Teshuvá - O retorno de Lisa

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Teshuvรก O retorno de Lisa

Teshuvรก O retorno de Lisa

Josefa Alves



Josefa Alves

Teshuvรก O retorno de Lisa


Coordenação Geral Filipe Cabral Coordenação Editorial Carolina Fernandes Revisão Amanda dos Reis Cividini Projeto gráfico e Diagramação Kelly Cristina Capa Brígida Marques, Guadalupe Monteiro e Nertan Braga Edições Shalom Estrada de Aquiraz – Lagoa do Junco Aquiraz/CE Tel.: (85) 3308.7415 www.edicoesshalom.com.br Alves, Josefa. Teshuvá: o retorno de Lisa / Josefa Alves 1. ed. - Aquiraz, CE: Edições Shalom, 2014. 330f. ISBN: 978-85-7784-087-8

1. Literatura brasileira. 2. Ficção e contos brasileiros. I. Josefa Alves II. Título.

CDD – B869

Índices para Catálogo Sistemático 1.Literatura brasileira – B869 2. Ficção e contos brasileiros – B869.3

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.


Aos amigos e irmãos que me ajudaram a ir além: Emmir, Dário, Franco, Lua, Lucília, Amanda, Brígida, Raquel, Sandra e Udo.



Sumário Capítulo 1 Uma família.......................................... 10 Capítulo 2 Giulia.................................................... 29 Capítulo 3 O encontro............................................ 52 Capítulo 4 A nova vítima........................................ 60 Capítulo 5 Roma................................................... 115 Capítulo 6 Encurralada......................................... 141 Capítulo 7 A verdade............................................ 151


Capítulo 8 O contrato........................................... 166 Capítulo 9 Despedida............................................ 194 Capítulo 10 Sonho ou pesadelo?.............................. 209 Capítulo 11 Procurando um sentido......................... 254 Capítulo 12 Nova aurora........................................ 288 Capítulo 13 Teshuvá .............................................. 327

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Uma família capítulo 1

Era domingo de manhã, começavam a surgir os primeiros raios de sol e Lisa já estava acordada, ansiosa para que os ponteiros do relógio andassem depressa. A ideia de ter acesso livre à biblioteca particular do Sr. Bianchi a agitava; na verdade, não tinha conseguido dormir direito. Entre um cochilo e outro lhe vinham à mente todas as histórias misteriosas que ouviu sobre ele desde que chegara a Volterra1. 1 Volterra é uma pequena cidade italiana, da província de Pisa, localizada na região da Toscana. Rica em cultura, tradição e beleza, Volterra mantém o seu aspecto medieval, o que tem coroado, ao longo dos séculos, a sua fama de cidade romântica e misteriosa.


11 Lisa nasceu no Brasil, numa pequena cidade mineira, no sudeste do país. Sua mãe a deixou no hospital poucas horas após o parto. Do seu pai, nada sabia. Foi levada para um orfanato feminino, uma espécie de ONG, coordenado por um casal já idoso, Sr. Adalto e Sra. Olívia Arruda, que, após a morte do único filho, passaram a se dedicar ao acolhimento e cuidado de crianças carentes. Quando era bebê, houve diversas tentativas de adoção por parte de algumas famílias, mas a lentidão dos órgãos públicos competentes impedia a concretização do que parecia um sonho distante. O tempo passava e Lisa crescia entre as trinta e quatro meninas do Lar Infantil Pequeno Príncipe. Aquele era seu mundo, não conhecia nada além daqueles muros. Seu jeito meigo conquistava a afeição de todos no orfanato, exceto das irmãs Sônia e Suely, que representavam uma espécie de pesadelo contínuo em sua vida. Para sua sorte, as duas eram semi-internas, no entanto, conseguiam transformar o pouco tempo que passavam ali dentro em longas horas de tensão. No dia do seu quinto aniversário, as “irmãs malvadas” – era assim que as chamava – resolveram dar-lhe um “presente especial”, o castigo mais severo: queimaram o colchão da sua cama e a fizeram passar por culpada, o que


lhe custou ficar no quarto durante a festa de Natal, sem ver as apresentações e o Papai Noel e sem o tão sonhado presente de Natal. Não entendia por que ficara calada diante das falsas acusações. Chorava, simplesmente. Nessas horas, sentia falta de uma mãe e de um pai para lhe defender e para poder chorar no colo. Onde estaria sua mãe? Por que a abandonou desse modo? Perguntas como estas cresceram junto com ela e nunca encontraram respostas suficientemente justas. Todas as respostas que lhe davam não revelavam a verdade, eram apenas teorias vazias ou frases feitas... Queria entender o motivo pelo qual sua mãe a rejeitou e o não saber a fazia sentir-se impotente, sem valor. Tinha a sensação de que um verdadeiro vulcão com larvas de raiva, revolta, tristeza e insegurança estava para entrar em erupção dentro de si. Entretanto, no dia em que completou seis anos, dois meses e quatorze dias, teve sua primeira entrevista com Laura e Marco. Ela era brasileira; ele, italiano. Conheceram-se durante um cursinho de inglês para estrangeiros em Londres. Começaram a namorar, decidiram ficar juntos e se mudaram para Volterra. Marco não podia ter filhos, por isso concordaram em adotar uma criança. Juntos optaram por escolher uma criança brasileira.

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13 Durante o verão de 1998, eles foram ao Brasil na esperança de encontrar o “bebê ideal”, mas algo mudou inexplicavelmente dentro de Laura quando seus olhos encontraram os de Lisa. Não era exatamente o que ela procurava, porque Lisa já tinha seis anos, o que tornava mais delicada a adoção e a criação de vínculos maternos. Com aquela idade a criança já teria adquirido certos hábitos e já tinha sua própria história. Laura sonhava em estar presente nas primeiras lembranças do seu filho, em poder ensiná-lo a dar os primeiros passos e a pronunciar as primeiras palavras... Aquelas coisas normais entre uma mãe e um filho. Uma criança com seis anos não anda mais de carrinho, não se coloca no colo para dormir, não precisa mais de ajuda para comer. Tudo isso seria importante para criar vínculos fortes e gerar confiança entre a mãe e o bebê, mas especialmente seria importante para que ela se sentisse mãe do seu filho. Lisa, porém, mudou tudo. Aqueles olhinhos atentos e aquele sorriso travesso invadiram seu coração e o preencheram. Laura passou a sonhar com ela por noites seguidas e quando, por fim, teve coragem de lhe dirigir a palavra, aquela menininha ocupou seu coração de mãe. Foram poucas palavras, mas foram as mais belas e cheias de sentido que jamais havia escutado: – Eu não sei quem é a minha mãe, mas se você quiser ser minha mãe, o meu amor de filha será todo para você


– disse Lisa com um sorriso muito puro nos lábios e com lágrimas nos olhos. Foi o suficiente. Desta vez, tudo foi mais simples. Três meses depois, Lisa já possuía uma identidade e um passaporte, um pai e uma mãe, um sobrenome e uma casa. Parecia um milagre. Ao passar pelo enorme portão cinza do Lar Infantil Pequeno Príncipe, a menina começou a viver um sonho. Olhava ao seu redor e tudo era lindo: o sol brilhava mais forte e a noite era mais clara e mais estrelada; o vento era mais fresco e mais suave; as flores mais perfumadas e belas; o seu coração pulsava mais forte. As suas mãozinhas, que sempre buscavam por segurança, agora eram seguradas por mãos fortes e delicadas. Finalmente os seus olhos encontraram rostos nos quais poderiam identificar as palavras até então abstratas para ela: pai e mãe. No momento de entrar no avião, sentiu medo. – Não tenha medo – disse Laura apertando forte as mãozinhas de Lisa. – Não precisa temer, vai ser uma ótima viagem e, além disso, estamos aqui para lhe proteger. Seu olhar era sereno.

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15 – Você vai gostar de voar, é bem legal. Marco as observava e, com um sorriso, confirmava o que Laura lhe dizia. Durante o jantar, Marco se esforçava para falar em português. Lisa se divertia com seu sotaque italiano, que não conseguia pronunciar direito as sílabas nasais. –“Coraçáo”... “náo”... “mamáe”. – Olha, mãe, estamos nas nuvens! – gritava uma criança na poltrona à frente da sua. “É verdade...”, pensou Lisa. Tudo aquilo parecia um sonho, como andar nas nuvens. Não queria que aquele sonho acabasse, tinha medo de abrir os olhos e perceber que ainda estava no orfanato. Esse pensamento lhe causou medo. E se desistissem dela, como aconteceu com outras crianças? Para onde iria, agora que estava longe do seu país? E se as “irmãs malvadas” tiverem razão com aquela conversa de comércio infantil para retirada de órgãos para transplantes? Seu coraçãozinho disparou e as nuvens, de brancas que eram, tornaram-se escuras e pesadas. Fitou longamente seus novos pais, que nesse momento cochilavam, como se tentasse ler nos seus traços o motivo real pelo qual a haviam escolhido. Balançou a cabeça tentando afastar aqueles pensamentos aterrorizantes e, por um instante, lembrou-se do tio Paulo. Era um voluntário que visitava


semanalmente as crianças, levando consigo muitos jogos e guloseimas. Lisa tinha um carinho especial por ele. Era, na verdade, o seu ideal de figura paterna. Quando soube da adoção, não disfarçou sua alegria: – Tô feliz por você, pequena. Você vai ser muito feliz, eu tenho certeza – seus olhos brilhavam. – Obedeça a seus pais e seja carinhosa com eles, viu? Vou sentir muita saudade do sorriso mais lindo desta casa. Aquele homem, de aparência meio rude, acariciavalhe os cabelos com uma ternura imensa. – Aqui não é a sua casa, é apenas um abrigo. – Sabe, tio Paulo, eu tô muito feliz, mas tô com medo, e é estranho porque não consigo imaginar como vai ser – ela esfregava as mãos enquanto falava e tinha o olhar voltado para baixo, demonstrando a insegurança que sentia. – Eu sei, pequena, eu sei. Mas vai ser melhor do que a gente pode imaginar, porque foi Papai do Céu quem preparou tudo isso. – Agora eu vou ser chique, né, tio Paulo? – brincou. – Você vai ser a italianinha mais linda de... de... – parou um pouco, franziu a testa e, sorrindo, disse: – Daquele lugar lá, que eu já esqueci o nome.

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17 – É Volterra, tio. Os dois riram muito e, num forte abraço, que dispensava palavras, puderam sentir e expressar o quanto um era caro para o outro. No aeroporto Ciampino, em Roma, a Sra. Agnese Rossi, mãe de Marco, esperava ansiosa pela chegada de sua netinha. Ela era uma típica mãe italiana: muito acolhedora, atenta e presente em tudo na vida do filho, especialmente tratando-se do filho único. A notícia da chegada de Lisa lhe trouxe grande alegria. Sabendo que não poderia ter netos biológicos, abriu largamente o coração de avó para receber a piccola Lisa, como passou a chamá-la. Quando finalmente chegaram em casa, todos se emocionaram ao perceberem os olhinhos de Lisa cheios de lágrimas. Não conseguia expressar com palavras a emoção de finalmente entrar numa casa que agora era sua. Não mais um dormitório com tantas camas iguais, mas um quarto decorado especialmente para ela; não mais um refeitório com várias mesas e dezenas de cadeiras, mas uma copa bem aconchegante; não mais uma cozinha industrial com panelas gigantes, mas uma cozinha planejada, com vasinhos de flores na janela. Era um sonho. Sua casa ficava na parte nova da cidade, fora dos muros que cercavam Volterra, o que permitia a Laura cul-


tivar um belo jardim. A rua tinha um ar muito pacato, como toda a cidade, e a vista das colinas toscanas parecia um cartão postal. Aos domingos, iam sempre à casa da nonna Agnese e era sempre um comer sem fim. Parecia que ela passava a semana inteira cozinhando para o domingo. Fazia sempre questão de dizer que ela mesma havia preparado la pasta, e que aquela receita era passada de geração em geração e, em breve, a piccola iria aprender os segredos da cozinha toscana. Lisa observava tudo, porque não conseguia entender a língua. Na maioria das vezes tinha vontade de rir. Parecia que as pessoas estavam num teatro de comédia, porque gesticulavam muito e falavam rápido demais, quase cantando. Laura estava sempre ao seu lado, traduzindo e explicando tudo, mas aos poucos começou a deixá-la mais tempo sozinha para que se esforçasse em compreender e a falar, só que não durava muito: minutos depois, lá estava Lisa fugindo de alguma situação embaraçosa ou pedindo sua ajuda para poder falar com alguém. Pouco a pouco foi vencendo a timidez. Quando passou a ter aulas particulares com a professora Ester, rapidinho aprendeu a se comunicar e já não dependia tanto de Laura. Sobretudo, o contato com as outras crianças lhe ajudou muito.

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19 Quando Laura percebeu que sua filha estava ficando independente, teve sua primeira crise. Para compensar, passou a falar com ela somente em português. Dizia que era para não esquecer a sua língua natal, mas, no fundo, queria mesmo poder oferecer algo que mais ninguém ali pudesse fazê-lo. Às vezes, aconteciam situações engraçadas e embaraçosas, porque Lisa repetia dezenas de vezes cada palavra nova que aprendia. Uma vez, ao voltar da escola, viu a salada de repolho que Laura havia feito para o almoço e exclamou: – Cavolo! Laura espantou-se: – Onde você aprendeu isso, Lisa? É feio falar assim. A pobre Lisa não compreendia que aquele não era apenas o nome do repolho, mas podia ser usado em outros contextos, era um palavrão. Como tinha falado com tanta ênfase, Laura a compreendeu mal, mas depois se desculpou e se explicou pela repreensão que lhe tinha feito. De vez em quando, Lisa se lembrava do orfanato, do tio Paulo e de algumas das crianças, inclusive das “irmãs malvadas”, mas quando alguém lhe perguntava se sentia muita saudade do Brasil, não hesitava em dizer que não, porque quase todas as suas lembranças se resumiam ao orfanato.


Passados os primeiros meses de adaptação, chegou o período letivo, que na Europa tem início no mês de setembro, com o final das férias de verão. Mãe e filha estavam ansiosas e muito agitadas. – Calma, Laura, é só o primeiro dia de aula, ela vai se sair bem. Não tem motivo para tanto nervosismo – o tom de voz de Marco já demonstrava impaciência. – Deixa de ser insensível, Marco. A menina não conhece quase ninguém. É uma realidade muito nova para ela... Qualquer mãe no meu lugar ficaria insegura – falava Laura, enquanto conferia pela décima vez o material escolar e o lanche da filha. – Ela não conhece ninguém porque você não deixa! Já está na hora de tirá-la do ninho – desabafou. – Ah, então é isso que você pensa?! Eu só estou tentando conhecer melhor a nossa filha e sou acusada dessa forma. Você está com ciúmes da Lisa? Isso é ridículo, Marco. Ele, que já não estava prestando atenção nas palavras dela, pegou seu casaco e dirigiu-se à porta. – Já chega, Laura. A gente conversa depois. Lisa estava encolhida no cantinho do sofá, de cabeça baixa, vendo toda a discussão que, a partir dali, passou

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21 a repetir-se com muita frequência. O seu sonho de uma família perfeita começou a ficar cada dia mais longe de realizar-se. Às vezes percebia que sua presença fazia com que os dois parassem de discutir, então não saía de perto deles por este motivo. Com o tempo, sua presença já não inibia as palavras agressivas. Um dia, após uma longa discussão com Laura, Marco aproximou-se dela e lhe disse: – Filha, sei que não estamos conseguindo ser os pais que você merece, mas nós queremos o melhor para você – tinha um olhar apreensivo e uma voz muito tensa. A este ponto, um vulcão adormecido despertou dentro dela. Era um misto de sentimentos liderados pelo medo. Não queria voltar para o orfanato, eles não podiam fazer isso. Já sentia a garganta seca e os lábios tremendo. Em poucos segundos, as lágrimas caíram abundantemente pelo seu rosto. – Calma, principessa – sussurrou, abraçando-a em seguida. – Calma. Não vai acontecer nada de ruim com você. Eu prometo. Ela tentou falar, mas não conseguiu, porque o soluço lhe impedia. Passou então os braços pelo pescoço dele e, com muito esforço, expressou o que tanto temia: – Por favor, pai, não me devolvam! – as palavras se misturaram às lagrimas e ao soluço.


Ele, calmamente, tomou-lhe o rostinho entre suas mãos e, fixando-lhe o olhar, disse: – Você não vai sair daqui. Ninguém vai nos separar. Esta é a sua casa e a sua família. Depois de lhe enxugar as lágrimas e de beijar seus olhinhos molhados, continuou: – Olha, a mamãe está doente e vai precisar viajar para se tratar, mas não vai demorar muito. Enquanto ela estiver fora, eu e você iremos para a casa da nonna Agnese, certo? Aquela notícia lhe deixou ainda mais insegura. – O que ela tem? Ela vai morrer? – Não, a mamma não vai morrer. Ela vai ficar bem e, logo, logo, tudo voltará a ser como antes. Você confia em mim? – Confio, mas... posso falar com ela? – Pode sim. Laura estava encolhida na cama, em posição fetal. Mantinha o rosto encoberto pelas mãos e chorava muito. Ao perceber que Lisa estava ali, tentou conter-se um pouco e a chamou para perto de si. Abraçando-lhe forte e chorando compulsivamente, entre um soluço e outro, repetia:

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23 – Perdoe-me, filha, perdoe-me... Aqueles foram dias estranhos, cheios de silêncio e mistério. Laura estava doente, mas ninguém ia visitá-la, ninguém falava sobre seu estado de saúde, além do mais, viajou sozinha para fazer um tratamento. Talvez quisessem poupar Lisa de tudo isso e não lhe deixavam saber das coisas. No entanto, não percebiam que assim lhe faziam sofrer muito mais, porque a insegurança lhe causava medo e ativava sua imaginação. Era um verdadeiro pesadelo. Duas semanas depois, Lisa e Marco retornaram para casa. Laura voltou no dia seguinte. Aquela casa, que antes era cheia de alegria e de música, tornou-se cinza e triste: poucas palavras, muitos remédios, raras brincadeiras. Marco passou a fazer a feira semanal e toda noite preparava o jantar. Às vezes, a nonna Agnese dava uma mãozinha com a faxina e com a cozinha. Laura estava sempre no quarto, Lisa mal conseguia vê-la, mas, cada vez que via, ficava impressionada com sua aparência. Em pouco tempo parecia ter perdido a metade do peso, as olheiras fundas e escuras eram como uma máscara em torno dos olhos e seu sorriso havia sumido dos lábios. A vida de Lisa tornou-se uma triste rotina: acordava às 6h. Às 7h15 entrava na escola, onde passava quase todo o dia. Às 16h30 retornava para casa, tomava banho,


fazia as tarefas e assistia TV até Marco voltar do trabalho. Às vezes, ele chegava bem tarde e Lisa ia para cama sem ter visto nenhum dos dois. Marco, porém, usava um código: um nó na ponta do lençol, para dizer-lhe que a amava e que estava presente em sua vida. Ele começou a usar este código quando ela, ainda nos primeiros meses de adaptação, chegou empolgada da aula porque havia entendido cada palavra da história que sua professora contou em classe:

“Um pai, numa reunião de pais, explicou, com seu jeito humilde, que não tinha tempo de falar com o filho, nem de vê-lo durante a semana. Quando ele saía para trabalhar era muito cedo e o filho ainda estava dormindo. Quando voltava do serviço, já muito tarde, o garoto não estava mais acordado. Explicou, também, que precisava do trabalho para prover o sustento da família, mas que isso o deixava angustiado, por não ter tempo para o filho. Ele tentava se redimir indo beijá-lo todas as noites quando chegava em casa. E para que o filho soubesse da sua presença, dava um nó na ponta do lençol que o cobria. Isso acontecia religiosamente todas as noites. Quando o filho acordava e via o nó no lençol, sabia que o pai tinha estado ali e o havia beijado. O nó era a comunicação entre

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25 eles. A diretora da escola ficou emocionada e surpresa quando constatou que o filho desse pai era um dos melhores alunos da escola”. Doze anos se passaram, Lisa já estava com dezoito anos, e o nó de carinho continuava fazendo parte das suas manhãs solitárias, transformando-as em dias ensolarados e cheios de cor. Sempre quis saber ao certo o que houve com Laura. Embora dissessem que se tratava de uma depressão, achava aquela história muito mal contada. Aquele era um assunto proibido, e todas as vezes que tentou esclarecer ou fazer algum tipo de comentário, recebeu repreensões. Certa vez, enquanto seus pais discutiam no quarto, pôde ouvir quando Marco falou que já havia perdoado todos os erros que Laura cometeu no passado. Isso a deixou com uma pulga atrás da orelha, mas nunca teve coragem de tocar no assunto. Embora um pouco tímida, Lisa era desinibida e conquistava o afeto das pessoas com facilidade. Marco a incentivava aprender tudo quanto fosse possível, só faltava colocá-la num foguete para explorar o espaço. Já Laura era mais protetora e tentava frear um pouco. Um completava o outro. Por Marco ser filho único e não ter sobrinhos, Lisa cresceu cercada por adultos e via nisso muita vantagem, porque


aprendia bastante com eles: do bom e do ruim. Foi muito estimulada e parecia possuir uma sede enorme de saber. Às vezes, Laura a repreendia dizendo que, antes do saber, era necessário buscar a humildade, para não cair na soberba. Lembrava sempre destas palavras, mas não entendia bem como essa coisa funcionava. Humildade parecia ser coisa para padres e freiras. Ela queria vencer, fazer algo importante, grande, sentia como uma força dentro de si querendo sair para conquistar as alturas. Às vezes o mundo parecia pequeno, sentia-se quase sufocada. Talvez por isso a leitura e a arte tinham um valor tão grande em sua vida. Lisa sentia-se em vantagem em relação aos outros jovens da sua turma pelo fato de pertencer, por origem, a um povo tão acolhedor como é o povo brasileiro e por ter sido educada num dos maiores centros culturais da Europa, como é a Itália. Ela gostava da vida, gostava de sorrir e de fazer sorrir. Sua simpatia e espontaneidade foram algumas vezes mal interpretadas, mas não se deixava levar pelas críticas. Neste sentido, Laura fez um excelente trabalho. Desejava descobrir o sentido da sua vida para fazer dela algo grande. Sentia que não tinha nascido para coisas pequenas, por isso queria gastar a vida por grandes ideais. Talvez revolucionar o mundo, mas aquele tipo de revolução que traz consigo algo verdadeiramente bom e significativo.

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27 Admirava muito os artistas e os santos, considerava-os os maiores revolucionários da história, porque acrescentaram algo de positivo no mundo e no coração dos homens. Para ela, eram os verdadeiros revolucionários da história da humanidade. Os artistas, porque transformavam em beleza o que não se pode traduzir com palavras, e a beleza reflete a verdade, que se impõe por si mesma; os santos, porque revolucionavam convidando os homens do seu tempo e dos tempos futuros a refletir sobre o essencial. Eles morreram pelo grande ideal pelo qual viveram. Mas o caminho dos santos não fazia parte dos seus interesses pessoais. Embora educada na fé católica, Lisa não podia ser considerada uma pessoa religiosa. Também não era ateia ou agnóstica. Gostava da possibilidade da existência de Deus, porque viver com a certeza da sua ausência devia ser uma coisa muito triste, deixaria o homem abandonado ao seu próprio arbítrio, estaria fadado a cair no vazio, exatamente pela falta de um porto seguro onde pudesse apoiar-se e construir seus ideais.



Giulia capítulo 2

Uma das coisas que mais lhe encantava na cidade era o ar romântico e, ao mesmo tempo, misterioso. Volterra possui uma beleza única, em que a mesma paisagem se cobre de encantos diferentes a cada estação. É uma cidade de pedra: nas estradas, nas casas, nas torres, no muro que a cerca e até mesmo no seu principal artesanato, o alabastro. Desde a época etrusca, seus artesãos já realizavam obras estupendas com aquela pedra transparente.


Na maior parte do ano, a cidade vê-se cheia de turistas, vindos de várias partes do mundo, que desejam admirar sua beleza e provar dos seus encantos. Embora não oferecendo tantas possibilidades de lazer como suas vizinhas, Cecina, Firenze, Siena, é legal ver os vários grupos que se formam nos principais points da cidade, como a Piazza dei Priori e a Piazza San Giovanni. Os cinemas e as pizzarias estão sempre cheias nos finais de semana. Como em toda a Toscana, ali se come muito bem, e, andando pelas ruelas estreitas da cidade, pode-se sentir o perfume dos aromas particulares da gastronomia daquela terra. Lisa estudava bioquímica na Universidade de Pisa, e aquele era o último dia de aula do primeiro ano. Estava exausta. Os exames de final de semestre haviam consumido quase todas as suas forças. Mas estava feliz. Ao voltar para casa, como sempre fazia, resolveu passar na livraria do Sr. Antonio Palazzi. Era quase um ritual que se repetia ao menos uma vez por semana. Uma grande paixão na sua vida eram os livros. Amava ler. Possuía uma modesta biblioteca no seu quarto, se assim se podia chamar as poucas prateleiras que contavam com 237 volumes, incluindo as revistas em quadrinhos. Todos sabiam que o presente que mais lhe agradava era um bom livro ou bônus de alguma livraria. Mas esta não era sua única paixão.

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31 – Ciao, Lisa. Que surpresa, você por aqui – brincou. – Ciao, Sr. Antonio. Tem alguma novidade? Seus olhos percorriam todas as prateleiras à procura de algo que ainda não tivesse visto. Era impressionante como conhecia bem cada centímetro daquela loja e como percebia até mesmo quando um livro era trocado de lugar. – Ora, ora, um bebê que gosta de ler. Isso é raro nos dias de hoje. Virou-se para ver quem estava falando e, para sua surpresa, lá estava ele, Angelo Bianchi, em carne e osso. Era a primeira vez que o via tão de perto. Ao contrário do que diziam, era um tipo muito charmoso. Devia ter mais ou menos 60 anos. Tinha cabelos prateados e usava um par de óculos com armação leve e moderna que, em conjunto com os cabelos grisalhos e o rosto quadrado, davam-lhe um ar intelectual. Tratavase da figura mais misteriosa da cidade. Já havia escutado centenas de histórias, por vezes até contraditórias, a seu respeito. Mas eis que agora ele estava ali, na sua frente e, ainda por cima, dirigindo-lhe a palavra! – Está enganado, amigo, esta é a jovem de quem lhe falei. Ela devora todos os livros que entram aqui. Aliás, é a minha cliente mais fiel.


A última frase era quase um clássico na boca do Sr. Antonio. – Fico, então, lisonjeado em conhecê-la – falou, inclinando-se diante dela com um gesto de reverência. Depois, voltando-se para o amigo, disse: – Mas você esqueceu-se de falar da sua beleza encantadora. Lisa repreendeu os dois com o olhar. Teve vontade de ir embora, mas aquela era uma oportunidade ímpar, era a primeira vez que via “o mito da cidade”. “Vittoria não vai acreditar!”, pensou. – Infelizmente não tenho novidades, Lisa – disse Sr. Antonio, que continuou a conversa dirigindo-se ao amigo: – Você poderia emprestar algumas das suas obras à minha amiga. É como se o fizesse a mim. O Sr. Bianchi sorriu e, fitando-a, percorreu com olhar malicioso o seu corpo de alto a baixo. Depois disse: – Bem...depende da recompensa... Antonio o repreendeu imediatamente: – Lisa é como uma filha para mim! – Scusa.

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33 Lisa percebeu que Antonio o repreendeu, mas não esperou para ouvir mais nada. Sem despedir-se, saiu quase correndo. Enquanto andava, sentia revolver-se dentro de si aquele antigo vulcão. Não conseguia imaginar o que aconteceria se algum dia ele entrasse em erupção. Às vezes odiava ter a cor, os cabelos, os olhos e o corpo que tinha. Era imediatamente identificada como latina e, com isso, julgada como “fácil”. Esta fama das mulheres brasileiras na Europa lhe causou não poucos constrangimentos na escola. Laura lhe advertiu desde cedo: “Eles pensam que mulher brasileira é sinônimo de ‘mulher fácil’, mas não deixe que digam isso de você. Mostre que a beleza que você tem aqui – apontava para seu coração – e aqui – apontando para sua cabeça – são mais encantadoras que sua beleza física, porque esta passa”. Seguiu em direção à Porta San Francesco2, porque seu carro estava estacionado ali próximo. Um grito vindo do outro lado da rua chamou sua atenção. Virou-se e viu uma mulher ruiva que vociferava contra um homem que saía do estacionamento num Mercedes preto e que fingia não ser o alvo das ofensas. Ficou observando a cena, ten2 A cidade de Volterra é cercada por uma imponente muralha do século XII e dotada de oito portas que lhe dão acesso. A mais antiga e famosa é a Porta all’Arco, antiga porta etrusca que remonta ao século V a.C.. A Porta San Francesco é a única que conserva traços de afrescos que, ao que sabemos, eram presentes em todas as portas que dão acesso à cidade.


tando não ser muito indiscreta, até que viu Vittoria, sua melhor amiga, correndo ao encontro da mulher ruiva e tentando acalmá-la. A mulher, que agora reconhecia ser Anna, mãe da Vittoria, saiu correndo, gritando atrás do carro, descontrolada. Lisa foi ao encontro da amiga. – O que tá acontecendo, Vika? – O de sempre... A mamma diz ter certeza que aquele homem é um dos culpados pela morte da Giulia. E como faltam apenas dois dias para a Sexta-Feira Santa, ela está com medo de que façam o mesmo com outra garota. A lembrança da tragédia que aconteceu a menos de um ano pesou como chumbo em sua memória. – Eu acho que sua mãe tem razão. Eles vão fazer tudo de novo e, como sempre, ninguém vai tentar impedir, porque é melhor não se meter. Todo mundo finge que não sabe de nada. – Todos pensam que a mamma é uma histérica que não educou bem a filha e que agora fica inventando uma história mirabolante porque não consegue aceitar seu fracasso como mãe. Isso dói! Ninguém entende que ela não está pedindo a filha de volta... A Giulia está morta. Ela só quer dar um basta nos crimes que acontecem nesses rituais satânicos, porque ninguém faz nada, ninguém quer se comprometer!

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35 Desde que Giulia morreu, Vika adquiriu um ar de indignação. Ela também se transformou um pouco; na verdade, muito. Em casa não tocavam no assunto para não mexer na ferida que ainda sangrava, então, ela procurou outras formas de “alívio” para sua dor. Eram visíveis a tristeza e a revolta em seu olhar. Lisa se sentia impotente. Desejava fazer alguma coisa, mas... como? Ficou observando a amiga que saiu correndo ao encontro da mãe e recordando o drama que viveram quando o corpo da Giulia foi encontrado sem vida, na lavanderia da casa. Era comum ouvir falar de rituais satânicos, de cultos macabros, de sacrifícios e até de suicídio entre os adeptos dessas seitas, mas é diferente quando acontece com alguém que você conhece e que tinha valores contrários àqueles. Num espaço de quatro meses apenas, Giulia entrou neste mundo sombrio e acabou tirando a própria vida como uma forma de fugir dele. Ao lado do seu corpo sem vida, havia uma seringa e uma carta para a família. Foi assustador o resultado da autópsia: tiopentato de sódio, que é uma substância usada em anestesia como depressor do sistema nervoso central; brometo de pancurônio, que paralisa o diafragma e os pulmões; e cloreto de potássio, a fim de parar o coração. Ou seja, uma combinação precisa, a mesma usada nas execuções dos condenados à pena de


morte nos Estados Unidos. Quem lhe fornecera a injeção letal? Ela sabia o que estava fazendo? Preocupada com o que acabara de ver, chegou em casa. Laura logo saiu da cozinha com alguns aspargos na mão, pois estava terminando de preparar o jantar. Como era de costume, deu um beijo na testa da filha. – Ciao, filha. Onde você estava que não atendeu minhas ligações? Estava começando a me preocupar. – Desculpa, mamma, fui dar uma voltinha para ver se encontrava algum príncipe encantado, mas só achei sapinhos – disse ela jogando-se no sofá com a mão esquerda sobre o coração e a direita estendida, com se estivesse recitando uma peça teatral. Entrando na cena, Laura ajoelhou-se diante dela e, pegando sua mão direita, falou: – Talvez um desses sapinhos seja um príncipe que foi enfeitiçado e esteja à espera do beijo da bela princesa, que o libertará do feitiço cruel – e beijou-lhe a mão, esforçando-se para conter o riso. – Já tentei esta tática algumas vezes, cara mestra, mas, no fim, descobri que todos os sapos não passavam de sapos – confessou, fazendo uma cara de nojo.

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37 – Ah, é? E eu aqui, inocente, achando que a minha filhinha estava protegida no castelo, à espera do príncipe encantado. Enquanto isso você estava pelos pântanos fazendo experiências com sapinhos? – e já sem conseguir conter o riso, sussurrou: – Menos mal que todos os sapos tenham os braços curtos. – Você está enganada, mamma, os bracinhos deles são bem longos! – saiu correndo para seu quarto com um sorriso provocador. Esperou que Laura a seguisse e continuasse a brincadeira, mas, em vez disso, o mais completo silêncio. Abriu a porta de mansinho e não a viu no corredor. Foi até a sala e nada. Dirigiu-se até a cozinha e, antes de aproximar-se do balcão, ouviu a gargalhada da mãe. – Não tô achando a menor graça – começou a rir de si mesma. – Eu conheço você, principessa – e pondo as mãos sobre o coração, com um ar de apaixonada, completou: – Sei que ainda sonha com o principe azzurro. A porta se abriu. Era Marco que chegava do trabalho. – Boa noite, queridas. Lá do portão dava para ouvir a festa que vocês estão fazendo. Posso participar também?


As duas se olharam e caíram na gargalhada e, como se tivessem ensaiado, responderam ao mesmo tempo: – Claro que não! – Ok. Então vou tomar um banho rapidinho antes do jantar. Enquanto Marco saía da sala, Laura segurou na mão de Lisa e a conduziu ao sofá. Já não estava mais rindo. – Agora me diga a verdade. O que aconteceu? Tem uma interrogação enorme na sua testa, que você nem consegue disfarçar. Quer conversar sobre isso? Era impressionante como não conseguia esconder nada dela. – Não foi nada comigo. Eu vi a Sra. Anna Benfatti, e ela estava muito temerosa de que na próxima sexta-feira se repita o que aconteceu no ano passado. Sei lá, mamma, sinto que devo fazer alguma coisa... – Infelizmente a filha dela não foi a primeira nem será a última. – É isso que eu não entendo. Todo mundo sabe que tem uma seita satânica bem debaixo do nosso nariz, que abusa de adolescentes e de crianças nos seus rituais macabros,

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39 mas ninguém faz nada! As pessoas fingem que não sabem que o suicídio da Giulia e de outras como ela não foi uma opção, mas uma tentativa de fuga, um pedido de socorro... – Você sabe que não dá para se meter com essa gente, Lisa. Eles são perigosos. E nós já conversamos sobre isso! Laura fez um sinal de basta com a mão direita e foi andando em direção à cozinha. – Você já parou para pensar que a próxima vítima deles pode ser sua filha? – provocou. Realmente, estava a fim de continuar aquela conversa. – O que é isso agora, Lisa? Quer deixar sua mãe em pânico, é?! – sua voz já começava a demonstrar impaciência. – Não, mamma. Só acho que enquanto todo mundo silencia e finge não ver, eles se sentem mais livres e seguros para agir. Acho que alguém tem que fazer alguma coisa. – Só que esse alguém não será nem eu, nem você. Ora! – virando-lhe as costas, entrou na cozinha, querendo por um ponto final naquela conversa. Lisa insistiu. – Eu não paro de pensar que poderia fazer alguma coisa...


Antes que continuasse, Laura voltou com um brilho ameaçador nos olhos. – Você ainda está pensando naquele moleque, não é, dona Lisa? – O Mike não tem nada a ver com a nossa conversa! – falou irritada com o rumo que a discussão estava tomando. Logo apressou-se em pegar o controle remoto e começou a passar aleatoriamente os canais na TV. – O Mike não tem nada a ver com a nossa conversa, mamma, o problema dele é outro. – Eu sei qual é o problema dele... Eu sei bem. E é melhor encerrar esta conversa aqui, mocinha. Não quero mais ouvir falar de seitas e muito menos de Mike, ouviu? – sem esperar qualquer reação da filha, entrou de novo na cozinha e fechou a porta. Percebendo o clima meio tenso entre as duas, Marco passou o jantar tentando quebrar o gelo, como sempre fazia quando aconteciam os atritos. Geralmente conseguia. Dessa vez não foi diferente, apenas mais difícil. Lisa passou a noite pensando numa forma de denunciar e desmascarar aquela seita, alguma forma de expor suas práticas aos olhos de todos para ver se alguém reagia contra eles, mas precisava descobrir um ponto fraco, o “calcanhar de Aquiles” deles, e isso não era fácil. Passou

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41 horas tentando bolar um plano, mas todas as suas ideias apresentavam falhas. Lembrou-se de Mike. Seu coração acelerou. Após a discussão com Laura, fez um esforço tremendo para não pensar nele. No fundo, não queria acreditar que ele pudesse estar envolvido com aquilo. Quando Giulia desapareceu, na Sexta-Feira Santa do ano anterior, alguns meninos disseram que a tinham visto com Mike, mas ele negou. Porém, o número de Giulia estava entre as chamadas recebidas no celular dele, naquele dia. Somente no domingo seguinte ela reapareceu numa estradinha perto de S. Gimignano, a mais ou menos 30 quilômetros de Volterra. Foi encontrada trajando outra roupa, ao contrário do dia em que desaparecera. Estava com calça e jaqueta pretas, tinha uma maquiagem carregada, com uma pintura de raios na proximidade dos olhos, idêntica às garotas que fazem parte de grupos satânicos. Mas ela não era assim! A quem a interrogasse, não emitia uma palavra sequer. Sua mãe quase enlouqueceu e, arrastando-a pelos cabelos (li-te-ral-men-te!), forçou-a a fazer xixi num recipiente de laboratório para analisar, mas não encontrou vestígio algum de drogas. A mesma coisa para os exames de sangue. Com o passar dos meses, Giulia foi se tornando agressiva a ponto de causar três traumatismos cranianos na mãe. Diziam que estava possuída por espíritos malignos. Foram meses terríveis.


Anna uniu-se a outros pais que sofriam a mesma dor e começou a investigar quem estava por trás daqueles atos. Contratou detetives e advogados, visto que a polícia não dava crédito às suas denúncias. Ela, então, com base em suas investigações, passou a afirmar que os “cabeças” daquela seita eram homens “intocáveis”, do alto escalão da sociedade. E era exatamente por isso que todos os processos naufragavam no meio do caminho. Afirmava, ainda, que os jovens não passavam de iscas para aumentar as vendas das drogas, a lavagem de dinheiro e outras coisas sujas que eles comandavam. Muitos jovens, assim como a Giulia, por pressão, pelo vazio existencial ou pelas alucinações, chegavam ao suicídio. Lisa não conseguia esquecer tudo o que presenciou, especialmente como sua amiga mudou de um dia para o outro. Parecia uma estranha. Aos poucos, todas as coisas que costumavam fazer juntas passaram a não ter mais sentido. A Sra. Anna dizia que o laboratório onde Mike trabalhava pertencia a membros da seita e que lá eram produzidas substâncias alucinógenas distribuídas em festas e boates, e outras eram usadas somente nos ritos e experiências macabras que eles faziam. Mike nunca se defendeu das acusações, dizia que ela precisava confiar nele e que seria incapaz de lhe fazer al-

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43 gum mal. Porém, na véspera do dia das bruxas, sem nunca ter entendido o porquê, ele espalhou fotos e vídeos falsos nas redes sociais. Foi o pior período de sua vida. Por onde passava percebia os olhares de acusação ou de malícia. Passou a receber telefonemas e bilhetes de rapazes e até de homens casados com convites obscenos. Um verdadeiro pesadelo! Seus pais chegaram ao conhecimento de tudo, foi horrível! Quase perdeu a confiança deles. Sofreu muito por causa das falsas acusações. É muito difícil suportar a dor moral, sobretudo quando se é inocente. A dor era agravada pelo fato de o agressor ser a pessoa que ela amava e por quem acreditava também ser amada. Depois de tudo isso, começou a acreditar que ele estivesse envolvido de alguma maneira com aquela seita. Contudo, naquele exato momento, Mike era a única via para chegar perto da verdade. Lembrou-se que há algum tempo ele lhe havia escrito um e-mail e enviado uma mensagem dando-lhe seu novo número. Embora tivesse marcado o contato dele como spam, de vez em quando não resistia e lia alguma coisa. Já tinham se passado cinco meses, mas rapidinho encontrou o que procurava:

Ainda te amo. Precisamos conversar. Me liga (6056778) M.P.


Criou coragem e enviou-lhe um SMS:

Encontre-me 5h, teatro romano. L.R. Na velocidade de um raio, chegou a resposta: Ok. No dia seguinte, Quinta-Feira Santa, Marco e Laura partiram em viagem para Veneza. Já fazia algum tempo que planejavam passar a Páscoa lá, seria uma espécie de segunda lua de mel. A nonna Agnese viria no final da tarde e lhe faria companhia até o retorno deles. Claro que antes da partida “leu-se” a tradicional lista de recomendações e, desta vez, com uma pauta a mais: – Me prometa que não preciso me preocupar com relação à conversa que tivemos ontem à noite! Lisa ficou numa situação difícil: se prometesse, estaria mentindo, não prometendo, faria com que Laura desistisse da viagem e causaria uma guerra na família. O que fazer? Então pensou da seguinte maneira: “Como não farei nada que me exponha ao perigo, nesse caso, não tem nada com o que se preocupar...” – Pode viajar tranquila, mamma. Eu estarei bem e não tem nada com o que se preocupar.

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45 A família Rossi tinha um acordo que não poderia ser quebrado por nada: nunca mentir. A regra da casa era dizer sempre a verdade. Baseada neste acordo, Lisa tentou algumas vezes perguntar sobre o passado, aí descobriu que esta era a outra regra: nunca perguntar sobre o que não pode ser revelado. Então, começou também a fazer algumas regras particulares, em que a verdade podia variar de acordo com o ponto de vista. E eles partiram. Era tudo o que precisava. Agora teria o terreno limpo para agir. A floricultura da Sra. Anna ficava próxima à igreja San Michele, e Vittoria ajudava a mãe nos horários livres. Lisa entrou e a viu atendendo a um cliente. Ficou olhando as flores enquanto esperava. As rosas amarelas lhe faziam lembrar o Mike: ele sempre aparecia com um buquê nas mãos. – Ciao, Vika. E aí, como está sua mãe? – Mais tensa a cada hora que passa. Acho que a única tranquilidade que ela tem é saber que eles nunca me pegarão... – e abaixando o tom de voz, completou: – É uma das vantagens de não ser mais virgem. – Ai, Vika! Não brinca com coisa séria.


– Você é muito boba, Lisa. Sempre fica sem graça quando falo em sexo. Mas não se preocupe porque essa vergonha passa. Eu também era assim, até descobrir o lado bom da vida. – Va bene, va bene. Agora para de falar besteira e me escuta: bolei um plano e preciso da sua ajuda – olhou ao redor para se certificar que ninguém as escutava. – Acho que podemos sabotar a seita no ritual que provavelmente farão amanhã. Vittoria arregalou os olhos, pôs as mãos na boca e, mesmo assim, quase deu um grito. – Você ficou maluca?! Tem noção do que isso significa?! Eles nos matam brincando se apenas desconfiarem que estamos pensando numa asneira dessa. – Calma, Vika, deixa de ser medrosa! Que drama! Eu já pensei em tudo. Acho que pode dar certo. – Está me passando muita segurança esse seu achismo. Você sempre apronta e, na maioria das vezes, sobra pra mim. Já sei como é... – Mas desta vez é diferente, confie em mim. – E por que você quer fazer isso agora? Bateu com a cabeça no muro e começou a achar que faz parte da Liga da Justiça, foi? – ironizou Vika.

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47 – Liga da Justiça?! Essa é demais, Vika! – não conteve o riso. –Tô falando sério, não aguento mais ser expectadora desses massacres. Além disso, acho que a Giulia merece o nosso esforço. – Ué! Você que sempre me falou “justiça e não vingança”, agora está mudando a casaca? Não tô entendendo... – Não estou procurando vingança, quero a verdade. – E se não funcionar? – Pelo menos, tentamos. – E se nos matarem, “pelo menos tentamos” também? – Por favor, Vika. Vai me deixar sozinha nessa? Vittoria apertou os lábios, pensativa. Apesar do receio, admirava a coragem da amiga. – E o que foi que você planejou? Lisa quase pulou no seu pescoço e começou a enchê-la de beijos. Vittoria tentava se desvencilhar dela. – Saia, saia, eu ainda não aceitei. – Primeiro vou encontrar com Mike hoje à tarde. – O quê?! Você vai ter coragem?! E o que espera que ele faça, além de lhe tirar o fôlego? – seu tom era de ironia.


– Meu Deus! Não é nada disso que você está pensando! – puxou a amiga pelo braço para fora da loja, pois já estavam chamando a atenção dos clientes. – Preste atenção: segundo o que sua mãe descobriu, o Mike provavelmente trabalha no laboratório de um dos chefes da seita e seria ele o encarregado de preparar a vítima usada nos rituais, certo? – Ai, meu Deus! Já sinto cheiro de confusão. Olha lá o que você vai fazer, Lisa. – Calma! Você é muito medrosa. Eu só vou sondar o terreno e se eu perceber que ele ainda gosta de mim, aí passo para a segunda etapa. – Então já pode pular essa etapa, porque todo mundo sabe que o Mike baba por você. – Eu tenho as minhas dúvidas... E para que o plano dê certo, preciso ter certeza disso. Na verdade, nem sei como é que vou conseguir encará-lo, só de pensar, sinto raiva... Por alguns segundos vieram-lhe à mente todas as humilhações pelas quais passou. Nunca entendeu o motivo, menos ainda quando ele disse que foi por amor. – É melhor esquecer essa loucura, amiga. Você vai se expor demais e vai acabar se machucando mais ainda.

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49 – Já está feito. Agora temos que ir até o fim. Eu vou encontrá-lo hoje à tarde e, se tudo correr bem, vou convidá-lo pra jantar conosco amanhã, só que temos que despistar a nonna. – Meu Deus, você pirou de vez! – passava as mãos pelos cabelos e balançava a cabeça, com ar de indignação. – Não vai dar certo. Lisa segurou-lhe as mãos para que prestasse atenção no que falava. – Se ele topar, vou precisar de você lá, comigo. – E depois vamos fazer o quê? – Vamos colocar um sonífero na bebida para impedir que ele vá ao ritual, entendeu? – em seus lábios despontava um sorriso enigmático. – Vamos estragar a festinha, dessa vez. – Não sei, não... Vika olhava para os lados, passava a mão pelo rosto, coçava o braço, franzia a testa, tudo isso demonstrando a insegurança que sentia diante de tal proposta. – Confie em mim – disse Lisa tranquilamente. – Eu não confio é no que eles podem fazer com nós duas quando descobrirem tudo.


– Você nem é medrosa desse jeito! – estendeu a mão, aguardando a adesão da amiga. – E aí, tá dentro ou não? – Por Giulia! – disseram quase em uníssono.

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