Yellow bananas

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YELLOW BANANA'S Douglas Eralldo

2017


Esta é uma obra de ficção (será?) e qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência (conta outra).

Caso termine gostando do livro, agradeço muito reviews e críticas. E se gostar muito mesmo, ficaria feliz se contasse aos seus amigos. Até dou 10% dos meus royalties pra quem me indicar pras megas-super-biônicas editoras.

Do mesmo modo, caso eu seja preso, por gentileza, derrubem os muros e as grades. Acima de tudo, não leve esta obra muito a sério – literariamente falando – é apenas uma sátira, Baby!

Xingamentos: douglaseralldo@gmail.com


1. Bilhete Premiado

Milton Schmidt trabalhava há pouco mais de oito meses na maior companhia telefônica de Brisal, a alô!, e pelas estatísticas ele teria pouco mais de quatro meses de emprego. Era um homem um tanto tosco, já por volta dos trinta anos cujo único interesse eram filmes de super-heróis e sites pornográficos na internet. Aliás, foi seu pendor ao vouyerismo que levou-o a prática de escutar as conversas alheias. Trabalhava no setor de banco de dados da companhia e diariamente tinha acesso a milhares de diálogos, dos mais inocentes a propostas indecorosas. Mas ele não começara aquilo por ser um cara mal ou um péssimo profissional. Foram os desencantos do amor que o levaram ao seu pequeno vício. Uns três meses depois que entrara para a companhia, Melissa, a garota mais bonita com a qual já ficara, dera-lhe um passa fora sem prestar-lhe grandes justificativas. Com a certeza de que fora chifrado por algum dos playboizinhos da faculdade onde a garota estudava, ele inadvertidamente começou a acessar os registros de chamadas do seu aparelho de telefone celular. Contudo sua breve carreira como Hércule Poirot durou pouco tempo, e para sua surpresa descobrira que Melissa encantara-se perdidamente pelo sumo de xoxota. Conforme foi capaz de listar, ela havia trepado com umas quatro ou cinco meninas antes e depois que ela lhe dera um pontapé na bunda. Convicto de que estava diante de uma concorrência desleal, Milton resolveu esquecer a encantadora Melissa. Contudo, o hábito de mexericar as ligações alheias permanecera. Como agia com discrição, sem muitos exageros, a companhia jamais desconfiou, ou então nunca deu importância ao funcionário bisbilhoteiro que em média, uma vez por dia conseguia burlar o sistema de operação e acessar uma e outra ligação feita de algum ponto do país por algum os milhões de clientes da operadora. Nesse meio tempo ouvira filhos ligando para mães e avós, pedindo uma graninha. Esse, aliás, era um dos motivos mais recorrentes segundo observava. Em alguns casos flagrou adultérios melosos e ligações pragmáticas entre marido e mulher. Enquanto


ouvia alguns pobres e diabos e inocentes sussurrarem ao aparelho como se fossem criminosos condenados, ouvia também presidiários ligar para estranhos e lhes vender qualquer merda com a mesma convicção e autoconfiança daqueles caras do canal de televisão que vendiam qualquer merda eletrônica na madrugada. Pensou em parar uma única vez quando ouvira um destes assassinos de aluguel chamar “o chefe” e colocá-lo a ouvir enquanto disparava sete tiros no desafeto. Daquela vez ficara uns dois dias sem bisbilhotar o que não devia, absorto em seus medos e seus dilemas morais. Mas no terceiro dia após o fato, lá estava ele de novo, ouvindo conversas alheias. Então é isso que nos leva àquela sexta-feira rançosa com um relógio de ponteiros mais empacados que burro com excesso de carga. Naquele dia em especial Milton Schmidt estava apenas pelo final do expediente. Com suas metas tradicionalmente superadas sempre entre quinze e vinte por cento, ele desejava apenas uma cerveja gelada, um banho e depois balada. Para passar o maldito tempo restava-lhe apenas dar sua vasculhada básica pelo quê as pessoas vinham fofoqueando pelo celular. Mal sabia ele que sua vida estava prestes a mudar, e que logo aquele empregado medíocre se tornaria um dos homens mais procurados do país. Porém, isso é o que acompanharemos a seguir, pois a vida de Milton começava a mudar ao clique de um comando.

***

Desde que começara a bisbilhotar a vida dos outros no banco de dados da companhia, Milton, exceto a motivação inicial, preferia ouvir a conversa de estranhos. No fundo ele não tinha certeza como lidaria com as informações privilegiadas sobre o que queriam ou pensavam as pessoas próximas. “Nem pensar ouvir o que mamãe fala de mim” pensava ele toda vez que aleatoriamente escolhia um prefixo para vasculhar conversas. Como fizera naquela sexta-feira. Um clique, um comando, um número selecionado. Play. Era uma conversa estranha aquela que ouvia. Olhou para os dados do registro e curiosamente constatou que era um áudio recente, coisa de uma hora e meia atrás. Pela primeira vez ele acessava um áudio do qual reconhecia a voz, também pudera, aquela era uma voz que não saía da televisão, geralmente com más notícias ou péssimas ideias. Era um áudio curto e que certamente, ele jamais poderia ter acesso, ao menos não num país sério e preocupado com segurança nacional. Ele repetiu o áudio novamente. Não havia dúvida, era ele. Contudo, o diálogo não fazia qualquer sentido. Cuidadoso, Milton olhou para os gabinetes próximos ao seu. Sabia que eram


operadores lerdos aqueles do seu turno, então confirmou o que desconfiava, estavam tão compenetrados que não perceberiam que ele burlava um dos códigos do trabalho. Retirou seu smartphone rapidamente da mochila e acessou a internet. O Twitter estava em polvorosa, os portais só falavam daquilo. Milton rodou o áudio mais umas duas vezes. Não tinha dúvidas do que pensar, e para si mesmo falou: “puta que pariu, isso daqui é um bilhete premiado”.


2. Transcrição de áudio #1

Presidente: Oi. Senador Antero: Presidente, é o Antero. Tens visto as notícias. Presidente: Claro, Antero. Lamentável, mas, enfim, é uma agenda positiva que se abre agora. Senador Antero: Verdade, presidente. Mande meus cumprimentos ao ministro Pastilhas. Acho que agora, enfim o nosso projeto se aproxima de ser concretizado. Presidente: Cumprimentá-lo-ei senador. Senador Antero: Enfim, presidente, liguei apenas para falar do passarinho. Pobrezinho, mas a natureza é assim, às vezes o que têm asas, ao invés de voar, cai. Presidente: Pois é senador, esse povo me subestima. Lembro-me quando ainda era um molecote no interior. Meu pai tinha uma fazenda... Minha alegria era pegar o estilingue, se bem que para mim era bodoque… Senador Antero: Na minha terra era funda, presidente… Presidente: Então. Têm muitos nomes, mas isso não é o que importa, senador, o que eu queria lhe contar é que… o amigo faz ideia? Senador Antero: Desconfio, mas diga Micael. Presidente: Eu era muito bom de mira Senador Antero. Os passarinhos viviam caindo na fazenda. (Risos)


3. Operação Snowden

Tinha sido difícil para Milton Schmidt pegar no sono naquela noite de sexta para sábado. A adrenalina pulsava em seu sangue e a excitação promovida pelas amplas possibilidades de um novo futuro injetava-lhe uma energia equivalente a mil xícaras de café forte. Somado às expectativas, o medo de no dia seguinte não ter mais acesso, porém perturbava-o imensamente. Como todo pobre, temia ter visto seu cavalo passar encilhado, contudo ele não estava preparado para agir naquele dia específico. Depois que saiu do trabalho, abortou o happy hour tradicional indo direto para casa, um quartinho de uma pousada que pagava próximo ao centro da cidade. Ligou a televisão zapeando os canais de notícias que repercutiam a morte de um dos juízes da Corte Máxima Nacional. Havia no tom de todos os jornalistas certos ares de incredulidade com a notícia, enquanto nas redes sociais milhares de teorias conspiratórias pululavam de post em post. Enquanto lia e assistia tudo isso, o poder de ser o mais próximo da verdade provocava reações interessantes em Milton. Ansioso pelo dia seguinte e com a intenção de estudar seus planos, o operador de banco de dados baixou o recente filme Snowden. Ainda que política nunca tivesse tido o interesse de Milton, aventuras nerds com certeza despertavam seus sonhos infantis. Ele sabia bem a história do ex-espião americano da NSA e ficou vidrado no filme buscando ideias de como tornar-se ele mesmo um novo Snowden, ainda que seus objetivos fossem diferentes dos do americano. Ser herói era algo que nunca estivera nos desejos de Milton, na verdade, tinha certa predileção pelos vilões dos quadrinhos, geralmente mais safos e espertos que os caras com capas e máscaras. Além disso, nunca fora capaz de confiar em que botava as cuecas por cima das calças. Quando terminou de assistir ao filme, por algum momento cobrou-se de não ter um cubo mágico, uma verdadeira heresia para um cara com gostos como o dele. Na casa na mãe ainda guardava uns dois ou três, recordou-se. Desferiu ainda uns dois murros na poltrona do sofá ao se lembrar de que não tinha um cartão de memória decente, tampouco um pendrive com boa capacidade de armazenamento. “Porra, vai ter que servir” disse para ninguém, socando o pouco discreto HD portátil na mochila. Era o que tinha em mãos visto que o salário miserável da


companhia não lhe possibilitava muitas aquisições de última ponta no que se dizia respeito a suplementos de tecnologia. Com tudo isso fervilhando em sua cabeça, quando finalmente dormiu, quarenta e três minutos depois foi despertado pelo seu smartphone tocando a Marcha Imperial. Levantou-se imediadamente.

***

Não fosse o sentimento natural dos culpados, aquele seria um sábado como qualquer outro. Expediente reduzido uma porrada de operações a realizar. Mas por saber o que estava prestes a fazer, Milton Schmidt ficara desconfiado a tal ponto que tinha sensação que todos olhavam-no de uma forma diferente. Por isso naquela manhã ele se mostrava evasivo, desconfiado, alguém até poderia dizer, suspeito. Levou uns bons vinte minutos para que ele pudesse se tranquilizar e imprimir um ritmo de trabalho que lhe desse margem para fazer o que precisava fazer. Ele começou efetivamente a preparar-se para a grande jornada depois de repetir uma dezena de vezes “isso aqui não é a porra da NSA”. De fato não era, e ainda que a Companhia alô! Tivesse lá seus métodos de segurança, eles nunca imaginariam estar suscetíveis a um caso que estava prestes a somar-se tantos outros escândalos de Brisal. “Esse país é mesmo uma várzea” pensava silenciosamente um Milton cada vez mais abismado com o tamanho do que estava fazendo. Nenhum país que se quisesse levar a sério poderia permitir que se chegasse àquele ponto, mas como ele é que não nascera para dar exemplos, quando enfim reuniu toda a coragem necessária, conectou sem muita discrição o cabo USB abrindo a comunicação entre o computador e o HD portátil. Ainda com frio na barriga verificou e confirmou que ainda era capaz de acessar os dados do número de telefone que chegara aleatoriamente no dia anterior. Seu bilhete premiado continuava lá. Não perdeu mais tempo. Começou a transferir os registros de voz. Fez isso a manhã inteira, e ainda sobrou um tempinho para enviar áudios de telefones associados. Quando ao final do expediente bateu o ponto, deu as costas à Companhia alô! Com a certeza de que nunca mais voltaria até lá.


4. Transcrição de áudio #2

Presidente: Alô? Senador Antero: Boa noite, senhor vice-presidente. Parabéns pela vitória, eleição difícil, hein? Presidente: Nem me fale, Antero. Aquela mulher quase pôs tudo a perder. Mas agora temos tempo de pôr e prática nosso projeto. Senador Antero: Mantemos a posição discutida no grupo? Presidente: Claro. Não pode passar do próximo ano. Caso contrário não conseguiremos frear mais nada. Ademais, Antero, nossos fiéis amigos já não aguentam essa política perdulária que tomou o país. Senador: Concordo plenamente Micael, está começando a ficar ruim para os negócios. Além disso, um bando de gente moralista tem tomado conta da televisão e da internet. Presidente: Pois é… Senador Antero: Ficaste sabendo que o Laércio deu maior “piti” quando saiu os últimos resultados? Presidente: Aquele lá é muito infantil ainda, mas isso é bom para nós. Mesmo que ele não tenha cacife para jogar o jogo, acho que vai dar trabalho à senhora presidente. Os inconformados às vezes são úteis. Senador Antero: Verdade. O Laércio nasceu para ser comido… (pausa) Então, tudo segue como pensado? Presidente: Sim. O Pastilhas já está preparando com o pessoal do partido as novas propagandas. “a verdade virá à tona”, está na hora de botar as engrenagens a funcionar. Senador Antero: Perfeito, Micael. Mais uma vez, parabéns. Sua hora está chegando grande amigo. Presidente: Abraço, Senador. Tenha certeza, quando chegar lá, nomeá-lo-ei ministro.


5. Piririm Piririm Piririm, Alguém Ligou pra mim

Aquele foi um final de semana muito excitante para Milton Schmidt. A adrenalina fervilhava em seu sangue, ora excitado pela possibilidade de riqueza ora pelo medo fugaz de estar lidando com peixe graúdo demais. Desde às 13:30 do sábado dedicara boa parte do dia para ouvir os áudios que conseguira sequestrar junto à Companhia alô!. Nitroglicerina pura era o pensamento recorrente naquele sábado e domingo. Sua tensão e excitação só diminuíam nos breves intervalos de consumo de pornografia. Depois da masturbação, um lanche, coca-cola e mais e mais áudios explosivos, e ainda que história fosse uma das disciplinas que ele sempre fora turista no ensino médio e de que sua programação televisiva reunia mais reality shows e lutas, ele sabia que havia conseguido provas a contar e esclarecer boa parte da recente confusão política e história na qual Brisal vinha afundando. Entretanto, o que ia fazer com aquele material todo ele só fora ter alguma ideia no final da madrugada de segunda-feira. Até então, inocente ou talvez idiota mesmo, não tinha em momento algum temido pela própria vida. Por isso mesmo, ao amanhecer da segunda-feira tinha tomado logo a mais ousada das possibilidades que cogitara.

*** “Sim, quem é?” “Senhor presidente, é o senhor mesmo?” “Sim, sou eu. Quem fala? Como conseguiu este número?” “Opa. Maravilha. Pode me chamar de Bola de Fogo, senhor presidente. Eu estava precisando falar com o senhor.” “Creio que deve ter ocorrido um engano, Senhor Bola de Fogo. Meus cumprimentos...” “Não desliga presidente que eu...”

***


Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Mesmo em situações como aquela, de grande importância, sabe-se lá por quê diabos sempre ao cair uma ligação Milton Schmidt tinha a péssima mania de perguntar mentalmente “quem é o cara mais bonito falando nesta linha?”. Talvez por se dispersar com uma bobagem destas não guardou ressentimentos da pouca educação do governante máximo do país, além disso, Milton até guardava um pouco de esperanças que o homem pudesse engrenar as coisas, embora se ele pensasse um pouco mais recordaria dos áudios… Enfim, como um bom brisalense, povo conhecido por jamais esmorecer, ele resolveu insistir. Mas ia ter de ser rápido para não afugentar o político.

*** “Presidente eu tenho uma coisa muito importante para falar com o senhor.” “Por gentileza, quem está falando?” “Já disse, presidente, pode me chamar… ops, o senhor não é o presidente?” “Não, não sou. É Mara de Jesus, chefe de gabinete do presidente. Por gentileza, o senhor pode se identificar.” “Nossa, a senhora tem voz de homem. Olha moça, eu preciso mesmo falar é com o presidente. Só com ele. Pode me chamar de Bola de Fogo.” “Olha, amigo, esta linha é muito importante para desperdiçarmos tempo com brincadeiras de mau gosto. Por gentileza não retorne a ligar, ou o senhor poderá se incomodar. Trote é crime.” “Não é trote, senhora. Estou falando sério. Preciso falar com urgência com o presidente. Garanto que é assunto do maior interesse dele. Do maior interesse dele mesmo!”. “Olha, meu senhor, não sei como conseguiu esse número, e nesse momento não vou me preocupar com isso, me passe qual é o seu assunto de maior interesse que informarei ao presidente. Neste momento o senhor presidente está num compromisso muito pesaroso e não poderá atendê-lo.” “Senhora, preciso mesmo falar muito com o presidente, apenas com ele.” “Então lamento, não poderei ajudá-lo...” “Não desligue ainda, senhora. Achei que isto pudesse acontecer. Por favor, diga ao presidente que ele não deveria teria sido tão grosso com a Manoela por telefone na última quinta-feira. E mais feio ainda é o jeito que ele manda que ela faça um boquete...”


Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu.

*** “Alô.” “Senhor Bola de Fogo, que tipo de brincadeira de mal gosto é esta?” “Presidente, que bom ouvir sua voz.” “Estamos passando dos limites aqui meu senhor, aviso-lhe que serás investigado.” “Me desculpa meter a família no meio, presidente, mas eu precisava mesmo falar com o senhor. É do seu maior interesse.” “Olha rapaz, estou no velório de um grande homem, um amigo, e não me agrada nem um pouco esse inverossímil diálogo que estamos tendo. Por gentileza, diga logo, pois preciso atender meus compromissos.” “O senhor é o bichão mesmo, hein presidente, derruba o passarinho e chora no velório.” “Meu senhor, não sei do que está falando, tampouco conceder-lhe-ei mais tempo para tantos disparates, passar bem...” “Não desliga presidente, eu sei que vocês mataram o juiz que está nos jornais.” “Homem, agora chega. O senhor e a internet toda sabem disso, não é mesmo. Senhor Bola de Fogo se era para ligar para contar-me o mesmo que qualquer destes posts ficciosos, o senhor poderia ter-me poupado deste desconforto...” “Só que a internet toda não tem como provar, mas eu tenho, senhor presidente.” “Basta rapaz. Não sou pessoa a se brincar de forma tão leviana. Passaste de todos os limites.” “Só escute um pedacinho desta gravação, presidente.” (…)

*** “Chocante, não é mesmo, presidente?” “Isto nada prova. É um acinte, uma armação. Melhor o senhor desistir desta brincadeira perigosa, Senhor Bola de Fogo.” “Presidente, de onde veio essa tem muito mais. Nossas comunicações podem ser esclarecedoras presidente, aliás, acho que a Vilma ficaria feliz em pôr as mãos em tudo que eu tenho.”


“Vamos logo ao assunto seu mentecapto, que queres de mim?” “Cem milhões de Reais, presidente.” “Este é um jogo muito perigoso que está pretendendo jogar, amigo.” “Eu farei contato novamente, presidente.” “Matá-lo-ei Senhor Bola de Fogo.” Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu.


6. Transcrição de Áudio #3

Presidente: Oi. Manoela: Querido, está ficando insuportável. O Júnior voltou chorando da escola hoje, mais uma vez. Colegas mostraram de novo as charges, caricaturas e esses memes que fazem contigo. O menino está um caco, Micael. Presidente: Deixe de frescura mulher. Está mesmo me saindo uma imprestável, o que tenho a ver se naquela maldita escola ainda restou algum lunático socialista? Eu preciso tocar o barco, mulher, vá cuidar do menino, isso era para ser tua função. Manoela: Micael… Presidente: Não, nem comece com tuas frescuras, mulher. Não olha notícia não, sua ignorante, eu aqui precisando articular com o Congresso e tu trazendo-me problemas domésticos. Por favor, Manoela. [soluços] Presidente: Não disse. Já começaste com tuas lamúrias. Pare de frescura, sabes bem que donde viestes, encontro às pencas. Pare de me atrapalhar e sigas fazendo o que tinha ordenado. Você sabe que me irrito com este tipo de coisa.. Manoela:… Me desculpa, Micael. Presidente: Mais tarde peço pro pessoal checar quem são os comunistas na escola, deve ser meia dúzia. Expulsá-los-ei daquele lugar. Não combinam com a escola. Manoela: Obrigada, querido. [fungados] Presidente: Está bem. Agora deixe-me trabalhar minha pequena parva. Ah, passes aquele produto na boca, quando chegar em casa, preciso daquela chupada restauradora.


7. Noiado

Tinham-se passado dois dias desde que Milton Schmidt ligara para o presidente. A essa altura ele já pretendia ter elaborado de forma mais clara como receberia seu prêmio de loteria. Contudo as últimas palavras do homem ribombavam na cabeça do operador como se fossem os sinos da catedral metropolitana. Naquele dia, tão logo caíra a ligação, como planejado, ele atirara o chip pré-pago no bueiro e retornara para sua pensão. Durante uns bons trinta minutos ainda movido pela excitação da improvável conversa, dava passos confiantes na certeza de que muito em breve seria um homem rico. Mas trinta minutos depois a confiança desaparecera, como geralmente fazem “amigos” diante de alguém com dificuldade. Não restava nada de suas forças, correu para casa e aboletou-se em seu quarto minúsculo. Naqueles dois dias sequer saíra para comer alguma coisa. Tinha medo de arriscar-se demais, afinal, por enquanto sua única vantagem era o anonimato. Mas como o próprio presidente lhe dissera, aquele era um jogo perigoso, e por alguns momentos ele ficou em dúvida. Talvez tivesse ido longe demais. Depois de uma noite em claro absorto em portais de notícias, olhos vidrados e inchados de tanto ficar na frente da tela eletrônica. Lia tudo que encontrava relacionado ao recente acidente com o ministro da Corte Máxima. Observava fotos e mais fotos com figuras e personagens os quais muitos estavam armazenados em seu HD portátil em formato de áudio. Milton começou então a sentir medo. Cada notícia e cada imagem sobre o recente acontecimento mostravam que o grupo não pegava leve na hora de destruir seus inimigos. Muitos deles a despeito de qualquer culpa na queda do avião que não só matara o juiz mas também inocentes, lá estavam prestando suas condolências. Numa das imagens que ele encontrou num slideshow de registro do velório pegou de relance o presidente ao fundo. Falava ao celular, o rosto que em ocasião alguma soava amigável, naquela imagem soava ainda mais draconiano e tenebroso. Nem mesmo os memes da internet que representavam-no de maneira pouco lisonjeira eram capaz de representar tanta maldade. Aquela imagem era também a primeira vez que Milton “surgia” nas grandes notícias, ainda que, ao olhar


a fotografia ninguém mais soubesse disse além do próprio. E o presidente, claro. Do medo para o terro foram passadas curtas. A partir disso, Milton sentiu-se travado. Não tinha certeza de mais nada e estava com uma vontade danada de desistir daquela loucura. Porém, em sua cabeça sabia que ao se atirar uma pedra do alto de uma montanha, torna-se impossível bloquear sua queda vertiginosa até o vale. Mesmo que ele abandonasse a ideia de arrancar uma grana daqueles bandidos, o problema era que agora sabiam eles que alguém no país tinha provas contundentes e explosivas que poderia levar à bancarrota a maior e mais legalizada quadrilha nacional. A Grande Quadrilha Nacional. A essa hora já devem estar me procurando. Tomou a última das cervejas de quatro engradados que tinha em seu estoque. Milton Schmidt tinha agora medo de até mesmo chegar perto da porta. “Está tudo bem aí, meu rapaz?” Perguntou o senhorio, que dentre outras coisas, sua grande preocupação era de que o inquilino há dias não saía para trabalhar. “Foi demitido?” perguntou do outro lado da porta com grande temor de que Milton não tivesse dinheiro para lhe pagar o aluguel do mês seguinte. “Está tudo bem.” A voz saiu trêmula, distante e pouco convincente.

***

O senhorio foi até o quarto de Milton outras duas vezes até aquele terceiro dia de reclusão. Isso só ampliou as paranoias do operador que começou a desconfiar que o senhorio poderia ser um espião do governo e da quadrilha. Naquelas últimas vinte e quatro horas ele adquirira o hábito de ir até a janela de seu quarto verificar se não havia viaturas ou carros estranhos cercando o prédio. Em suas alucinações, em certo momento que caíra num breve sono, despertou assustado ao ouvir uma berrante e histriônica voz vinda de um megafone externo. “Senhor Schmidt, saía com as mãos para o alto. O prédio está cercado.” Mas como fora dito. Apenas um susto. Entretanto, o fato de sua pensão ficar na área central de São Pedro, a maior capital do país, não colaborava muito para vigilância. Qualquer um lá embaixo poderia ser espião ou assassino contratado para dar um fim nele. Ele já não vira aquele velhinho com jornal na mão? E o táxi que estacionava, podia jurar que já passara ali umas cinco vezes. Sem falar na banca de jornal, e ainda que ele nunca prestasse atenção no jornaleiro, desconfiava que aquele que lá estava agora não era o verdadeiro. Naquele


instante, Milton agradeceria se tivesse visto mais filmes de espionagem. Tinha muito medo de que seu amadorismo fosse levá-lo à morte. Enquanto isso, entre suas idas e vindas da janela, envolto cada vez mais numa aura soturna, ele acompanhava as notícias recentes. O gradual desaparecer da investigação do acidente na pauta. As articulações para substituição do juiz. As eleições no congresso. A baderna que tomara conta nos Estados Unidos. Tudo corria bem para o grupo. Milton pensava que se ele de fato abandonasse a ideia inicial, os malandros iriam se dar bem como nunca. “Como sempre foi nesse país” ele cochichou a esmo. Foi nesse mesmo momento que teve sua epifania pessoal. Tão logo esmaecera tal pensamento ele visualizou uma montanha de pilha de dinheiro. Cem Milhões de Reais. Grana pra cacete. Ele deveria parar de bancar a criança noiada e dar uma de homem. Era tudo ou nada, e fosse como fosse, o dele já estava na reta desde que ligara para o Presidente da República. Foda-se, o show tem que continuar. Contudo, ele teria de desaparecer daquele lugar. Sabia que não era mais seguro continuar na pensão do Seu Amaro.


8. Transcrição de Áudio #4

Aristeu Pastilha: Oi, como você está Meu Bruxo? Bruxo: Fala minha liderança, como vai sua senhoria? Tudo certo nas esferas do poder? Aristeu Pastilha: Bagunçado como você está acompanhando. A mulher tem conseguido afundar a República, Meu Bruxo. Está deixando rolar solto essa operação aí que o pessoal está começando a falar. Se esse negócio ir em frente acaba com a República, meu amigo. Bruxo: Tenho acompanhado, Minha Liderança. A merda é que a filha da puta está de bem com a popularidade. Mas não se preocupe não, creio que o Projeto Degola vai dar um jeito nisso. Aristeu Pastilha: Sim, esperamos que sim, contudo, para nós e para O Homem, é uma situação delicada. Se abdicarmos dos nossos espaços agora, teremos grandes prejuízos nos rendimentos. Bruxo: Pois é… [Ininteligível] Aristeu Pastilha: Com certeza, Meu Bruxo. O Homem precisa de nós, e nós precisamos dele. Ele saber fazer política, entende do que é necessário para governar esse negócio. Porém, é delicado. O partido sabe que nosso caminho não é pelas urnas. O Laércio até acenou algo, mas sabe como ele é meio bundão. Acho que mesmo que possamos fragilizar a popularidade dela, é capaz do senador não dar conta. Bruxo: E o partido, como fica? Aristeu Pastilha: Está dividido, mas a turma que sabe como as coisas funcionam por Brisália sabe como gerenciar meia dúzia de deputados bobocas. No fim, será como O Homem quiser. A convenção é dele. Bruxo: Menos mal, precisamos ter controle de tudo. Aristeu Pastilha: Com certeza. Mas enfim, liguei para ver com anda a montagem daquele grupo especial? Bruxo: Está de vento em popa. Em breve as ruas desse país estarão tomadas. Pode acreditar. Já consegui levantamento de quais pautas poderemos infiltrar nossa turma.


Tenho um prognóstico de que após as primeiras manifestações menores, vai ser possível manipular uma grande massa. Sabe como é, com essas redes sociais vai ter imbecil achando que está fazendo algo pelo país… [risos] mas estarão trabalhando para nós. Só tem panaca, Pastilhas. Viu das panelas? Aristeu Pastilha: Vi sim. Mas a coisa não poderá minguar, hein, Meu Bruxo. Bruxo: Este risco está controlado, Minha Liderança. Nosso orçamento já está preparando três ou quatro grupos que vão manter a coisa pegando fogo. Se ela por acaso ganhar, não ficará muito tempo. Agora, tu sabes que acho meio arriscado tudo isso. Temos que ter garantias de que os dois vão ficar nas mãos do partido. Aristeu Pastilha: Isso está tranquilo, o Laércio está nas nossas mãos, e se ele chegar lá, ou nos coloca dentro ou será comido tão rápido que nem verá quem foi o estuprador. [Risos] Bruxo: Me sinto mal rindo dum coitado desses. Minha Liderança, fique tranquilo. Em uma, duas semanas no máximo poremos fogo nas ruas dessa porra. Temos algumas polícias que vão nos dar uma mão para agitar o coreto já que essa gente da esquerda quer ser toda certinha e adora uma negociação. Da minha parte está tudo no controle, mas caso os amigos enviem mais uns dez ou quinze milhões, poderemos ampliar a agitação. Aristeu Pastilha: Vou ver se consigo isso. Se não tiverem, talvez dê uma mordida nos gringos. Os caras estão todo empolgados, mas até agora tem ajudado pouco. Bruxo: Beleza então, Minha Liderança. Vou te mantendo informado. Qualquer coisa é só chamar. Aristeu Pastilha: Perfeito então. Até mais.


9. No alto morro tinha um pé de bananeira

Milton Schmidt olhou de esgar para a bananeira ao lado da porta de entrada do barraco que alugara no alto do morro da comunidade de Butanópolis, a maior favela da metrópole. Tinha a esperança de que entre aquelas cinco centenas de milhares de pessoas ele pudesse passar despercebido. Ao ver a planta nascendo quase que dos alicerces do casebre sorriu ao lembrar a avó falecida cantando “no alto daquele morro tinha uma pé de bananeira, teu pai morreu de fome, tua mãe de caganeira”. Entrou no lugar pensando onde nasciam trovas populares, ainda que ele não soubesse o que era uma trova popular. Atirou-se sobre um sofá velho e rasgado enquanto espichava as pernas depois de um dia exaustivo. Logo no início da manhã juntara seus poucos pertences e orientara ao senhorio distribuir o que ficara no quarto aos mendigos que vez por outra aportavam por ali. “Fui transferido para o sul, Seu Joaquim” e nada mais informou ao homem. Tendo livrado-se do pensionato, ele teria ainda que planejar seus próximos dias, os quais teria que esperar pelos milagrosos Cem Milhões de Reais. Estava tudo esquematizado, contudo, cria que talvez levasse um mês para pôr a mão na grana. Depois de despedir-se então do pensionato em que ficara os últimos meses, o local, segundo suas paranoias já fora comprometido, Milton foi até a agência mais próxima de seu banco e sacou exatamente R$ 3.235,47, que era toda a riqueza que tinha juntado em sua vida, o que já é muito sem comparado aos extratos de seus outros duzentos milhões de compatriotas. Parte destes recursos foram utilizados num misto de almoço e café da manhã feito numa lancheria que lhe possibilitava ligar o notebook e trabalhar em sua própria proteção. Ainda que os filmes de espionagem não lhe ajudassem em grandes coisas, até porque, neles o espião sempre possui orçamentos sem restrições, aprendera com eles que se tem de proteger seu bem mais valioso: a informação. Gastara outra parte dos recursos para adquirir três cartões de memória que poderiam guardar pelo menos os principais áudios que protegia com a vida em seu HD


portátil. Um deles deixou guardado em um armário alugado por dois anos na estação rodoviária. Outro enviara para um parente distante e de confiança. E um terceiro, desconfiado como era, enterrou aos pés de uma frondosa árvore no parque, lugar onde certamente a especulação imobiliária demoraria a chegar. Por vias das dúvidas, ainda que fosse um grande risco, talvez uma babaquice sem tamanho, fez um upload dos arquivos em lote .rar num destes sites de pirataria. gostosinhas_engolindo_a_jeba_do_cavalo.rar foi colocado em modo privado e Milton torceria bastante para que ninguém achasse o seu bilhete premiado. Já era meia tarde quando enfim ele parou para pensar onde ficar enquanto preparava a sequência de seu plano de enriquecimento. Caminhou por todo o Butanópolis, não sem o receio de ser assaltado, embora a comunidade tivesse se tornado uma desses espaços pobre-chique após servir de cenário para novelas e seriados. Viu alguns rostos encarando-o de maneira estranha, e sempre que alguém melhor vestido lhe volvia os olhares ele temia ser espião do governo. Depois de andar muito, a ponto de gastar o solado do sapato, disseram-lhe da Velha Antônia que tinha um barraco para alugar. Não ficou muito satisfeito com os Quinhentos Reais que a velha cobrara adiantado, tampouco tranquilizou-se com a recomendação “só não te mete nas coisas dos guris lá em cima”, mas ainda assim era um teto, provisório e ermo. Depois de quase duas horas de subida chegou ao lugar. Perguntou a um vizinho aqui, outro ali, até que lhe apontaram o casebre com a bananeira. Como já era quase noite ele pretendia dormir um pouco para só então, depois telefonar para o seu mais novo melhor amigo da infância. O Presidente da República.


10. Transcrição de Áudio #5

Alex Sander (Min. Justiça): Bom dia. Fala, Chefe. Presidente: Tudo bem com você Kojac? Alex Sander (Min. Justiça): Está espirituoso hoje, Chefe. Pelo visto já viu os noticiários da manhã. Presidente: Estou acompanhando, Alex. Você conseguiu causar impacto, rapaz. Alex Sander (Min. Justiça): Não falei pro senhor que os meninos comiam na minha mão. Como eles mesmos dizem, “tocaram o horror”. Presidente: Sim, mas o avanço das ações tem que ser sistemática, você sabe. Alex Sander (Min. Justiça): Claro, chefe. Do norte, logo essa bagunça vai chegar ao centro-oeste, sudeste e o sul, claro, se não tivermos que nos preocupar com outras demandas. Presidente: Creio que logo vamos conseguir consolidar a questão da operação cadeia, portanto é bom que o ritmo do problema continue crescendo. Alex Sander (Min. Justiça): Isso pode deixar comigo, chefe. O sangue é por minha conta. Todo cidadão de bem desta joça vai implorar que o senhor desça a bota e encha as ruas de milico. Presidente: Kojac, você sabe que este é um projeto central para nossos planos. Dar-meá grande desilusão se algo sair fora do planejado. Precisamos que essa gente clame por ser vigiada e controlada. Temos que aprender com os erros do passado e não vacilar. Logo teremos mais liberdade de ação. Alex Sander (Min. Justiça): Não se preocupe não, presidente. Já espalhamos a doença, e os estados já estão solicitando o remédio. São parceiros. Presidente: Ok. Estarei acompanhando, e tome cuidado para não cometer deslizes. Você estará muito em foco durante as rebeliões. Alex Sander (Min. Justiça): Pode deixar, chefe. Um abraço.


11. Seis dezenas mágicas

“Alô?” “Oi, Presidente. Como vai o senhor?” “Quem está falando?” “Ah, me desculpe, Presidente. Sempre esqueço que este número é privado e bastante seleto.” “Senhor Bola de Fogo, é o Senhor?” “Nossa, o senhor lembrou de mim. Sou eu mesmo. Fiquei uns dias sem ligar, mas agora chegou a hora, Presidente.” “Confesso que pensava que o senhor já fosse um problema resolvido por minha equipe, Senhor Bola de Fogo. Dar-lhes-ei uma carraspana. Não temos nada a conver-” “Se o senhor desligar, subo agora mesmo um áudio no Youtube.” “Eu tenho um país a governar, meu rapaz.” “E eu tenho Cem Milhões a receber presidente. Ou seja, todos nós temos a perder aqui se ficarmos brigando um com outro.” “Talvez o senhor não acredite, mas não é muito fácil levantar este montante. O senhor está superestimando nossas possibilidades.” “Não se preocupe senhor presidente, vou lhe apresentar como vamos realizar a transação, e, olha só, não vai ser preciso sequer sair do bolso da sua equipe.” Por alguns segundos os dois lados da linha ficaram em silêncio completo, ao que Milton Schmidt compreendeu como autorização para seguir sua proposta. “O senhor tem caneta a disposição?” “Como? Sim, sim, tenho uma aqui.” “Presidente, por gentileza, anote aí as seguintes dezenas.” “Um.” “Dois.” “Três.” “Quatro.”


“Cinquenta e nove.” “Sessenta.” “Anotou, Presidente?” “Sim, mas que diabos isto significa?” “Isso é a demonstração que vocês estão lidando com um cara esperto, Presidente. Sabe, passei algum tempo pensando, e então, como é que eu vou pegar o cascalho. É grana demais, fria demais. É o seguinte, sei de tudo que vocês podem fazer, por isso, essas são as dezenas que devem ser sorteadas na Big-Loto. Claro que antes vocês precisam fazê-la acumular até chegar aos cem milhões.” “Isso é um disparate, rapaz. Não temos como fazer isso.” “Senhor Presidente, acho que o senhor subestima o que mais de cinco mil horas de áudios podem ensinar a um pobre cidadão. Faça isso, vocês não vão precisar nem meter a mão no dindim de vocês. Vou esperar a sorte, senhor, depois que cumprirem a parte de vocês destruo todo o material do contrato. Mas antes disso, só uma sugestão, não me façam nada, porque já tomei algumas medidas de segurança caso algo ocorra comigo.” Tu. Tu. Tu. Tu. Tu.

***

Milton Schmidt surpreendera-se consigo mesmo. Aquela ligação fora uma bela demonstração, na ótica dele, claro, de que estava tornando-se um novo e poderoso homem. Sentia o sangue fervilhar em suas veias enquanto punha fogo no chip pré-pago que utilizara para ligar para o presidente. Provavelmente era esta empolgação que nublara sua avaliação, pois ele sequer levou em conta que seu plano demandava que ele tivesse de se identificar para receber a bolada. Naquela sexta-feira ele apenas relaxou e curtiu sua audácia tomando várias latas de cerveja que comprara num boteco. No sábado acompanhou o sorteio da loteria. No domingo entrara no site para conferir os resultados. O prêmio havia acumulado.


12. Transcrição de áudio #6

Aristeu Pastilhas: Alô. Laércio? Laércio Tevez [Senador]: Oi. Aristeu? Aristeu Pastilhas: Sim, como vai senador? Laércio Tevez [Senador]: Vou bem, mas poderia estar melhor se vocês aderissem agora a um novo projeto de país. Aristeu Pastilhas: Por mim, o amigo sabe, já tinha abandonado aquele barco, mas O Homem tem responsabilidades e muitos amigos para cuidar. Mas Senador, vamos colaborar o máximo para que a mulher se dê mal nas urnas. Ademais, como bem sabe o senador foi uma convenção dividida e a maior parte da base já tem declarado apoio a vossa candidatura, ainda que sem caráter oficial. Laércio Tevez [Senador]: E sou grato à articulação do amigo nestes apoios. Aristeu Pastilhas: Não é necessário agradecimentos, Senador. Temos uma visão semelhante do Brisal que queremos. Essa revolução esquerdóide já foi longe demais. [Silêncio] Aristeu Pastilhas : Mas Laércio, estou te ligando para ver como anda o “projeto justiça”. Estamos acompanhando, têm certeza que o juiz lá é seguro. Laércio Tevez [Senador]: Absolutamente, Aristeu. O Moura já nos ajudou em outras ocasiões, é um cara muito partidário. Jantamos dias desses e me confirmou de que está tendo acesso a material capaz de implodir o governo. Segundo ele, o Polvo terá de cruzar pelo cadáver dele se quiser voltar ao governo de novo. Aristeu Pastilhas: Isso é bom, mas sabe, temos alguns amigos que se preocupam que a brincadeira possa ir longe demais. Isso não seria bom para nenhum de nós, nem para os negócios. Tanto no Senado quanto na Câmara tem gente com cabelo e pé. Laércio Tevez [Senador]: Creio que o risco não existe, Aristeu. Não para o núcleo de amizade. Você sabe, algum fogo amigo às vezes ajuda a limpar terreno, mas te garanto que essa Operação Mata-Rato não nos incomodará. Aristeu Pastilhas: Isso é tranquilizador.


Laércio Tevez [Senador]: Certamente. Mas seria melhor se derrubássemos a Vilma agora no voto. Não precisaremos ser mais incisivos no campo judiciário. Aristeu Pastilhas: Penso o mesmo. Laércio Tevez [Senador]: E, Aristeu, não esqueça de dizer Ao Homem que não se preocupe em perder as eleições. É meu compromisso ampliar os espaços do teu partido nos nossos projetos de nação. Aristeu Pastilhas: Eu transmitirei a mensagem. Um abraço. Laércio Tevez [Senador]: Abraço.


13. Armistício

Naquelas duas semanas de espera, Milton Schmidt viveu um verdadeiro armistício. Nem parecia estar envolvido em trama de tal envergadura, e tão logo não aguentou ficar enfurnado no barraco, passou a desfilar pela comunidade de Butanópolis integrando-se à paisagem urbana. Fez algumas amizades e parte do seu orçamento foi gasto no Boteco do Valmir onde seguidamente comprava cervejas ou Coca-Cola. De certa forma tal desprendimento era mais um dos indícios de que ele não possuía nenhum plano B, e estava certo de que em breve ganharia na loteria. Porém não se pode dizer que ele desligara-se totalmente do seu plano. Vinha acompanhando os passos do governo através das notícias na internet. Não conseguira antever nenhuma outra nuance que indicasse que seus “amigos” estivessem trabalhando por ele. Todavia, a loteria seguia acumulando, enquanto o governo lidava com as consequências da morte do Juiz da Corte Máxima, com a crise, com a segurança nacional em frangalhos, além de articular no Congresso uma série de projetos que na prática reverteriam posicionamentos ideológicos recentes. Para ser sincero, enquanto ainda batia cartão na Companhia alô!, Milton Schmidt ainda que silenciosamente mostrava-se deveras preocupado com as reformas que vinham sendo discutidas pelos políticos. Crescera numa família que acostumara-se com carteira assinada e salário no fim de mês, e ele então vinha observando que tudo isto estava para cair por terra, pois pelo que os trabalhadores comentavam, as ideias dos políticos era precarizar as condições de trabalho para que a turma do dinheiro faturasse mais. No entanto, lá, na favela, ele vivia talvez como os turistas gringos que se fingiam de pobre, mas que sabiam que não lhes faltaria grana. Milton Schmidt já se considerava um homem rico, por isso desfilava com certa superioridade entre as vielas e becos do morro. Era um novo homem. Estava confiante. Sua confiança era tanta que sequer assustou-se quando os meninos que controlavam o lugar lhe fizeram uma visita para dar um confere no branquelo estranho que estava por ali.


“Estou de boa, pessoal. Vou ficar um tempo por aqui. Sabe como é, a crise e tal.” “Cê não tá de trairagem, mano? Tá bicando nóis, por acaso?” “Relaxa, cara.” E seguiram por uns bons trinta minutos de desconfiança até que Milton mandou subir alguns engradados de latinha de cerveja e fizeram uma grande festa com o anfitrião lhes garantido que a senhora que lhe alugara a casa recomendara-o muito que não se metesse nas atividades deles. “O que precisarem de mim, é só gritar.” ele disse meio embriagado. Sem dúvida alguma o período que Milton passara em call centers ajudou a desenvolver a conversa com os rapazes, e logo ele não era mais visto com tanta desconfiança pelos caras que geralmente andavam armados pela comunidade. Acostumara-se tanto com os costumes do lugar que nem mesmo perdia o sono com a agitação noturna e quando vez ou outra os novos amigos subiram até o topo com algum devedor caguete. Era quase um nativo. Mas embora a excelente adaptação e o quase esquecimento de seus planos principais, isso não significa que ele não sofrera com sustos em sua estadia em Butanópolis. Certa noite ao som de sirenes e tiros, escondeu-se sob a cama com a certeza de que eram os homens do presidente que tinham lhe descoberto o paradeiro. Por uma hora a paranoia voltara a ansiar seus pensamentos, a ponto de novamente ele ouvir megafones com seu nome. “não vou sair. Não vou sair. Não vou sair.” dizia baixo e entredentes numa vã tentativa de proteger-se caso suas desconfianças fossem concretas. Porém, logo a algazarra cessou, os traficantes espalharam-se pelo labirinto de tijolos de madeira e a polícia estranhamente poupara seu barraco dos pontapés e de uma invasão, o que salvou Milton de qualquer confusão, afinal, para a polícia, no morro qualquer moleque é do movimento. Mas de certa forma a confusão foi propícia para Milton Schmidt. Lembrou-o de que precisava manter o foco, de que estava no meio de uma trama muito maior que a comunidade e de que ele precisava manter-se lúcido, sem distrações. Assim, Milton conseguiu levar os dias seguintes sem perder de vista seu projeto principal enquanto a Big-Loto seguia acumulando. Até que numa quinta-feira ao acordar perto do meio-dia ligou seu computador e sentiu uma estranha vibração tomar-lhe o corpo todo. Em destaque, o título da matéria chamava atenção. “Big-Loto acumula novamente e deverá sortear prêmio milionário de mais de Cem Milhões”. Estava acontecendo. Seu amigo, o Presidente da República, vinha mantendo a palavra no contrato bilateral que firmaram por telefone. Não tem como ser coincidência,


pensava, ainda incrédulo. No fundo, e talvez nem tão lá no fundo assim, Milton carregava uma série de frustrações que o deixavam sempre com pulgas atrás das orelhas. Era naturalmente um pessimista e duvidava um bocado daquela coisa de o universo conspirar a seu favor que certa vez vira num documentário. Remoeu estas frustrações ao longo da quinta-feira, mas já na sexta, certo de que tudo fazia parte dos planos, desceu da comunidade para ir até uma lotérica. Milton Schmidt entregou o volante para a moça levemente obesa do outro lado do balcão da Casa Lotérica. Recebeu um olhar curioso, pois aquelas não eram dezenas que se visse tão facilmente. Na verdade, em frações de segundos, a moça fizera um backup de lembranças e era capaz de afirmar de que nunca vira um jogo com aqueles números. “Mais alguma coisa senhor?” “Só isso” foi a resposta dele que entregou à caixa Três Reais com Cinquenta Centavos. “Se é para ter sorte, uma aposta só serve” completou ao receber o bilhete da aposta. Despediu-se da atendente com um piscar maroto “sonhei com esses números”.

***

Naquela manhã Milton saíra da lotérica com a certeza de que nada mais voltaria a ser como antes. Olhou com certa reverência para os números impressos termoestaticamente no papel. Já podia sentir o poder do dinheiro, a capacidade de poder planejar, de realizar todos os seus sonhos e desejos. Ele iria à desforra. Adeus pobreza. Adeus frustrações. De tão feliz que estava, naquela sexta-feira resolveu almoçar num destes restaurantes caros. Churrasco dizia a placa. Voltou para a comunidade com a aposta comichando dentro do bolso de sua calça jeans. Tinha noção que meio sorria sozinho, algo meio tresloucado. Contudo não sabia como fazer para parar de rir daquela forma sem sentido. Foi enquanto pensava nisso e subia pelo morro que talvez tenha cometido o maior erro da sua jornada. E se diz talvez porque muitas coisas nessa vida trata-se apenas de ponto de vista, e como o que viera a acontecer naquele entroncamento de vielas iria mudar drasticamente a vida de Milton Schmidt, haverá sempre a divisão entre erro ou acerto. Foi naquela tarde de sexta-feira, naquela encruzilhada de barracos que Milton Schmidt apaixonou-se perdidamente.



14. Transcrição de áudio #7

Presidente [Vice-presidente]: Alô. Senhora presidente. Vilma Yousef: Presidenta, Micael. Já disse, caramba. Presidente [Vice-presidente]: Senhora Presidenta, bom dia. Vilma Yousef: Fala, o que você quer Micael? Presidente [Vice-presidente]: Nada muito urgente, presidenta. Apenas gostaria de ver com a senhora se tens analisado aqueles meus pedidos relativos à Bris'Oil? Como a senhora bem sabe, o partido tem dado sustentação forte ao nosso governo, mas, como a senhora sabe também, muitos companheiros estão dispostos a colaborar para o progresso do nosso principal ativo. Vilma Yousef: [inintelegível] … já disse que nesse momento não quero pensar nesse tipo de coisa Micael. Tenho recebido relatórios alarmantes da empresa, e nem a pau vou permitir que isso continue. Presidente [Vice-presidente]: Senhora presidente, informá-la-ei de que essa é uma questão sensível entre os deputados. Vilma Yousef: Sensível o caralho, Micael. Não me venha com a tua gramática, sei bem onde quer chegar Micael. Presidente [Vice-presidente]: Senhora presidente, está difícil controlar o pessoal. O Dudu está irritadíssimo com algumas posturas do governo. Vilma Yousef: Puta que o pariu Micael, não é hora desse tipo de coisa. Não vou entrar nesse assunto, e me dê licença que tenho que falar com aqueles malditos americanos por causa dessa porra de espionagem.


15. Quando um homem ama uma mulher

Se a história de Milton Schmidt fosse um filme ou um livro é bem provável que naquele exato momento que viu Luz Aguiar uma voz ritmada e onisciente surgisse do nada cantando alguma coisa romântica como trilha sonora. Mas como não era nada disso, a ele coube ser tomado pelas sensações físicas e biológicas provocadas pelo arrebatamento imediato. A pele corara um bocado e um calor para além da escaldante temperatura subia-lhe pelos dedões do pé até aquecer as bochechas pouco protuberantes. Milton sentia também a secura na garganta e a ausência das palavras. Ele tinha sido fisgado por um anzol impossível de escapar. Entretanto naquele rápido cruzar de personagens ele bem descobriria logo que ela sequer percebera-o. Estava preocupada com uma criança que sumira há dias na comunidade, entre outras coisas, e certamente não teria como enxergar aquele cara estranho ao lugar, meio mirrado até, e de feições impossíveis de esconder o quão deslocado ele estava. Mas Milton fora atingido de tal maneira que não desistiria da paixão, muito menos daquela linda garota que quebrou a viela e desceu sacolejando os cabelos úmidos tão dona de si, que mais parecia uma daquelas princesas de desenhos da Disney. Não, Milton precisava dela, urgia por encontrá-la, por fazê-la vê-lo. Por mostrar a ele que ali estava um homem capaz de fazer qualquer coisa que ela pedisse. Milton Schmidt deixar-se-ia escravizar se assim ela desejasse. Por isso naquela sexta-feira tudo nos pensamentos e nas ações de Milton Schmidt se concentrara em encontrar ou descobrir algo sobre aquela jovem mulher de uma cor acobreada e olhos violentamente verde-água. Entre bares, casas, uma pergunta aqui outra ali, ele sequer percebera que o dia fora substituído pela noite e suas esperanças de encontrar a mulher que lhe roubara o coração se desvanecia cada vez mais. Ainda assim ele insistiu até por volta das dez da noite sem qualquer sucesso e sem sequer conseguir descobrir o nome da garota. Naquela sexta-feira deu a batalha por perdida, mas não a guerra, subiria até seu casebre, mas


estava decidido que tiraria o sábado para procurá-la novamente. Ah, o sábado, o grande sábado, em seus pensamentos tudo convergia para aquele ser o maior e o melhor dia de sua vida. Recordou-se que ficaria milionário no sábado, e por breves segundos o bilhete voltou-lhe a queimar mais que a paixão. Tinha certeza que aquele que seria o seu dia só poderia reservar-lhe também bons ventos para os assuntos do coração. Mais do que esperança, tinha fé que no sábado tudo se resolveria e enfim encontraria aquela bela mulher e declarar-se a ela. Só por isso ele criou coragem de abandonar as buscas por aquele dia. Então, como se sua fé realmente tivesse algo a ver com aquilo, quis o destino colocá-los frente a frente, e quando ele retirava-se para casa ao passar por uma animada roda de samba, avistou-a. O corpo sinuante embalado pelo ritmo dos pandeiros. Com a confiança que só os milionários e os inconsequentes possuem, sem tomar qualquer cuidado ou se precaver de possíveis hostilidades, Milton Schmidt abriu caminho entre os sambistas até postar-se ao lado da amada. Nisso os pandeiros já tinham silenciado e cadeiras tinham sido arrastadas. Mas ele não percebera nada. “Eu te amo, mulher” ele disse pela primeira vez na vida. E naquele miasma de tempo em que os olhos se encontraram ele delicadamente envolveu-a pela cintura e na sequência invadiu sua boca com um beijo cinematográfico. E nesse momento seja pelo arrebatamento da surpresa seja por um ataque terrorista à verossimilhança, ela correspondeu ao beijo. Entregou-se a ele e também devolveu muito mais. Naquele retribuir, Milton Schmidt teve certeza de que ela amava-o também. Nada poderia dar errado. Naquela madrugada eles se amaram no casebre do alto do morro. No amanhecer do sábado amaram-se também. E amaram-se um pouco antes do almoço e depois também. Exaustos amaram-se ainda no meio da tarde, e quando já voltava a anoitecer e quando Milton quase esquecia-se totalmente do bilhete de loteria, entregue totalmente ao amor, ele falou tudo. Sua vida, seus pequenos amores e até mesmo seu novo projeto que torná-lo-ia um homem rico. Com os dois ainda nus e estirados sobre aquele velho e pulguento colchão ele fez o convite ainda sem estranhar o recente silêncio daquela garota-jovem-mulher eloquente. “Quero que você faça parte disso. Que seja a rainha desse meu reino que está por ser erguido. Eu te amo”. Mas para compreender a reação irada e tempestiva dela, seria preciso conhecer muito mais daquela jovem e tinhosa luz, Luz Aguiar.


16. Transcrição de Áudio #8

Presidente: Kojac, tudo bem? Alex Sander [Ministro da Justiça]: Tudo bem chefe, o que me manda? Presidente: Como anda os estudos para solucionar aqueles problemas nos estádios? O cara lá da Rede Esfera me ligou de novo. Diz que está cada vez mais difícil esconder das transmissões os cartazes e faixas contra mim. Alex Sander [Ministro da Justiça]: Compreendo, presidente. Eles me procuraram também. Presidente: Derrubar-me-ão se as coisas continuarem assim, Alex. Ele reclamou de que não adianta esconder, porque tudo vai para internet e só aumenta à ojeriza a eles. Reclamou, de certa forma que a polícia tem sido dura demais, e também acho que se continuarmos proibindo os cartazes em jogos, pode aumentar o grito dessa minoria. Alex Sander [Ministro da Justiça]: Entendo, Chefe. Consultei alguns analistas e sugeriram que construíssemos alguma ação que desviasse as atenções, Presidente. Estamos monitorando alguns doidinhos que andam pesquisando coisas na internet. Estado Islâmico, bombas, esse tipo de coisa. Achamos que se desencadearmos uma grande ação de combate ao terrorismo internacional aproveitando que o assunto anda meio em alta, poderíamos ganhar mais tempo. Presidente: Analistas, Kojac? Isso mais me parece com um daqueles planos do Bruxo. Mas tudo bem, se, pelo menos tirar o foco destes malditos cartazes, está autorizado.


17. Quando a luz dos olhos meus cruzar a luz dos olhos teus

Luz Aguiar era uma bela jovem de vinte e seis anos, quase vinte e sete dissera a Milton Schmidt entre um e outro momento de recarga de energia. Não lembrava-se nada dos pais para além do que a imaginação permitia-a recriar a partir de uma foto antiga dos três. Hippies meio fora de época seus pais eram verdadeiros aventureiros, tanto que conforme lhe contara a avó, os dois malucos tiveram a filha num acampamento holístico, ou algo parecido com isso. Por isso o nome de Luz. Luz Aguiar. Mas ela tinha pouco menos de três anos quando os pais a deixaram com a avó. Dona Ângela, uma senhora negra que engravidara do filho de um patrão branco, fator responsável pela redução gradual da cor de pele na família. Assim, Luz não era totalmente negra, tampouco branca. Era ambas coisas ao mesmo tempo, o que significa dizer, uma típica Brisalense. Em determinado momento Milton inclusive elogiara e agradecera à descendência da avó, responsável pelos doces e carnudos lábios da iluminada Luz. Os pais da menina nunca mais foram vistos. Alguns amigos do casal, segundo a avó “os doidões”, eles teriam sido abduzidos por alienígenas. Porém, ainda que a avó jamais tivesse revelado à neta, havia a forte probabilidade de que eles tenham desaparecido depois de uma encrenca com um grupo de policiais. Mesmo em tempos mais pacíficos, Brisal sempre foi um lugar em que a autoridade não gosta de ouvir muitas verdades. Sempre trata-se de desaforo. Desde então a neta foi criada pela avó que depois da experiência traumática em casa de família nunca mais conseguiu trabalho de forma fixa. Tinha sempre a impressão de que ao chegar em alguma casa para pedir emprego que ali havia uma relação, uma lista negra de quem jamais deveria ser contratada. Ainda assim, ela conseguiu sobreviver fazendo a mesma coisa, só que de forma mais insegura. Foi certamente uma das primeiras diaristas do país, cada dia numa casa diferente, baldes, vassouras, dinheiro incerto, mas capaz de mantê-la morando na comunidade de Butanópolis. Criando uma neta que tornou-se filha.


Nesse tempo as duas se deram muito bem, e diga-se a verdade, diferentemente dos pais, Luz sempre fora uma menina bastante focada cujo grande desejo e sonho era ter uma vida decente e poder ajudar a avó a descansar um pouco. Por ter esse foco é que ela foi capaz de fugir das constantes armadilhas do lugar e de fora dele, visto que já aos treze anos sua beleza e sua capacidade intelectual tornavam-se tanto atrativo como motivo de preocupação, dependendo de quem a observava. Para a avó, aquela menina era seu grande orgulho. E mesmo que o fizesse em curtos e esparsos momentos, havia horas que Ângela via na garota a redenção, pois não errara com ela o que errara com a filha. Esse na verdade era um pensamento bastante inócuo, pois mãe e filha era pessoas diferentes. Luz então aproveitou tudo o que podia. Perambulava pelas ongues que surgiam pela comunidade, dedicava-se à escola, e ao ter finalmente em Brisal um governo de olhar mais humano e progressista, ela aos dezessete anos conseguira algo que sempre vinha sendo um feito para gente pobre. Ingressar nas universidades federais. Então o mundo da menina que já tinha certo lastro agigantara-se e quatro anos depois ela formava-se numa cerimônia em que nunca se vira tanto Dona Ângela chorar ao longo da vida. Mas Luz tinha um foco, seria uma grande educadora, seria alguém a colaborar para que cada vez mais e mais crianças pobres como ela, que já frequentavam as universidades em maior número, tivessem acesso a uma educação decente. Por isso ela não pararia na graduação, três anos depois concluíra seu mestrado e naquele sábado que fora beijada pelo estranho apaixonado, já era uma doutoranda em linguagens. Disso Milton Schmidt nada sabia, nem mesmo que ela não morava mais por ali, mas que aos finais de semana regressava à comunidade para executar seus projetos voluntários em ongues parceiras. Luz lecionava agora em um turno em escola pública e noutro numa universidade particular, seu próximo passo seria lecionar em faculdades públicas. Luz sabia o que queria, e Luz tinha também conceitos bastantes definidos. Disso Milton nada sabia, tampouco desconfiava da grande distância que os separava. Mas saber isso seria importante para compreender porque terminavam aquele romântico sábado aos gritos.

*** “Você precisa denunciar tudo isso. Você tem que fazer o que é certo.” “Ei, não precisa gritar. Nós mal nos conhecemos.” “Foi você que disse que me amava.”


“E amo.” “Milton, você pode se tornar o maior herói deste país.” “Um herói pobre, você quer dizer. Provavelmente morto.” “Você é um homem ou um rato? Caralho, se tudo o que você me contou for verdade, é a única pessoa capaz de provar que tudo aquilo foi um golpe.” “Ninguém mais está interessado se foi golpe ou não. É só política, como sempre foi.” “Só política um escambaus, cara. Tem muita gente sofrendo com isso tudo. Estão retirando os direitos dos mais pobres, estão agindo como numa verdadeira vingança contra os avanços sociais, Milton.” “Justamente por isso, caramba. Eu não preciso sofrer. Nós não precisamos. Podemos escapar disso tudo, minha querida.” “Não me venha com essa de minha querida. Cara, isso trata-se de caráter, de responsabilidade. Você mudar a história desse país. As pessoas precisam saber a verdade.” “Luz, as pessoas já sabem. Os que gritam contra, os que bradam a favor, e mesmo os que estão em silêncio. Todo mundo sabe como as coisas funcionam ou funcionaram. Te garanto, não mudaria nada. Nunca muda.” “Você é incapaz de ver, não é mesmo. Se as coisas nunca mudassem eu continuaria sendo uma escrava. As coisas mudam, Milton Schmidt.” “Para mim nunca mudaram. Essa é a minha grande chance.” “Você está indo pelo caminho mais simples, cara. E o caminho mais simples historicamente é o caminho mais errado. Se você não fizer nada, se você não atirar essa merda toda num gigantesco ventilador, sei lá, pode acreditar, um dia a conta te chegará. É sempre uma conta cara.” “Mas eu terei recursos para pagar.” “Você é um facínora. Como eu pude me envolver desse jeito. Como não vi que no fundo é mais um mal caráter, um babaca se achando esperto. Você é tão sujo quanto eles. Vá se foder.” Nesse momento a tensão atingia seu máximo e Milton pressentia que perderia para sempre o amor de Luz. Provavelmente já perdera. Na verdade, como ele poderia saber se já o tivera, isso e alguém pode ter algo como o amor. “Ei, não precisa sair. Não vá. Aliás, nem mesmo sei se os caras vão cumprir o que disseram.” Talvez tenha sido uma nesga de esperança que tenha feito Luz interromper sua


saída brusca. Quem sabe se os caras tivessem furado com o recente amante, ela fosse capaz de convencê-lo a agir para o bem comum. “Liga essa merda aí e vamos conferir”. Era quase dez da noite de sábado e se serve de atenuante a Milton Schmidt ele até então nem mesmo lembrara-se de conferir o sorteio da loteria. Ligou o notebook e acessou o site. Lá estavam as dezenas sorteadas. Um. Dois. Três. Quatro. Cinquenta e Nove. Sessenta. Mas antes que pudesse comemorar ou que retomasse a discussão sobre ética com sua recente paixão, apontando para a pequena e silenciosa televisão, Luz atraiu sua atenção. “Ei, não é você ali?” Quando aumentou o volume, Milton Schmidt descobriu que estava completamente fodido.


18. Transcrição de áudio #9

Presidente: Aristeu, é o Micael. Aristeu Pastilhas: Fala, Meu Grande Líder. Presidente: Recebi informações de que o Laércio pode perder o controle daquela operação. Aristeu Pastilhas: A Mata-Rato? Presidente: Fale com o Bruxo. Parece que aquele juiz é mais amigo dos gringos do que pensávamos. Além disso, o Dudu está pressionado, o homem é uma bomba e essa maldita mulher parece que quer ver essa coisa toda explodir. Aristeu Pastilhas: Temos então que trocar a bomba de colo, chefe. O partido está organizado. Presidente: Sei disso, você é muito competente. Por isso mesmo precisamos botar a andar mais rápido nossos planos. Não foi fácil, aquela mulher, te conhece bem, mas conseguimos encaixar você em um lugar na nova administração. Aristeu Pastilhas: Não era necessário, Chefe. Presidente: Talvez para você não. Para o projeto é essencial. Não é nenhum ministério, mas terá condições e recursos para articular apoios que faltem. Esse novo congresso é o mais manipulável dos últimos anos, você conseguirá angariar nossos votos, afinal confessá-lo-ei que invejo esta tua capacidade para o sufrágio. Aristeu Pastilhas: Então será assim, Chefe. Presidente: Ok. Nos falamos melhor pessoalmente no Palácio dos Urubus.


19. Tarãrãrã Tarãrãrã…

Milton perdera a musiquinha que geralmente indicava situação de pânico no país e que há décadas servia de introdução aos plantões da Rede Esfera de Televisão. Era um som que crescera com ele e de certa forma indicava padrões de uma época. Teve o momento dos mortos famosos a quem a emissora sempre decretava um plantão, teve os períodos de guerra, mas hoje em dia, geralmente tinha a ver com escândalos políticos. Desde sempre, Milton como qualquer brisalense era condicionado a aumentar o volume e vidrar nos apresentadores de telejornais. Agora o que nunca em sua vida imaginou que ele, logo ele, o cidadão mais insignificante do país tornar-se-ia o foco de um daqueles maquiavélicos plantões. “Segundo o Ministro da Justiça...” dizia a inconfundível voz do âncora Kilian Coxa “o grupo desbaratado no dia de hoje planejava ataques terroristas em Brisal e no resto do mundo. Conforme o governo a descoberta desta célula terrorista foi possível através do monitoramento de redes sociais e ligações telefônicas que revelam a estrutura e os planos do grupo que pretendia se armar. Na ação de hoje foram presos seis integrantes, contudo o provável líder, Milton Schmidt da Silva, operador de redes de comunicações, esta desaparecido. Conforme o ministro Alex Sander o indivíduo é perigoso e segundo áudios de posse da Polícia Nacional, é capaz de qualquer coisa. Por isso o governo está pedindo que quem o vir que o denuncie pelo Disque Denúncia. A operação foi batizada pela Polícia Nacional de Operação Graham Bell em homenagem ao inventor do telefone. Vamos ao vivo à Brisália, onde o ministro faz coletiva neste instante...” Milton Schmidt sentiu fraquejar as pernas. Fora retumbantemente traído por aqueles que chantageava. Armaram para mim. Nas mãos um bilhete de Cem Milhões de Reais que não lhe valeria nada, pois pensava que teria sorte se sobrevivesse até domingo. Na prática a coletiva de imprensa iniciava uma verdadeira caçada, e ele era incapaz de compreender o que falava aquele cara careca enquanto uma imagem meio antiga pululava pela tela com o dizeres abaixo Cinquenta Mil – Recompensa por Informação. “Caralho, os caras te foderam mesmo.”


Só então Milton lembrou que Luz continuava ali com ele. Ia falar algo, quando seu telefone pessoal tocou. Atendeu.

*** “Alô?” “Senhor Bola de Fogo, ou devê-lo-ia chamar de Milton? Está gostando da fama seu verdadeiro filho da puta? Estás rico, que tal?” “Presidente?” “Foste avisado que este não era um jogo para perna de pau como você, seu reles estrume. Nem deveria te ligar, qualquer capanga poderia ter feito isso, mas mexeste com o homem errado. Não se brinca com quem não deve, a puta da senhora sua mãe deveria ter te avisado disso seu imbecil.” “Fala logo o que o senhor quer?” “Eu? O que teria o Presidente da República para desejar de um zé ninguém como tu? Liguei apenas para dizer-vos: Requiest in Pace.” Tu. Tu. Tu. Tu. Tu.

***

Pânico. Essa era a única palavra a descrever os sentimentos de Milton Schmidt. Se o presidente desejava amedrontá-lo, fora feliz em sua iniciativa. O rapaz andava em círculos pelo barraco sem dizer nada com nada e sem saber qual decisão tomar. “Os caras não são loucos, se você têm as tais provas não iriam ao menos pedi-las de volta.” tentou ponderar Luz que parecia estudar como lidar naquela situação. De certa forma a raiva que sentira pela forma interesseira e mal caráter de Milton lidar com o assunto vinha diminuindo. “Não sei. Não sei. Não sei. Ele não disse nada… nada..” “Cara, sei lá, você precisa jogar essa merda toda no vento. Agora não dá mais, tem que fazer isso.” “Não sei. Não sei. Não sei. Deixa eu pensar. Deixa eu pensar.” “Merda Milton. Destrava, cara. Me escuta, para pra pensar. Você precisa reagir. Tenho amigos que poderiam ajudar...” O fato é que o falatório de Luz Aguiar estava entrando e saindo pelas orelhas de


Milton sem que ele processasse qualquer informação. Mergulhara num catatonismo paralisante, do qual só foi sugado por um grande golpe de sorte. Acontece que naquele exato instante, Buiú esquecera-se de conferir as mensagens do Chefe do Comando, e só por isso, ao invés de ficar em silêncio com a chegada dos hôme, como fora recentemente ordenado, ao não saber disso fez o que era pago para fazer. Soltou foguetes. Milton escutara os foguetes, mas não tinha sido capaz de relacionar aquilo com sua situação. “Puta merda, eles chegaram” disse Luz, pegando o amado pelos braços. Era hora de fugir.


20. Transcrição de Áudio #10

Presidente: Presidente Polvo, como vai o senhor? Ex-Presidente Polvo: Oi querido, tudo bem, e você? Presidente: Bem, o senhor sabe, não são dias muito fáceis pois lidar com a base revoltosa enquanto a senhora presidente não colabora, tem sido complicado. Mas convencer-vos-ei de que precisamos mantermo-nos unidos para o pleito. Ex-Presidente Polvo: Olha companheiro Micael, será importante teu partido seguir na aliança, e sei que teus parceiros não vão jogar fora o quinhão que já possuem da república. Presidente: Mas o senhor sabe como são essas coisas, o partido é grande, não conseguimos espaço suficiente, sem falar que o senhor acompanhou este mandato, tem pegado mal essa figura decorativa que tornei-me no governo. Ex-presidente Polvo: Porra, meu querido. Vai querer vender essa para mim, Micael? Logo eu, o presidente mais foda da história. Tem mesmo certeza a quem pertence figuração nesta joça? Presidente: É melhor o senhor levar a sério as queixas do partido, Presidente Polvo. Tenho inquietações sobre aonde podemos parar. O Dudu anda qual touro bravo, o Brenan é aquela águia de sempre e se fosse a presidente não levaria muita fé. O Laércio quer partir com tudo para as eleições, sem falar que o Egardo conseguiu financiadores de peso. Esta poderá ser uma eleição complicada, e sem o nosso partido, o senhor sabe, não se viabiliza. Ex-presidente Polvo: A puta que o pariu, Micael, você sabe que vocês não sairão do governo, não quando estamos fazendo história nesse país. Nunca antes tivemos tantos avanços sociais. Até a Onu nos elogia, caralho. Mas eu sei que isso não importa para vocês, e com o quê importa, os passarinhos me cantam o quão felizes vocês estão. Porra, Micael, até quem desce o pau na pobre Vilma tá com a horta inundada de tanta chuva. Presidente: Mas o senhor precisa voltar, Polvo. Ou então [ininteligível] Ex-presidente Polvo: Depois a gente se fala, Micael. Deixa eu ir, vai começar minha


palestra.


21. Chuva de chumbo

Se isto aqui fosse um filme seria justamente o momento que a imagem retrocede até aquele dia em que Milton Schmidt confraternizou com os rapazes do morro para que descobríssemos que bem no final daquela festinha, quando todos já estavam bastante bêbados ou chapados, Milton Schmidt fizera uma pequena transação investindo Trezentos Reais numa pechincha por um trezoitão. Como isso aqui não é um filme, então, bem, vocês já sabem, Milton correu até o armário em que tinha escondido o ferro e pegou-o antes de saltar para a densa e sombria noite. “Vamos, sei um lugar em que podemos esperar umas horas” Disse-lhe a amada Luz, agora tomada pela adrenalina totalmente esquecida da recente desavença ideológica. “Opa. Espera aí.” Milton disse-lhe e correu para dentro de casa. Havia esquecido-se da mochila e seus apetrechos. Entre eles o HD com os áudios. “Pronto, vamos dar o fora.” “Caralho, agora que vi. Você está armado.” “O que foi?” “Ah, esquece.” Os dois de certa forma acreditavam que pelo pouco espaço de tempo entre os foguetes de aviso e a retirada conseguiriam fugir a tempo. Pelo menos por aquela hora. “Ei, por aí não.” Luz foi enfática ao chamar a atenção dele. “Vamos por outro caminho, sair pelo outro lado.” o que significava ir ao topo máximo do morro e sair pelo lado oposto da entrada da comunidade. Aquele, como bem sabia a menina nativa era o caminho pouco usado e conhecido, e principalmente a rota de fuga dos traficantes a cada ação policial por ali. “Eles nunca esperam do outro lado” ela disse arfando, já começando a demonstrar cansaço pela corrida noturna. “É só me seguir.” Às costas deles já podia-se ouvir os estrondos das portas de barracos sendo derrubadas. Os gritos de autoridade. E não demorou para que um ou outro tiro fosse


ouvido. Por instinto ambos agacharam-se como que se pudessem ser picados por alguma bala-inseto. “Merda. Merda. Merda. Estão perto.” Se algo que Milton Schmidt nunca aprendera fora viver. Estava acostumado a sua rotina quase que robótica de trabalhador classe média baixa com longas jornadas, translados cansativos e pouca coisa com que se preocupar efetivamente. Por isso ele demonstrava tanta inaptidão naquele momento em que a vida lhe surgia com toda intensidade e o punha no meio de uma trama quase que romanesca. E tudo pioraria quando os dois fugitivos, num trecho da trilha, foram abordados por três rapazes do morro. Um deles gritou. “Ei forasteiro, para aí onde está. Temos que te entregar pros homê. Nada de bagunça na nossa casa.” Puta que o pariu, pensou Milton, paralisando onde estava. Nas mãos trêmulas o revólver não sentia firmeza alguma de seu portador. Pow. Pow. Tey. Tey. Tey. Tey. Pow. E antes que Milton Schmidt se desse conta, Luz Aguiar tomou-lhe a arma e disparou contra os três traficantes. Dois tombaram na hora, o terceiro que chegou a reagir não demorou a cair com um tiro na testa. Se houvesse iluminação suficiente naquela hora e naquele lugar Milton Schmidt teria visto a carinha marota de Luz quando disse ao incrédulo fugitivo “Que cara é essa? Aulas de tiro. Bora.” “O que é isso?” “Três caras mortos, oras.” Disse ela quando os dois cruzaram pelos corpos caídos; “Não isso. Esse barulho...” “Merda!” A merda no caso era o helicóptero da Polícia Nacional. O governo não brinca nas ações contra terroristas e poucos segundos depois da constatação de Luz, a aeronave surgiu no alto da comunidade e seus holofotes dançantes logo acharam os dois fugitivos que traçavam linhas sinuosas num terreno sujo e de grande declive. Ratatatá. Ratatatá. Quando a ação envolve terrorismo, o governo geralmente também atira antes de perguntar. Lá no chão, começava para Milton Schmidt uma miríade confusa e agitada de acontecimentos, e como o trauma de um acidente que bagunça a memória, os


instantes daquela hora tornaram-se uma mistura híbrida de dores e percepções. Lembrase do azulado da luz artificial, do estalar de telhas quebradas, de vielas labirintíticas, da fisgada que sentira no braço, das sombras que o envolveram, e mais nada. Nada com nexo. Nada linear. Quando despertou naquele ambiente estranho tinha certeza de ter sido pego. E não fazia a menor ideia de como fora parar naquele quarto, tampouco que lugar era aquele.


22. Transcrição de #Áudio 11

Presidente: Laércio? Como vai? Senador Laércio Neves: Senhor vice-presidente, parabéns pela vitória de hoje. Presidente: Obrigado, Senador. Mas não foi por isso que te liguei. Nem mesmo para fazer papel de bobo te parabenizando pela disputa ferrenha. Precisamos tratar do futuro da república. Senador Laércio Neves: Não estou entendendo, Micael. Presidente: Você entenderá, Senador. Colocar-me-ão para salvar este país destes esquerdistas irresponsáveis, Senador. Mas para isso será preciso seu apoio e de seus pares. Vilma e o seu partido não podem mais ficar no poder. Senador Laércio Neves: O que você está querendo dizer, Micael? Presidente: Por enquanto nada, Senador, mas em breve o Bruxo fará uma visita ao seu gabinete, e então explicar-vos-á detalhadamente como poderemos unirmo-nos num grande pacto de salvação nacional. [ininteligível]


23. Um Herói Nacional

Naquela manhã atípica de domingo Milton Schmidt despertara de sonhos confusos e sombrios. Aquele seria um dia para comemorações de um recente milionário, contudo a paisagem mofada que constituía sua obra particular e restrita no barraco no cume do morro, aquele da bananeira, e também de uma roseira só agora lembrada por ele, foi substituída por um ambiente de pintura sóbria, mas bem feita, beliches espalhados pelo quarto, quase um pequeno salão e decoração feita com cartazes, quase todos eles com a predominância da cor vermelha, punhos erguidos e com as palavras luta e resistência inseridas num ou outro canto dos postêres. “Eu vim parar, por acaso, no quartel-general dos Sem Roça?” ele disse para ninguém em especial, até porque em seu despertar pensava estar sozinho naquele novo e desconhecido ambiente. “Quase, isso. A gente apoia também os companheiros sem terras para produzir.” Disse a voz reconhecível de Luz Aguiar saltando da cama de cima. “Bom dia para você, Cinderela, ou Boa Tarde, afinal, logo anoitecerá.” “Caramba, eu dormi tanto assim. Como chegamos até aqui? Aliás, onde estamos?” Enquanto falava o operador desempregado e recente maior terrorista e homem mais procurado pela Polícia Nacional de Brisal sentia as dores musculares, os arranhões, e mesmo o não muito grande curativo no braço esquerdo. Ainda assim um curativo. “Bem, quanto a primeira pergunta, que sabe, um dia te conto. Já a segunda, aqui é um espaço amigo, mas acho que não poderemos ficar aqui muito tempo. É arriscado, tanto para você, quanto para o deputado.” “Deputado? Que porra é essa, vamos dar o fora dessa merda, agora.” “Ei, calma, cara. É gente amiga. É do João William, saca, ele tem esse espaço para militância.” “Merda. Merda. Merda. Detesto esse filho da puta.” “Mas esse filho da puta é provavelmente o único deputado que nessa hora talvez


não deseje te matar seu cagão. Eu nem deveria te trazer aqui, até porque você nem merece. Não esqueci dos seus planos, não.” “E por que me ajudou, então. Ai.” “Meu, não mexe nesse braço, foi um tiro, mas só de raspão, mas é bom não mexer”. “Tiro? Eu levei um tiro? Merda. Merda. Merda.” “Ah, deixa de ser frouxo, Milton. Esse é seu nome mesmo, não é?” “Claro, porra. Já te falei, gata. Tô apaixonadão por você.” “Seu filho da puta charlatão” ela disse numa falsa zombaria para logo então dar um beijo em Milton. Mas nada muito meloso, uma espécie de trégua momentânea. “Gato, vou te dizer uma coisa, você está fodido. De meia em meia hora surge algo sobre você naquela bosta de Rede Esfera? Acharam até uma professora tua que disse que na escola você vivia dizendo que ia ser homem-bomba.” “Mas que porra é essa. Quando eu estudei nem sabia de merda de homembomba algum.” “Você sabe, deu na televisão, é verdade. Pelo menos para a maioria dos babacas.” “Merda. Merda. Merda.” “Calma, cara. A gente pode te ajudar.” “Ajudar o caralho. Não tem como, é o governo, porra. Se eles mataram o juiz, sem falar nos outros lá, estou fodido. Eu preciso fugir desse país. Preciso fugir.” “Ahãm espertão. Para onde? Meu lindo, eles te incluíram numa lista internacional de terroristas procurados. Para onde você for, vai ter gente à tua procura. Acredite, você deveria ter pensado melhor antes de chantagear a Grande Quadrilha Nacional. Nossa, me desculpe, mas você foi um tapado.” “Porra, dá pra parar com a lição de moral, logo você, a perfeitinha. Não deveria ser mais compreensiva, não?” Risos para distensionar o diálogo. “Cara, olha só, vou te dar a real. Também gostei de ti, corajoso e tals, e tipo assim, eu estava afim e deixei rolar. Não vou dizer que, ó, nossa como eu te amo, essas coisas do caralho todo. Sou muito independente para isso. Também não vou te iludir, nossa estou tão apaixonada que vou me meter numa merda desse tamanho só para apoiar o grande amor da minha vida. Esquece isso, tá...” “Nossa, você sabe destruir o coração de um homem...” “Mas...” “Mas...”


“Mas isso aqui é história, cara. É nitroglicerina, é uma nova república a nascer, nem a pau que eu vou deixar passar a chance de revolucionar essa merda...” “Pelo amor de Deus, Luz, eu já disse que...” “Nananinanão… quieto, Milton Schmidt. Você vai me escutar. Veja só, a situação é a seguinte. Escutei um pouco do teu material, e porra, cara é foda. Não sei como você conseguiu isso, mas é foda do caralho. Você pode espernear, dizer não, gritar, pode fazer tudo isso, mas não tem como fugir dessa coisa, não mais. Se tentar sair, te pegam. Se ficar, também te pegam. E vamos combinar que você não planejou muito bem seus planos e também não faz a mínima ideia de no que se meteu.” Naquela hora Milton ainda desconhecia a profissão de Luz Aguiar, mas dentro dele não havia dúvidas que ali estava uma professora linha dura, destas tipo sargentão que deixam poucas opções em aberto. Não estava de todo enganado, Luz não era tão autoritária assim, contudo sabia adequar o discurso conforme o interlocutor. “Milton Schmidt, você é um cara marcado para morrer. Vamos lá, você sabe, é questão de tempo, se você não encontrar ajuda, isso será inevitável. Nem mesmo a porra do bilhete aí no teu bolso pode te ajudar agora. Confesse, os filhos da mãe tem um senso de humor bastante sombrio, ou então demoraram mais do que o esperado para te achar.” “O que eu faço?” “Nós podemos te ajudar, cara. Já te disse. Não abri todo o jogo para o João, mas ele sabe que tenho coisas grandes em mãos. Caralho, ele vai pirar. Você tem material para escancarar o golpe, cara. Todas as provas. Seu nome vai entrar para história, juro. Posso até fingir que não tivemos aquela conversa lá no morro, cara.” “Eu não sei se consigo.” “Eu, tu e eles, nós podemos, sim. O partido tem meios de espalhar tudo isso, porra, a gente pode espalhar isso com rastilho de pólvora. Depois que isso vir a público essa gente cai do poder, e é justamente a questão maravilhosa para o seu caso. Pensa, Milton, você só voltará a ser livre se vier outro governo, e para isso, este tem que cair. E nós, apenas nós temos como fazer isso, cara.” “Merda. Merda. Isso é muito grande.” “Pois é, acho meio tarde para pensar nisso. Além disso, se te dá um ânimo, se as coisas acontecerem muito rápido, quem sabe ainda dá tempo de você receber a porra desse bilhete no seu bolso.” Um lampejo fez brilhar os olhos de Milton Schmidt. “Ah, isso foi uma brincadeira, viu. Um herói nacional não pode dar um exemplo torto destes.”



24. Transcrição de Áudio #16

Presidente: Oi, Staff, sou eu. Saulo Staff (Associação Nacional das Indústrias): Bom dia meu futuro presidente. Presidente: Calma Staff, não será uma jornada fácil. Estou te ligando para ver como anda aquele assunto que tratamos na reunião da direção do partido. Saulo Staff (Associação Nacional das Indústrias): De vento e popa, Micael. Já reservei parte do orçamento da Associação para o projeto. Não faltará recurso para os movimentos de rua. Esses meninos são um tanto deslumbrados, e embora custem caro, dão retorno no investimento. Presidente: Tenho visto, está ficando bonito. Estão se organizando bem e estão conseguindo vender o nosso discurso. Apoiar-me-ão muito se continuar assim, e você sabe, sou uma cara generoso. Saulo Staff (Associação Nacional das Indústrias): Todos te conhecemos bem Micael. Tens que ver como o pessoal do mercado está animado. Sabem que tu irás acabar com essa mamata. Esses vagabundos estão cheios de direitos, querem isso, querem aquilo, estão ganhando cada vez mais enquanto mordem a maior parte dos lucros de gente como nós, que banca essa roda toda. Será a salvação da nossa economia, Micael, tenho certeza disso, a indústria não aguenta mais esses esquerdopatas obrigando-nos a conviver com essa ralé. Dia desses chegou o absurdo de uma filha de uma antiga faxineira lá de casa discutir com meu menino na Universidade Nacional. Chega, esse tipo de coisa tá enojando todo mundo. Presidente: [ininteligível] Saulo Staff (Associação Nacional das Indústrias): Você está certo, Micael. Terei paciência. Presidente: Pois tenha meu grande amigo. Estabeleceremos uma agenda reformista nesse país. Pode contar com isso. E, você sabe, pode ir dizendo para a turma aí que logo essas leis malucas do trabalho serão alteradas. São velhas, só pendem para um lado. Informe-os, em off, claro, que os patrões poderão voltar a investir e lucrar sem ter medo


de tanta lei. Saulo Staff (Associação Nacional das Indústrias): Eles já sabem, presidente. Já sabem disso.


25. Flashback: O Grande Irmão está de olho, meu chapa.

Ainda que isso não seja um filme da grotesca vida de Milton Schmidt é preciso que nos permitamos a usufruir de poderes temporais e como naquele filme ruim que o Adam Sandler vive apertando Rewind, e voltar um pouquinho no tempo, para que não fiquemos tendo ideias estranhas ou então pensamentos duvidosos das ações que levaram ao Governo Central chegar até o chantagista. Na verdade, é bem verdade que as forças do governo, e em especial A Grande Quadrilha Nacional estavam totalmente no escuro a respeito do audacioso chantagista que colocara-os numa prensa muito perigosa. Já tinham movido fundos e mundos para achar o tal cara e a falta de pistas por certo tempo deixou-os com a pulga atrás da orelha se seria ele de fato apenas o filho da puta de um chantagista. Por isso então a ideia de ganhar tempo. Sim a loteria. Eles levaram-na a sucessivos acúmulos até o fatídico sorteio. E ainda que Alex Sander tentasse colher todos os frutos da ação, fora o tal Bruxo que dissera “nessa hora ele aparecerá.” De fato aquele foi o passo mal pensado de Milton Schmidt, contudo, talvez ele até pudesse ter escapado se fosse um pouquinho, mas só um pouquinho mais esperto. Porém, ele nunca sequer, jamais imaginou que seria aconselhável terceirizar a realização da aposta. Mal sabia ele que seus inimigos esperavam pelo momento exato em que as seis dezenas mágicas surgissem no campo de jogo. Teria sido muito bom se Milton Schmidt fosse uma anômalo brisalense, daqueles tipos que leem livros. Especificamente, 1984. Quem sabe assim ele pudesse conhecer o conceito de Big Brother, algo bem distante daquele programa de televisão em que ele não perdia uma temporada vendo bundas deliciosas e sussurros sob edredons. Acontece, meu chapa, que O Grande Irmão está sempre de olho. E têm muito mais recursos que as teletelas imaginadas pela fértil mente de Orwell. 33Min 21s depois de feita a aposta a notificação chegara ao comando de crise, uma sala secreta entre as salas secretas do Ministério da Justiça. O espaço tomado por especialistas e políticos ligados apenas à quadrilha se dedicavam há dias numa força tarefa de encontrar,


identificar e eliminar o perigo à república. Da notificação da realização da aposta em diante as coisas voaram como que num episódio de 24 Horas. Aposta identificada. Casa lotérica identificada. Acesso às câmeras de segurança. Registro em imagem do apostador. Endereço da aposta localizado. Perímetro estabelecido. Identificação do apostador. Algo em torno de quarenta minutos do registro das imagens. Três horas depois (a única vantagem de Milton era estar sendo caçado pelo governo de Brisal, que como podem observar é um pouco mais lento que as grandes potências) na mesa havia um dossiê completo sobre Milton Schmidt da Silva. Nascimento. Grau de escolaridade. Relação de seus votos nas últimas três eleições. (“que pena, era um dos nossos” chegara pensar o ministro Alex Sander ao observar a relação de votos). Registro de todos seus empregos, inclusive o último, no qual, inclusive corria o risco de ser demitido por abandono de emprego. A Companhia Telefônica alô!. “Bingo”. Na sexta-feira à tarde já tinham tudo o que precisavam para agir, e ainda o plano elaborado por Bruxo, mas que Alex Sander jamais iria confirmar. Devia ser por volta das 16:00 quando a porta foi aberta pelo Grande Chefe. O Senhor Presidente da República. Nada seria feito antes da palavra final dele. Micael, por sua vez, queria foder com a vida daquele filho da puta imprestável. Estava disposto, assim como fazem os gatos com seus ratinhos, brincar um pouco com sua vítima.


26. Transcrição de áudio #13

Aristeu Pastilhas: Oi Micael, sou eu. Presidente: Bom dia. Pronto para ser ministro? Hoje é o grande dia. Aristeu Pastilhas: Será mesmo um dia interessante. Mas, Micael, estou te ligando para ver se vais mesmo confirmar o Alex Sander na Justiça? Aquele cara é um lunático. Presidente: O que está acontecendo com você, Aristeu? Há quantas décadas estamos juntos e você sempre apoiando minhas escolhas. Sabe que preciso de ti, não me pressione tanto. Acalmar-me-á se não ficares aí com disputas menores… Aristeu Pastilhas: Não é isso, presidente. O senhor sabe da minha lealdade, mas aquele cara é perigoso. Presidente: Acalme-se, homem. Deixe o Kojac comigo. Não posso virar as costas para ele. Sabes bem o quanto ele nos foi útil no estado. Esse homem estará lá justamente para fortalecer a nós dois, a nós dois, Aristeu. Aristeu Pastilhas: Ok. Tudo bem Micael, apenas… [inaudível]


27. Eu vou para Brisália eu vou

Milton Schmidt tivera estranhas sensações ao encontrar pela primeira vez aquela pessoa a qual conhecia tanto da televisão, dos jornais, e principalmente dos posts compartilhados por amigos mandando-o para alguma republiqueta socialista, chamando-o de esquerdopata e alguns outros adjetivos mais raivosos e que geralmente atacavam sua sexualidade. Por algum momento, confessa-se, Milton manteve as reservas germinadas pelos ferozes ataques do inimigo daquele cara de estatura baixa, cabelos longos e emaranhados e surpreendentemente para o operador-terrorista, portador duma voz tranquilizadora como os sons de quedas d'águas. “Olá, rapaz. Tudo bem?” Também não seria justo esconder que nesse primeiro momento quando o deputado estendia as mãos para “seu protegido”, aqueles segundos que pareceram horas uma vida inteira de preconceitos plantados tiveram sobrevida, até com o ridículo medo de Milton em “pegar” homossexualidade por contágio de contato. Injusto também se escondêssemos que após titubear o protagonista só não dissera todas aquelas bobagens que compartilhava no Facebook, porque, afinal, seu cu estava na reta, e até então aquela figura fora a única a apresentar-se em seu auxílio. “De-deputado. Tu-Tudo Bem. E o senhor?” “Luz, minha Luz, que amigo tímido me arrumaste. Sente-se, rapaz. Vamos conversar.”

***

E eles conversaram por umas boas duas horas num diálogo geralmente conduzido de forma hábil por Luz, que sabe-se lá por quais mistérios decidira proteger as “antigas” intenções de Milton Schmidt permitindo que ele falasse tão somente “do seu material”. E assim ele o fez, relembrando que trabalhava na companhia alô!, como tivera acesso ao material… “Um verdadeiro instinto de nacionalidade, João. O Milton me falou que algo


disse a ele que não poderia deixar desaparecer aquilo. Que se o país soubesse...” “É, é fo-foi isso.” Tiveram de enrolar um pouco, algumas lacunas, algumas brechas até chegarem ao encontro dos dois. “Depois que percebeu o que fizera, coitado, fugiu para a comunidade. Perdido totalmente. Não sabia o que fazer. Então, bem, então, é isso nos conhecemos no pagode, não sei porque cargas d´águas esse moço heroico decidiu me contar tudo. Destino, João, destino, só pode ser.” “Luz, minha Luz, isso é muito sério. Muito sério, você não pode brincar comigo. Isso tudo é verdade, rapaz?” Num esgar de consciência clara, Milton pensou que aquela seria uma hora melhor para mostrar do que apenas balançar a cabeça ou dizer “sim, senhor.”. Foi até suas coisas, pegou o HD e plugou-o a um computador.

***

Seria impreciso tentar descrever qualquer reação de João William naquelas horas a ouvir os áudios hackeados por Milton Schmidt. Espanto, incredulidade, nojo, raiva, medo, coragem, ansiedade, esperança, descrença, enfim, cada um desses sentimentos entre outros tantos, como pixels que constroem uma imagem digital, “construíam” um semblante atônito e particular na face de um deputado horrorizado por tudo que descobria. “Caramba, Luz. Caramba.” Dizia ele repetidamente “Isso aqui põe tudo a baixo, isso aqui pode desfazer esse maldito golpe, pode… pode… Rapaz, eu preciso desse material, eu preciso voltar à Brisália. Você será lembrado para sempre Milton Schmidt, para sempre..” “O que faremos, João?” Perguntou Luz Aguiar com um “namorado” catatônico ao seu lado, incapaz de perceber que as engrenagens começavam a mexer-se demasiadamente rápidas. “Eu vou é voltar para o Congresso. Hoje essa elite dos quintos dos infernos irá escutar o maior discurso do meu mandato. Você será lembrado, Milton Schmidt. Você será lembrado. Não temos tempo a perder. Hoje o golpe cai...” “E a república, João?” “Torçamos para que ela sobreviva, Luz, minha Luz. Fiquem aqui, não saíam por nada. Vocês correm perigo enquanto aquele fascista estiver no encalço. Mas amanhã


será outro dia, outro dia, meus queridos.”

***

Em dois três minutos o deputado conseguira agendar voo para a capital federal. Neste ínterim conseguira despachar com o gabinete ordens para que preparassem uma grande coletiva de mídia, pediu empenho para que todas as empresas, mesmo as golpistas lá estivessem. Sentiria grande prazer ao pegá-las de surpresa. Seu pai lhe ensinara quando pequeno, diante tantos ataques, que embora não ideal, mas que se precisasse, que fosse aliado da surpresa. Golpes rápidos e inesperados podiam nocautear. Ele pretendia nocautear o centro do golpe naquele dia ainda. Mas para isso não deveria ter escrito um insano prólogo em cento e quarenta caracteres. “Hoje a máscara cai. Hoje revelarei as nuances e as faces desse golpe fascista e capitalista. Contra provas não há mentiras que se sustentem”. Despediu-se dos dois com um abraço bastante carinhoso. Sem saber bem porquê, Milton sentiu certa leveza ao abraçar o deputado que pensara odiar. “Esse é um cara bacana” pensou enquanto João William saía pelo hall com sua pasta tipo carteiro atravessada pelos ombros. Dentro dela o HD de Milton Schmidt. Aquela foi a última vez que se viram.


28. Transcrição de áudio #14

Vilmar Menfis: Oi Micael, como vai Vossa Excelência? Presidente: Mais de trinta anos de amizade e ainda precisas de tanta formalidade, Vilmar. Vilmar Menfis: [risos] Degradar-se-ia a república se assim o fizéssemos Senhor VicePresidente, quiçá, muito brevemente O Excelentíssimo Senhor Presidente. Presidente: Estejais certo de que tereis um servo aos desejos da magistratura. Vilmar Menfis: Nós sabemos, Micael. Nós Sabemos. Estou te ligando justamente para tranquilizá-lo. Temos amigos suficientes aqui na Corte para afirmarmos o andamento constitucional do processo. Sabeis que há uma e outra voz reticente, mas o conjunto da Corte Máxima sabe que não podemos mais aturar estes esquerdistas no executivo. Chega, já tiveram tempo para se divertir, está na hora do país voltar às mãos de seus verdadeiros construtores, de seus verdadeiros pilares… Presidente: Emocionar-me-ei se continuares a falar assim, grande amigo. Vilmar Menfis: Sabeis que é pura verdade. Aliás, botamos o Polvo para correr. Aquele filho da mãe é muito ladino, se entrasse no governo o projeto corria risco. Presidente: Concordo. Vilmar Menfis: Eles não esperavam por essa… [Gravação interrompida]


29. Tararã tararã tararã #2

No que João William saiu do edifício Luz e Milton ficaram como numa bolha espaçotempo sem saber bem o que fazer. De certa forma ambos tinham a impressão de terem terceirizado seus problemas, e ao mesmo tempo sentiam como se tivessem vencido ainda que precisassem aguardar algumas horas para o júbilo final. Nesse miasma de nada a se fazer, de impotência diante do próprio destino, fizeram aquilo que lhes estava ao alcance. Amaram-se. Depois conversaram trivialidades, movimentaram-se pelo “quartel-general” do deputado, fizeram piadas sobre certos cartazes, sobre outros Luz sequer permitiu uma palavra. Falaram um pouco de política, de filosofia, ainda que Milton Schmidt apenas ouvisse já que tinha a sensação de que sua amada estava anos-luz de conhecimento na sua dianteira. Então amaram-se de novo. Foi no recompor de energias, enquanto bebericavam goles de refrigerante quente e comiam um sanduíche feito com “restos mortais” encontrados na geladeira vazia que ouviram de novo a mística musiquinha do plantão da Rede Esfera de Televisão. Quando os microfones pararam de voar como ovnis a tela abriu-se com a imagem do âncora num semblante sério. “Boa tarde. A Empraero acabou de confirmar que o voo B1775 da Verde Aviação Aérea está desaparecido há 1:30h sem qualquer comunicação com os radares. O voo saiu de São Pedro com destino a Brisália com cento e oitenta passageiros e sete tripulantes. Mais informações a qualquer momento, e cobertura completa no Jornal da Nação.” Milton e Luz Aguiar entreolharam-se da forma natural com que as pessoas se olham quando duma informação destas. Com aquela tensão e anseio por vidas perdidas, mas ainda sem estabelecer qualquer relação daquela notícia com suas vidas. Por isso, talvez para distensionar o recebimento da informação discutiram por longos minutos sobre o que aconteceria com eles, o que aconteceria com o país e principalmente como


João William revolucionaria o Brisal.

***

Tinham levantado muitas hipóteses até então. Uma revolução, o povo tomando o Congresso, milhões na Avenida Pedrista, mas dessa vez, tomada de trabalhadores, operários, gente que vinha aguentando em silêncio o recente golpe ocorrido em Brisal. Utópica, Luz acreditava que dali discutir-se-iam novas plataformas de representação, mudança no sistema político, enfim, toda a esperança que desaparecera, agora, renascia naquela professora engajada, ciente do que o seu amigo Deputado Federal tinha em mãos era bomba pura. Contudo, a nova inserção do plantão televisivo, pela primeira vez causou-lhes preocupações. “Voltamos com informações do desaparecimento do voo B1775. A Empraero acaba de confirmar que o Boing 737 da Verde Aviação Aérea caiu em uma região montanhosa do estado de Pingas Gerais quando fazia o trajeto entre São Pedro e Brisal. Segundo informações da Agência da Aviação Nacional não há expectativas de sobreviventes. No voo estavam cento e oitenta passageiros e sete tripulantes. Segundo a AGAN o local da queda é de difícil acesso o que dificultará a aproximação das equipes de resgate e de investigação do acidente. A companhia aérea ainda não divulgou a lista de passageiros. Voltaremos com maiores informações a qualquer momento, e a cobertura completa às Oito e Trinta no Jornal da Nação.” Por segundos, uma tensão sepulcral, tomou o alojamento. Era como se Luz e Milton não estivessem ali.

*** “Será?” “Capaz, nada a ver. Bem capaz. Sem chance.” “Essa. Essa gente é perigosa.” “Não, não tinha como eles saberem de nada. Liga para ele.” Luz ligou para João William. “O número para qual você ligou está desligado ou fora da área de ligação. Depois do sinal deixe seu recado...” Luz desligou. Seu olhar traía-a. “Nada?”


“Sem sinal.” “Normal. Ele deve estar voando. Modo avião.” Ela tentou de novo. De novo. De novo. De novo. E de novo. “Sem sinal.” “Tenta o gabinete” Ela tentou, mas chamou. Chamou. Chamou. Chamou. “Também nada.” Foi então que a televisão respondeu-lhes. “Voltamos com informações da queda do avião da companhia Verde Aviação Aérea. A empresa acaba de divulgar a lista com os nomes dos cento e oitenta passageiros e sete tripulantes do voo. Acabamos de confirmar que entre os cento e oitenta passageiros estavam os cantores da dupla sertaneja Godoi e Juliano, o ator Gregor Vivian e o Deputado Federal João William. Confirmamos então que o Deputado João William está entre as vítimas da queda do avião do voo B1775. Sua última mensagem foi uma publicação misteriosa em uma rede social...” Desta parte em diante Luz Aguiar e Milton Schmidt não conseguiram prestar atenção nas palavras do jornalista. Apenas um sonoro “puta que o pariu” e um mobilizador “vamos dar o fora daqui agora mesmo” saiu daquele par de bocas atônitas. Nenhum deles tinha dúvidas de quais seriam os próximos para uma visita da Senhora da Caveira, para dar uma voltinha no Barco de Caronte, para fazer uma visitinha à cidade dos pés-juntos. O tempo corria contra os dois.


30. Transcrição de Áudio #15

Presidente: Bruxo, sou eu. Bruxo: Boa tarde, minha chefia. Presidente: Como anda a questão da aviação? Bruxo: Tudo dentro dos planos. A terceira opção não vai vingar, será um risco que desaparecerá em breve. Dias exaustivos para se voar e cinzentos com muitas nuvens. Combinação perfeita. A equipe já foi selecionada, já baixamos a claquete. Presidente: Perfeito. Perfeito. Me mantenha informado. Bruxo: Mantenho sim. Volto a lembrá-lo de que me preocupa o narcisismo do Homem de Preto. Se subir para a cabeça… Presidente: Isso é problema do Laércio. Bruxo: Se eu fosse o senhor, Chefe, não confiaria muito na capacidade daquele cheiradão.


31. Vamos para Pasárgada

“Vamos fugir para Pasárgada. Tenho alguns contatos por lá”. Disse Luz enquanto reunia poucos pertences numa mochila. “Como iremos para lá? Fica lá na ponta de baixo desse país de merda.” “Pare de reclamar, Milton. Se te motiva, saibas que lá a erva é liberada.” “Não é hora de gracinhas, Paixão.” Os dois saíram do prédio com a adrenalina levada ao máximo. Entraram no elevador espiando para todos os lados, como se a qualquer momento agentes da Grande Quadrilha Nacional os interpelasse. “Vamos até a rodoviária. De lá pegamos um ônibus até o sul, e de lá entramos em Pasárgada. Pediremos asilo quando chegarmos lá. Depois pensamos no que fazer.” Disse ela tentando aparentar tranquilidade. “Merda, agora que derrubaram o avião do João deram um fim também nas provas. Filhos da Puta”. Por alguns segundo Milton Schmidt manteve silêncio, contudo, sabe-se lá porquê diabos, não conseguiu ficar de boca fechada. “Não… não é bem assim.. tenho...” “Filho de uma boa puta esperta” festejou Luz dando-lhe um abraço apertado e um molhado beijo. “Você guardou um bécape.” Tlink. O elevador abriu-se para a duas figuras de ânimos renovados. “Vamos pegar então suas cópias, levamos juntos. Quando chegarmos à Terra da Erva, divulgamos então.” “Paixão, não sei se é uma boa ideia, quem sabe se eles...” Mas Milton Schmidt não teve tempo de expor suas preocupações. Foi interrompido por sons histriônicos vindos do alto-falante. “PARADOS. VOCÊS ESTÃO CERCADOS. PARADOS, OU VAMOS ATIRAR.” “Corra Milton, corra.” Foi a única coisa que Luz Aguiar foi capaz de dizer. Eles estavam na escadaria do edifício de onde puderam observar pelo menos quatro viaturas


policiais embicadas para a portaria. Homens fardados vinham em suas direções. Ao fundo, no início da quadra, ela ainda avistou três carros negros a Polícia Nacional. Sabia que ali os federais cumpriam jornada dupla, para o governo e para a quadrilha. Os dois começaram então a correr. Sem razão mais aparente do que a de ir na direção contrária dos federais, quebraram à esquerda. Sem olhar para trás, correram. Se Milton Schmidt fosse um sujeito afeito a epifanias teria tirado pedaços de segundos para refletir que nos últimos dias, fugas e tiroteios tinham passado a ser uma constante em sua vida. Talvez, se fosse esperto o suficiente, faria alguma analogia com aqueles filmes com o Matt Damon que ele gostava tanto de ver. Mas ele não fez isso porque só pensava em correr. E em não perder a silhueta vultuosa de Luz à sua frente direcionando a fuga. Atrás deles uma cacofonia bélica surgia ensurdecedora. Sons de pistolas, sirenes, submetralhadoras aninhavam-se aos demais sons da cidade. Os vidros quebrados das vidraças atingidas pelas centenas de tiros era quase música, e os pequenos cacos passariam por chuva, não fosse o incômodo de quando vez ou outra ao tocar a pele de Milton, rasgasse-a vertendo pequenos filetes de sangue. Onde foi parar o atire apenas em revide. Pensou Luz enquanto corria e buscava oxigenar o cérebro para que este lhe ajudasse a receber o problema atual. Parápapá. Parápapá. Pow. Pow. Tey. Tey.Tey. Tey. Crash. Clink. Clink. Crash. Pá. Pápapapapapapapápá. Uóóó. Uó. Uóó. “Ei, estão malucos.” “Pega os vagabundos.” Luz, que diferentemente de Milton conseguia organizar melhor os pensamentos encontrara tempo para preocupar-se com uma nação em que seus indivíduos presumem a culpa imediata de fugitivos do estado simpatizando de imediato com os de farda. Agora, não bastasse a caça dos “homens da lei”, alguns aventureiros tentavam bancar o herói. Um cara gordo e de cabeça raspada inclusive saltou sobre ela e não fosse seu biotipo ágil, ele a teria pego. “Merda. Merda. Corre Milton. Eles estão quase nos pegando.” Gritou para o companheiro que já estava há uns dez metros atrás dela. Se não fizesse algo, seriam pegos em instantes. Ela então, ao invés de quebrar para a rua seguinte, jogou-se para o


asfalto. Pow! Buf! O motoqueiro caiu pesadamente no chão com o golpe de mochila. “Desculpe moço, mas em nome da nação eu preciso de sua moto.” Disse para o sujeito atordoado no chão que acreditava estar sofrendo o terceiro assalto de sua vida. “Eu sempre quis dizer isto” disse sorrindo. “Vamos logo, Milton”. Gritou mais uma vez. Ele saltou sobre a moto. Ofegava quase a ponto da exaustão. “Acelera a Hornet.” Disse para luz quando ela já fazia cantar o pneu contra o asfalto. Desse momento em diante, como se fosse um piolho grudado ao couro cabeludo, Milton agarrou-se à Luz entregando-se ao enjoo provocado pelos movimentos alucinantes da moto. Tonto, a paisagem urbana tornou-se para ele nada mais que borrões multicoloridos enquanto ela guiava a motocicleta em diferentes direções, costurando veículos em engarrafamentos enquanto os sons oficiais das sirenes ora se aproximavam demais, ora se distanciavam a quase dar-lhes esperança de que escapariam. Volta e meia um zip zunia-lhes por sobre a cabeça indicando que a polícia ainda atirava contra eles. Não estivesse quase desmaiado, Milton até teria visto quando depois de um zip veio um rash rasgando o tecido da camiseta de Luz e deixando um rasto de media profundidade na pele. Anestesiada pela adrenalina ela sequer sentiu o tiro que acertou-lhe de raspão no braço. Naquele instante ela só queria encontrar uma forma de escapar. Fugir. Contudo, pelo retrovisor via que cada vez mais somavam-se carros e motos à perseguição. Sentiuse por instantes, protagonista de um blockbuster americano. Contudo aquilo era real, a gasolina não iria durar por muito mais tempo e os helicópteros que agora ouvia a sobrevoá-los, deixava as coisas ainda bem mais complicadas. Além disso, não sabiam, mas já estavam nos trending topics mundiais.


32. Transcrição de Áudio #16

Presidente: Bom dia, Roberto. Roberto Clarinho: Bom dia, quem fala? Presidente: Sou eu, grande amigo, o vice-presidente. Roberto Clarinho: Ah, sim. Tudo bem, Micael. Presidente: Melhor impossível, meu valoroso bastião da liberdade da informação. Roberto Clarinho: Continuas o mesmo, Micael... Presidente: Mas bom amigo, ligo-te para ver se meu pessoal tem lhe comunicado nossos projetos? Sei o quanto nossa inestimável imprensa tem sofrido com essa cambada que tomou o poder, mas, como deves estar informado, os dias dos Herdeiros do Polvo estão por esgotar, e amigos já indicaram que sê-lo-ei o pilar desta ponte para os novos caminhos da nação. Roberto Clarinho: Fui informado de algumas coisas, Micael. Presidente: Pois então, ligo para reforçar que terás neste amigo, fiel defensor da nossa imprensa e de seus alicerces, não fizesse isso sê-lo-ia um grande traidor e injusto para com a Rede Esfera e toda sua contribuição para as causas nacionais e da família brasileira. Roberto Clarinho:

Eu agradeço, Micael. Já conversei bastante com vossos

representantes. Nossos meios já foram orientados a incluir “a crise” na pauta. Se ela ainda não existe, pode ter certeza de que daqui uns dois ou três meses ninguém mais terá dúvidas. Do mesmo modo, tens nosso compromisso de que qualquer ato contra a Vilma será ampliado. Ordenei inclusive que nossos departamentos encontrem meios de levar mais público aos atos que seu pessoal disse que logo serão desencadeados. Presidente: Perfeito, perfeito, Grande Amigo. Dentro de dois, no máximo três anos reverteremos esta pauta nacional que tanto nos custa aos lucros. Terás no meu futuro governo atenção mais que especial, Roberto. Roberto Clarinho: Que ótimo, Micael.


17 – Tudo Pela Audiência

O apresentador velhusco, cabelos brancos e olhar cafajeste olha para a câmera e diz “toca pra mim”. Ao fundo uma mini-orquestra entoa uma canção pesada como que se composta especialmente para as cenas de ação. O ritmo enervante toca por uns trinta segundos e cessa imediatamente com o movimento de mãos do maestro, no caso, o apresentador. “Perseguição alucinada nesta tarde no centro da capital...” introduz ele enquanto a câmera focaliza a imagem aérea da cidade num telão ao fundo. A imagem aproximase tanto até que o cenário desparece e na casa dos telespectadores surge então apenas a cena de ação. Tudo parece um labirinto cinza e negro visto de cima. Quadras desproporcionais, ruas asfaltadas e largas que em determinados momentos dão lugar a vielas e ruas estreitas. Quem comanda o cenário, lógico, são os fugitivos que entram aqui e ali. Em casa os telespectadores são tragados pela tensão como se estivessem vendo um filme. Quando será que eles vão se ferrar? Pela imagem feita pelo helicóptero motos e carros são quase como formiguinhas no solo. Formiguinhas rápidas e agitadas. Em determinados momentos, parece que o final da linha se aproxima para os fugitivos, mas então, uma manobra ousada e outras os mantém os olhos vidrados no televisor. A quem olha, contudo, parece impossível escapar. Viaturas coloridas e com giroscópios fosforescentes surgem de todos os lados. As motos parecem como um bando de vespas no encalço de uma fugitiva desgarrada, sobem calçadas, entram em garagens, brotam de tudo quanto é canto. Em casa há quem desconfie de tanto aparato contra uma só fuga. “Hemival, que doideira é essa, Hemival...” Diz a voz do apresentador ao fundo.

***

Noutro canal, naquele mesmo horário, outro apresentador estridente grita com o público,


com os câmeras, com que estiver na sua frente, ou não. “Uma vergonha. Esse país é uma vergonha. Mais dois marginais fogem que nem loucos pelas ruas de São Pedro, agora. Nesse exato momento. As imagens, droga, vamos às imagens, porra.” Depois de uma pesquisa e a verificação de que seu público adorava vê-lo dizendo palavrões, porra foi uma das palavras mais incrementadas a despeito do horário. Com a tela dividida, à esquerda o gordão de terno e gravata, à direita as imagens aéreas da perseguição pelas ruas da metrópole faziam elevar a audiência. “Comandante Aílton, Boa tarde. Que merda é essa que está acontecendo comandante? Isso está uma bagunça, comandante Aílton.” “Pois é Pena, há quarenta e cinco minutos a polícia persegue esse casal na moto. E não para de chegar viaturas, Pena.” “Comandante, a polícia já disse algo sobre o que é que está acontecendo?” “Por enquanto, nada, Pena, mas daqui podemos ver que há carros na Policia Nacional, da de Trânsito, parece coisa grande, Pena.” “Uma vergonha, uma vergonha nesse país. Mas veja, esse é o trabalho da nossa valorosa polícia, os caras logo vão pegar mais dois vagabundos. Mais dois vagabundos para encher as cadeias. Dois meliantes… Olha só, olha só, é impressionante minha gente. Foi por pouco. Quase acontece uma tragédia.”

***

Enquanto isso na principal bancada da Rede de Esfera de Televisão, com as feições um tanto perplexas logo após terminar a musiquinha do plantão e a câmera focalizar a jornalista, como que se assustada, ela começa a falar. “Boa tarde. Voltamos com notícias urgentes agora de São Pedro. A Polícia Nacional acaba de informar que está em perseguição ao terrorista Milton Schmidt e uma cúmplice que foi identificada como Luz Aguiar, professora e com ligações políticas com o deputado João William, falecido nesta tarde no acidente aéreo da Verde Aviação Aérea. Ainda não há maiores informações, mas os fugitivos estariam abrigados num endereço do deputado João William que agora também será investigado por sua suposta ligação com os terroristas. A perseguição começou no meio da tarde e nesse instante causa terror e medo à população de São Pedro. Do EsferoCop vamos falar com o repórter Rodrigo Alávez para maiores informações...” “Boa tarde, Sandra...” iniciou o repórter. Nos televisores surgiu a imagem


realizada pelo cinegrafista. Poucos perceberam de imediato a figura desfocada de um caminhão de gás natural que desgovernara-se em uma das marginais. O pesado veículo arrastava-se de lado. Não se podia pelo aparelho ouvir o guinchar dos freios, mas certamente testemunhas em terra o descreveriam como infernal. Quando o gigante entrou no foco da câmera foi só o tempo de numa fração de segundos a moto fugitiva desviar-se à direita, com seu piloto quase perdendo o equilíbrio raspando na proteção lateral provocando faíscas. A mesma sorte não tiveram duas motos da polícia metropolitana que deslizaram por baixo do caminhão, espalhando seus pilotos pelo asfalto. Um outro carro, civil, jogou-se contra a murada na tentativa de escapar do choque. Foi então que uma camionete da tropa de choque acertou em cheio o tanque de gás. A camionete sumiu dentro do metal, menos de um segundo depois um cogumelo incandescente subiu aos céus para delírio da plateia do outro lado dos televisores. Aquele foi só o princípio do gigantesco engavetamento transmitido ao vivo e em rede nacional.


18 – Transcrição de áudio #17

Aristeu Pastilhas: Oi, Bruxo, sou eu. Bruxo: Fala, minha liderança. Aristeu Pastilhas: Está autorizado a seguir a cartilha alemã. Bruxo: Perfeito. Alguns grupos já estão organizados. Não vai ter como essa esquerda se mexer. Aristeu Pastilhas: Ok. Desce o cacete então.


19. Zumbis da Cracolândia

A explosão deu um suspiro à fuga. O jeans de Luz ralara todo ao tocar a mureta, mas com muita habilidade ela escapara de ser prensada pelo caminhão. Os instantes que sucederam o monstruoso acidente foram vitais para ela e Milton Schmidt. Do contrário dos filmes onde há sempre um sacana que não larga a perseguição, ali, todo mundo ou passou a tentar escapar da confusão, ou então, como no caso dos helicópteros da polícia e das televisões, buscaram registrar o fato, esquecendo por instante dos fugitivos. Foi o suficiente para Luz retomar a pilotagem, entrar numa rua aqui, outra ali, até chegar à área central da cidade. Sua mente atrevida já tinha bolado um plano emergencial.

***

O Local era conhecido como cracolândia. Ali, gente vinda de tudo que é lugar vivia em condições sub-humanas. Quem os via das janelas de carros e edifícios, não raro chamavam-nos de zumbis, com seus caminhares errantes, sua sede não por cérebros, mas sim pelas pedras vendidas a Cinco Reais pelos feirantes locais. Ali, era quase sempre a mesa coisa, o dia para arrumar dinheiro para o máximo de pedras possíveis, e a noite ao relento sob o aquecer do fogo das pedras de crack. O ar era pestilento, fedia a urina, fezes e a sujeira das roupas úmidas e rasgadas que vestiam figuras decrépitas, pele manchada, dentes caídos, olhares mortos esperando apenas a cova. No meio deste público é que Luz e Milton estavam agora escondidos. Como numa cena de The Walking Dead, gastaram uma ninharia pelas roupas, mas algo que renderia uma fortuna em pedra ao casal sortudo que lhes vendera os trapos, disfarçaram-se de zumbis. Sob um viaduto trocaram de roupa, e em duas mochilas velhas achadas no lixo colocaram poucos documentos e um jogo de roupas limpas para quando pudessem abandonar os disfarces. Passaram ainda terra e fuligem no rosto, e então perambulavam em meio ao grupo. Apesar do disfarce, não quer dizer que os dois estranhos não fossem ali


percebidos também. Como na série, se aqueles zumbis descobrissem que eles não eram mortos-vivos, o caldo poderia engrossar. Além disso, mesmo que fosse pouco para eles, o dinheiro que carregavam podia ser-lhes sentença de morte naquele lugar. Além disso, temiam que logo que o casal se recuperasse do chapaço, os dois ainda corriam o risco de serem apontados como os magnatas da cracolândia. Milton e Luz tinham o tempo contado. “O que faremos agora?” perguntou ele um pouco mais recomposto da fuga, mas ainda fedendo a vômito. O que para o disfarce até era bom. “Amanhã de manhã vamos à rodoviária, pegamos tua cópia, e fugimos.” “De ônibus?” “Não, seu besta. A essa hora devem nos procurar por tudo que é lugar, e certamente nos ônibus e nos aviões já deve ter uma foto nossa estampada.” “Merda. Merda. Merda. Você quer dizer então que não tem como fugirmos.” “Caralho, claro que tem, seu tonto. Mas precisamos de um tempo. Agora está arriscado demais. Porém, nesse país ninguém dá bola pra mendigo. Vamos pegar tuas provas, dar no pé de São Pedro como andarilhos loucos.” Luz porém foi interrompida pela patrulha que passava lentamente pelo grupo. Por algum momento chegou a temer que estivessem atrás deles, contudo quando a viatura parou e dois brutamontes desceram carregando um pivetinho para o muro, ela compreendeu que aquilo fazia parte da diversão rotineira por ali. “Vamos pegar uma dessas rodovias e descer caminhando para o sul. Depois vemos o que dá pra fazer.” Disse ela, olhando com indignação o cassetete que subia e descia à costela do garoto.

***

Tinha amanhecido quando os dois mendigos insones chegaram à rodoviária. O movimento era intenso como sempre, mas naquele dia havia outra coisa. Estava coalhado de policiais, talvez alguns à paisana. “Merda. Merda. Eu não tinha pensado nisso”. “Sai da frente seus vermes” interrompeu a fala de Milton o brutamontes com colete da Polícia Nacional que puxava a fila indiana com uma dúzia de homens, empurrando os mendigos para o lado. “O que está acontecendo?” sussurrou ela. “Acho que já sabem onde guardei a cópia.” Cochichou ele.


Os dois mantiveram o disfarce olhando para baixo e tentando não concentraremse à ação policial, com medo de chamar a atenção. “Enfim, perdemos.” Disse ela, já se afastando do terminal. Desolada. “Ainda não.” Disse ele.

***

Caminharam por mais meio dia até chegar ao parque. Com umas moedas compraram um sanduíche com mortadela e almoçaram antes de Milton voltar ao terceiro lugar. Cavou, por algum tempo achou que o material tinha desaparecido dali. Mas então encontrou o cartão envolto em plástico. As gravações continuavam a seu dispor (naquela hora ele nem sequer lembrava do bécape virtual). Eles ainda tinham como foder A Grande Quadrilha Nacional. À tarde os dois zumbis começaram então a fuga da maior cidade do país. Ficaram esperançosos quando passaram por duas blitzes sem sequer serem notados.


19. Transcrição de áudio #18

Laércio Tevez: Oi Teté, é o “Éssinho”. Você vai bem? Juiz Tércio Moura: Oi “Éssinho”. Vou bem sim. Você tem visto, os bandidos lá estão esperneando, mas você me conhece, sou osso duro de roer. Laércio Tevez: E não é não. Você é o cara, meu irmão. Mas Teté, estou te ligando para te convidar pra jantar lá em casa domingo, o que me diz? Juiz Tércio Moura: Você consegue o helicóptero como da vez passada? Não podemos arriscar de forma alguma sermos vistos juntos. Tem jornalista esquerdista que daria milhões por uma foto dessas. Em eventos públicos, até vai, mas lá… Laércio Tevez: Uai, e eu não sei não. Se preocupe não Teté. O helicóptero te pega, e lá no sítio tem não jeito de bisbilhoteiro bisbilhotar. Juiz Tércio Moura: Sendo assim. Você sabe que tenho um fraco pelos eventos no sítio do amigo. Laércio Tevez: E eu não sei. Só coisa boa. Churrasco de primeira. Juiz Tércio Tevez: Até é bom conversarmos para alinharmos alguns passos. Você sabe que o pessoal do Micael está pensando uma coisa, mas que essa coisa não é bem assim. Tenho para mim que eles vão querer acabar tudo rápido demais, mas não dá pra ir com muita sede ao pote. Além disso, tem minha imagem, né, pô! Laércio Tevez: Teté, eu quero que o Micael se foda.


20. Interlúdio

Milton Schmidt e Luz Aguiar tinham atravessado dois estados em pouco mais de trinta dias. Nestes dias cansativos de longas jornadas dormiam na terra pura ou em bancos de postos de gasolina quando não eram enxotados. Gastavam o parco dinheiro que conseguiram reunir no dia da fuga de São Pedro de forma cuidadosa. Geralmente um lanche no almoço e outro no jantar. Por sorte e pelo aspecto repugnante daqueles dois andarilhos, não foram assaltados. Numa ou outra parada, inclusive, conseguiram algumas esmolas. Nesta fuga, um interlúdio às suas aventuras, não tinham ânimo sequer para namorar. Conversavam pouco e caminhavam muito. Contudo, estes poucos mais de trinta dias, na nação do esquecimento era tempo para caramba e quanto mais permaneciam no anonimato, mais seus nomes desapareciam dos jornais. Das capas dos primeiros dias às notinhas de rodapé da semana seguinte. Depois de um mês ninguém mais sequer lembrava o nome dos dois ou de que tivesse no Brisal dois perigosos terroristas desaparecidos. Fugitivos. Nem mesmo a queda de avião que vitimara o aliado João William estava sendo debatida pela imprensa. Tudo havia desaparecido como se jamais tivesse acontecido. Como, confirmavam lendo os jornais diariamente (Luz dera essa sugestão), e neles, agora só se falava das propostas de reformas do governo. Passeatas contra e a favor tinham seus espaços, assim como as polêmicas leis que vinham sendo aprovadas a toque de caixa pelo Congresso. Até mesmo o ministro careca tinha tomado o lugar do juiz morto. Então, depois daquele primeiro mês transcorrido decidiram abandonar o disfarce de andarilho-mendigo logo que fosse possível. “Não aguento mais feder desse jeito. Minha pele está com uma crosta.” Reclamara Luz. Foi então que quando chegaram ao último estado da Federação, os dois aproveitaram a madrugada e o banheiro público da estação rodoviária de uma cidade litorânea, tomaram um banho e vestiram-se com a peça de roupa limpa que tinham


guardado. “Eu tenho um plano Milton.” Dissera Luz logo após comprar os bilhetes de passagem até a capital Porto Feliz. “O dinheiro vai dar contado, mas em dois dias estamos na fronteira. Depois que chegarmos à Pasárgada procuro meus contatos e estaremos livres”. Poucas horas depois os dois chegavam a Porto Feliz. Ambos tinham certo receio, afinal era um grande risco estarem numa rodoviária vigiada como a de uma grande capital. Todavia os dois estavam bem diferentes das imagens suas que estampavam cartazes em que seus rostos vinham acompanhados da palavra procura-se. Milton mantinha a barba espessa e o cabelo crescera um bom bocado. Luz, por sua vez, e ela que nos perdoe a infâmia do trocadilho, se mostrava cada vez mais sem luz. Em Porto Feliz compraram uma passagem para a cidade de Liberdade, a fronteira livre com Pasárgada. Luz comentara com Milton que a visitara anos atrás numa excursão da universidade. “De um lado da rua é Brisal, do outro Pasárgada” dizia ela falando do intenso movimento nas duas cidades por causa dos free shops. “Aquele cantinho binacional será nossa salvação Mi.” Levaram mais de doze horas para enfim chegarem à cidade fronteiriça. Quando desembarcaram, algo perto do meio-dia, os dois suspiraram como se naquela terra de caudilhos o ar fosse mais leve. “Enfim, liberdade”. Disse ela. “Luz, paixão, eu não quero ser pessimista, mas ainda não acabou. Estamos sem dinheiro algum, o que nos sobrou? Cem? Duzentos?” “Nossa, Mi, logo você, um homem rico preocupado com dinheiro. Vamos achar um hotelzinho não muito caro para ficar que te conto o resto do plano.”

***

A diária do hotel custava Cento e Vinte Reais e não lhes fizeram exigências de documentos. Era um quarto simples, roupas de cama barata e quadros de Dez Reais como elemento de decoração. Depois de reservado o quarto os dois fizeram compras básicas e então ao voltar ao hotel tomaram banhos merecidos e longos e deixaram para trás barba e cabelos mal cuidados. Renovaram-se. Revigorados amaram-se. Amaram-se de novo. Pediram é claro um lanche. Naquela terra chamavam de “xis” pão com carne no meio. “Até que não é ruim” disse ele.


Depois amaram-se novamente.

*** “Mi, amanhã vamos fazer o seguinte. Você tem aí o bilhete, não tem?” “Te-tenho. Acho que tenho, nem me lembrava dele. Deixa ver aqui.” “Ah! Conta outra, Mi, pensa que não via você alisando o bolso dessa mochila. Bom, o importa é que ele está aí.” “Está mesmo.” “Então, amanhã vamos à agência da Caixa, foda-se, vamos ser identificados, é claro, mas precisamos de grana.” “Não sei não, paixão, isso pode ser muito arriscado.” “Milton, a agência fica a uma quadra da fronteira, é só atravessar a rua.” “Se você diz.” “Bem, eu digo sim. Não acredito que eles consigam nos achar tão rápido, vamos contar que estejam lentos, muita coisa mudou. De todo modo, veja só, vamos à Caixa, retiramos o prêmio. É grana pra caralho. Certamente teremos de abrir uma conta no mesmo banco, sem problema, é seu direito. No máximo, talvez bloqueiem. Mas no ato vamos levar algo em espécie, Dez, Vinte Mil. Isso será mais do que o suficiente para nos manter até cair a casa da Grande Quadrilha.” “Luz, e como nós vamos derrubar os caras? Lembra-se, nós somos os procurados, nós somos os fugitivos. Não tem...” “Tsc. Tsc. Milton. Aí você se engana. Você está com o material, acabou. Não tem mais chantagem, não tem mais imprensa. Vamos arrumar um notebook, conexão com internet, e então, pronto. Já pensei em tudo. Vamos subir esse material no youtube, depois, estando segura em Pasárgada é só passar os links para a Imprensa Ninja e para uns jornalistas libertários e companheiros de movimento que conheço que a casa caiu.” “Se você diz, minha paixão.” “Vai dar tudo certo, Mi. É só o gerente não bancar o xarope, e você já viu alguém bancar o chato com alguém dono de Cem Milhões? Vamos deixar quase todo o dinheiro ali, colocamos um pouco em nossas contas, para dificultar, e, pronto. De certa forma sua grana financiará a revolução. Ainda será herói, Milton Schmidt”. “Você é, Luz. Você é a heroína dessa história.”


21. Transcrição de Áudio #19

Scott Berger (Chefe CIA): Mr. Moura? Juiz Tércio Moura: Sim. Scott Berger (Chefe CIA): É Mr. Berger, do CIA, Mr. Moura. Juiz Tércio Moura: Oh! Mr. Berger. Que prazer e ouvi-lo. Scott Berger (Chefe CIA): O presidente autorizou o prosseguimento do projeto “Yellow Bananas” conforme Mr. Moura tem conhecimento e é amigo e colaborador. Conforme já debatido é de interesse americano que em breve Mr. Moura governe esta nação. Por isso estou ligando para dizer que em até dois dias Mr. Moura estará recebendo todos os dados coletados pela NSA e pedimos que dê total atenção aos “sistemas” relacionados à Bris'Oil. Os demais “casos” contaremos com outros parceiros, não se preocupe Mr. Moura. Cuide da Bris'Oil. Juiz Tércio Moura: Thank you, Mr. Berger. Thank you.


22. Epílogo (ou piririm piririm piririm, alguém ligou pra mim #2)

“Alô.” “Presidente Polvo, é o Senhor.” “Oi, querido, sou eu, quem fala?” “Milton Schmidt, presidente” “Não estou lembrado, querido.” “Pode me chamar também de Bola de Fogo, Presidente” “É funk, né? Putaria pra caralho, mas eu escuto de vez em quando, querido.” “Não, não é funk, presidente. Ano que vem vou votar no senhor, presidente.” “Obrigado, querido. Mas ligou por qual porra?” “Ah! Sim. Na verdade, presidente, liguei para lhe dar uma boa notícia. Pede por seu pessoal procurar no Youtube por “transcrição de áudio Golpistas Micael e Senador Antero”. Tem outros, mas esse o senhor vai achar fácil. A casa vai cair pra eles, presidente.” “Ok. Querido, verei isto.” “Veja sim, presidente, e nem precisa me agradecer.” Tu. Tu. Tu. Tu. Tu.Tu. Tu. Tu.

*** “O que foi? Por que está me olhando? Sempre quis falar com esse cara, oras. Guardei o número.” “Eu te amo, Milton Schmidt. Eu te amo.”



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