OS OLHOS NEM REAGIR. AOS POUCOS, FUI ME RECUPERANDO, MAS ATÉ HOJE VIVO À BASE DE REMÉDIOS” Maria Geralda do Carmo, conselheira de alimentação

800 casos por ano no Estado. A situação é tão séria que a própria Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) admite, em seu plano de saúde 2012/2015, que “é preocupante no Estado o consumo de agrotóxico”. Em 2009, o uso ultrapassou 5 mil toneladas de princípios ativos (59% herbicidas) em 726.017 hectares de área plantada. Entre os agravantes que colo-

É MUITO DIFÍCIL, PARA NÓS, PERDER UM FILHO TÃO NOVO ASSIM. COMEÇOU A PASSAR MAL DE REPENTE. NO POSTO DE SAÚDE, PASSARAM UMA INJEÇÃO E MANDARAM ELE VOLTAR PARA CASA. MAS O MENINO ESTAVA DURO, NÃO MEXIA NEM O PESCOÇO. QUANDO O LEVAMOS PELA TERCEIRA VEZ PARA O HOSPITAL, NÃO DUROU TRÊS DIAS. NA MADRUGADA, A NOTÍCIA CHEGOU. PARECE QUE ATÉ HOJE ELE ESTÁ COMIGO. DE NOITE EU LEVANTO E ABRO A PORTA PARA VER SE ELE ESTÁ ALI” Maria Ideofonso Capaz, 49 anos

dor Maria e Altair viram o filho, Vagner Capaz, de 17 anos, ficar doente e falecer por conta da contaminação por veneno

6 MIL Capixabas SOFRERAM ALGUM TIPO DE CONTAMINAÇÃO PELO MAU USO DE AGROTÓXICOS AGRÍCOLAS. OUTRAS CENTENAS DE PESSOAS SOFRERAM SEQUELAS, FICARAM INVÁLIDAS PARA O TRABALHO OU MORRERAM POR CAUSA DOS VENENOS.

cam o Estado nesta incômoda posição, estão a falta do uso de equipamentos de proteção, aplicação de doses de agrotóxico acima da quantidade indicada e a venda de produtos sem receita. No campo, faltam informações sobre o perigo dos venenos e também atendimento adequado às vítimas. TRABALHADORES A maior parte das vítimas é de trabalhadoresanalfabetosouquase. Pessoas que muitas vezes sequer conseguem ler a bula dos produtos. São homens na faixa de 18 a 45 anos acostumados a aplicar o veneno sem qualquer proteção. A intoxicação, no entanto, não atinge apenas quem entra em contato direto com o veneno, como aplicadores e os responsáveis pelo transporte e armazenamento. Faz vítimas que não têm nada a ver com a produção agrícola, como a conselheira Maria Geralda, que saiu de Vitória a caminho de dois eventos no Norte e nem imaginava o que estava por vir. Ela estava no banco de trás do

961 casos DE INTOXICAÇÃO FORAM REGISTRADOS SOMENTE EM 2013. NESSE MESMO ANO, 19 PESSOAS MORRERAM NO ESTADO VÍTIMAS DO CONTATO INDEVIDO COM OS PRODUTOS UTILIZADOS NAS PLANTAÇÕES, SEGUNDO O TOXCEN.

carroefoiamaisatingidapeloveneno despejado pelo avião agrícola. Passados alguns dias, a conselheira não conseguia andar. “Acordei, olhei no espelho e não me reconheci. Estava totalmente desfigurada. Fiquei apagada, comosmédicostentandomereanimar. Escutava minha mãe me chamando, mas não conseguia abrir os olhos nem reagir”, conta Maria, que, na época, também perdeu todo o cabelo e até hoje vive à base de remédios. Em muitos casos, a pessoa contaminada demora a associar os sintomas à exposição ao veneno, e chega ao hospital já em estado crítico. No caso de Vagner Capaz, a família precisou levar o estudante três vezes ao médico. O rapaz só recebeu mais atenção do serviço desaúdequandojánãoconseguia mais comer. A mãe, dona Maria Idefonso Capaz conta que a morte chegou três dias após a última ida ao hospital. “Meu filho já estava duro, não mexia nem o pescoço. Intoxicou todo o rim. Quando foi de madrugada, a notícia chegou,

mas parece que até hoje ele está aquicomigo”,dizamãe,comuma voz arrastada de choro. TRISTE AVANÇO Os números traduzem a triste realidade vivida no Estado e mostram um avanço assustador da grande utilização do veneno. Em 1999, 228 capixabas sofreram contaminação e sete morreram. Em 2013, foram registrados 961 casos de exposição ao veneno e 20 mortes.Umsaltodemaisde300% nasintoxicações.Masosdadospodem ser ainda mais alarmantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, para cada registro de intoxicação por agrotóxico, outros 50 casos deixam de ser notificados. Depois de viajar de Norte a Sul do Estado e passar por oito municípios que registram alto consumo de veneno, esta série de reportagens vai mostrar como o usoindevidodessesprodutosenvenena pessoas, rios, animais, o solo e os alimentos que chegam à mesa do consumidor.


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19

DOMINGO, 22 DE FEVEREIRO DE 2015

NA VILA DOS CONTAMINADOS, UMA VÍTIMA EM CADA ESQUINA

CRIANÇAS E ADOLESCENTES TAMBÉM São vítimas do trabalho com veneno AdoniasCostadeSouza(foto)tinha apenas 13 anos quando foi aliciado para bater veneno em plantações de mamão e café no extremo Norte do Estado. O jovem decidiu parar depois de 10 anos, mas a essa altura o veneno já tinha começado a corroer a sola dos seus pés.OrelatodeAdoniasseconfunde o drama de outras centenas de adolescentes e crianças que, por falta de estrutura e dificuldades financeirasenfrentadaspelafamília, encaram logo cedo o trabalho pesado com o veneno. OúltimolevantamentodoToxcenidentificou14criançasde10a 14 anos e 81 adolescentes de 15 a 19 anos que tiveram exposição ou vieramaseintoxicarcomvenenos de uso agrícola. Isso não quer dizer que todas essas contaminações aconteceram no campo. No entanto, de canto a canto do Estado,AGAZETAouviudepoimentos de pessoas que começaram a bater veneno antes mesmo de completar 16 anos. “Meu pai me levavaparaaroça,maselenãosabiaqueoagrotóxicofaziamal”,lamenta um agricultor da Região Serrana, hoje com 20 anos. A situação do trabalho infantilétãopresentequeatualmente o Ministério Público do Trabalho (MPT) possui 26 procedi-

No pequeno vilarejo de Pedro Canário, muitos relatos de intoxicação Quando algum trabalhador chega no postinho de saúde tendoconvulsões,soltandoáguapelo corpo ou com manchas vermelhas na pele, a técnica de enfermagem Maria Ivone de Jesus, que trabalha em Taquara, Pedro Canário,jásabe:“Éveneno!”.Localizada na divisa do Espírito Santo com a Bahia, a Vila dos Contaminados exemplifica a realidade dos diversos focos de intoxicação visitados pela reportagem de A GAZETA no Estado. “Aqui é terra de ninguém. Não tem uma pessoa que recebe a roupa de proteção para bater veneno”, vai avisando a primeira entrevistada, mãe de um trabalhador contaminado na plantação de banana. E é verdade. A cada esquina,aequipedereportagemencontrou um novo morador com história de contaminação para contar. Foram 10 relatos apenas nas primeiras horas de caminhada pela vila. Não foi preciso andar maisde100metrosentreacasade uma e outra vítima do veneno. “Certo dia, fui todo cheio de calombosparaohospital.Volteipara casa vomitando, com febre e dor de cabeça. Fiquei doido, tirava a roupa perto das pessoas, defecava sangue”, revela Almir Soares da Silva, de 50 anos, que também teveosproblemasnacolunaagravadosporcausadabombadeveneno que carregava nas costas. Mesmo com a coluna atrofiada, Almir não consegue aposentadoria por invalidez e vive da ajuda de vizinhos. Durante as entrevistas, os moradores iam se lembrando dos úl-

Casos de exposição / intoxicação Norte

por agrotóxico de uso agrícola, por região, em 2013

82

O QUE LEVA À CONTAMINAÇÃO Aplicação do veneno sem proteção Uso de agrotóxicos proibidos no Brasil ou contrabandeados

Central

Armazenamento inadequado e descarte irregular das embalagens

218

Falta de informação quanto à bula do produto TIPOS DE EXPOSIÇÃO

215 Acidente individual 274 Acidente ocupacional 411 Tentativas de suicídio

Metropolitana

423

Sul

181

região não informada

57

61 Não informados timos casos de contaminação. Há seis anos, Sivaldo de Jesus, de 60 anos, parou de mexer com veneno porcausadasdoresdecabeçaedas manchas que começaram aparecernapele.“Temmuitagentecontaminadaaquinavila.Ocamarada morre sabendo que é porque não usava proteção”, afirma Sivaldo. Experiente quando o assunto é o atendimento de trabalhadores contaminados após 29 anos de atuação na região, Ivone identifica de imediato os sintomas: “O cheiro do produto nas pessoas é

forte. Chegam tendo convulsões, vomitando e soltando água do corpo. Isso é comum aqui. Encaminho para o hospital”. Um dos moradores atendidos pelatécnicadeenfermagemdavila foi o aplicador Adalberon da Silva

gazetaonline.com.br Acompanhe na internet os vídeos com depoimentos das vítimas de intoxicação

Araújo, de 47, que conversou com a reportagem rodeado pelas suas bombas de veneno. “Tem produto que é tão forte que preciso jogar a roupa fora. Por causa deles já fui parar no médico três vezes, perdi a sensibilidade das costas e as unhas dos pés”, diz ele, que também costuma recrutar “turmas” de diaristas para aplicar os agrotóxicos nas propriedades dos fazendeiros da região.Adalberonmoracomamulher e os filhos numa casa simples. Apesar de atuar há 25 anos com as substâncias tóxicas, o único equipamento de proteção adquirido nessetempo,umkitcommáscarae roupa especial, nunca foi usado. “Um dia penso nisso”, diz. A VILA A produção agrícola alavanca os indicadores econômicos de Pedro Canário, mas não consegue tirar da pobreza os trabalhadores rurais de Taquara e comunidades vizinhas, que precisam se esforçar para viver com uma média salarial deR$289,33,umadasmaisbaixas doEstado,segundooúltimocenso do IBGE. Ao chegar à vila, as ruas dechãobatidoeesgotoacéuaberto prenunciam um situação que vai muito além das intoxicações. Faltam serviços públicos básicos. A população não conta com praça ou qualquer espaço de lazer. Uma creche foi inaugurada pela prefeiturahádoisanos,masnunca funcionou. Quando adoecem por causadoveneno,ostrabalhadores não têm a quem recorrer. A unidade que recebe os doentes não conta com ambulância e o médico só

aparece de vez em quando. Boa parte dos 800 moradores trabalha na clandestinidade, sem carteira de trabalho assinada. Diante desse quadro, são comuns osrelatosdepessoasqueadoecem por conta do veneno e não recebem nenhum auxílio. Trabalhadores como o filho da aposentada Maria Alves dos Santos, de 65 anos,quenãorecebiaequipamentos de proteção do empregador e nem possuía carteira de trabalho assinada, e acabou contaminado numa plantação de banana. “Chegou em casa exalando veneno, tremendo e vomitando sem parar. Fiquei desesperada, pois achava ele ia morrer. Só dizia ‘estou intoxicado mãe, me ajuda’”. Sem receber pelos dias parados, o filhodescumpriuaorientaçãomédica e voltou ao trabalho. “Ele não pode ficar sem esse dinheiro. É proibido mexer com veneno, mas trabalhamesmoassim”,admitiua aposentada, entrevistada enquanto o filho estava no campo.

BUSCA ATIVA Por meio de nota, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) atribui o alto índice de notificações ao fato de o Espírito Santo ser “o único Estado do país que faz a busca ativa”, ou seja, contabiliza os casos de ligação para o Toxcen e os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), além de ir aos locais e investigar os prontuários, evitando as subnotificações.

segunda

contaminado Almir Soares da Silva tem 50 anos e vive com a ajuda dos vizinhos. Ele não pode trabalhar e não consegue se aposentar

81 jovens

DE 15 A 19 ANOS E 14 CRIANÇAS DE 10 A 14 APRESENTARAM INTOXICAÇÃO POR AGROTÓXICO DE USO AGRÍCOLA, SEGUNDO O ÚLTIMO LEVANTAMENTO DO TOCXEN mentos em aberto relacionados a trabalho infantil no Estado, boa parte dessas denúncias oriundas de regiões agrícolas. “São constantes os relatos de crianças nessa situação. Antes dos 18 anos não é permitido trabalhar com agrotóxico. É muito grave”, destaca o procurador do trabalho, Bruno Fonseca. NocasodeAdonias,atéhoje o jovem recebe acompanhamento médico e toma injeções toda semana por causa dos efeitos do veneno. “Se não tiver dinheiro para ir ao médico, o sujeito morre”, desabafa ele.

terça

Quarta

Suicídio

cuidados Consumo

O Espírito Santo é líder do ranking de tentativas de suicídio por uso de venenos agrícolas. O Toxcen registra em média uma tentativa por dia.

De Norte a Sul do Estado, trabalhadores aplicam veneno sem nenhuma proteção em plantações de morango, tomate, café e outras culturas

Além de contaminar o trabalhador, rios e o solo, o agrotóxico envenena os alimentos que chegam à mesa do consumidor capixaba

MEU FILHO ESTAVA BATENDO VVENENO NAS BANANAS E CHEGOU EM CASA MAL, TREMENDO MUITO E VOMITANDO. DISSE: ‘MAINHA ESTOU INTOXXICADO, ME AJUDA’. ACHEI QUE ELE FOSSE MORRER”

MEU PÉ COMEÇOU A DESGASTAR, E O DERMATOLOGISTA DESCOBRIU QUE ERA VENENO. COM 13 ANOS, EU JÁ TRABALHAVA CLANDESTINAMENTE. AGORA, PRECISO TOMAR INJEÇÕES”

J PERDI AS UNHAS E A JÁ SSENSIBILIDADE DAS COSTAS. É UMA VIDA SOFRIDA, JÁ FUI PARAR NO HOSPITAL VÁRIAS VVEZES. AQUI, NINGUÉM USA ROUPA APROPRIADA PARA BATER VENENO”

AAS PESSOAS COSTUMAM CCHEGAR SOLTANDO ÁGUA PELO CORPO, COM MANCHAS NA PELE E VOMITANDO. ISSO É NORMAL. VENDO QQUE É VENENO, EU ENCAMINHO PARA O HOSPITAL”

Maria Alves, 65 anos

Adonias Costa, 25 anos

AAdalberon Araújo, 47 anos

Maria Ivone, técnica de enfermagem


FUNDADA EM 11 DE SETEMBRO DE 1928 POR THIERS VELLOZO. Nº 29.929. ANO LXXXVII

CADERNO 2

CIDADES

VIDA

O músico que desbancou Beyoncé no Grammy

Igreja Deus é Amor perde seu fundador Pág. 6

Cuidado com as fotos dos seus filhos na web Pág. 29

Pág. 3

www.gazetaonline.com.br

VITÓRIA, SEGUNDA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2015 - EDIÇÃO ENCERRADA: 23H R$ 2,00

Agrotóxico: uma pessoa tenta se matar por dia Além de liderar o índice de intoxicações por defensivos agrícolas no país, o Estado também está em primeiro lugar no ranking de tentativas de suicídio por ingestão de agrotóxicos. Foram 404 casos em 2012, com 20 mortes. O uso indiscriminado traz outras mazelas, como impotência e câncer. PÁGS. 26 E 27

VASCO NÃO PERDOA O FREGUÊS

Legião Urbana

Com gol do capixaba Luan, Vasco vence por 1 a 0 e chega a 9 jogos sem perder para o Flu, que não ganha o clássico desde 2012. Págs. 6 a 10

EX-BAIXISTA É ACHADO MORTO EM HOTEL Pág. 6

ECONOMIA DE 30%

Pesquisa mostra como reduzir a conta de água Pág. 4 COMEÇA A VALER

Bares na Serra terão que fechar até 1 hora Pág. 12

IDE GOMES

COLUNAS DO DIA

VICTOR HUGO A BR 101 vai ganhar mais 5 passarelas Pág. 7

RICARDO NOBLAT O anão diplomático está de volta Pág. 21

GEORGE VIDOR Crédito está minguando no país Pág. 25


26

UMA PESSOA TENTA SE MATAR POR DIA USANDO AGROTÓXICO Foram 404 casos somente em 2012. Trata-se do maior índice do Brasil Reportagem: PATRIK CAMPOREZ FOTOS: MARCELO PREST edição:

ELAINE SILVA EDSON DE MELO

diagramação:

A cada 24 horas, uma pessoa tenta suicídio no Estado ingerindo agrotóxicos de uso agrícola. Foram 404 casos somente em 2012, último ano em que o Centro de Atendimento ToxicológicodoEspíritoSanto(Toxcen)divulgouessesdados.Éomaioríndice do Brasil. Umdosprincipaisfatorespara que estes produtos sejam bastanteusadosporquematentacontra a própria vida é a facilidade com que se pode comprar o agrotóxico. A maior parcela desses suicídiossedáemzonasrurais,ondeé mais fácil o contato com o veneno. São, em média, 20 mortes por ano no Estado. Em alguns municípios percorridos para elaboração desta série de reportagens, A GAZETA constatou que a venda dos venenos acontece livremente, sem a necessidade da apresentação de receituário ou registro das propriedades exigidos pela legislação. Ainda não se sabe se o uso de agrotóxicos está diretamente ligado aos suicídios, mas especialistas apontam que, em contato com o corpo, alguns venenos agem no sistema nervoso central, podendo levar à depressão. Esse quadro, aliado a uma série de problemas econômicos e sociais, poderia levar ao suicídio, sendo o próprio produto utilizado pelo trabalhador

27

SEGUNDA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2015

para tirar sua vida. “Por serem consideradas substâncias neurotóxicas, podem sim gerar ou agravar a depressão”, avalia o ex-gerente da Anvisa e atual pesquisador da Fiocruz, Luiz Cláudio Meirelles. Nos últimos anos, pesquisas realizadas por universidades de diversos Estados, incluindo a Ufes, identificaram elevados índices de suicídio em municípios com alto consumo de agrotóxico. Em 2012, ano em que foi divulgado o último balanço do Toxcen, os casos de tentativas de suicídio representaram 47,5% do total de intoxicações no Espírito Santo. Para Meirelles, é papel do Estadoagirparaevitarqueosagrotóxicos sejam vendidos indiscriminadamente. “Tem que ter um papel regulador, pois consumidores, trabalhadores, enfim, a populaçãoemgeralestáexposta ao perigo. E o ser humano não tem um sistema imunológico resistente ao uso de tantas substânciasaomesmotempo”,explica o estudioso. INVALIDEZ “Até hoje, dois anos depois, meu tio não dorme direito e tem alucinações. Por pouco não morreu, hoje não consegue trabalhar”, lamenta uma sobrinha de Antônio (nome fictício, para não expor o trabalhador rural), morador de uma cidadezinha do Norte do Estado que tomou veneno um mês depois de ver o filho morrer contaminado. Assim como Antônio, cerca de 10% das pessoas intoxicadas

PLANTAVA TOMATE E USAVA 4 OU 5 VENENOS DE UMA SÓ VEZ, SEM SABER DIREITO O EFEITO DE CADA UM. NÃO USAVA PROTEÇÃO, ATÉ QUE UM DIA SENTI TONTURA E CAÍ. MEU CORPO DOÍA TODO, MEU CORAÇÃO BATIA ACELERADO E MEUS OLHOS DILATARAM. DEPOIS DE UM TEMPO FIQUEI COM SEQUELAS. A PERDA DE MEMÓRIA E A IMPOTÊNCIA FORAM AS PIORES. 30 ANOS DEPOIS DA PRIMEIRA CONTAMINAÇÃO, AINDA FICO SEMANAS SEM TER EREÇÃO. É ALGO DIFÍCIL PARA UM HOMEM. TEM MUITA GENTE QUE SOFRE CALADO POR CAUSA DOS AGROTÓXICOS” Agricultor da Região Serrana que preferiu não se identificar

ficam definitivamente incapacitadas para o trabalho. A cada ano, em média, cerca de 800 capixabas sofrem algum tipo de intoxicação por uso de agrotóxicos, número que coloca o Espírito Santo em primeiro lugar no triste ranking nacional da contaminação.

casos de exposição ao agrotóxico tipos de intoxicação de uso agrícola em 2012 (último balanço divulgado pela Sesa)

183

1 A 19 ANOS

399

20 A 39 ANOS

222

40 A 59 ANOS

37

60 A 80 ANOS

16

Aguda

IGNORADO

Ignorado

857

2

CASOS São homens

São mulheres

515

340

Tentativas de suicídio por uso de agrotóxico

404

20

Tentativas

Óbitos

GERALMENTE ACONTECE NO CAMPO DE TRABALHO. OS SINTOMAS SE MANIFESTAM QUASE QUE IMEDIATAMENTE APÓS A EXPOSIÇÃO AO AGROTÓXICO. CONSEQUÊNCIAS: LACRIMEJAMENTO, SALIVAÇÃO EXCESSIVA, ALTERAÇÃO DA VISÃO, MANIFESTAÇÕES CARDÍACAS, FRAQUEZA MUSCULAR, TREMORES, PARALISIA E CONVULSÕES

crônica CARACTERIZA-SE PELO SURGIMENTO TARDIO DAS DOENÇAS, POR DIVERSOS TIPOS DE CONTATO COM O AGROTÓXICO. CONSEQUÊNCIAS: DIVERSOS TIPOS DE CÂNCER, DESEQUILÍBRIO HORMONAL, PROBLEMAS DE VISÃO, RESPIRATÓRIOS E DEPRESSÃO

Câncer, problemas de visão e impotência atormentam as vítimas “Trinta anos após a primeira intoxicação, ainda fico semanas semterereção”,desabafaumprodutor rural da região Serrana que nãoquerseridentificado.Alémde impotência, a exposição aos agrotóxicos está relacionada a males crônicos como câncer, desequilíbrio hormonal, perda visual, problemas respiratórios e depressão, aponta o Protocolo de Atenção à Saúde dos Trabalhadores Expostos a Agrotóxicos, elaborado pelo Ministério da Saúde. Sãodoençasquepodemsemanifestar ao longo dos anos e provocar uma morte lenta e silenciosa. Doutor em Entomologia e pesquisador do Incaper, David Martins explica que é comum o trabalhadorruralnãoperceberqueestá adoecendo. “Quando a intoxicação é aguda, o trabalhador desmaia e cai. Só que a maior parte das pessoas vai se intoxicando aos poucos. O agrotóxico vai acumulando, um dia as funções do corpo

são danificadas”, pondera. Experiente pesquisador da agricultura capixaba, Martins destaca que o machismo no campo e a resistência ao uso dos equipamentos de segurança contribuemparaoagravamento das contaminações. “Tem gente que ainda acha que pode beber ou encostar a mão no veneno. Mas, quando a gente fala que vai afetar a virilidade, o sujeito pensa duas vezes e passa a se proteger”, constata o pesquisador. A intoxicação crônica caracteriza-se pelo surgimento tardio das doenças, após meses ou anos, por exposição pequena ou moderada a produtos tóxicos. Esse contato com o veneno ao longo dos anos pode acabar em danos irreversíveis. INTOXICAÇÃO AGUDA Já a contaminação aguda provoca sintomas quase imediatamente após a exposição ao ve-

neno. A pessoa intoxicada pode apresentar lacrimejamento, salivação excessiva, alteração da visão, além de manifestações cardíacas. Alterações neurológicas como fraqueza muscular, tremores, paralisia e convulsões também podem ocorrer. “Por esse motivo pode ocorrer falência respiratória, acarretando a morte”, alerta o mesmo protocolo do Ministério da Saúde. Para Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Fiocruz, boa parte da população rural ainda não está consciente de que agrotóxico é veneno. “São feitos para matar pragas, mas podem matar seres humanos”, alerta.

gazetaonline.com.br Acompanhe na internet os vídeos com depoimentos das vítimas de intoxicação

FIZ UM ELETRO NO CORAÇÃO E O MÉDICO DISSE: ‘VOCÊ ESTÁ RUIM. PARA DE MEXER COM VENENO SE QUISER VIVER UM POUCO MAIS’. FAZ 45 DIAS QUE NÃO CONSIGO NEM ANDAR DIREITO. TRABALHAR, TALVEZ EU VOLTE. BATER VENENO, NUNCA MAIS. FORAM MUITOS ANOS TRABALHANDO SEM NENHUMA PROTEÇÃO” Agricultor da Região Serrana, que preferiu não se identificar

domingo

terça

Quarta

Vítimas

cuidados Consumo

O Espírito Santo está em primeiro lugar na lista nacional da contaminação e morte por uso indevido de agrotóxicos, com 6 mil intoxicados na última década

De Norte a Sul do Estado, trabalhadores aplicam veneno sem nenhuma proteção em plantações de morango, tomate, café e outras culturas

Além de contaminar o trabalhador, rios e o solo, o agrotóxico envenena os alimentos que chegam à mesa do consumidor capixaba


FUNDADA EM 11 DE SETEMBRO DE 1928 POR THIERS VELLOZO. Nº 29.930. ANO LXXXVII

VIDA

ESPORTES

Como se animar para encarar a malhação

Surfista fratura Banco Central vai pescoço e morre abrir concurso com ao fazer ioga Pág. 42 300 vagas Pág. 34

Pág. 37

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EMPREGO

VITÓRIA, TERÇA-FEIRA, 24 DE FEVEREIRO DE 2015 - EDIÇÃO ENCERRADA: 23H R$ 2,00

EXPECTATIVA. MORADORES QUEREM UMA RESPOSTA RÁPIDA

CPI do Pó Preto começa e promete apontar culpados CARLOS ALBERTO SILVA

Comissão é instalada na Assembleia e agora terá 90 dias para investigar a poluição. Primeiro passo será reunir entidades e pesquisadores para traçar “o DNA” do pó preto Páginas 3 a 5

O que a população quer da comissão A Grande Vitória será beneficiada se essa CPI tiver credibilidade, dando um diagnóstico real” SEBASTIÃO DE PAULA PRAIA DA COSTA

Esperamos que não acabe em pizza, que a comissão mostre os verdadeiros poluidores” ANAEL PARENTE JARDIM CAMBURI

Espero respostas, principalmente para nós (da Serra), que estamos entre os mais afetados” DEBORAH ALVES LARANJEIRAS

AGROTÓXICO CONTAMINA 274 PESSOAS EM UM ANO

Levantamento mostra que o uso irregular dos venenos resultou na exposição ou na intoxicação de 274 trabalhadores rurais em 2013, no Estado. PÁGS. 30 E 31

PERIGO NA INTERNET

Jovem é preso por aliciar crianças em rede social Pág. 15

Susto e destruição nas praias

Ressaca chegou mais cedo e mais forte a Ponta da Fruta. Marataízes também sofre Pág. 8 COLUNAS DO DIA

PRAÇA OITO CPI do Pó Preto com o percurso indefinido Pág. 22

MÍRIAM LEITÃO A economia além da escorregadinha Pág. 28

RENATO M. PRADO O que será de Alonso? Pág. 47

LIXO NAS RUAS

Garis podem retomar greve em Vila Velha Pág. 13


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274 TRABALHADORES SE CONTAMINARAM SOMENTE EM 2013

Naturistas

sem proteção

O casal Hilário e Angela cuida de agricultores contaminados

Agricultor pulveriza 3 mil pés de tomate sem utilizar equipamentos básicos de proteção, como calça comprida e luvas. O flagrante foi feito no interior de Santa Maria de Jetibá, Região Serrana do Estado

MEDICINA NATURAL PARA CUIDAR DE TRABALHADORES ENVENENADOS

Maioria não usa equipamentos de segurança exigidos por lei Reportagem: PATRIK CAMPOREZ FOTOS: MARCELO PREST edição:

ELAINE SILVA EDSON DE MELO

diagramação:

Em cada pé de tomate, uma borrifada certeira de veneno. Ao longo do dia, Roberto Matias vai enchendo as plantas com agrotóxico e, ao mesmo tempo, contaminando a si próprio. São 15 anos atuando sem nunca ter recebido qualquer equipamento de proteção dos seus empregadores. “Teve um dia que eu desmaiei na roça. Fui socorrido por um colega e por pouco não morri. Minha memória se foi, assim como minha saúde”, lamenta, esboçando sentimentos de culpa, o trabalhador. Flagrada por A GAZETA durante a investigação que deu origem a esta série de reportagens, a situação acima retrata a dura realidade vivida pelos trabalhadores do campo capixaba. Oito municípios com altos índices de contaminação foram visitados durante uma viagem de mais de 1.500 quilômetros, sendo que

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TERÇA-FEIRA, 24 DE FEVEREIRO DE 2015

em todos a reportagem apurou uma série de irregularidades no trabalho. Só para dar uma ideia, o uso irregular dos venenos no Estado resultou na exposição ou intoxicação de 274 trabalhadores somente no ano de 2013. O númerorepresenta28%dos971casos registrados pelo Centro de Atendimento Toxicológico do Espírito Santo (Toxcen) no mesmo ano. Tanto nas pequenas propriedades, onde a família costuma realizar a pulverização, quanto nos médios e grandes latifúndios, onde funcionários fazem o serviço, estima-se que 90% das aplicações são feitas sem nenhuma proteção ou apenas com o uso de parte dos equipamentos de segurança. SOFRIMENTO Moradora de Pinheiros, no Extremo Norte do Estado, dona Nilda da Silva lembra com emoção de quando o marido, doente há 10 anos, ainda tinha forças para andar. Hoje, com 73 anos, Emanuel Gomes Ferreira está encostado pela Previdência. “Um ano e meio batendo veneno

no eucalipto foi suficiente para a saúde dele complicar. Se ele não saísse de lá, iria morrer”, relata. De acordo com Paulo Rocha, chefe da seção de inspeção e fiscalização vegetal do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é quem deveria cobrar, nas áreas rurais, o uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). “Mas essa fiscalização não tem sido realizada. O que mais encontramos no interior são trabalhadores sem proteção”, alerta Rocha. Além do mais, completa ele, tem a questão do clima: “É um kit de equipamento não adequado para o calor. Causa incômodo, e ninguém usa”, critica. Por outro lado, o MTE alega que fiscaliza, mas admite que dá prioridade aos latifúndios de médio e grande portes. “O maior problema está nos minifúndios, que, em regra, tem regime de agricultura familiar. Quase sempre, não é o trabalhador empregado que está se envenenando. É o pequeno produtor”, afirma

Não são poucos os trabalhadores que fazem uso da medicina alternativa para cuidar das intoxicações ocasionadas pelo uso indevido dos agrotóxicos. Como os postos de saúde quase sempre estão a quilômetros de distância de casa, as plantas medicinais acabam sendo a primeira opção do trabalhador, afirma Dilzete dos Santos, de 48, moradora do distrito de Fátima, em Jaguaré. “Eu me trato com carvão vegetal desde quando me contaminei na lavoura de café, há três anos”, relata. As intoxicações são tão comuns no Noroeste do Estado, que um casal de terapeutas naturistas abriu as portas do sítio somente para cuidar de agriculto-

Alcimar Candeias, superintendente-adjunto do MTE. Candeias reforça que a fiscalização nos minifúndios foge das prioridades da instituição. “Hoje, o trabalhador mais desassistido dopaíséoassalariado.Enossofoco de atuação está principalmente nas propriedades que têm empregados”, justifica. As irregularidades na aplicação e venda de veneno resultaram, em 2014, na autuação de 79 revendedores e 46 propriedades rurais, feitas somente pelo Idaf. O comércio de agrotóxicos sem autorização e a aplicação em desacordo com a receita agronômica foram as principais irregularidades encontradas. “Muitas vezes, a loja vende um produtoparaocafé,masoprodutor está usando na pastagem”, exemplifica Paulo Rocha. Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. A utilização maciça desses produtos traz como consequências graves problemas à saúde dos trabalhadores e de toda população, além danos à natureza, destruição da fauna e flora, e poluição das águas, solos e do ar.

domingo

segunda

Vítimas

Suicídio

Consumo

O Espírito Santo está em primeiro lugar na lista nacional da contaminação e morte por uso indevido de agrotóxicos, com 6 mil intoxicados na última década.

O Espírito Santo é líder do ranking de tentativas de suicídio por uso de venenos agrícolas. O Toxcen registra em média uma tentativa por dia.

Além de contaminar o trabalhador, os rios e o solo, o agrotóxico envenena os alimentos que chegam à mesa do consumidor capixaba.

ajuda UM ANO E MEIO BATENDO VENENO NO EUCALIPTO FOI SUFICIENTE PARA TRAZER OS PROBLEMAS. SE ELE NÃO SAÍSSE, IRIA MORRER. FAZ 10 ANOS QUE MEU MARIDO ESTÁ DOENTE, MAS PELO MENOS NÃO ESTÁ MORTO”

OS FERIMENTOS COMEÇARAM NO QUEIXO, DEPOIS SE ESPALHARAM PELO CORPO TODO. NÃO CONSEGUIA VESTIR ROUPAS ÍNTIMAS, NEM PODIA SAIR DE CASA. FIQUEI DOIS ANOS SOFRENDO”

Nilda da Silva, 63, esposa de Emanuel Gomes, 73

Marli Batista, 54 anos, ao lado do marido

INTOXICAÇÃO Centro de Atendimento Toxicológico do Espírito Santo (Toxcen) Tel.: 0800 283 9904 24 HORAS ACOLHIMENTO DE PESSOAS EM CRISE Centro de Valorização da Vida (CVV) Tel.: 141 24 HORAS

gazetaonline.com.br Acompanhe na internet os vídeos com depoimentos das vítimas de intoxicação

res contaminados com o veneno. Fica na localidade de Castelan, interior de São Gabriel da Palha. “Já vivenciamos casos assustadores. Muitas pessoas que nos procuraram não acreditavam que o agrotóxico fazia mal”, dizem Hilário e Angela Matielo. Há 15 anos atuando com técnicas de desintoxicação, o casal alerta que o nível de veneno é cumulativo no organismo. “Já tivemosumcasodeumagricultorque faleceu depois de tanto se contaminar. Quando ele chegou até nós, já estava em uma situação grave, e foi fatal. Antes de morrer, ele reconheceu que aquela situação estava acontecendo por causa dos agrotóxicos, e chorava arrependido”, lembra Hilário.

Quarta

A REPORTAGEM 1.500

PEDRO CANÁRIO

PINHEIROS

COMEÇOU COM UMA ALERGIA, DURANTE A COLHEITA DO CAFÉ, E LOGO MEU CORPO ESTAVA TODO CONTAMINADO. APENAS O CONTATO COM A PLANTA ENVENENADA FOI SUFICIENTE PARA ME DEIXAR DOENTE” Dilzete dos Santos, 48 anos

quilômetros foram percorridos por A GAZETA, pelo interiror do Espírito Santo, para produzir esta série de reportagem.

NOVA VENÉCIA JAGUARÉ

SÃO GABRIEL DA PALHA

VILA VALÉRIO

SANTA MARIA DE JETIBÁ

MARECHAL FLORIANO

Oito municípios foram visitados


FUNDADA EM 11 DE SETEMBRO DE 1928 POR THIERS VELLOZO. Nº 29.931. ANO LXXXVII

Vida O limite de peso e as dicas para as mochilas dos filhos Pág. 36 www.gazetaonline.com.br

VITÓRIA, QUARTA-FEIRA, 25 DE FEVEREIRO DE 2015 - EDIÇÃO ENCERRADA: 23H R$ 2,00

Agrotóxico: alimentos chegam à mesa contaminados Última análise divulgada pela Anvisa apontou problemas em folhas, frutas e legumes comercializados no Estado. Mais de 70% dos alimentos foram reprovados. A abobrinha liderou o ranking: 77,8% das amostras estavam com índice acima do permitido. Pepino, uva, alface, abacaxi também apresentaram problemas. Confira outros produtos. PÁGS. 30 E 31

Voltinha no carrão

JUIZ É FLAGRADO USANDO PORSCHE APREENDIDO NA CASA DE EIKE Pág. 34

BOLSO MAIS VAZIO

Fevereiro registra a maior inflação em 12 anos Indice de preços acelerou para 7,36%, número bem maior que a meta do Banco Central. Pág. 27

GASTO MENOR

Bloquear o ar em canos faz conta de água cair até 70% O relato é de moradores da Grande Vitória, após a instalação de bloqueador de ar. Cesan contesta informação. Págs. 4 e 5

QUEBRA-QUEBRA

Ato em defesa da Petrobras acaba em confusão Pág. 25 PRIMEIRA FASE

CPI do Pó Preto faz lista de 20 depoimentos Pág. 19 COLUNAS DO DIA

TRAGÉDIA DA PLATAFORMA

Famílias de desaparecidos cobram informações Impacientes com o andamento do resgate, parentes das vítimas da explosão em navio farão protesto hoje. Acidente ocorreu há 14 dias, e três trabalhadores continuam sumidos Pág. 29

ELIO GASPARI O governo na defesa dos gatos gordos Pág. 22

GUILHERME FERRARI

VICTOR HUGO Até Tiririca aprovou a moqueca Pág. 6

FERNANDO CALAZANS Ódio em vez de paixão Pág. 45


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QUARTA-FEIRA, 25 DE FEVEREIRO DE 2015

Ranking dos alimentos contaminados com agrotóxico no Estado elaborado pela Anvisa em 2012 INSATISFATÓRIO

IMPRÓPRIO

Abobrinha

77,8% Pepino

60%

CRIOU-SE O MITO DE QUE SEM AGROTÓXICO NÃO SE PRODUZ. MAS NÃO É VERDADE. POR TODO O ESTADO TEMOS PRODUTORES ORGÂNICOS BEM-SUCEDIDOS. A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS SEM VENENO NÃO PARA DE CRESCER”

Alface

44,4%

11,2%

Abacaxi

44,4% Morango

30% Uva

Bruno Pilon, integrante do MPA

10%

ALIMENTOS AINDA CHEGAM ...e orgânicos ganham À MESA CONTAMINADOS... força em todo o estado Abobrinha, pepino, alface e abacaxi apresentaram alto teor de agrotóxicos Reportagem: PATRIK CAMPOREZ FOTOS: MARCELO PREST edição:

ELAINE SILVA EDSON DE MELO

diagramação:

O agrotóxico, usado de forma indiscriminada, contamina o solo, água e atinge diretamente o homem do campo. Mas quem mora longe do meio rural também sofre as consequências do veneno. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, no Espírito Santo, dos 12 alimentos analisados, em 2012, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nove foram reprovados. Apenas o arroz, a laranja e o tomate tinham a quantidade de agrotóxico permitida por lei. A abobrinha liderou o ran-

king dos alimentos com alto teor deveneno.Dasamostras,77,8% estavam contaminadas, segundo as análises. Em seguida, o pepino, com 60% das amostras consideradas insatisfatórias. A lista traz também outros alimentos com altos índices de contaminação: alface (44,4% das amostras contaminadas), abacaxi (44,4%), morango (30%), cenoura (11,1%), feijão (11,1%) e maçã (11,1%). Algumas amostras tinham um nível tão crítico de veneno que foram consideradas impróprias para o consumo, caso de 10% das uvas analisadas e 11,2% das coletas de alface. No Espírito Santo, a responsabilidade administrativa do programa de análise cabe à Vigilância Sanitária Estadual, ficando a Vigilância Sanitária de Vitória com a responsabilidade de colher a amostragem no mercado varejista. Depois de recolhidos, os alimentos são enviados aos laboratórios. Os resultadosde2013e2014aindanãoforam repassados pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), pois, conforme orientação da Anvisa,

a divulgação nos Estados deve acompanhar a nacional. “Os números são importantes paraqueexistaaconscientização do consumidor e produtor. Tem que acontecer a redução ou, pelo menos, o uso correto do agrotóxico”, argumenta Renata Brega, coordenadora da área de alimentos da Vigilância de Vitória. O veneno no alimento, quando ingerido, tem efeito cumulativo. Isso pode levar quem consome a desenvolver doenças crônicas,principalmenteneurológicas, endócrinas, imunológicas, ligadas ao aparelho reprodutor e câncer. Os dados são do Ambulatório de Toxicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2013, foram consumidos umbilhãodelitrosdeagrotóxicos no país. Isso significa que, na média,cadabrasileiroingeriu5litros de veneno. O Brasil é o maior importador de agrotóxicos do planeta e movimenta R$ 8 bilhões neste mercado todos os anos. São usados, por aqui, pelo menos 14 tipos de venenos proibidos no mundo, dos quais quatro, pelos riscos à saúde, foram banidos no

ano passado, embora pesquisadores suspeitem que ainda estejam em uso na agricultura. CHEGADA Os agrotóxicos foram desenvolvidos na 1ª Guerra Mundial e utilizados mais amplamente na 2ª Guerra Mundial como arma química. Com o fim da guerra, o produto desenvolvido passou a ser utilizado como defensivo agrícola. No Brasil, a sua utilização tornou-se mais evidente na década de 60. No pós-guerra, os vencedores articularam uma expansão dos seus negócios partindo das indústrias que haviam se desenvolvido durante o conflito, entre elas a indústria química. Na Europa havia fome, foi então que surgiu a Revolução Verde, que visava a promover a agricultura, gerando comida para os famintos. No Brasil, esse movimento foi implantado por meio de imposição das indústrias de agrotóxicos e do governo - o financiamento bancário para a compra de semente só era liberado se o agricultor comprasse também adubo e agrotóxico.

cursos

Com objetivo de reduzir o impacto dos agrotóxicos nos municípios, o Sistema Federação da Agricultura e Pecuária (Faes-ES), o Senar-ES e os Sindicatos Rurais promoveram 670 treinamentos sobre o tema, nos últimos cinco anos, habilitando 10.817 pessoas a manusearem de forma correta defensivos agrícolas. O Sistema destaca que oferece treinamentos gratuitos a produtores rurais, sejam eles empreendedores ou trabalhadores, com a finalidade de garantir segurança alimentar e a preservação da saúde do homem do campo. “Não estamos de olhos fechados à situação e com as notícias divulgadas, faremos uma campanha de divulgação do curso para duplicar o número de treinamentos e qualificar mais trabalhadores rurais”, pontua Júlio da Silva Rocha Jr, presidente da Faes.

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Agricultores deixam de lado o veneno e apostam no cultivo saudável

“Depois de muitos anos abusando do veneno, os casos de tumor e câncer estão aparecendo na nossa região. Como tenho muitos filhos, e a gente passava mal com frequência, deixamos de lado os agrotóxicos”. A fala é da produtora rural SeleneHammerTesch,51anos,erepresenta uma tendência constatada por A GAZETA durante a produção desta série de reportagens: depois de sofrerem por causa de casos de intoxicações, famílias de todas as partes do Estado têm abandonado o veneno e partindo para a produção orgânica. “O custo do adubo e do veneno tira o lucro do agricultor. Na agricultura orgânica, deixamos menos dinheiro nas lojas de veneno”, defende o chefe do departamento de agricultura orgânica deSanta Maria de Jetibá, Deolino Buteske.

DEPOIS DE MUITOS ANOS ABUSANDO DO VENENO, OS CASOS DE TUMOR E CÂNCER ESTÃO APARECENDO NA NOSSA REGIÃO. COMO TENHO FILHOS, E A GENTE PASSAVA MAL COM FREQUÊNCIA, MUDAMOS PARA O ORGÂNICO” Selene Hammer Tesch, 51 anos

Defensor implacável da agricultura orgânica, Buteske revela, ainda, um drama pessoal. “Já tive problemas no fígado por causa das pulverizações. Antes, o produtor rural falava que o agrotóxico era igualaotrigo,quepodiacomerpois não faria nenhum mal”, comenta. Associações de produtores se multiplicam no Estado para organizar a produção e a venda nas feiras da Grande Vitória. Somente em Santa Maria de Jetibá, na Região Serrana do Estado, duas associações já reúnem 70 famílias, que deixaram a agricultura convencional.Hádezanos,eram somente 20 famílias. No caso de dona Selene, uma área do tamanho de quatro campos de futebol é suficiente para cultivar 85 variedades de alimentos durante o ano e garantir a renda da família. “Não forçamos o alimento, produzimos só na estação adequada”, revela. Numa propriedade próxima, o produtor Lorival Haese, 61, também tem como segredo a diversificação. Mas o veneno já assustou o produtor. “Se eu não tivesse parado (de usar o veneno), talvez nem estaria vivo, fa-

HOJE, VENDO ALIMENTOS SAUDÁVEIS EM COLINA DE LARANJEIRAS (SERRA). MAS ANTES DISSO ME ENVENENEI MUITO NO MEIO DO MILHO. O AR NÃO CIRCULA E A GENTE RESPIRA O AGROTÓXICO. ATÉ HOJE SOFRO DE GASTRITE POR ISSO” Henrique Stuhe, 47 anos

lando com você. Já vi muita gente morrer por causa de venenos contrabandeados”, conta. Em Marechal Floriano, um programa foi criado pela prefeitura para orientar quem ainda não entrou no ramo dos produtos orgânicos, orientando a fazer o uso conscientedosagrotóxicos.Nasregiões Norte e Noroeste do Estado, cerca de 490 famílias ligadas ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) já aderiram ou estão em processo de adesão ao movimento orgânico. Tanto que um Mercado Popular de Alimentos foi fundado, em São Gabriel da Palha, onde os alimentos são comercializados. “Tem aumentado muito os casos de câncer na nossa região. Com isso, as pessoas têm procurado o orgânico”, afirma Deuzira Conte, 39, coordenadora do mercado. A demanda é tão grande que, entre os anos de 2010 e 2015, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-ES) capacitou cerca de dois mil trabalhadores para atuar com orgânicos no Estado.“Criou-seummitodeque,sem agrotóxico, não se produz. Mas issonãoéverdade”,alertaBrunoPilon, integrante do MPA.


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