O Titereiro dos Mortos - Material de Divulgação

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O Titereiro dos Mortos



Douglas Eralldo

O Titereiro dos Mortos


Copyright © 2013 by Douglas Eralldo

Projeto Gráfico : D.E.S Ilustrações de Capa e Interna: Evandro Torres Revisão: Pérola Bros

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O Titereiro dos Mortos / Douglas Eralldo. -- Praia Grande, SP : Editora Literata, 2013. ISBN 1. Ficção brasileira 2. Ficção de suspense I. Título. 11-04047

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção de suspense : Literatura brasileira 869.93

Todos direitos desta edição reservados à Editora LITERATA Rua Jundiaí - Boqueirão - Praia Grande - São Paulo e-mail: editoraliterata@gmail.com www.editoraliterata.com.br


Esta é uma versão com material de divulgação do livro, O Titereiro dos Mortos, e seus direitos estão sob Creative Commons



Prologo

Daniel esperou por alguns segundos os fogos estourarem no céu negro. Estavam distantes, onde havia motivos para comemorar. A continuidade de cada explosão, sucedendo uma a outra, era bom indício de que o mundo não estava enfim, terminando, como ouvira falar na televisão, e do velho profeta mendigo, sujo e fedido que pedia esmolas numa esquina. O novo milênio não trazia o fim dos tempos. Ao menos não para todos. Bolota era um cão estimado. E para Daniel, bem mais valia o animal, que seu pai embriagado, ou sua mãe de ações firmes, cujos vergões nas costas do garoto deixavam bem claro o tamanho de sua firmeza. Não é fácil criar os filhos em meio a tanta coisa ruim, é por isso que dou exemplo sempre que precisar, dizia ela antes do estalido de cada cintada. Os dois comemoravam o novo ano tomando espumante barato. Pareciam felizes dentro do pequeno casebre. Mas Bolota estava morto, desde quando desceu à favela e deu de encontro


com os pneus de uma camionete. Isto ocorrera um dia antes, e Daniel não tivera coragem de deixá-lo sendo amassado, como massa de pão até ninguém mais saber distinguir, o que era cão ou o que era asfalto. Lágrimas brotavam de seu rosto, enquanto pegava a pá para abrir a cova no espaço estreito e de terreno duro nos fundos dos casebres. Cova aberta. Um soluço seco coincidiu com a explosão de um foguete na orla do lago que todos teimavam chamar de rio. Bolota era um amigo. O único com que Daniel podia confidenciar. Incapaz de recriminar os pensamentos rebeldes e indignados do menino de 10 anos, e em resposta, apenas abanava a cauda, dando ao mundo cores menos sombrias. Daniel pegou nas mãos o corpo frio e enrijecido do cão, e com pesar, lentamente levou-o para a cova. Veria o cão pela última vez. Havia um choro silencioso. E dizem que este é o choro mais doído de todos. O único capaz de agir como se bigornas se movessem em nossas entranhas. Daniel evitava exteriorizar esse choro e penetrava em sua solidão. Ninguém mais era capaz de compreender o significado daquela perda. Seus pensamentos se tornaram uma oração. Uma prece por clemência. O menino desejava que Bolota, morto não estivesse. E isto era tudo o que mais desejava. Que os computadores de todo o mundo não funcionassem no dia seguinte. Que seu pai morresse, como prometera tantas vezes quando sua mãe pedira o divórcio. A ele, o que importava mesmo era ter Bolota novamente com vida. Foi naquela noite que Daniel descobriu ter poder em suas palavras. Mesmo que ditas de uma forma tão estranha e impulsiva, que nem mesmo ele pudesse compreender o que havia sussurrado. :: 8 ::


O ar frio do primeiro dia do novo milênio foi atingido por uma estranha onda de interferência. O equilíbrio foi cortado, e, Daniel pode jurar ter visto ondulações de calor emanarem de suas mãos enquanto repousava o cão na terra. E tão de repente, quanto milagroso, sem que Daniel tivesse condições de explicar, Bolota grunhiu. Era um grunhido abafado. Sombrio. E o grunhido foi sucedido pela primeira tentativa de se reerguer. Tropegamente, e, ainda com os hematomas e traumas do atropelamento, Bolota enfim, revivia. Mas não vivia de uma forma suficiente a dar alegria ao rosto do pequeno Daniel. Aquele Bolota não era mais o mesmo. Não mesmo!

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Roubo de Armas

Salvar o mundo era uma missão que nem sempre permitia seguir e obedecer às leis. Pensou Gabriel Silva. Era um jovem, de pouco mais de vinte anos, rosto quadrado, e cabelo preto como piche. Seus olhos castanhos olhavam longe, e eram penetrantes. A pele clara contrastava com a iluminação artificial da cidade durante a noite. Esguio e alto, com quase 1,80 metros de altura, tinha de disfarçar sua estrutura forte, e corpo definido. Tinha de parecer-se com uma vítima. Subiu os degraus da pequena delegacia de plantão como se estivesse mancando. Ele mesmo provocara alguns arranhões no rosto, para dar veracidade a sua aparência. O policial plantonista demorou a perceber sua chegada, estava entretido numa intricada jogada de paciência, deixando os olhos fixos na tela do computador. Gabriel conhecia bem a rotina em plantões de cidades pequenas e pacatas. A delegacia não era mais que uma casa pequena, cômodos


estreitos, e um único policial que ficava ali para raramente atender a um ou outro telefonema, geralmente distúrbios em bares ou bordéis. Na rua todas as outras casas dormiam, enquanto o policial, com ar de suspeição dirigiu-se ao rapaz. — Senhor, ajude-me, fui assaltado — disse Gabriel com a voz vacilante, buscando dar-lhe um aspecto de cansada. — Onde? — perguntou o policial ainda desconfiado, deslizando suavemente suas mãos ao coldre. Notou seu vacilo, tinha deixado a arma sobre a mesa. Cadeiras eram sempre desconfortáveis com a arma no coldre. — Quem é você, não o conheço? — Viajava pela noite, e fui surpreendido. — respondeu Gabriel. — Não sou daqui. — É uma hora imprópria para viagens. — disse seco o policial. — Quer registrar a ocorrência agora, ou primeiro vamos ao local? — o homem fardado estava de pé, e com delicadeza sem chamar a atenção buscou pela arma. Tarde demais. — Nem mais um passo. Põe as mãos na cabeça.— ordenou Gabriel, que percebeu que o policial estava desarmado, e como um gato puxou da cintura às suas costas, uma pistola automática 765, cujo aço brilhava à luz da lâmpada fluorescente. — Encoste-se devagar e deixe as mãos bem visíveis. — Gabriel tinha certa experiência, e sem tempo de qualquer reação, o policial ouviu o clic das algemas. — Leve-me ao almoxarifado. Quero armas e munições. — terminou de ordenar ao policial, apontando a arma contra sua nuca. — E nem tente alguma gracinha, o motivo que me traz aqui é muito maior que uma única vida. — por fim, pareceu sombrio o bastante para Roger Villalba obedecer-lhe. Um saco com duas espingardas, revólveres, um fuzil e uma submetralhadora, utilizada pela Patrulha Rural, e toda a munição que havia no local foi o fruto daquela madrugada. Gabriel trancou :: 11 ::


o policial no banheiro, tendo o cuidado de amordaçá-lo, dando mais tempo para sua fuga. Saiu da delegacia, com a mesma calma que entrara no local. Caminhou alguns metros até onde tinha estacionado sua Saveiro Cross, e por um buraco na capota marítima, jogou o saco com o resultado do furto na caçamba da camionete. O tilintar de ferro e aço característico soou como música aos ouvidos do rapaz. Havia muitos outros sacos como aquele na caçamba. A camionete estava carregada com as armas de um mês inteiro de saques e roubos. Os olhos de Gabriel tomaram-se de um brilho esperançoso. — Acho que isso deve dar para o começo, se aquele demônio continuar com seus planos. — disse Gabriel sem ninguém por perto para ouví-lo. — Juro que aquele merda não me escapa. Nem suas criaturas, caso apareçam.

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Padre Roque

A nave da Igreja era simples. Paredes lisas, com alguns santos espalhados atrás do altar. Um Cristo crucificado observava os dois homens protegidos pela sombra. A noite já tinha caído e as luzes haviam sido apagadas. Apenas o cardeal e o padre faziam ressonar os sapatos, a cada lento e vagaroso passo na laje fria. — O senhor entende o quão importante é sua missão padre? — o cardeal fazia uma figura gorda, com a barriga saliente e o rosto redondo como a lua em seu esplendor de luz. Seus olhos negros eram afiados como os de uma águia e, às sombras da noite eram ainda mais persuasivos. — Ele precisa retornar para o caminho do bom Deus e da sagrada igreja. — completou. — Eu compreendo Eminência. — respondeu o padre com a voz calma, como as águas de um lago. Roque era um homem de estatura média, cujo rosto alvo e sereno, levava paz aos seus fiéis. Os cabelos eram brancos, de forma precoce, mas ainda assim, seu vigor físico condizia com a idade perto dos quarenta anos. — Mas


será Deus, capaz de perdoar os pecados daquele garoto? Mesmo nas sombras, o padre pôde ver a irritação na face do cardeal com a pergunta. — Lembre-se filho, que Deus é sempre capaz de perdoar. — o cardeal pigarreou. — E a Santa Igreja também, ainda mais com tamanho interesse do Vaticano em nosso menino. O Santo Papa o acompanha há muito tempo, e ainda pagamos pelo preço de tê-lo perdido. — Ninguém mais do que eu gostaria de ter ele de volta. — havia sinceridade na voz empoada de Padre Roque. — Mas temo que já não está mais ao nosso alcance fazê-lo acreditar na vontade do Pai. — da sinceridade, a voz tomou ares de desânimo. — Sugiro que tenha mais esperança, padre. — redarguiu o cardeal, ardilosamente. — O senhor já falhou uma vez, e certamente nem a Cúria, nem o Vaticano aceitarão novo fracasso. Aquele jovem pode representar muito à Santa Igreja, e ao mundo, e quero-o de volta, não importa como. — disse o cardeal com a voz seca, comum às ordens delicadas. — E isto era para ontem padre. — E mesmo que o encontre, ele pode querer não retornar. — ponderou o padre. — Vire-se homem. — se tivesse luz suficiente, Roque veria o rubor de irritação nas bochechas generosas do cardeal. — convença-o. Arraste-o. À mim pouco importa como o senhor trará Daniel de volta ao nosso teto. O importante é que traga-o, e rápido. — Pois não Eminência. — assentiu o padre. — Amanhã mesmo começarei esta jornada. O Cardeal tossiu. Um ar gelado vinha de fora, infiltrando-se pelos vitrais ainda abertos. — E padre... — cardeal Sinésio tinha uma entonação ja:: 14 ::


mais vista pelo seu colega na voz. Algo como uma sugestão de que aquelas palavras não podiam ser proferidas por um homem da igreja... — É possível que nosso menino tenha feito alguma bobagem, ou arrumado algum inimigo neste período longe de nós. É sua missão também defendê-lo dos inimigos, até que o tenhamos de volta por completo. Por isso, faça o que for preciso. — Roque não teve certeza, mas imaginou ver um sorriso irônico se formar na boca de Vossa Eminência. — Deus o perdoará se for preciso medidas extremas em sua missão.

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Viagem Noturna

O som agudo e ruidoso do motor da velha Chevrolet C10, reinava absoluto na noite. Certamente haveria fora dela, nos bosques e campos que margeavam a estrada, uivos de lobos-guará, ganidos de cães e piares de corujas, que não se podia ouvir. A noite corria lenta, e a rodovia, sem o mínimo sinal de vida sobre o asfalto, além dos viajantes da C10. Daniel sabia ser muito mais suspeito viajar pela madrugada naquela camionete velha, mas a noite ao menos lhe fornecia as sombras, a solidão, e a discrição suficientes para não serem descobertos. Certamente, seria bem mais complicado viajar à luz do dia levando uma morta-viva no banco do carona. O motorista olhou para o lado com o olfato mais acostumado ao odor pútrido, ou ao menos o suficiente para não ter vomitado durante a última hora. Tinha, inclusive conseguido comer um biscoito envelhecido sem regurgitá-lo. O jovem tinha feito uma escolha, e por isso, sabia também que teria de acostumar-se com ela. De tempos em tempos durante a viagem, ele olhava para


a companheira. Como o olfato, seus olhos também precisavam se acostumar. A luz vaga do luar permitiu que ele visse o sorriso danificado. Havia ferrugem e terra nos dentes, outrora brancos como leite. Os dias na cova tinham enegrecido sua pele, e a repuxado em grande parte da extensão de seu corpo. O rosto, antes de uma beleza sem igual, trazia as marcas e os vergões da morte. Em pior estado estavam as costas, ele tinha visto antes de embarcá-la na camionete. Dezenas de sulcos abertos ainda em vida, por causa do castigo, revelavam um desenho dantesco de carne morta. Vermes tinham encontrado ali primeiro alimento, e dançavam enrodilhados uns aos outros. Até mesmo um pedaço branco do osso da costela estava aparente. Malditos, pagarão por isso. Prometeu Daniel em silêncio. Embora todo o descrito fosse o suficiente para aterrorizar um homem, um único detalhe no corpo morto-vivo assustava Daniel. Os olhos. Sempre ouvira dizer que os olhos eram as janelas da alma, e que fosse qual fosse os sentimentos dos homens, eles seriam revelados pelos olhos. Pois aquelas janelas tinham sido encobertas pela névoa. Não havia nem vida e nem morte no olhar de Maria, apenas uma fumaça esbranquiçada e misteriosa. Como se percebesse o olhar fixo do companheiro a morta-viva grunhiu. Suas cordas vocais sem vida não conseguiram produzir nada que fosse inteligível, e o som vindo de sua boca podre não passou de uma série de gemidos. Daniel compreendeu aquilo como se fosse uma forma dela manifestar aprovação. Sim, ela entende. Pensou. Voltando a atenção para a estrada, ele guinou o volante para direita, e a camionete começou a sacudir-se toda na estrada vicinal, cheia de buracos e pedras. Não tardaria para chegar a aurora, e com ela, o movimento na estrada. Andou até encontrar um :: 17 ::


bosque fechado o suficiente para escondê-los. — Descansemos um pouco meu amor. — disse ele passando a ponta dos dedos nos cabelos secos como palha. O dourado tinha perdido o brilho e a cor. Uma maçaroca de cabelo descolou-se do couro da cabeça, ficando preso em suas mãos. — À noite recomeçamos nossa viagem... — ele fez uma pausa, buscando dar solenidade ao que diria —... em breve terão muitos outros como você, e eles pagarão por tudo! Adormeceram logo. E dormiram por todo o dia.

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