Histórias Mal-Assombradas do Caminho Velho de São Paulo

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histórias mal-assombradas do caminho velho de são paulo série contos para não dormir 4

adriano messias ilustrações: Alexandre Teles


Copyright © Adriano Messias de Oliveira Capa e Projeto Gráfico Rex Design Ilustração Alexandre Teles Coordenação Editorial Adriano Andrade dos Santos 1º edição - 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Messias, Adriano Histórias mal-assombradas do Caminho Velho de São Paulo / Adriano Messias ; ilustração Alexandre Teles. -- São Paulo : Biruta, 2007. -- (Série contos pra não dormir ; v. 4) ISBN 978-85-88159-90-7 1. Literatura infanto-juvenil I. Teles, Alexandre. II. Título. III. Série. 07-9970

CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infanto-juvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Biruta Ltda. Rua Coronel José Euzébio, 95 Vila, Casa 100-5 – Higienópolis CEP 01239-030 – São Paulo – SP Tel (011) 3081-5739 Fax (011) 3081-5741 E-mail biruta@editorabiruta.com.br www.editorabiruta.com.br

A reprodução de qualquer parte desta obra é ilegal, e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.


Quando a gente escreve, vira Deus.

Nunca deixe a verdade atrapalhar uma boa história. ditado texano ...

Eu tive quatro avós e isso ninguém me tira da cabeça: Vó Dorica (Benedita das Dores), Vó Dorida (Iraídes), Vó Alice e Vó Frozina. As duas primeiras eram a avó paterna e avó materna. As outras foram “adotivas”. Guimarães Rosa disse que a gente não morre, fica encantado. Minhas quatro avós já estão encantadas. A elas dedico este livro.



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Prólogo

Quando eu, Adriano (e não o André, o personagem, ok?.. tem leitor que costuma nos confundir), era bem criança, achava que a gente podia ter quantas avós quisesse. Eu tive quatro: Vó Dorica, Vó Daída (a que morava em São Paulo),


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Vó Frozina. A primeira era irmã da terceira; as duas eram vizinhas de frente da quarta. Minhas três avós vizinhas me bajulavam de tal maneira que só tenho como me sentir privilegiado por ter recebido delas os mimos. A outra, mãe de minha mãe, que morava em São Paulo, eu só via nas minhas férias, mas também foi alguém muito especial para mim. As quatro foram muito católicas. Vó Frozina me deu um terço de bolinhas pretas quando nem ainda sabia o que era aquilo, e achei um brinquedo diferente. Para se chegar até a casa dela, havia muitas escadas, tão altas como as que levavam para a capelinha de Nossa Senhora Aparecida, onde ficava um megafone no qual o seu “Zé Anjo”, marido da Vó Frozina (eu ficava pensando se ele tinha mesmo algo a ver com os anjos) anunciava tudo o que acontecia no bairro: casamentos, mortes, aniversários... Havia as músicas da época, até mesmo algumas que me faziam chorar e minha mãe, atenciosa, me levava correndo para as laranjeiras do fundo da horta para que eu me distraísse. Uma em especial falava do telefone que chorava. Era 1976? No final dos anos 80 e início dos 90, já rapazinho, estudei francês, e a versão


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original da antiga música, Le téléphone pleure, me trouxe o sentido da melancolia. Quando as roseiras vermelhas do jardim de minha avó Dorica estavam alegres, minha mãe cortava uns galhos e eu levava, escadaria acima, pequenino e ligeiro anjo de Semana Santa, rosas à Nossa Senhora. E olhava para a santa negra de manto azul sabendo que ela ficara contente, mais cheirosa, cheia de velinhas piscando em volta do andor. Vó Alice me deu uma vez um copinho de louça com o desenho estampado de uma rama verdinha de cana-de-açúcar, que minha mãe guarda até hoje. Eu tinha passado mal, naquela época os médicos diziam que era a tal “disritmia”. Anos depois eu soube que nunca fora nada... Naquele dia, eu tomei um chazinho de hortelã e o copinho foi o brinde. Vó Dorica foi a avó mais presente em minha vida porque eu e meus pais moramos parte dos primeiros anos de minha existência em sua casa. Magrinha, as lembranças mais antigas que tenho dela é de quando assoprava o fogão de lenha, na velha casa do velho bairro de Lavras chamado Lavrinhas, o primeiro que


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surgiu na cidade, ou quando ela ficava assentada na cama de mola, balançando o corpo para frente e para trás, com dor na coluna. Ela era muito velhinha para meu olhar de menino, com seu vestido roxinho de florzinhas delicadas, porém tristes (espero que meu pai não comece a chorar com essa descrição). Ela morreu quando eu ainda era bem novo: tinha meus 12 anos. O que sei é que meu tio Zezinho chegou até sua casa e lhe pediu para esquentar o jantar. Não havia ovos, ele foi então à venda do Celinho, na subida do morro. Quando voltou, minha avó estava morta no chão. Daí disseram: “Morreu como um passarinho, Adriano.” Aquilo era uma coisa divina, pelo que pude entender. Morrer como um passarinho era algo especial então, pois parece que ela não sofrera. Caiu de costas e pronto. Mas custei a entender esse lance do passarinho. Me diziam: “É que às vezes, filho, na roça a gente fica olhando um passarinho pousado num galho e ele, repentinamente, cai mortinho”. Eu ficava impressionado com essa narrativa. Vó Dorica, que morava em sua casa pintada com cal colorida por fora, bem no meio da


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subida forte do morro, foi a primeira perda que tive na vida. Ainda hoje, quando penso nela, não deixo de limpar os óculos para tentar enxergá-la melhor. Eu sinto saudade e uma coisa meio confusa, pois sinto vontade de escrever uma carta para ela, ou de, por apenas mais um dia, conviver com quem tanto me protegeu e me deu atenção. A primeira vez em que vi a Cuca no Sítio do Pica-Pau Amarelo, no grande tevê em preto e branco da sala, lembro-me de ter me agarrado ao vestido dela, com medo. Minha avó Dorica quase ficou cega, enxergava pouquinho, caía à toa, se machucava toda. Desde muito novo, vi na velhice a beleza e a fragilidade, a memória e o encantamento. De sua bondade capaz de não ver nada de mau no coração de ninguém, ficou para sempre dentro em mim uma cantiga, quase um sussurro, que saía de seus lábios fechados quando ela caminhava pela casa. Em que pensava minha avó naquelas horas, meu Deus? Não sei reproduzir aquele canto, quase de ninar, neste livro. As palavras não servem para tudo. Nessas horas, acho que as palavras não servem para nada...


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Daí me via do lado de minha avó, sempre atento às batatas-doces que assavam no fogão de lenha, às castanhas, às jabuticabas... Achava tudo lindo: pingar água na chapa de ferro do fogão e ouvir o chiado. Ver minha avó enxugando as mãos no avental, caminhando devagar pelo alpendre, vendo as roseiras e delas apanhando algumas para colocar na jarra de plástico. (Foi num dia silencioso que ela morreu, sem dizer coisa alguma.) Eu nunca mais me esqueci de suas histórias e, com medo de o tempo apagá-las, escrevo aqui uma ou outra, e invento a maioria no meu diário de saudade e, pelo menos neste “livro-dia”, quero estar com ela outra vez...



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Saiba um pouco sobre mim

Meu nome é André Villas Boas. Morava em Belo Horizonte até algum tempo atrás, mas me mudei para São Paulo por motivos que não dá para explicar aqui. Ainda estou tentando me adaptar à escola nova, que fica próxima de


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minha casa, no bairro da Consolação. Aqui vivo com meus pais, sou filho único e estudo. Meus gostos são os mesmos de antes: cinema, shopping, colecionar selos, criar página na internet, desmontar coisas (confesso que às vezes me esqueço de como montar de novo) e colecionar gibis. Estou tentando também fazer novos amigos, mas a vida corrida da cidade nem sempre facilita as coisas. Ah... mas esta apresentação tá meio chata. Não pense que sou careta. Vamos lá ao que interessa: quero que seja meu parceiro neste livro e nos outros da série. Aliás, eu pre-ciso de você meu leitor amigo, para me acompanhar em algumas aventuras e experiências que são no mínimo... digamos... sobrenaturais! Brrrr... Mas não tenha medo. Aliás, TENHA MEDO! Ao menos um pouco, ou não justificará ser este um livro sobre assombrações. Está confuso? Não se preocupe, eu também costumo ficar assim... Na escola, desde pequeno sempre fui um menino diferente porque queria ser um vampiro. Não apenas para morder o pescoço das meninas ou assustá-las pelos corredores nos dias de tempestade... É que gosto mesmo do persona-


SAIBA UM POUCO SOBRE MIM

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gem vampiresco, com aquela capa preta que ele costuma jogar sobre os ombros, caminhando solenemente em seu enorme castelo. É... Sempre achei vampiro o máximo porque sou mais da noite do que do dia. Gosto mesmo é dos espaços escuros em que nossa imaginação pode voar de um castelo a uma vilazinha. E como um vampiro, não sei ao certo que idade tenho. Dizem que estou “virando homem” (detesto essa expressão, porque homem já sou desde que nasci; se você for homem, vai entender minha raiva). Bom, deixa pra lá... Tenho um mundo interno muito fértil, penso eu, porque eu realmente curto esta coisa de ficar imaginando histórias e fantasiando. Não sou chegado a parentes, nem os conheço direito, mesmo porque acho que os verdadeiros laços de amizade surgem com a convivência com estranhos. Adoro aquele ditado que diz: “um estranho é um amigo que você ainda não conheceu”. De resto, “parente é serpente”, como dizia minha bisavó, um ninho de cobras, preconceitos e fofocas que, muitas vezes, causam grandes desentendimentos. Sei que você vai concordar comigo...


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Voltando aos meus pais. Bom, eles dizem que tem hora em que ajo como se tivesse 8 anos, outras vezes, que pareço ter uns 20. Peço que eles decidam e entrem em um acordo porque isso me funde a cuca um pouco. Como não poderia deixar de ser, gosto de filmes, dos de terror e de outros, desde que tenham uma boa história para contar. Também leio de tudo: livros de aventura, revistas de viagens, blogs, sites. Tento arrumar meu quarto dia sim, dia não, e, sendo adolescente, não me identifico com a palavra “organizado” (também não acho que todo adolescente tenha de ser bagunceiro). Eu encontro muito tempo livre para ler (e gosto de ler, ninguém me obriga a fazer isso). Não que o fato de ter irmãos justifique alguém não gostar de ler, mas é que tenho “sossego”, se é que me entende... Estudo inglês e francês e, por me interessar muito por aventuras, leio livros de um autor chamado Júlio Verne, conhece? Já pensou em viajar até o centro da Terra? Nos fins de semana costumo ir ao Parque do Ibirapuera, onde há um Planetário incrível que nos permite conhecer as constelações. Gosto também das feiras de domingo. Tem uma na


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Liberdade, onde os adolescentes costumam se reunir pra comer bolinho de polvo. Garanto que é uma delícia. E na sua cidade? O que a garotada costuma fazer de legal? Entre a casa e a escola pública, a imaginação do menino-vampiro também voa, castelovilarejo, vilarejo-mundo, de onde um dia sairei para escrever livros. Ao menos é o que penso. Mas, para ser escritor, uma professora me disse que a gente tem de ler e ler e ler... e ter talvez um certo talento. Será que eu tenho? Assim como meu avô materno, acho que as raízes da gente têm de ser preservadas a todo custo, mas não deixo uma boa viagem por nada. Por isso, estou sempre aqui e acolá, mochileiro de carteirinha. Nas férias e feriados costumo ir para Lavras, cidade em que nasci, no sul do Estado de Minas Gerais. Em seus arredores, nas terras de um município chamado Ijaci, de onde provém parte de minha família, meus avós maternos guardam ainda um sítio, meio fazenda, meio recanto-perdido-no-mundinho-de-Deus. Lugar encantado, alegre, apesar da neblina forte e da serração que, na época do frio, cobrem


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as serras e o telhado das casas até quase o meiodia. Mas muitas vezes eu “viajo” por outros lugares, seja pelos livros, pela Internet ou de ônibus mesmo. Gosto das cidades do interior de São Paulo porque também têm muitas coisas interessantes e, por isso, escrevi este livro. Sou hiper-urbano e sou rural (com isso não estou me considerando vira-latas e nem boi manso, ok?). Sou mais solitário do que social (desculpe a rima feia). Tenho lá meus amigos, como você deve ter os seus, mas sinto uma certa dificuldade em ser compreendido (à medida que você for me conhecendo, acho que poderemos ser amigos). Pelo fato de gostar muito de ler, crio minha biblioteca particular, no canto escuro do quarto de tranqueiras, no apartamento em que moro, na Rua da Consolação, em São Paulo. Junto dos livros, ficam uns vidros com insetos, cobras e lagartos – mortos, claro. Gosto de biologia. Pois é... Tamos chegando ao fim deste papo e ao início da incrível “viagem número 4”1... Se eu não fosse menino-escritor e se não fosse 1 O primeiro livro da série intitula-se Histórias mal-assombradas em volta do fogão de lenha, o segundo é Histórias mal-assombradas do tempo da escravidão e o terceiro é Histórias mal-assombradas de um espírito da floresta.


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mineiro, o que seria eu, uai? Tem coisa melhor do que a terra da gente? É por isso que muitas vezes eu uso a linguagem própria dos lugares em que moro e visito. Ou seja, cada brasileiro fala português, mas a sua maneira. É como se cada um pusesse o tempero de sua região na língua para as palavras saírem mais saborosas... E se você não entender alguma coisa, não se acanhe em perguntar. Caso goste deste livro e se identifique comigo de alguma maneira, entre em contato. No final da leitura vai saber como. Até lá...


sumรกrio


Minha avó e seu novelo de histórias 25 Assombrações que gostam de porteiras 41 A cisterna de Bela e Messias 53 Uma sombra na Quaresma 59 Os pecados da Semana Santa 65 A encomenda das almas 73 O trem fantasma e o vestido de noiva 79 O monstro que existe dentro da gente 85 Lobismulher no pedaço 93 Epílogo 105 Caminhos e descaminhos 109



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Minha avó e seu novelo de histórias

A senhora não enxerga bem, né, vó? Ela sorri fraquinho. Preocupa não, vó. Eu sei que a senhora vê tudo... Sitiotopia está deserto nestes dias. Meus


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pais se recusaram a vir na Semana Santa para o sítio, por ser feriado muito curto, e vó Tutuca foi visitar suas netas no interior de São Paulo. Só eu me aventurei a viajar, o que nunca deixo de fazer. Bá Maria dava assistência na casa de vez em quando, mas notei dessa vez que ela enfraquecera muito e uma enfermeira sempre vinha de Lavras lhe fazer uns curativos na perna e dar uma olhada em minha avó. Também, cento e tantos anos, né, Bá?.. Vó Dorica corta a goiabada cascão e eu fico mil vezes vigiando para ela não se machucar. Estou faminto de doce. Gosto com leite gelado. Sinto trincar nos dentes os pedaços durinhos da casca da goiaba cheirosa e me refestelo. A vida é boa! Vou recolher umas roupas no varal, André. Você fica aí? Vou junto, vó. Cuidado com o degrau da porta... O sítio está bonito. Há tantas flores em volta da casa! Até os antúrios, flores que nem todo mundo gosta, estão se fazendo de reis... Dizem que antúrio é flor fora de moda, coisa de pobre, acho uma judiação (com a flor e com


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os que algumas pessoas chamam de “pobres”...). Demoramos uns 15 minutos para tirar, dobrar e guardar as roupas que estavam secas. A moça que faz faxina, lava e passa só vem amanhã. Parece que vai chover. E muito. O céu fica escurecendo no alto da serra roxa, tudo vai ficando medonho e largas sombras se estendem do céu. Parecem mãos ameaçadoras as nuvens que vão se espalhando vagarosamente, roubando o azul do céu. A tempestade vem como quem não quer nada, conquistando devagarinho cada pedaço de dia claro. Não demora para os relâmpagos começarem, azulando sobre a colina e ainda demorando para se ouvirem os trovões. Aguaceiro na certa pra mais logo, mas viria. Duas da tarde. Abril friozinho. Dei um presente para minha avó: uma caixinha de músicas que tem uma musiquinha muito parecida com aquela que ela gosta de murmurar. Comprei numa barraca de artesanato na feira da Praça da República, em São Paulo, lugar em que sempre vou com meus pais domingo de manhã e, de quebra, costumo comer um pastel sabor “Bauru”. Depois de recolhidas as roupas, Vó Dorica se


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assenta no sofazão da salona. Eu fico ao lado, na poltrona verde, ouvindo seu silêncio. Seu vestido tem umas nódoas de marmelo, eu acho, devido ao doce que ela gosta de fazer. De marmelada não gosto, mas de bananada e goiabada, sim. Minha avó sabe muitas histórias de fantasmas ligadas à religião católica e à região que chamamos de “Caminho Velho de São Paulo”, que os tropeiros antigamente tomavam com suas cargas e mulas para irem até a capital do outro Estado... Esse caminho velho não é muito conhecido pelos historiadores. Hoje a moda é descobrir caminho disso, caminho daquilo, mas pouca coisa séria se faz mesmo... “Quando a cidade de São Paulo não era mais do que uma vila que falava a ‘língua geral dos índios’, o nheengatu” – contou-me ela certa vez – “havia uma vila mais importante, Taubaté, e um lugar limite – Guaratinguetá – de onde as pessoas não iam além. Por quê? Medo! Medo do desconhecido, medo do ‘sertão’, medo das assombrações – as dos índios e as que vieram de Portugal nas naus e caravelas –, tudo junto. Elas viviam dentro das matas fechadas...” Eu sei que naquela época Minas Gerais


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nem existia, era tudo novidade por ser descoberta. Daí, surgiam os tais “bandeirantes” que a gente estuda na escola (mas hoje se prefere dizer “aventureiros” ou “desbravadores” porque os historiadores descobriram que os “bandeirantes” não se denominavam assim): uns homens fortes, altos, que mal falavam o português e andavam descalços e a pé abrindo trilhas no meio do cerrado bravo e das encostas das montanhas (nada de “gigantes de botas”, como líamos nos livros mais antigos). Foi assim que chegaram ao que hoje é meu estado natal, Minas Gerais. As picadas que abriam, de tão pisadas por outras gerações de viajantes, acabaram virando “caminhos”. Até o século XIX, disseram-me que muitos desses caminhos eram proibidos porque o rei de Portugal não permitia que se passasse por eles. Só podiam mesmo era usar a tal Estrada Real que pra ser sincero, até hoje não se descobriu por onde passava realmente – e nem vão, porque o tempo apagou ferozmente muita coisa que não tem como ser recuperada. Porém, a Estrada Real é uma outra história, pois ligava Parati (e depois a cidade do Rio de


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