A MINHA COMPANHIA :: Era uma vez um menino que brincava aos teatros - Pedro Mascarenhas

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COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO

ERA UMA VEZ UM MENINO QUE BRINCAVA AOS TEATROS... — PEDRO MASCARENHAS

MESMO ANTES DE ENTRAR EM CENA, UMA CRÓNICA

A MINHA COMPANHIA


COMPANHIA NACIONAL

FICHA TÉCNICA

OUTRAS DANÇAS

Direção Artística

Coordenação

Outra Danças é uma

DE BAILADO

Sofia Campos

A MINHA

COMPANHIA

EDITORIAL

Pedro Mascarenhas Textos

Sofia Soromenho* Edição

A Minha Companhia é um projeto da Companhia

Nacional de Bailado para a temporada 19/20 que

José Luís Costa

Pedro Mascarenhas Fotografias

visa dar a conhecer a

Hugo David

os bastidores do Teatro

Design gráfico

Camões, a casa da CNB.

Estúdio João Campos

Uma centena de

Impressão

sua equipa e desvendar

coleção digital da CNB, que reúne diferentes

séries com testemunhos

sobre obras apresentadas

pela Companhia, criadores e bailarinos.

Lançada em 2018, Outras Danças é inspirada no título da obra Other

Dances (1976) de Jerome

Robins (1918–1998), sendo esta uma homenagem da CNB ao coreógrafo por ocasião do centenário do seu nascimento.

colaboradores constitui

ACD Print

Descubra Outras

que produzem e contribuem

Tiragem

do Facebook, Youtube

uma equipa de profissionais para a realização, tanto dos espetáculos, como de

2000 exemplares

todas as outras atividades inseridas na programação da Companhia.

Descubra-os aqui.

*a autora dos textos não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Danças nas nossas páginas e www.cnb.pt.


A paixão pelo teatro deve-a ao pai. Tudo começou quando Pedro era criança, em casa observava silenciosamente o seu pai a trabalhar, impressionado pela dedicação e devoção que ele tinha por cada peça de teatro em que trabalhava.

Ser actor ou trabalhar em qualquer área relacionada com o teatro era o sonho de um menino que gostava de brincar aos teatros, uma brincadeira meticulosamente estruturada. Sentado no chão, Pedro idealizava grandes produções teatrais e assim dava início aos trabalhos, construindo tudo: os cartazes, os cenários, a ficha técnica, escolhia o elenco e montava as peças. Numa parede específica do seu quarto, eleita como o local ideal para ser o teatro, um pequeno forte de guerra foi convertido em teatro e os soldados

No entanto, em vez do teatro, Pedro ingressou na dança. Eu nasci com uma doença neurológica que me criou uma atrofia muscular no braço esquerdo, e obviamente os meus pais sempre se preocuparam com isto e tentaram encontrar formas de compensar essa atrofia. O meu pai, aconselhado pela professora Águeda Sena, levou-me para a dança. Entrou na Escola de Dança do Conservatório Nacional, em Lisboa, com doze anos de idade, mas sempre com a ideia de seguir teatro assim que terminasse os estudos em dança. No último ano, ao contrário daquilo que havia planeado secretamente, a dança seduziu-o a um ponto que o prendeu de corpo e alma. De um modo autodidacta, aprofundou os seus estudos em dança, procurando aprender o máximo sobre esta área e outras áreas artísticas que se lhe relacionam, com o objectivo de compreendê-la como um todo. Ao terminar o curso de dança, teve a sorte de receber o convite de Jorge Salavisa (na altura Director Artístico da CNB) para trabalhar, e assim iniciou a sua carreira como bailarino na CNB em 1996. Trabalhou com diversos coreógrafos executando variadíssimos papéis e em 2008, movido por uma necessidade de aprender e de fazer algo diferente,

1. Estrutura onde são pendurados os panos pretos, os cenários e os projectores de luz nos teatros.

MESMO ANTES DE ENTRAR EM CENA, UMA CRÓNICA

O meu pai, Fernando Augusto, era dramaturgo, portanto eu sempre tive muito contacto com a área do teatro, aquilo influenciou-me imenso e o que eu queria era ser actor. O teatro fascinava-me.

em actores: o cenário perfeito que ficava completo com a ajuda de uma teia1 improvisada, que era um estendal de roupa colocado por cima do forte com fios de lã pendurados. Algumas peças eram reais, outras fictícias, o público era invisível, imaginado e protagonizado apenas por si — ele era o encenador, o elenco e o público.

ERA UMA VEZ UM MENINO QUE BRINCAVA AOS TEATROS... — PEDRO MASCARENHAS

A Companhia Nacional de Bailado é a sua casa, aqui é o lugar onde acontece a sua história profissional que conta já com alguns anos, anos esses de grandes desafios, aprendizagens e mudanças. Pedro Mascarenhas é um homem do movimento e, como tal, não consegue permanecer estático durante muito tempo, gosta de desafios e persegue cegamente as suas paixões laborais. Entrega-se totalmente às tarefas que tem em mãos e assim coloca um pouco de si em tudo o que faz. Pedro deu os seus primeiros passos como bailarino profissional na CNB em 1996 e hoje é o coordenador do Gabinete de Marketing e Comunicação. Mas como foi que tudo isto aconteceu?

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ERA UMA VEZ UM MENINO QUE BRINCAVA AOS TEATROS... PEDRO MASCARENHAS, COORDENADOR DO GABINETE DE COMUNICAÇÃO E MARKETING POR SOFIA SOROMENHO


realizou o curso de Gestão/ Produção das Artes do Espectáculo no Fórum Dança. Motivado por esta aprendizagem, montou uma empresa de produção e foi nessa altura que começou a questionar a sua carreira como bailarino. Foi então que tirou uma licença sem vencimento e lançou-se na descoberta de novos caminhos fora da CNB. Uma das experiências que destaca foi trabalhar com o encenador Filipe La Féria na peça West Side Story: Foi um momento muito importante, sair e perceber como é a realidade fora da Companhia. Trabalhar com um homem extraordinário que sabe muito bem o que está a fazer, como o Filipe La Féria, foi uma experiência fantástica. Durante este processo, achei que era mesmo aquilo que queria fazer e foi de facto muito importante, porque na realidade apercebi-me que queria mesmo voltar para a CNB. Volto para a Companhia totalmente entregue, como se tivesse outra vez 19 anos, e com um sentido de responsabilidade ainda maior. O entusiasmo durou pouco tempo e, passados três anos, começou novamente a sentir uma insatisfação constante, que cresceu e tornou-se mais concreta apercebendo-se que desta vez queria mesmo parar de dançar. A minha última temporada foi a de 2012-13. Tomei essa decisão e guardei-a para mim, pensei: não sei como vou fazer, nem o que vou fazer, mas a decisão está tomada. Fiz essa temporada com a consciência de que era a última, decidi o que queria fazer como despedida e que saía bem. De entre os bailados que

dancei nessa temporada, escolhi como despedida Grosse Fuge e Noite Transfigurada de Anne Teresa De Keersmaeker, que foi um processo maravilhoso, e A Sagração da Primavera de Olga Roriz, que já tinha dançado, mas foi a primeira vez que o fiz com orquestra ao vivo e foi muito especial. Foi determinante nesse momento o papel de Luísa Taveira, sua antiga professora e na altura Directora Artística da CNB, que apercebendo-se da sua desorientação o aconselhou a estudar novamente. E foi isso mesmo que aconteceu, fez a licenciatura em Estudos Artísticos na Universidade Aberta e depois o Mestrado em Empreendorismo e Estudos da Cultura – ramo Gestão Cultural, no ISCTE-IUL. O meu objectivo era criar uma carreira na área da gestão cultural e o gabinete de comunicação trabalhava em diversas frentes. Naquele momento, o que eu queria era aprender. Olhei para este gabinete como uma oportunidade para fazê-lo, porque abrangia muitas áreas. Fiz a proposta à Luísa Taveira e é assim que chego à comunicação. Tem sido uma grande aprendizagem e, em 2018, passei a ser o Coordenador do Gabinete de Comunicação e Marketing da CNB, que é um departamento que compreende muitas áreas: a comunicação, o marketing, a gestão de bilheteira, gestão de merchandising, projectos de aproximação à dança (serviço educativo) e relações públicas. É uma dualidade entre o ser demasiado e o desafio. Preciso de desafios e de ser desafiado, porque isso estimula-me a avançar.


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Ao longo de quase 24 anos nesta “casa”, reconhece o seu contributo pessoal no percurso da CNB e acrescenta: isso é muito gratificante e é o que quero continuar a fazer: contribuir sempre para este projecto directa ou indirectamente.

O meu final de carreira foi o princípio de outra e portanto é muito positivo. A passagem de bailarino a coordenador foi muito bom, porque foi uma escolha, estava altamente motivado. E acrescenta a sorrir: na realidade neste momento estou a fazer aquilo com que brincava em criança. Brincava aos teatros e às produções teatrais! O menino que brincava aos teatros está bem aqui e é aqui que quer estar, mas por quanto tempo mais?

MESMO ANTES DE ENTRAR EM CENA, UMA CRÓNICA

Fascina-me todos os dias contribuir para um projecto maior. Todos os dias tenho o desafio de pensar em como chegar a mais pessoas. O desafio de construir algo, quase um sentido de missão. A CNB é a minha casa, mas ela não me pertence — isto é um serviço público. Para mim é importante ter isto sempre presente.

Sente saudades de alguns processos criativos, mas não de estar em palco.

ERA UMA VEZ UM MENINO QUE BRINCAVA AOS TEATROS... — PEDRO MASCARENHAS

Pedro Mascarenhas coordena uma equipa de apenas quatro pessoas que trabalha arduamente na sombra. É um trabalho que não se vê, mas que se materializa no resultado de chegar cada vez mais a um maior número de pessoas.


MESMO ANTES DE ENTRAR EM CENA, UMA CRÓNICA POR SOFIA SOROMENHO

Sento-me na plateia expectante, as luzes baixam, o público serena. O que aí vem para quem está na plateia é sempre mágico, sempre novo, sempre diferente, mas este ritual inicial repete-se, sempre o mesmo: ouve-se o aviso de que é proibido fazer qualquer registo de som ou imagem, o pedido para desligar telemóveis, o mecenas principal da Companhia Nacional de Bailado... vai começar o espectáculo. Silêncio total. Naquele momento imagino o que se passa atrás do palco, do outro lado, onde o público não pode entrar, onde não vê. Pergunto-me o que acontece do lado de lá? O que acontece nesse momento antes de os bailarinos entrarem em cena? O que acontece fora do espaço que o público vê? Será que acontece sempre o mesmo, como uma espécie de ritual antes da actuação? Será que a cada espectáculo tudo é diferente? Os camarins são uma espécie de local sagrado onde se processa um ritual de preparação para a entrada em cena. Onde acontecem todo o tipo de rotinas pessoais e secretas, cada bailarino(a) à sua maneira. Fui espreitar. Um bailarino maquilha-se como se estivesse a meditar, lenta e cuidadosamente, aplicando várias camadas de cores com formas diferentes. Outra bailarina cose as fitas às sapatilhas calmamente, assegurando-se que estão perfeitas para entrar em cena. E ainda outra coloca resina nos calcanhares e depois calça as

sapatilhas, não vão elas escorregar durante o bailado. Vejo bailarinos a aquecer o corpo de diferentes formas, cada um no seu mundo particular, com headphones, movendo-se livremente, uns mais estáticos, outros mais frenéticos. Vejo outros a fazer caretas exercitando os músculos da cara, é que a cara também tem de estar pronta para se expressar completamente, explica-me uma bailarina. A outro pergunto, o que fazes tu? “Eu tento não ter rituais, talvez o meu ritual seja não ter rituais. Quando sei que estou a fazer algo que fiz no dia anterior tento fazer uma coisa completamente diferente, tento maquilhar-me num horário diferente, atrasar e sobretudo tentar que não se repitam as coisas.” Mas há outros para quem a rotina é fundamental e que, para estarem totalmente confiantes, seguem uma sequência de preparação à risca. Há bailarinos que estão prontos uma hora antes do espectáculo: vestidos, penteados, maquilhados e depois o que fazem? Fazem o que for necessário como por exemplo


Há bailarinas deitadas no chão, com as pernas para cima na vertical. Outras de olhos fechados que percorrem mentalmente a coreografia do princípio ao fim. É um momento importante de concentração total.

Um bailarino conta-me que escolhe um local escuro, onde fecha os olhos e respira durante dez segundos para se concentrar. Uma bailarina reza um Pai-Nosso, outro uma reza inventada por si, outro faz o sinal da cruz com dizeres um pouco prosaicos. Há uma agitação em torno do palco, um bailarino coloca uma garrafa de água por cima da luz de emergência e outra distribui as suas garrafas religiosamente de ambos os lados do palco.

Há bailarinos que têm a mania de ser sempre a mesma pessoa a fechar o fato antes de entrar em cena, outros têm que tocar nos parceiros com quem vão dançar e há ainda quem entre sempre em coupé com a perna direita atrás. Uma bailarina pergunta “quem é que tem cheirinho?” é que o perfume não pode faltar antes de entrar em cena. Borrifa generosamente o perfume em todo o corpo e agora, sim, nada pode falhar. As luzes baixam e uma bailarina repete supersticiosamente em uníssono o aviso “Senhoras e senhores, bem-vindos ao Teatro Camões”... Vai começar... ouve-se sussurrar “Merdinhas, merdinhas” que é como quem diz “corra tudo bem”. É que “boa sorte” é uma frase proibida. Lisboa, Teatro Camões Fevereiro 2020

MESMO ANTES DE ENTRAR EM CENA, UMA CRÓNICA

A respiração é fundamental, desacelerar o batimento cardíaco, respirar fundo, bocejar. Estar muito calmo. Guardar a energia para depois dar tudo no espectáculo.

Uma bailarina come uma Bola de Neve (rebuçado) para dar energia e outra um Smint para ficar com a boca fresca. O bâton é a última coisa a colocar.

ERA UMA VEZ UM MENINO QUE BRINCAVA AOS TEATROS... — PEDRO MASCARENHAS

Bailarino Nuno Tauber a maquilhar-se antes de entrar em cena.

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treinar algum passo, concentrar-se, aquecer uma parte do corpo específica para aquele bailado e ficar em silêncio sozinhos, isso é essencial.


Mecenas Principal CNB:

Apoio CNB e TNSC:

T.01-E.04-MAR.2020


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