Missão: Salvar Crianças-Bruxas

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2 A EDIÇÃO BRASÍLIA 2012 SEMEAR PUBLICAÇÕES


Os recursos financeiros obtidos com a comercialização desse trabalho, incluindo todos os direitos autorais, devem ser revertidos exclusivamente aos projetos apoiados pelo Caminho Nações (Brasil) & Nigerian Way to the Nations – CNPJ: 13.099.198/0001-54

Fotos: Leonardo Lepsch – www.leonardolepsch.com Revisão: Dora Ramos – www.corte.com.br/dora e Malena Rehbein Rodrigues Direção de Arte e Projeto Gráfico: Marcos Vinícius Braga (Vini) e Francisco Pacheco (Chico) Diagramação: Marcos Vinícius Braga Capa: Pablo Massolar e Marcos Vinícius Braga Impresso no Brasil Tiragem: 1000 exemplares

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Q7 Quintela, Marcelo (Org.) Missão, salvar “crianças-bruxas”: diário fotográfico de uma expedição brasileira à áfrica ocidental / Marcelo Quintela (Org.). -- 2. ed. – Brasília; Associação Humanitária Caminho Nações – Way To The Nations, 2012. 184 p. ISBN: 978-85-63882-06-6 1. Missões pós-modernas. 2. Bruxaria Infantil. 3. Trabalho missionário. 4. Religião. 5. Cristianismo. 6. África. 7. Bruxaria. 8. Antropologia. I. Título CDU: 27-76(6-15)


Ao Caio, meu pai na Missão e no coração. Meu trabalho, há muitos anos, é tentar separar, ante a percepção histórica das pessoas, o que é o Evangelho daquilo em que o cristianismo se tornou. Assim, vou vendo muitos se voltando para Jesus Cristo, ainda que jamais consigam botar os pés numa “igreja”. E, agindo assim, penso estar de fato anunciando as boas novas. Ou seja, dizendo-lhes que estamos livres do cristianismo a fim de podermos servir a Deus em novidade de vida e não segundo a perversão cristã do Evangelho1.

Diógenis Santos – Brasília, DF.

Entrevista à Revista Contemporânea – Novembro de 2008


Tunísia

Marrocos Argélia

Líbia

Egito

Saara Ocidental Mauritânia

Cabo Verde Senegal Gâmbia

Guiné Bissau

Mali

Níger Chade

Guiné

Serra Leoa Libéria

Burkina Fasso Gana

Djibuti

Benin

Etiópia

Nigéria Togo

Camarões

Guiné Equatorial Gabão São Tomé e Príncipe

A bruxaria contemporânea não pode mais ser explicada em termos de tradição Africana... As formas presentes da crença são mais um produto de uma tradição inventada2.

Cabinda (Angola)

Oceano Atlântico

República Centro-Africana Uganda

Congo República Democrática do Congo

Somália Quênia

Ruanda Burundi

Oceano Índico Seychelles

Tanzânia Comores

Angola

Malavi Zâmbia

UNICEF (2010)

ZimbábueMoçambique Namíbia

Países que fazem parte da África Subsaariana

Eritréia

Sudão

Madagascar

Botsuana Suazilândia

África do Sul

Lesoto

Maurício


t in Modern AfriA tese alemã “Witchcraf a capa a figura de um ca,” de Verlag, traz em su antiga para proteger a cerimonial na Tanzânia s que sempre a cercriança dos espíritos mau cam. a alguma teologia Raramente houve na Áfric os a cobertura espirique oferecesse aos pequen á nos céus...” tual do “Pai nosso que est Livrai-os do mal!

INTRODUÇÃO

5


Dedicado ao jovem amigo Aurélio Edgard, missionário contemporâneo, que morreu enquanto dava a vida por aqueles que a tiraram...

FOLHA DE S. PAULO MISSIONÁRIO BRASILEIRO É ASSASSINADO NO TIMOR LESTE São Paulo, terça-feira, 21 de novembro de 2006

DILI, 20 Nov (AFP) - Um missionário brasileiro foi assassinado no Timor Leste, informou nesta segunda-feira o primeiro-ministro, José Ramos Horta. O missionário protestante Edgar Gonçalves Brito, de 32 anos, foi assassinado em frente à sua irmã, por uma gangue que parou o carro que ele dirigia. Segundo Elizama Gonçalves Brito, que trabalha como enfermeira em Dili, os missionários tentaram argumentar com os agressores que eram brasileiros, mas, quando Edgard desceu o vidro do carro, para conversar, foi atingido no pescoço com uma espada de samurai. Ainda ferido, Edgard foi levado ao hospital, mas a passagem estava impedida devido a conflitos na região. Foi transportado até a clínica do bairro, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Edgard Brito era de Belo Horizonte e morava havia quase dois anos em Timor Leste,

De

Aurélio Edigard Gonçalves de Brito

Para

Marcelo Quintela

Enviado

Thursday, May 11, 2006 10:36 AM

onde dava aulas de português para crianças e fundou a pré-escola de Bicali, em Viqueque, interior do país. "Ele marcou a vida de todos nós, era uma pessoa que estava sempre de bom humor. Para ele, todos eram iguais. Essa foi a mensagem mais importante que ele deixou", diz Evilásio de Oliveira, missionário da Jocum (Jovens com uma Missão). Autoridades policiais já iniciaram as investigações do assassinato, mas, até o momento, ninguém foi preso. O premiê, José Ramos-Horta, declarou que o trabalho do brasileiro era muito respeitado e um forte símbolo da amizade entre Brasil e Timor Leste. "O seu amor pelo povo de Timor permanecerá como um exemplo para nós. Damos graças a Deus pela vida e obra deste missionário a serviço da sua fé em prol do povo timorense", disse.

Meu irmão, nós não sabemos os rumos que a situação vai tomar aqui em Timor... o povo está sofrendo bastante. Um grande abraço.

6

INTRODUÇÃO


De

Aurélio Edgard Gonçalves de Brito

Para

Marcelo Quintela

Enviado

Sunday, June 04, 2006 7:00 AM

Olá Marcelo. Tudo bem com você?... Aqui em Timor... estão falando em tentativa de golpe, e isso tudo contribuiu para que a população fugisse em massa para as montanhas, criando verdadeiros campos de refugiados... Resolvemos ajudar e eu acabei tendo que viajar para levar alimento e medicamentos.

De

Aurélio Edigard Gonçalves de Brito

Para

Marcelo Quintela

Enviado

Sunday, June 11, 2006 7:34 AM

Querido amigo... Eu gostaria que você mostrasse essa mensagem para o Caio ... Aqui continuamos vivendo incertezas, e eu decidi me dedicar apenas ao que eu sou útil... Tenho sentido medo de receber toda confiança de vocês e decepcionar. Não queria ter esse tipo de dúvida em mim...

De

Marcelo Quintela

Para

Aurélio Edigard Gonçalves de Brito

Enviado

Tuersday, November 20, 2006 8:33 AM

“Tombaram os príncipes nas batalhas...!” Aurélio, eu sei que vc não está mais aí... Sei que não pode me ouvir... Estás com o Pai. Mas se alguém estiver entrando aqui – a irmã do Aurélio ou outro querido dele - por favor, responda essa mensagem... Na mesma Graça Infinita, que ama e nada explica, Marcelo Quintela

INTRODUÇÃO

7


AS FACES DO MEDO ... ninguém faz ideia de como é sinistro cada lugar que acabamos de atravessar... 3 M. Leiris, antropólogo francês à África (1931-33)

Esses são alguns dos rostinhos de crianças estigmatizadas com quem convivemos nos primeiros dias de 2010. Esses são pequenos de sorte: foram recolhidos pela ONG CRARN – Child's Right and Rehabilitation Network (Centro de Reabilitação e Direitos da Criança), orfanato que abriga meninos e meninas que foram espancados, queimados, envenenados, esfaqueados, perfurados, amarrados às árvores ou abandonados após a nefasta acusação de serem “crianças-bruxas”. Diferente delas, mais de 5 mil outros pequeninos foram assassinados ou estão desaparecidos desde 2005. De cada cinco crianças abandonadas, uma acaba morrendo. As que sobrevivem à punição ficam em estado de choque para sempre. O mundo precisa saber. E nós vamos contar... O medo paralisa a razão 4 . Mary Douglas, antropóloga

8

INTRODUÇÃO


SUMÁRIO Prefácio 11

8.10. Relato pós-cruzada

109

Apresentação 13

8.11. A dor de ver

111

1. O Campo

16

8.12. Um embate filosófico numa feira de ignorâncias

118

2. O Problema - O dia em que ficamos cientes

23

8.13. Quero ir pra casa!

123

3. Dossiê Nigéria

27

8.14. “Não vim trazer paz, vim trazer espada!”

126

4 O fenômeno do ponto de vista das Nações Unidas

44

8.15. Antes da partida para casa, uma partida de futebol

131

5. O fenômeno do ponto de vista antropológico

49

8.16. “Eu vou embora, mas nunca digo ‘adeus’”

139

6. Bruxaria & Cristianismo

53

8.17. Amanheceu nosso último dia na África!

141

7. Preparando a Missão

77

8. Diário do Campo

85

8.18. A África dos meus sonhos!

143

8.1. Quatro voos depois...

86

8.19. O dia em que fizemos tudo errado!

148

8.2. O sol: dono da África, da pele, dos peixes, da feira!

89

8.20. Deixando o campo

156

8.3. A música das “crianças-bruxas”

93

9. Textos pós-diário

157

8.4. Elas estão aqui do nosso lado...

95

10. Expedições seguintes

162

8.5. Surf com Jojó de Olivença e Equipe

97

11. O fim da história

170

8.6. O jovem acorrentado na igreja

100

Créditos Finais

174

8.7. A primeira cruzada

103

Referências 175

8.8. “Não traga nenhum dinheiro, traga todo coração!”

106

“A Doce Revolução”

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8.9. Destaques da Cruzada

108

Patrocinadores desta edição

183


PREFÁCIO

Estado de Akwa Ibom – Sul da Nigéria

10


PREFÁCIO No dia em que recebi um e-mail com um link que mostrava o que estava acontecendo a um significativo número de crianças na Nigéria – e pior: um fenômeno patrocinado pelos “pastores evangélicos neopentecostais” daquele país –, não tive nenhuma dúvida de que aquele era um chamado para nós do Movimento “Caminho da Graça”. Entretanto, eu sabia disso também porque conhecia as pessoas com as quais, no amor de Deus, eu contava a fim de propor um desafio de enfrentamento da situação. Daí não ter nem mesmo escrito antes ao meu filho amado na fé, Marcelo Quintela. Apenas disse que nós não teríamos mais como viver sabendo que aquilo estava acontecendo, sendo perpetrado “em nome de Jesus”, sem que, de nossa parte, nada fosse tentado a fim de parar aquela mortandade diabólica praticada pelos “vendedores de medo” – e afirmei a todos que o Marcelo iria tomar as providências necessárias para que estabelecêssemos uma base de luta de amor na Nigéria. O testemunho do meu coração estava certo! Viera de Deus! Sim, e, para mim, tal prova era o fato de que em pouco tempo já tínhamos o primeiro grupo forjado por Deus para fazer a Viagem.

O Marcelo foi com eles. Eram sete. Todos apaixonados. Todos enlouquecidos. Todos provando um amor ardente de guerreiros no espírito! Hoje o que fora um link e um e-mail são, na Nigéria, uma realidade com cara de gente boa de Deus! Faces como a do Marcelo, a do Leo, a do Jojó e de tantos outros [...] dão fisionomia ao que fora antes apenas uma decisão. Quando o Marcelo voltou da primeira viagem à Nigéria, tive a certeza de que o nosso Movimento havia saído de sua breve adolescência e colocado seu primeiro pé na existência adulta. Do Marcelo Quintela, idealizador e organizador do livro que está em suas mãos, tenho a dizer que a poucos tive na vida como ele! Sim, ele é esse alguém que tem profundo prazer em ser meu filho no amor de Deus; e sente como sua a missão de me ajudar a fazer a Mensagem desse Amor conhecida por esta nova geração no Planeta. O Marcelo é a pessoa que venho preparando, juntamente com outros amigos, a fim de assumirem a mentoria executiva do Movimento “Caminho da Graça” no Brasil e em todo o mundo, o “Caminho às Nações” – sob a direção 11


executiva dele. Eu ficarei apenas sendo o mentor que olha e ajuda a corrigir rotas ou a divisar novos desafios! Para mim, o livro que você tem nas mãos é como uma Certidão de Casamento entre um movimento humano recente e a vida adulta em Cristo. Leia com amor!

12

PREFÁCIO

Somente assim o livro se iluminará para além de si mesmo em você! Nele, que me deu o Marcelo como filho na fé, e aos irmãos do Caminho como herança de amor, Caio Fábio D´Araújo Filho 3 de janeiro de 2011 Lago Norte – Brasília


A P R E S E N TA Ç Ã O Esse livro não se decidia se queria ser um álbum fotográfico ou um relato da missão ao Delta do Rio Níger. Por fim, precisou ser os dois. E, lógico, abriu mão de muitas fotos igualmente relevantes como as que foram selecionadas e subtraiu tantas outras informações textuais, descrições, ocorrências, detalhes e notícias que pertencem aos registros originais, ainda que faltem a esse “livro do diário”. Julgamos que essa foi a melhor escolha. Tanto nos relatos de campo como nos estudos bibliográficos que compõem essa publicação, há termos utilizados no meio religioso e personagens da história da Igreja e da teologia. Notas de rodapé buscam aproximar o leitor desse conhecimento quando ele é importante à compreensão do texto. De modo geral, a linguagem procura ser secular e caracterizada pela oralidade comum às mensagens eletrônicas entre amigos. O Diário, propriamente dito, é uma coleção de emails enviados do Campo a uma extensa rede cibernética de fraternidade; e sempre publicados no site www.caiofabio.net e em blogs associados. No transcurso da viagem, a pedido de amigos e familiares, toda vez que o gerador elétrico da pousada permi-

tia, conectávamos os computadores a uma rede lenta, mas possível. Raramente houve algum dia em que nada foi escrito, e, quando isso acontecia, devido ao tumulto que foi tomando o calendário, contávamos, depois, a memória guardada. Nunca pensamos em fazer disso um livro. Os emails estão publicados como foram enviados ao final de dias exaustivos. As correções feitas foram ortográficas: do “Internetês” para o português. Para situar o leitor em relação ao “problema”, acrescentamos alguma revisão de literatura antropológica que confirmasse nossa tese de que a estigmatização infantil na África Cristã é um fato recente e capitaneado pela “índole cristã neopentecostal”. O capítulo “antropológico” é, portanto, o que faz dessa coletânea um objeto literário; e, antecedendo tanto a ele como ao diário, transcrevemos o “Dossiê Nigéria” – canal do site que foi aberto numa fase pré-missão, de investigação na Internet. Ali fomos acrescentando, cronologicamente, nossos “recortes de revista” a respeito do assunto que, à época, era tão estranho para nós, como deve ser hoje para a maioria dos leitores que se atrevem a entrar nesse barco, que tendo navegado da virtualidade (o dossiê) para a realidade (a expedição), voltou ao nosso portal virtual (o site) e agora, finalmente está em suas mãos. 13


N贸s e milhares de navegantes do site www.caiofabio.net


Níger

PREFÁCIO

Gana População predominantemente Muçulmana

Benin

Abuja

Chade

População predominantemente Cristã

Lagos Lagos

Delta do Rio Níger

Calabar Uyo

Oceano Atlântico

Eket

Camarões

República Centro-Africana

Oron

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1. O CAMPO A única certeza que se pode obter na História é sobre sua injustiça e seu caos, aos nossos olhos; e, do ponto de vista da Soberania de Deus, sua total liberdade para fazer o homem caminhar sobre o chão do Mistério e da indisponibilidade de certezas1.

Nigéria

República Federal da Nigéria África Ocidental O país de maior população negra da África também é o mais populoso do continente. Seria como colocar pouco menos do que toda a população brasileira dentro do Estado de Mato Grosso! Essa densidade ultrapassa a população total estimada de todos os países do Oeste Africano. Além da língua inglesa, os nigerianos também falam Hauçá, Ibo, Iorubá, Edo, Tiv, Kanuri, Urhobo, Fulfude, Ibibio, Efik, Itsekiri, Nupe, Jukun, Ijaw e mais de 370 dialetos falados pelo conjunto de suas três principais etnias: Hauçá, Ibo e Iorubá. 16

População: 151.478 Capital: Abuja Extensão territorial: 923.768 Km2 Idioma oficial: Inglês PIB em 2007: 294.800 bilhões de dólares IDH 2010 (Índice de Desenvolvimento Humano): baixo, ocupando a 142o posição entre 185 países Alfabetização: 69,1% (138o) Fonte: IBGE


História Uma das mais avançadas civilizações da África Ocidental habitou o território nigeriano muito tempo atrás. A cultura Nok5 demonstra que a fabricação das peças vai da segunda metade do último milênio a.C. ao começo do primeiro milênio da nossa era. As etnias Hauçá, Ibo e Iorubá sempre foram prevalentes no território nigeriano. Entretanto, na Idade Média, sua geografia foi submetida a intensos movimentos migratórios, e, por isso, estamos falando de um lugar multiétnico. Quase todas as raças nativas da África estão representadas no país e, segundo a última estimativa, existem mais de 250 grupos étnicos “acotovelados” em suas fronteiras. Vamos para uma breve viagem no tempo: Séculos XI – XIV: Muitos reinos muçulmanos se instalaram ao Norte. Antes deles, os primeiros assentamentos de povos nigerianos se deram durante um império que, por 600 anos, prosperou como rota de comércio entre os povos do deserto, ao norte; e os da floresta, ao sul. Séculos XIV – XV: Reinos da etnia Iorubá – da qual descendem algumas das expressões religiosas afro-brasileiras – crescem no sudoeste desse espaço geográfico. Fins do século XV: Portugueses à vista! Os Iorubás são “descobertos” pelas caravelas, e os chefes africanos decidem viver da exportação de escravos aos europeus.

Século XVIII: O Império Britânico, dono de mares e terras do planeta, domina também o comércio de escravos na Nigéria. Início do século XIX: A Coroa Inglesa se cansa desse tipo infame de transação comercial no mundo e suas naus passam a patrulhar o Atlântico, capturando navios-negreiros na costa da Nigéria e deixando lá missionários anglicanos para conversão dos povos nativos. Ao mesmo tempo, empresas britânicas começam a explorar o caudaloso rio Níger à procura de recursos valiosos. Mas a coisa não se ocidentalizou fácil assim. Um império islâmico iniciou forte Jihad de conversão massiva dos povos pagãos ao norte da Nigéria. Suas culturas originais foram completamente destruídas pelo Islã antipoliteísta. 1851: A Inglaterra toma o porto de Lagos, antigo entreposto português no sul da Nigéria, e, até o fim do século, estabelece protetorados de norte a sul ao redor do rio. 1884-85: A Europa é senhora de todo o Continente Negro; e a Conferência de Berlim “organiza” o mapa da “corrida pela África”, que agrupa povos de etnias distintas em novas fronteiras tão mal feitas que até hoje são motivo de tragédias humanitárias. O CAMPO

17


1914: A Rainha teve a infeliz ideia de unificar o Norte e o Sul, transformando-os numa única Colônia a administrar em meio à constante tensão étnica. 1966: Eclode a guerra civil. Os oficiais Ibos do sul depuseram o governo nortista, mataram todos os ministros Hauçás e tomaram Lagos “na raça”. Aboliram o sistema federativo e criaram um Estado central cheio de líderes Ibos. Os nortistas reagiram ferozmente para impedir que os sulistas passassem a controlar o país inteiro e iniciaram uma revolta que matou milhares de civis Ibos. No meio da guerra, oficiais do norte se rebelaram contra seus próprios irmãos e mataram o chefe do Estado-Maior do Exército, instaurando um novo governo militar. Durante essa bagunça, um coronel que governava o Leste declarou que sua parte do mapa seria uma nova república, independente de tudo, chamada Biafra. Assim, em 1967, tem início a guerra “Biafra contra o resto”... E o “resto” se uniu contra Biafra! Com o apoio de mísseis russos e fuzis ingleses, Norte e Sul trucidaram os rebeldes, naquela que foi a primeira guerra moderna na África. Os conflitos seguiram sem trégua, nem ao menos para enterrar seus mortos. Biafra se rende após três anos de barbarização. 18

O CAMPO

1970: As imagens do dantesco genocídio correm o mundo. O sudeste e as terras às margens do Níger estão arrasados. O governo dá início a programas de socorro para reconstruir a região. O pessoal do norte teve um surto de pacificação e muitos Ibos sulistas obtiveram posições no governo. Mas as tensões étnicas permaneciam. Ninguém confiava em ninguém. Um trauma. A década segue tumultuada com militares caçando militares e matando presidentes. Década de 1980: Anos marcados por constante instabilidade política e social, com golpes e acordos seguidos por novos golpes e outros acordos o tempo inteiro! A oposição é tratada com intensa repressão: prisões em massa, julgamentos sumários; e um número recorde de execuções resultaram na condenação da Nigéria pela ONU e pela Anistia Internacional por desrespeito aos direitos humanos. 1991: As pressões internacionais levam o governo a tomar medidas paliativas. Para acalmar os conflitos étnicos, o presidente Babamgida transfere a capital para uma pequena cidade do interior, Abuja, que fica bem no meio do mapa, longe da área dominada pelos Hauçás, no norte, e os Iorubás, que já mandavam no sul. 1993-1994: Os conflitos que não acabavam nunca terminaram forçando o governo a convocar eleição presidencial, que acabou anulada, uma vez que um empresá-


rio oposicionista venceu (e não podia!?). Quem assumiu o fez inconstitucionalmente, sendo logo derrubado pela Suprema Corte. A população foi para as ruas protestar e os militares reagiram como sempre. No meio desse caos, um novo golpe militar. E o general Sani Abacha chega ao poder. Ele acirra a repressão política, fecha o Parlamento e piora o que já estava ruim. A desagregação, o empobrecimento e a falta de perspectivas fazem crescer a violência urbana e a corrupção generalizada. A Nigéria passa a sofrer maiores sanções, sendo isolada no cenário político internacional6. Então, o ditador Abacha resolve constituir um governo aberto aos civis. 1995: Havia um único líder civil com legitimidade para manter a unidade sob um governo não militar. Era o escritor nigeriano Ken Saro-Wiwa, mas ele foi enforcado pelo seu oposicionista, Abiola, que terminou sendo preso. Abacha continuou mandando... 1998: Falece, de maneira inesperada, o ditador Abacha. 1999: A Assembleia Nacional é reaberta e a nova Constituição, promulgada. 2001: Na tentativa de organizar o caos e chegar à paz, o país cede aos governantes do norte e a Sharia passa a vigorar em 12 dos 36 Estados nigerianos. Em contraposição, o Sul é “cristão militante” agora!

2007: Umaru Musa Yar'Adua, muçulmano e membro do Partido Democrático Popular, vence as eleições gerais para a presidência. Homem de paz, Yar’Adua ajuda a nação a se apresentar como o único país do planeta onde as comunidades islâmicas e cristãs convivem pacificamente (desde que distantes). 2009: O presidente desaparece. Ninguém explica nada. Supõe-se que ele foi para a Arábia Saudita tratar de um câncer. Ao final da década: A pobreza é geral. Somente os funcionários públicos de Abuja têm os melhores carros em circulação. Lagos cresceu no esteio da economia petrolífera e se tornou um caos urbano de 12 milhões de habitantes. Empregos bem pagos são escassos. A informalidade é formalizada e a comida é muito cara! O país está sendo reconstruído. Devagar... Bem devagar. Quase parando...

O CAMPO

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Religião 10%

50%

40% Muçulmanos Cristãos Animistas

Em 2006, a Associação Cristã da Nigéria, em protesto contra a adoção da Sharia nos Estados do Norte, publicou documento provocativo9 advertindo os filhos do Islã de que eles não pensassem possuir o monopólio da violência10. No dia seguinte, a retaliação estimulada por esse texto de guerra incitou o assassinato de mais de 70 muçulmanos11. Desde a implantação da Sharia, os conflitos já somam mais de 12 mil mortos. Cristãos, em milhões 30

Constitucionalmente, o país é um Estado laico com liberdade religiosa. Mas grupos cristãos alegam que, durante quase 40 anos, o governo deu tratamento preferencial aos muçulmanos e os discriminou. Entre 1982 e 1996, mais de 18 sérios conflitos foram registrados no país. Nos anos 1990, o grupo radical islâmico Maitazinis ficou conhecido pelos seus ataques violentos a quem se opunha a sua doutrina7. Em 2008 e 2009, novos combates causaram 404 mortes. As lideranças muçulmanas declararam não reconhecer as milícias fundamentalistas como representantes da causa islâmica (como sempre!)8. 20

O CAMPO

25 20 15 10 5 0

Católicos

Protestantes

Evangélicos Independentes


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