Desfuncionais

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DESFUNCIONAIS Por Douglas Eralldo

Este original é um projeto que está sendo escrito pelo autor Douglas Eralldo, e está é uma versão ARC disponibilizada para leitura através do site www.douglaseralldo.com

Está versão é original, e ainda sem processo de revisão.

No desenvolver do livro novas atualizações serão publicadas.

Contato para sugestões e comentários, pelo site, ou pelo twitter @douglaseralldo Crédito imagem: spyroteknik


CAPÍTULO 1 – A queda

Num Futuro não tão distante.

Ao menos, não o suficiente para os humanos ter causado a própria extinção.

Ed. Vestiu a camisa e com a ponta dos dedos procurou no menu da peça uma cor que combinasse melhor com o terno negro, vindo especialmente da região da antiga Itália. Optou por um verde opaco e bastante discreto. Conferiu a imagem no visor digital que cobria um grande retângulo na parede prateada e sentiu-se pronto para sair. Teria um encontro difícil de negócios que exigia além da distinta apresentação, a necessidade de causar boa impressão no contratante. A imagem refletida lhe deu confiança. Antes de sair ordenou o desligamento das transmissões das imagens neurais de suas visões para seu computador remoto. Na maioria das vezes contabilistas tinham de ser muito discretos quanto a suas reuniões de trabalho. E justamente por isso Ed não podia correr o risco das imagens caírem na grande nuvem. Conferiu o horário. Expiou rapidamente suas mensagens, e então se encaminhou para sua esfera veicular. O estranho, mas moderníssimo sistema de transporte havia de fato revolucionado a indústria. Todo apartamento em Nova São Paulo vinha com uma esfera acoplada à construção. Ed jamais se cansava de perguntar como que a indústria levou tanto tempo para dominar e controlar a tecnologia da repulsão magnética. Ele entrou no transporte, digitou as coordenadas, e escorou-se na confortável e anatômica poltrona. A esfera sibilou seu som característico e em segundos desacoplou-se do prédio. Ed amava Nova São Paulo. A cidade que mostrou ao mundo a possibilidade de renovação e sustentabilidade. Por isso sempre que saía de


viagem mantinha sua esfera de transporte translúcida, pois não se cansava de admirar o esplendor da metrópole. As grandes torres espelhadas erguidas com aço e concreto cresciam como num desejo de tocar o céu. Havia muitas delas dominando a paisagem urbana. No entanto contrapondo os tempos passados, mesmo com a visão turva, era possível ver uns cento e cinquenta andares abaixo do veículo as árvores no solo. Sem as esferas seria impossível libertarmo-nos do asfalto. Pensou ele, abrindo a possibilidade de transmissão neural, para que tão bonito pensamento fosse compartilhado instantaneamente em suas redes sociais. Aliás, parecia haver mais movimento do que o normal naquele dia. A circulação de esferas pelos céus o fez lembrar-se dos velhos vídeos no site do museu da velha cidade, com seus engarrafamentos gigantescos. Os globos riscavam o céu azul serpenteando riscos e curvas imaginárias entre as torres. Lembrou-se

da

reunião

ampliada

do

Parlamento

Mundial,

e

compreendeu a agitação local. Ed não gostava de política, mas achava muito sábia a atitude tomada alguns anos atrás quando a ONU por Decreto destituiu a soberania todas as nações filiadas para a criação de um único governo global unindo todos os povos sob uma única e democrática constituição, e uma só bandeira. Ed sorriu recordando que a única dissidência e revolta à época tenha vindo através da FIFA, impedida de organizar campeonatos mundiais. Mas como os clubes há algum tempo estavam mais para empresas que agremiações, logo se reorganizaram em suas Ligas, e continuaram a faturar com o esporte. Ed não gostava de futebol, por isso a lembrança logo se esvaiu como partículas de oxigênio. Ao passo que a metrópole foi ficando distante de sua visão, Ed acionou o comando de privacidade, e sua esfera como um casulo que se fecha, foi tomada por uma cor metalizada. Apagaram-se os Led‘s do interior e aproveitando que a viagem deveria durar cerca de duas horas acionou seu avatar holográfico para conferir a apresentação que seria feita em breve.


Contabilistas não acham seu trabalho chato. Por isso são contabilistas. E Ed sentia-se muito contente com a apresentação até o momento. Mal fizera correções mentais no trabalho a ser apresentado. Distraído com o serviço, sequer percebera que metade da viagem havia se passado. Foi distraído apenas por causa da leve tremida na visão holográfica. Ele havia pago um valor bem alto ao Google pelo uso da tecnologia, e como todo contabilista é metódico, indignou-se com o fato de apresentar falhas. Houve então uma segunda queda de sinal, desta vez mais longa. Ed estava prestes a ordenar o contato remoto mental (uma tecnologia fascinante graças a um chip implantado no cérebro e que poupava as cordas vocais. No inicio foi projetado apenas para vítimas de câncer na garganta, mas logo se popularizou) para reclamar junto assistência técnica. Não teve tempo. Uma desestabilização começou a fazer a esfera tremer, como se sofresse turbulências. Ed sabia que as esferas eram a prova de turbulência e por causa disso ficou preocupado. Pelo painel de comando tentou acessar o manual de fabricação. Porém alheio aos seus comandos ocorreu á abertura de links de notícias. Logo o interior da esfera graças a sua tela de Led disposta pela parede interior do transporte, além do manual começou a mostrar sites. A grande parte deles falava de uma estranha tempestade magnética. Como eram informações em tempo real, também começaram a ser mostradas cenas de acidentes e até mesmo uma tragédia relacionada ao evento. No entanto Ed não teve tempo de ler as notícias. Nem o manual. A energia de sua esfera caiu. Tudo ficou escuro, e de repente o contabilista sentiuse dentro de uma antiga máquina de lavar. Seu corpo era atirado em todas as direções. Ed. Sentiu náuseas. Dores. Ficou tonto. E antes da esfera cair completamente, e antes do contabilista desmaiar, ele ainda pode ouvir o barulho das colisões da esfera abrindo caminho sabe-se lá onde e com o quê. Porém eram sons atemorizantes.


Quando a esfera terminou sua queda deixando um rastro destrutivo pelo caminho percorrido Ed estava totalmente inconsciente no interior do transporte. Foi aquela queda que comeรงou a revelar um mundo que Ed, e os contabilistas desconheciam.


CAPÍTULO 2 – A Mulher Misteriosa

Quando Ed recobrou a consciência estava caído e no meio de uma espuma macia. Embora as esferas tivessem 99,9% de improbabilidade de queda, a lei exigia mecanismos de proteção. O Contabilista grogue pelo impacto causado pela desaceleração e pelo choque lentamente desvencilhou-se da espuma e saiu do transporte bastante avariado. As coisas estavam um tanto confusas na cabeça de Ed. Ele sentia como se o chão girasse ao seu redor. Talvez fosse porque fizesse muito tempo que não pisava diretamente em solo. Ou talvez fosse mesmo o recente evento. Ed não reconhecia onde estava. Teve a sensação de estar na antiga São Paulo. Ou ao menos era a similaridade dos relatos que ouvira da velha cidade que o fizeram fazer tal associação. Tinha caído nas ruínas antigas de um centro urbano. O concreto tomado pela ferrugem e o tempo estava á mostra em clarões rasgados nas paredes de concreto. Tudo muito inóspito. E morto. Como planejaram os cientistas, a natureza aos poucos recomeçava a dominar o espaço que um dia fora seu. Arbustos cresciam sobre ruas e calçadas. Ervas agarravam-se aos antigos espigões dando uma coloração verde ao imenso manto cinza escuro que havia se transformado a metrópole. Mesmo que não fosse a velha São Paulo, como imaginava Ed num primeiro momento, aquela certamente teria sido alguma das cidades evacuadas completamente para que seus habitantes fossem transferidos para as novas cidades criadas e projetadas para uma política e uma existência sustentável. Ed ainda sem saber se os sons eram frutos de sua tontura, ou de fato pássaros cantavam entre prédios e árvores. Uma borboleta de cores berrantes cruzou por ele rasgando o equilíbrio do ar com seu bater de asas tão leve quanto uma pluma. O inseto era de uma cor de laranja muito viva. Círculos azuis e rajadas brancas compunham a beleza das acrobacias aéreas num belo desenho imaginário. Ed admirou o voo. Seguiu a borboleta com o olhar. Ela fazia o


sentido contrário do trajeto da esfera. E foi dessa forma que o contabilista pode ver o tamanho do estrago. A queda abrira sulcos no misto de terra e asfalto velho. Por sorte não me choquei com os prédios. Pensou Ed olhando as ruínas da cidade. As marcas da queda se estendiam por uma extensão de no mínimo cem metros. Um acidente bem mais grave que Ed pensara ter sofrido. Sua esfera caíra como um cometa e quando o contabilista já mais lúcido girou em sua direção percebeu que seu transporte estava com um terço cravado no chão. Ed certamente iria perder a reunião. Chutou a terra com raiva. Sabia que sozinho não conseguiria colocar a esfera novamente em funcionamento. E antes de fixar sua atenção ao seu transporte acionou com um leve toque o chip de geolocalização pessoal inserido sob a cútis de seu polegar direito. Ed então foi até a esfera. Terra e pedaços velhos de asfalto a envolvia. Um pequeno monte tinha se elevado, e foi olhando para esse amontoado que o contabilista sentiu seu corpo tomado por um arrepio e uma angustia que o fez engolir o ar em seco. Ele sentiu suas vísceras revoltarem-se como se suas tripas quisessem caminhar pelo interior de seu corpo. Contabilistas não eram acostumados com cenas fortes. Ed viu um braço humano inerte e ensanguentado soterrado em parte pela terra levantada pelo acidente. Por um instante ele não conseguiu dar um único passo sequer. Primeiro porque estava com medo, e segundo porque não era para haver um braço humano naquela região, muito menos inerte a aparentemente morto. Desde que muitas cidades foram evacuadas para ocupação das metrópoles sustentáveis o governo sempre informara que as abandonadas estavam livres de ocupação humana. Nestes espaços a natureza irá tratar de recompor o que o homem destruiu. Diziam os secretários de meio-ambiente. Disso Ed sempre se lembrava, e mesmo nada tendo relacionado com contabilidade a transição para a sociedade sustentável era cadeira obrigatória em todo curso universitário.


Mesmo com o coração palpitando e a razão dizendo para não seguir, Ed deu passos lentos em direção ao corpo. Quanto mais seus olhos se libertavam de obstáculos, mais clara ficava a cena. Os braços uniram-se a tronco, a cabeça e a cintura soterrada em entulhos. Havia uma pessoa sob os escombros. Uma mulher. Ed tomado pelo ímpeto do cavalheirismo então apressou a caminhada e debruçou-se junto á mulher caída e aparentemente morta. O contabilista pegou-a pela cabeça e buscou por sinais vitais em seu pulso. E estes eram quase imperceptíveis, mas graças ao aplicativo de primeiros socorros instalados em suas mãos, sem demora recebeu a mensagem mental de que a estranha estava viva, porém com 99% de probabilidade de morte nos próximos vinte minutos. A mulher misteriosa exibia diversas escoriações pelo corpo. Um rasgão na testa produzia um filete de sangue que escorria pela face. Nos braços tinham edemas de queimadura. E com a metade inferior do corpo liberta Ed pode ver dezenas de arranhões. O contabilista levou a mulher para um local plano e com certa agilidade aproveitou da espuma de sua esfera para dar-lhe um pouco mais de conforto. Era o máximo que podia fazer até chegar o resgate. Enquanto aguardava pelo socorro Ed percorria a mulher com os olhos. Ele estava entre a minoria que apreciava o corpo feminino, e tara ou não, conseguia vislumbrar a beleza daquele corpo quase morto. A mulher vestia-se com tecidos arcaicos, e, boa parte de seu corpo estava desnudo. Era delgada e seus cabelos negros perolados escorriam até as costas. Seus olhos claros deviam ser belos quando vivos. Pensou Ed imaginando vida naqueles glóbulos opacos como o olhar dos peixes mortos. Seu olhar tornou-se mais libidinoso vislumbrando o abdómen sem vestes deixando à vista a pele levemente acobreada. As coxas eram bem torneadas, e a cintura desenhada de forma insinuante. O que uma mulher como aquela fazia perdida naquele lugar ermo intrigava Ed. O tempo passou rápido em meio a teorias, devaneios e suposições mentais sobre a estranha mulher. Como ela ainda não estava morta, o contabilista tinha esperança que o resgate chegasse a tempo.


E a esperança foi renovada quando o som sibilante de uma esfera cortou o silêncio e o resgate pousou próximo ao contabilista. Era uma esfera comum do departamento público de segurança. Branca e iniciais em azul. Controlada remotamente por softwares nos servidores centrais do Sistema Global de Segurança e Resgate o veículo dispensava tripulação, e justamente por isso uma voz melodiosa e eletrônica soou pelo sistema de som. Prezado

senhor

Edmund

Von

Silva,

registro

global

número

oito,um,um,zero,sete,três,três,dígito,sete,oito,um, por favor aproxime-se para confirmar identificação e reportar ao sistema a necessidade de atendimento... Embora nunca tivesse precisado de socorro, Ed conhecia bem os protocolos necessários e se aproximou da esfera tocando-a com a palma das mãos. Em milésimos de segundos nano-partículas colheram amostras de DNA, e em menos de dois segundos o aplicativo do Andróid X.1000 confirmou a identidade. Identidade confirmada senhor. Disse a voz mecânica. O encaminharei a sua residência desde que não reporte necessidade médica, e em breve a divisão de relatórios lhe encaminhará um formulário para que o senhor relate os fatos para que o Governo Mundial estude uma maneira de evitar que o senhor volte a sofrer transtornos semelhantes. Ed sorriu. Era engraçado como o governo se preocupava com os cidadãos. Algo muito diferente dos livros de história. Sentia-se feliz por ter nascido em época tão civilizada. A esfera de resgate então se abriu, e solicitou a entrada do resgatado. Mas Ed demorou um instante. Levava no colo a mulher quase morta. Quando Ed tentou entrar no resgate um impasse então se pôs. A vida da mulher passou a correr ainda mais riscos, e Ed estava incerto de poder voltar logo para casa.


CAPÍTULO 3 – A negativa

Senhor não há registros de um segundo chamado. Sua companhia não pode seguir junto. Disse a voz digital da esfera. — Não está vendo que esta mulher está morrendo. Bradou Ed indignado. Esferas não viam. Ao menos não como humanos, já que as centenas de nano-filmadoras possibilitavam filmar em todas as dimensões possíveis. Por isso o veículo autômato e comandado por um software com inteligência artificial logo descobriu que Ed não estava sozinho. Senhor; não possuo autorização para carga excedente. Repetiu a voz. — Então consiga autorização. Disse Ed ameaçando entrar na esfera. Não insista senhor. Vou reportar para o núcleo central a ocorrência. — Merda. Reclamou Ed impaciente. — Que porcaria de mundo é esse que preciso convencer um computador a salvar uma vida. A entrada da esfera se bloqueou na nova tentativa de Ed. Senhor; nossos protocolos requerem que o senhor acione o chamado individual de socorro, que em breve ela será resgatada. Comum em máquinas a voz não tinha emoção alguma. — Ela está morrendo... Morrendo. Consegue entender? Gritou desesperado o contabilista. Não posso fazer nada quanto a isso senhor. Respondeu a voz. No que acionar a solicitação, o controle saberá a necessidade de um robô medicinal acompanhar o resgate. — Mas pode não haver tempo suficiente para salvá-la até a chegada de uma nova esfera. Ponderou o contabilista. Além disso, quem me garante que virão até aqui? Lamento senhor, mas são minhas ordens. Acione o dispositivo que farei a identificação das coordenadas, e saberemos que um novo resgate está vindo buscá-la.


Ed olhou para a mulher em seus braços e sentiu-a ainda mais próxima da morte. Levou suas mãos ao encontro das mãos menos delicada do que imaginava para uma mulher e apertou seu dedo. — Então, o pedido já foi originado no sistema? Perguntou se dirigindo para esfera. Não há informações, senhor. Respondeu a esfera indiferente. Ed apertou mais firme. Ainda não senhor. Ed passou a apertar os dedos da mulher de maneira impulsiva. Nada senhor. Nada. Senhor infelizmente não há registros. — O que eu faço? Ed sentia o peso sobre seus braços. — Não posso deixá-la sozinha para morrer. É uma pessoa... Uma pessoa... Senhor; Reportei o caso ao sistema, é provável que esteja morta. Solicitarei a presença de um veículo funéreo. Ed estava com raiva da máquina. Computadores nunca foram á melhor companhia em casos extremos, ou quando soluções exigiam algo que apenas os humanos ainda mantinham: a esperança no improvável. — Droga! Ela está viva. Viva, sua máquina idiota. Senhor; Foi gerada uma multa em seu número de registro por comportamento indevido, desproporcional e descortesia conforme previsto no artigo 567 da Constituição Mundial. Ed pensou em chutar a máquina. Mas lembrou-se que o ato poderia ser considerado ato agressivo contra o parlamento, e ou aos seus representantes, que desistiu. Naquele momento a maldita esfera representava o parlamento e o governo mundial. — Inclua em seus registros meu protesto quanto ao fato. Disse ele dirigindo-se à máquina, desta vez mais polidamente. — E também inclua no protocolo de atendimento a transcrição e os vídeos desde sua chegada, para futuras medidas e ações.


Ed era contabilista, e sabia que o governo detestava brechas para futuras medidas e ações. Pois não senhor; Respondeu a máquina sem emoção alguma. O silêncio mortal perdurou por quase um minuto. Até a máquina voltar a se manifestar. Senhor; Sua solicitação foi atendida, e toda a informação do presente atendimento foi demarcada para posterior utilização. Como o caso é de provável morte, e por motivos de economia, senhor, o controle do sistema também acabou de me autorizar a regressar com ambos visto que tal medida é benéfica aos custos ao erário público. Nem quando dava boas notícias á voz deixava de ser indiferente. Por favor, aproxime-a para identificação do corpo. Ordenou a esfera. Ed chegou perto da máquina e levou as mãos da mulher ao encontro da esfera para que seus nano-identificadores fizessem seu trabalho. Ed aguardava apreensivo, já que tinha perdido muito tempo, e provavelmente a vida da misteriosa mulher. Senhor; Ocorreu novo problema. Sua acompanhante não foi identificada em nenhum dos bancos de dados existentes; Esse seria um bom momento para a voz digital tomar doses melodramáticas. Mas manteve-se impassível. Ed recebeu a informação como um golpe de artes marciais. Não ligava para o fato da mulher não ser reconhecida pelo sistema. Porém ficou extremamente nervoso por cogitar que teria de deixá-la naquele lugar ermo, para a morte, e para os corvos. Mas antes que Ed tentasse uma nova fala com a máquina, a esfera se adiantou. Senhor; O controle requere urgência em nosso retorno para a cidade. Disse a máquina. Ed estava disposto a ficar na selva, em meio ao concreto velho, e a mata que ressurgia acompanhando a moça até a morte. Senhor; Queira entrar, por favor. Foi emitida uma ordem especial para levar a mulher junto. O levarei até sua casa. A mulher será encaminhada para uma unidade


emergencial de saúde, já que foi confirmada que minimamente ela ainda esta viva. Ed entrou na esfera. Não deu bola para o desconforto no espaço apertado. Chegou até mesmo sorrir. Já tinha perdido tempo demais.


CAPÍTULO 4 – A Subversão

Havia uma ordem clara para o resgate. Deixar Ed em casa, e levar a misteriosa mulher para um endereço estranho. E lá não havia unidade de saúde. Obviamente Ed não sabia de todo o teor das ordens, restritas apenas aos comandos da esfera. E como máquinas não esboçam reação, não teria Ed percebido qualquer mentira emitida pela voz de precisão matemáticas, emitida por cálculos binários simulando a voz humana. No entanto ao longo da viagem de regresso, coisas estranhas começaram a permear os pensamentos do contabilista. Por causa de seu trabalho, muito valorizado, Ed aprendeu a conviver com os mais variados tipos de gente. Ele cuidava da conta de políticos, servidores públicos, empresas, e até mesmo algumas organizações à margem da rígida lei imposta pelo Governo Mundial. Essa vivência de mundo fazia com que fizesse muitas perguntas, que naquele momento não possuíam respostas. Quem era a mulher?

O que fazia numa ruína em recuperação? E

principalmente porque as ordens mudaram drasticamente quando não foi possível identificá-la. Desde a nova ordem, com a imposição do Parlamento Mundial, que vinha há anos sendo gerido por um mesmo governo, Ed sabia que dificilmente se adotavam práticas humanistas, visto que o Programa Geral de Governo avaliava decisões basicamente pelos números e prognósticos. Embora toda sua irritação com o debate gerado pela esfera, o contabilista sabia que era o procedimento típico da ação. Por isso ficou surpreso com a repentina mudança. E uma das coisas que Ed aprendera no ofício da contabilidade era de que quando o governo mudava rapidamente de decisão, tinha algo de errado. Por isso quando Nova São Paulo ficou visível aos seus olhos, ideias subversivas lhe tomavam os seus pensamentos. Nunca foi uma boa ideia contrariar o Governo Mundial, mas desde que Ed se afeiçoara aos livros contrabandeados – Faziam quase cem anos da proibição de ficção, em virtude da


alegada inexistência de utilidade prática – em que lia aventuras, tramas e conspirações intricadas ele mantinha um desejo secreto de ser como aqueles personagens banidos. Talvez isso tenha sido fundamental para sua decisão. Ou talvez a esperança de poder conversar algum dia com aquela bela estranha e conhecer um pouco mais sobre seus mistérios, ouvindo a própria contar-lhe como fora para naquela cidade erma. Para qualquer uma das hipóteses Ed sabia que era indispensável não deixar que a esfera levasse-a. O contabilista estava certo que depois de deixado em casa, jamais veria novamente aquela mulher. Ed não queria que isso acontecesse. Então quando a esfera estacionou no andar de seu apartamento, Ed já tinha a mulher no colo. Saiu com ela de dentro do transporte de resgate, que surpreso pela ação, simplesmente constatou. O senhor não possui autorização para este procedimento. Diz a voz virtual. Coloque-a novamente no lugar para que eu possa levá-la ao destino ordenado. Ordenou a máquina. Ed já havia discutido demais com um mero software para um único dia. Por isso deu ás costas para o transporte, e desapareceu entre as paredes de seu apartamento. Senhor; Está me obrigando a reportar tal insubordinação ao Controle de Gestão de Segurança Pública e a Divisão de Atos Subversivos do Conselho Mundial de Segurança. Advertiu a máquina. Ed não estava mais próximo para ouvir a ameaça. Com agilidade e rapidez levou a mulher até seu quarto. Era um ambiente limpo, cores brandas. A cama era extremamente grande para um rapaz solteiro, e nas paredes três telas digitais exibiam pinturas antigas de artistas do Século XXI. Ed deitou a mulher na cama com leveza. Os lençóis alvos ficaram vermelhos por causa do sangue. Ed desacoplou da cabeceira os sensores interligados ao sistema inteligente da casa para que os transmissores pudessem atender as necessidades dos primeiros socorros necessários.


Rapidamente um relatório foi gerado no aplicativo remoto, que enviou via sinal wi-fi as informações diretamente para a leitura cerebral de Ed, dispensando ele acessar seus computadores. As notícias não eram piores do que ele imaginava. A mulher mantinha a mesma expectativa de vida. Mas o diagnóstico não era animador, pois segundo o relatório ela possuía edemas internos, uma pequena hemorragia, e três ossos da costela quebrados. Segundo o relatório as lesões tinham sido provavelmente por causa de um choque, e os traumas apresentavam alta gravidade. Ed logo deduziu que atropelara a misteriosa mulher. O que aumentava sua responsabilidade para com a estranha. Ainda segundo o sistema, ele iria automaticamente injetar doses de analgésicos e antiinflamatórios potentes, e deixava claro que havia a necessidade urgente de buscar atendimento médico, de preferência humano, devida criticidade do caso. Ed sentou-se pensativo na cama, enquanto o sistema automatizado prestava o primeiro atendimento. Ele estava com dois sérios problemas a serem equacionados e resolvidos. Não teve muito tempo para pensar. O sinal eletrônico lhe enviara uma mensagem de extrema urgência de leitura. A distância ele acionou via conectividade cerebral sua caixa de mensagens, abriu o documento recentemente entregue. Era uma intimação judicial. Tinha ordens claras para permanecer em seus aposentos até a chegada de Robôs Policiais que o interrogariam e também cumpririam o despacho de levar a mulher, que a partir daquela Ordem estaria sob a custódia da Justiça e do Governo Mundial. Ed então se lembrou da máquina que o resgatou, e correu até a sala de seu apartamento. Ela continuava lá de vigília. Senhor; Creio que já recebeu a intimação; Disse a voz quando seus sensores perceberam a proximidade de Ed. Recomendo que não tome novas medidas intempestivas; Ed não podia afirmar, mas chegou a sentir uma pitada de ironia na voz digital. Como se ela estivesse se divertindo com seu drama.


Ed sentou-se na poltrona, e concluiu o 贸bvio. Aparentemente ele estava muito, mas muito encrencado mesmo.


CAPÍTULO 5 – Doutor Jarbas

Ed já havia tomado uma decisão que lhe causara infortúnio. E estava decidido a tomar outra decisão que mais do que complicar sua vida estável, iria mudar radicalmente seu destino. Ele ligou a comunicação da casa e acionou o número pessoal de um antigo cliente. Diga-se aqui um daqueles clientes que ele sempre procurou manter oculto em seu currículo. O homem no vídeo virou-se para câmera para conferir quem o chamava. Seu rosto apresentava sinais de idade. Cabelos, tinha só dos lados, deixando um topo lustroso e careca. Em todo mundo devia ser a única pessoa a cultivar pelos sob o nariz. Uma figura bastante peculiar, com seu corpo rotundo alargando o tecido de um jaleco branco. vê-lo. Disse Ed do outro lado da tela do consultório. Ed sabia que Doutor Jarbas não era uma cara mal. Em tempos de leis tão rígidas, ele simplesmente preferia fazer a vontade das pessoas, do que as ordens legais. Por isso alguns o viam com olhos desconfiados. E também por isso ele precisava de Ed para encontrar a solução legal, para os créditos os quais ele não tinha justificativa.

os prazos das minhas declarações. Sou mesmo um esquecido. Sorriu.

de fato estou entrando em contato numa época atípica.

Ed sorriu.

que o senhor poderá me ajudar.

marcarmos uma jantar para esta noite. Respondeu Jarbas.


Ed engoliu ar em seco, com a natural dificuldade de quem precisa de um favor delicado. -lo em minha casa em menos de dez minutos... Acho que este é o tempo que me resta... ―nunca deixe mal, quem não te deixa mal”. Estou indo aí. Completou.

Menos de sete minutos foi o tempo de espera. O veículo do médico, um ultrapassado Audi x.8 planador, pausou planando na varanda e hall de entrada do apartamento de Ed. De cara Jarbas estranhou a esfera de resgate. Seu contador estava de fato com a vida complicada. Ele entrou na sala, e Ed veio recebê-lo muito agitado.

explico. A polícia deve chegar em dois, ou três minutos. ícia? Em que encrenca se meu rapaz. Disse o médico num tom quase como alguém da família, e deixando claro que homens com a sua atividade não tinham afeições por aproximação da polícia.

salvar esta mulher. Disse o contabilista apontando para a estranha sobre a cama.

com o senhor, preciso que me ajude a salvá-la, antes que o governo a carrega... Estava pensando que o senhor poderia trata-la naquela clínica... Ed foi interrompido bruscamente.

está sendo vigiado. E os microfones daquelas merdas conseguem captar o bater de asas de uma mosca... senhor entendeu... -la daqui. Aquilo deve estar filmando tudo.


Verão apenas isso. Poderão até interrogá-lo... Mas nunca saberão onde ela está... O senhor sabe por quê. Naquele instante a sudorese provocava veios d’água brotando da pele do Doutor.

isso. Mas fique sabendo que terá de me contar tudo sobre esta história. Os dois pegaram o corpo dormente da mulher misteriosa e colocaram no baú. Ela era esbelta, e o peso era por conta do baú. Os dois entraram na sala carregando o artefato que não passou despercebido pela esfera; Senhor; Em cumprimento ao artigo sete da Constituição Mundial, devo informa-lo que todas as suas atividades estão sendo gravadas, podendo ser usada em juízo caso assim se julgue necessário. Comunicou a esfera. tribuiu Ed. Ele e o médico colocaram o baú no Audi, e se despediram.

Marcamos

um jantar quando minha

agenda estiver disponível para

conversarmos sobre isso. No mesmo instante que o Doutor Jarbas partiu com seu Audi voando pelos céus de Nova São Paulo, duas esferas da polícia estacionaram pausando seu movimento. Delas desceram quatro policiais-robôs. Embora desnecessário, apontavam suas mãos – verdadeiras armas – para o contabilista. Senhor;

Edmund

Von

Silva,

registro

global

número

oito,um,um,zero,sete,três,três,dígito,sete,oito,um, por favor fique onde está enquanto os agentes 011 e 081 cumprem o mandado de averiguação e recolhimento expedido pelo Poder Judicial Mundial, subordinado ás Leis do Parlamento Mundial... Advirto que qualquer reação intempestiva pode nos autorizar ao uso de força não letal para o presente cumprimento da expedição.


Ed estava gostando cada vez menos de robôs. E do Parlamento Mundial e seus poderes. E também estava com medo de saber qual seria a reação dos policiais quando não encontrassem o que procuravam.


CAPÍTULO 6 – O interrogatório

Existia uma tarefa em que os robôs e os softwares jamais conseguiram substituir. O interrogatório. Para isso era indispensável um inquisidor experiente, que mais do que analisar probabilidades numéricas, era capaz de extrair mentiras e deslizes no comportamento humano do interrogado. E Joshua Reis era experiente na tarefa de inquisidor da Divisão 11, do Controle de Gestão de Segurança Pública e a Divisão de Atos Subversivos do Conselho Mundial de Segurança, estabelecido em Nova São Paulo. deu a mulher. Ordenou com veemência o representante do governo, trajado em cores cinza, num terno alinhado que revelava sua estrutura forte. Devia medir quase dois metros de altura, e pelos traços limpos de seu rosto Ed logo desconfiou que estava diante deum dos policiais geneticamente alterados. O ambiente era opressor. Um pequeno cubo de chumbo dotado de câmera, e sensores capazes de analisar mentiras, e principalmente de coletar pistas a serem averiguadas posteriormente ao grupo de inteligência. Ed estava no centro, preso por ondas eletromagnéticas que limitavam sua movimentação em pouco mais de um metro quadrado. Joshua de forma irritante descrevia círculos em seus passos, buscando desconcentrar Ed, levado até a Divisão 11 pelos policiais robôs depois de procurarem em vão uma mulher no apartamento do contabilista.

que nossas leis não lhe reservam o direito do silêncio, e que este inclusive pode lhe servir como acusação. Onde está a mulher? Respondeu Ed com outra pergunta recheada de ironia. Advertiu o representante da lei.

existe gracinha maior do que um cidadão que paga seus tributos rigorosamente


em dia, que observa os princípios legais, estar nesta sala de interrogação sendo questionado por tentar salvar uma vida humana? Está enganado Edmund. Não estamos aqui por causa de sua benevolência. O senhor claramente desrespeitou ordens do Governo Mundial, e uma intimação judiciária... São estas acusações que o trazem aqui. Onde está a mulher? Responda logo, e terminamos com isso.

está mentindo. Eu vejo que está mentindo. Joshua entonou seu corpo, querendo exibir-

r um dia

inteiro aqui.

Ed. Aquilo enfureceu o inquisidor. Joshua inchou-se com o sangue fervilhando por seu corpo e seus punhos cerraram-se no intuito de atacar Ed. Foi contido pelos superiores que acompanhavam remotamente o interrogatório. mund. Não estamos brincando. Se não me falar a verdade posso deixá-lo por anos na prisão. Ameaçou Joshua.

aqui sou o Governo Mundial. Sou a lei, e o martelo de sentença. Não acho uma boa me provocar.

coisa que todo contabilista aprendia com a profissão era ser extremamente calmo. Verdadeiras ped Estou aqui para colaborar. Tudo que podia ajudar eu relatei a vocês. O maldito acidente neste dia conturbado. A mulher que nem sei que na verdade é. A máquina estúpida que mandaram para me resgatar. Está tudo em meus relatos. A mulher como apareceu em minha vida, também sumiu. Desapareceu sem deixar rastros. Olhe no sistema de gerenciamento do apartamento, verá que a tratei com primeiros socorros. Ela foi medicada. Aí desapareceu.


Qual sua relação com Doutor Jarbas Messias? O que ele fazia em seu apartamento? E o que levava naquele baú?

uma vez. Já cansei de falar que Jarbas é um cliente. Que havia lhe oferecido um presente. Um relicário de tempos remotos apenas isso. Aliás, enquanto recebia meu cliente, a mulher desapareceu.

Mundial que não possui seu DNA nos bancos de dados. Tão suspeito quanto tamanho interesse em alguém que sequer estava disposto a salvar. Não é mesmo policial Joshua. Não havia muitos interrogatórios. Os crimes haviam caído de forma extrema. Ainda assim Joshua já havia participado de alguns deles. Interrogado algumas pessoas. Lacaios, golpistas, e especialmente subversivos que vez por outra surgiam ao redor do mundo. Mas jamais teve de interrogar um contabilista. E até então não tinha encontrado um interrogado tão casca-dura.

Mundial? Perguntou o policial. o primeiro a querer saber como ela está. Acredite estou preocupado com o estado em que ela se encontrava. O novo deboche acabou com a paciência de Joshua, que desferiu um socou que penetrou o campo de aprisionamento, e acertou o queixo de Ed. No mesmo instante dois robôs entraram na sala para conter o inquisidor, enraivecido.

médico a esconderam. Mas enquanto faço isso, o senhor ficará preso. E além da subversão vamos providenciar que a sua estadia demore um pouco mais graças a sua receptação, contrabando e posse de livros de ficção, que nossos robôs encontraram em seu apartamento. O senhor está ferrado. Muito ferrado.


Intimamente Ed concordou com Joshua. Estava muito ferrado. E ainda teria de torcer para que a clínica secreta do doutor Jarbas, assim permanecesse. Secreta. Ou então seu nível de ferrado ganharia se elevaria mais alguns níveis.


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