Entrevista Cecília Amado

Page 1

entrevista cecília amado

por davi carneiro FOTOS solange rossini e divulgação

I AN BAI NO E D DA DNA A cineasta Cecília Amado fala sobre o desafio de adaptar o livro Capitães da Areia, escrito por seu avô, Jorge Amado

Quando a carioca Cecília, 34, resolveu adaptar Capitães da Areia como obra de sua estreia na direção de longas, sabia que iria enfrentar o enorme peso da responsabilidade. E não é para menos. A cineasta iria não apenas filmar o livro mais vendido de um dos escritores mais importantes do Brasil. Iria, também, encarar o desafio de dar vida à obra mais influente de umas das pessoas mais queridas em sua vida: o seu próprio avô, Jorge Amado. Mas Cecília Amado parece não se importar muito com essa cobrança. Muito pelo contrário: mantém o olhar sereno e abre um delicioso sorriso, como só aqueles que têm a certeza do dever cumprido conseguem abrir.

fotos imagemfilmes/divulgação

82

LET'S GO BAHIA


A cineasta mostra uma das suas tatuagens. Ela é baseada em uma das cenas mais emblemáticas do filme Capitães da Areia

W W W. L E T S G O BA H I A .CO M . B R

83


entrevista cecília amado

Ao narrar cinematograficamente um ano na vida dos Capitães da Areia marcado por festejos do dia de Iemanjá, data emblemática do calendário baiano - a cineasta imprime um olhar próprio pautado na formação humanista que herdou do avô e traz a tona questões como superação, amizade e lealdade. Assim como no livro de Jorge, os meninos carentes de Cecília - apesar de sujos, vestidos com farrapos e semi-esfomeados são, em verdade, os donos da cidade, os que a conhecem totalmente, os que totalmente a amam, os seus poetas. A diretora - que começou a fazer cinema em 1995 e fez carreira nos sets de grandes cineastas como Cacá Diegues, Sérgio Resende e Cao Hamburger – recebeu a equipe da Let’s Go para uma deliciosa conversa sobre o filme e a obra de seu avô.

Let’s Go - As aventuras de Pedro

Bala e seu bando povoam o imaginário popular desde 1937, em livro com mais de cinco milhões de exemplares vendidos. O que representa ter Capitães da Areia como seu filme de estreia? Cecília Amado - Eu gosto de dizer que foi Capitães quem me escolheu e não o contrário. Além de ter personagens apaixonantes, essa obra é um prato cheio para qualquer cineasta, pois retrata um drama social importantíssimo, além de ser extremamente visual e cinematográfica. O livro me deu a

84

LET'S GO BAHIA

oportunidade de fazer uma película lírica e poética e, ao mesmo tempo, tem potencial comercial raro para um filme de arte. Isso é muito bacana porque possibilita me comunicar com várias plateias, públicos e cantos do Brasil. Let’s Go - Como é voltar a Salvador para dar nova roupagem à essa Bahia negra, misteriosa e cheia de belezas que seu avô representou tão bem? CA - Eu sou apaixonada pela Bahia e, apesar de ser carioca, aqui é minha casa. Eu fui nômade durante a minha vida, morei em vários lugares do mundo e Salvador sempre era meu porto seguro. Meu avô, por sua vez, era um apaixonado pelo povo da Bahia. E poder falar desse olhar de Jorge Amado para as novas gerações é algo fantástico. Let’s Go - Sem pensar muito, qual

a primeira coisa que surge na lembrança quando você escuta a palavra avô? CA - A primeira coisa que me vem, quando penso nessa palavra, é a cadência da voz de Jorge quando ele nos contava alguma história. Acompanhei a época em que ele escrevia alguns dos seus últimos livros e ele adorava ler um trecho para a gente. Ou então alguma das muitas cartas que ele recebia de leitores do mundo inteiro. Eu me lembro bem da cadência da sua voz ... e aquilo era uma coisa, o ritmo, a respiração. É algo que só os grandes contadores de história conseguem ter.

“A primeira coisa que me vem, quando penso na palavra avô, é a cadência da voz de Jorge quando ele nos contava alguma história e aquilo era uma coisa, o ritmo, a respiração. É algo que só os grandes contadores de história conseguem ter” CECÍLIA AMADO, CINEASTA

Let’s Go - E, na sua opinião, qual foi a

característica mais marcante dele?

CA - A generosidade. Ele era uma pessoa extremamente humanista. Quando ele gostava de alguém, nada importava: a classe social ou a cor da pele ou se era politicamente oposto, nada disso influenciava. O que importava era se era amigo e tinha uma boa história para contar. Let’s Go - Seria esse o maior legado deixado por ele para você? CA - Sim, seria essa visão humanitária e positiva do ser humano. Não é só tratar bem o próximo ou falar bem da Bahia por


obrigação, mas sim, por prazer e por, de fato, ser apaixonado e amar esse povo. Além de ser Amado, ele amava bastante. Jorge tinha um coração enorme. Let’s Go - Seu avô era amigo de

muitos cineastas e suas obras são extremamente cinematográficas. É verdade que ele tinha um sonho de ser diretor de cinema? CA - Sim. Quando eu comecei a fazer cinema, em 1995, ele me chamou e acabou confessando isso. Ele disse que o seu sonho era ter sido cineasta, então ele me apoiava muito.

Não sei se ele tinha dito só para me agradar, mas talvez isso explique o porquê de seus livros serem tão visuais e cinematográficos. Let’s Go - A problemática dos

meninos de rua continua extremamente atual. Como você enxerga essa relação do livro com a atualidade? CA - Capitães continua atual no bom e no mau sentido. A situação dos meninos de rua é absolutamente semelhante à essência do que foi escrito no livro. Por outro lado, meu avô descreveu esses personagens com

bastante humanismo, energia e heroísmo. Quando resolvi adaptar essa história, precisava conhecer os Capitães da Areia de hoje e descobri, não só que eles têm o mesmo drama do livro, como têm, também, essa mesma criatividade, força e bravura. Let’s Go - Os protagonistas do filme

são meninos de comunidades carentes baianas. Como foi trabalhar com “não atores”?

CA - Optamos por procurar “não atores”, meninos de comunidades que se aproximassem ao máximo da realidade dos

W W W. L E T S G O BA H I A .CO M . B R

85


entrevista cecília amado

personagens. Eu queria a espontaneidade, um elenco de jovens com idades entre 12 e 16 anos que, depois do filme, não ficassem abandonados, tivessem um acompanhamento social. Então fui a 22 ONGs que trabalham com dança, capoeira e teatro, e cheguei ao grupo. Let’s Go - Como foi a seleção? CA - No final de 2007, reuni 1.200 jovens. Depois de seis meses de pesquisa, reduzi o grupo para 90. Aí pedi que eles fizessem dois meses de oficina teatral e ficamos com 26. Então lhes apresentei os papéis e fizemos algumas experiências até encontrar o time. Let’s Go - Como foi a concepção e a escolha da trilha sonora produzida pelo Carlinhos Brown? CA - Carlinhos é um desses baianos amados que aprendi a amar com bastante vigor. Ele foi uma das primeiras pessoas escolhidas para fazer parte da equipe essencial do filme, pois achava que só ele poderia fazer a trilha sonora. O filme é bastante musical e eu precisava que ela percorresse esses climas, nuances e transformações vividas pelos personagens. O Carlinhos é um músico completo que une ritmos pops, africanos, latinos, além de ter baladas românticas lindas. Ele é um grande tradutor de Jorge Amado na contemporaneidade. Let’s Go - Cecília, você está usando

um brinco no formato de Iemanjá, além de ter uma tatuagem em

86

LET'S GO BAHIA

“Quando resolvi adaptar essa história, precisava conhecer os Capitães da Areia de hoje e descobri, não só que eles tem o mesmo drama do livro, como têm, também, essa mesma criatividade, força e bravura” CECÍLIA AMADO, CINEASTA

homenagem a esse orixá. Qual a sua relação com a Rainha do Mar? CA - (Risada) Eu sou filha de Iemanjá. Desde pequena frequentei, como simpatizante, o Gantois e o Axé Opô Afonjá, onde meu avô era obá de Xangô. O filme é, na verdade, uma grande oferenda a ela, que é a nossa mãe maior e do povo da Bahia. Ele se passa na beira do mar e conta a história de um ano marcado por festas de Iemanjá. Ela está, também, muito presente na trilha do Carlinhos. Os Capitães da Areia, assim como toda a Bahia, são filhos do mar.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.