Arquitectura Branca

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arquitectura

branca

PARA A TUBERCULOSE
BOOK BY THE José Avelãs NunesEM PORTUGAL OS SANATÓRIOS

as três

tuberculose

de um caixão…

consultório da arquitectura

sanatorial em Portugal

arquitectónica: da traqueia clássica aos brônquios modernos

branca: as arquitecturas para a tuberculose em Portugal

brisa

cura

7 Prefácio 11 Agradecimentos 14 Entre
tábuas
26 A
no
114 Experimentalismo
178 Microrradiografia
286 Arquitectura
416 …Uma fugaz
de
432 Bibliografia

Prefácio

A tuberculose mantém-se hoje como um dos maiores problemas de saúde pú blica, sendo uma das maiores causas de mortalidade a nível mundial. Apesar da atual baixa taxa de incidência na generalidade dos países ocidentais mais desenvolvidos, foi uma infeção que acompanhou a vida das populações destes países de forma signifi cativa durante o século XIX e grande parte do século XX , causando consequências de forte impacto quer a nível da assistência da saúde quer a nível social.

Efetivamente, havia o medo na generalidade dos indivíduos da altura, que per maneceu durante longas décadas, de serem infetados e de terem uma doença que afastava o doente do contacto social e lhe causava frequentemente uma vida penosa e de crescente gravidade, numa evolução inexorável para a morte. O impacto social com perda de vidas humanas, que causavam igualmente disrupção económica, levou a que quer no plano das relações humanas quer do ponto de vista cultural, a tubercu lose fosse um tema incontornável e sempre presente.

Um dos componentes mais importantes de todo este ambiente era a existên cia de sanatórios, palavra que provém de sanar, para onde eram enviados os doentes com tuberculose, para poderem tratar a sua doença com repouso e com o chamado tratamento climatérico. Este foi descrito pelo médico alemão Hermann Brehmer em meados do século XIX , criador do primeiro sanatório nos Alpes alemães, que partiu da observação da inexistência de casos de tuberculose nos habitantes da montanha. Assim, Brehmer concebeu que um sítio localizado muito acima do nível do mar, a bai xa pressão atmosférica, favoreceria a circulação sanguínea e, por sua a vez, a perfusão pulmonar. Instituiu um regime terapêutico que previa passeios tranquilos em territó rio de altitude e a melhoria do regime alimentar. Aquele sanatório viria a servir como modelo dos novos sanatórios a erguer por toda a Europa e Estados Unidos. Mais tarde, em 1874, Detweiller, antigo doente e médico discípulo de Brehmer, construiu o Sanatório de Falkenstein, a 400 metros de altitude, onde se privilegiava o repouso e a exposição do doente ao ar puro, mediante rigoroso controlo médico e exigen tes preceitos de higiene. Do desenho arquitetónico de Falkenstein, destacavam-se as galerias de cura (liegehalle), espaço onde todos os doentes repousavam ao mesmo tempo que respiravam o ar puro, e a preocupação da orientação solar dos quartos, características que se tornaram um modelo para a arquitetura sanatorial. Portugal foi um dos países que adotou esta organização de assistência aos doentes com tuber culose, através da instituição de vários sanatórios no território nacional, dos quais se destacavam os construídos na Serra da Estrela. Estes locais só foram perdendo a sua atividade quando a tuberculose teve um tratamento eficaz e em ambulatório, o que só veio a suceder durante a segunda metade do século XX .

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Sanatório Sousa Martins. Laboratório com médico.

Durante longas décadas a abordagem da doença respiratória foi evoluindo nestas instituições, tendo aqui, quer a Medicina Respiratória quer a Cirurgia Torácica, tido o seu palco preferencial, no desenvolvimento do diagnóstico, da abordagem tera pêutica e de novas intervenções cirúrgicas quer da tuberculose quer de outras doen ças respiratórias. De facto, ao contrário da generalidade das especialidades médicas que tiveram a sua origem na Medicina Interna, a Pneumotisiologia, posteriormente Pneumologia, teve o seu berço na atividade clínica sanatorial.

Quando nos chegou às mãos a tese de doutoramento do Arquiteto e Investi gador Universitário José Carlos Avelãs Nunes acerca da arquitetura dos sanatórios em Portugal, manifestamos imediatamente o nosso desejo de a publicarmos e divulgar mos, para além do nosso interesse em que ficasse um documento para a posteridade com toda a informação que a mesma continha. Efetivamente, sentimos ser nossa obrigação preservar a memória relativamente à história das doenças e da medicina respiratória, nomeadamente num tópico tão impactante e acerca do local onde se germinou a especialidade que é a nossa. Faço aqui um agradecimento público ao autor por nos ter proporcionado esta oportunidade, não tendo dúvidas de que para além do interesse do vasto público, este será um livro central e memorável na biblio teca de qualquer pneumologista.

António Morais

Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (2019-2024)

8

Médico em observação (microscópio) em sanatório não identificado.

as

caixão…

14 Entre
três tábuas de um
Aparelho de Raios-X. Sanatório Sousa Martins. c. 1920. 1

Atuberculose é uma doença actual. É, também, uma fonte acrescida de preo cupação médica, política e social, pois os seus mecanismos de tratamento po dem deixar de produzir efeitos.

A sua história é composta por múltiplos retratos. São fotografias onde diver sos médicos, arquitectos e outros experts têm como pano de fundo os sanatórios que contam a história da tuberculose e dos tuberculosos. São também momentos captu rados, pelo obturador, de várias sociedades, de vários períodos históricos, políticos e sociais, onde a peste branca condicionou vidas e marcou gerações.

É através dessas paredes, onde esses retratos estiveram outrora pendurados, e que assistiram à vida e à morte, às experiências médicas e aos sussurros de espe rança, que se levanta o véu das suas arquitecturas.

Em particular, este estudo visa constituir uma tentativa de interpretação da arquitectura dos sanatórios em Portugal, relacionando-os com as doutrinas médicas, os sistemas políticos, os seus decisores e as entidades que os administraram, a par de destrinçar as relações entre médicos e arquitectos. É através da arquitectura e das suas personagens, e a partir de um conjunto de análise amplo – ou seja, todos os sa natórios em território português – através de um arco cronológico balizado pelas suas vigências (1850-1970), que se construirá um relato relacional e sistemático destes tipos.

As motivações que se prendem com a escolha desta temática assentam na lacuna de estudo destes objectos, particularmente numa visão geral e metódica de todos os edifícios, na relação profunda e enraizada nos saberes médicos e nas suas vicissitudes, na única e própria capacidade da sua arquitectura enquanto resposta à medicina, na organização distinta dos hospitais e, finalmente, pelo estado decadente em que a maioria destes, actualmente, se encontram. Por outro lado, o estudo das suas características – e a sua aferição como singulares, nomeadamente no paradigma estrutural e semântico dos tipos 1 e correlacionada(s) tipologia(s) – não se encontra, actualmente, devidamente produzido.

Este trabalho estrutura-se com base em fontes, que foram custosas de reco lher e analisar. Uma das maiores dificuldades foi a inexistência do espólio da entidade produtora de documentação sobre a tuberculose.

A Assistência Nacional aos Tuberculosos – ANT 2 (depois IANT e SLAT), instituí da em 1899, que fundou, geriu e administrou quase a totalidade dos sanatórios para a tuberculose, extinguiu-se nos finais da década de 70 do século XX

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MOTIVAÇÕES FONTES

Embora a ANT tenha funcionado num edifício próprio 3 , e do qual existem re latos sobre o seu arquivo histórico, não se conseguiu rastrear o seu paradeiro docu mental. Apenas parte da sua biblioteca, tal como o correspondente inventário, foi encaminhada para o Instituto Ricardo Jorge, onde está consultável – embora não ca talogada. Uma pequena parte deste espólio, nomeadamente a componente contabi lística, encontra-se na Torre do Tombo 4 , embora não tratada arquivisticamente e sem interesse directo para este estudo.

Como tal, a estruturação da investigação da documentação foi direccionada para arquivos secundários, em particular para aqueles que tinham à sua guarda, por imposição legal, documentação textual e gráfica resultante dos pedidos de licencia mento (arquivos distritais e municipais) ou a arquivos de entidades pertencentes às esferas governativas que com a ANT colaborava, como arquivos de ministérios e dos seus departamentos, ou outras entidades que foram responsáveis ou intermediárias processuais destes edifícios.

Destacam-se os arquivos de cariz eminentemente arquitectónico, que guar dam espólios muito importantes para o estudo destes edifícios, em particular o espó lio da ex-DGEMN 5 ou da ex-DGCH 6 , que foram essenciais, tanto pela imensidão de processos textuais como pela clarificação do estudo com as suas peças gráficas.

Foram os médicos actores cruciais, tanto na construção de uma rede de sabe res, e também como directos intervenientes na consolidação dos sanatórios. Em pri meiro lugar, validaram o conceito de sanatório, com base em experimentalismos e, em segundo lugar, foram decisores – a diversos níveis – na formulação de programas e especificações destes sistemas. Como directores dos sanatórios foram, também, decisores nas intervenções dos arquitectos e das suas arquitecturas, em diálogo ou conflito com os arquitectos, e também funcionaram como intermediários ou delibe rantes das cúpulas governamentais. Sem o estudo dos médicos seria impossível a compreensão do fenómeno da arquitectura anti-tuberculose em Portugal.

Os arquitectos, enquanto agentes próprios da sua disciplina, particularmente através das peças escritas que acompanham os seus projectos, como relatos de via gens e estudos de outras arquitecturas, devidamente enquadrados no pensamento da época, nas suas escolas e estilos – debaixo dos holofotes próprios dos executores e materializadores destes sistemas – possibilitaram o estabelecimento das relações entre os projectos e os decisores, particularmente através do programa. A ausência de estudos pormenorizados dos arquitectos da DGEMN ou de arquitectos como Vas co Regaleira ou Manuel Montalvão obrigou a um detalhe mais aprofundado sobre o seu papel na produção arquitectónica nacional.

Foram, assim, essenciais os processos pessoais do arquivo da ex-DGEMN 7 , sempre que estes foram contratados como funcionários públicos ou, pontualmente, quando foi procedido um contrato com arquitectos externos à mesma instituição.

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ABORDAGENS MÉDICOS ARQUITECTOS

Os sanatórios, enquanto obras públicas na sua maioria conduzidas por deciso res políticos e governativos e enquadrados em circunstâncias decisórias ligadas ao poder médico, foram também agentes próprios de profilaxia, tratamento e contenção da propagação da doença: configuraram respostas à medicina que, durante décadas, foi impotente no tratamento da tuberculose, quer na vertente cirúrgica quer na ver tente pulmonar, isto é, a arquitectura como terapia. Os processos privados foram também estudados, para a compreensão da interligação entre o público e o privado, tal como a permissibilidade e/ou interesse reflexo às preocupações governamentais com a tuberculose. As ligações ao poder, aos instrumentos decisórios ou às políticas discutidas e aplicadas, na cronologia proposta, foram essenciais para decodificar os processos de encomenda, estipulação do programa e ligação entre todos os actores presentes no processo arquitectónico.

As relações entre estes, as suas arquitecturas e os mesmos sistemas, no pa norama internacional, permitiram aferir os modelos e as bases de trabalho, desde o pioneirismo de Portugal no que respeita a sanatórios para a tuberculose respiratória, até aos períodos de decadência e adaptação dos edifícios, nos paradigmas internacio nais próprios destes edifícios.

Esta malha, que se julgava densa, resultou numa manta de retalhos, pois as in formações que foram recolhidas constituem, quase sempre, uma parte do problema e uma ínfima fracção da solução. Mesmo com a ausência de informação sistematizada, particularmente de informação concertada com a ANT, o estudo apresentado permi tiu traçar uma linha condutora, assente nos pilares da história da medicina, da história geral e da história da arquitectura, da evolução e mutação destes edifícios, desde a sua origem (1850) até ao seu completo declínio (1970). Este arco permite ter amplitude suficiente, por atravessar vários momentos históricos de Portugal, tal como uma mas sa disforme de predominância estilística 8 e momentos da arquitectura, muito embora tenha dificultado o encadeamento com a história da medicina. Privilegiou-se, sempre que possível, uma abordagem estruturada e interpretativa, mas sem qualquer prejuí zo de um descritivismo factual, que se julga importante pelas lacunas que se manifes taram em estudos que, de alguma forma, se cruzaram com esta temática.

A questão da arquitectura sanatorial, ainda ao mesmo nível, tem sofrido, na última década, uma série de estudos importantes para a sua compreensão e, inclu sivamente, divulgação externa, em estreita relação com o âmbito geográfico dos tra balhos. Neste sentido, tanto a questão da relação entre arquitectura e medicina, e as suas histórias, foram amplamente estudadas, em particular na França, Inglaterra e Estados Unidos, onde se pode entender a génese, o desenvolvimento e a mudança de tipos e sistemas dos edifícios, tal como as suas respostas, em regime mutualista.

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RELAÇÕES E CRUZAMENTOS ESTADO DA ARTE

São de salientar, na mesma temática, mas num sentido mais abrangente e numa perspectiva enquadrada, relacionada com o movimento moderno 9 e as influên cias – consequenciais ou impositivas – da tuberculose, enquanto doença e reflexo hi giénico, salubre e marcadamente branco, os trabalhos de Margaret Campbell 10 , entre o simbolismo da cadeira de repouso e o edifício contentor. R. Hobday 11 relaciona, em for ma de ensaio histórico, o encadeamento entre a helioterapia e uma arquitectura solar.

Helen Bynum 12 apresenta um trabalho extenso, mesmo que numa perspectiva mais jornalística e, até, holística, da história da tuberculose e as suas consequências na sociedade, com o foco nos Estados Unidos. Thomas Daniel 13 publicou um artigo com referências em relação à história da tuberculose dos Estados Unidos, pertinentes para a montagem de um esquema geral, nomeadamente na comparação deste siste ma sanatorial com os seus congéneres franceses, alemães ou ingleses.

É de salientar o trabalho de Thomas Dormandy 14 , que mergulha nas questões fulcrais da doença, numa extensa obra seccionada por temáticas relacionadas com a tuberculose, como os estigmas sociais, a inevitável morte, o seu tratamento e tocan do as questões da caridade e dos modelos públicos de saúde, em particular no Reino Unido, a par de Mccarthy 15 . Para a França, distingue-se o estudo de David Barnes 16 , que analisa a tuberculose no século XIX , com uma forte componente social e histó rica da doença, ou para o Canadá por Peter Warren 17, com uma visão comparativa e passando pelos mais importantes conceitos tisiológicos e influência dos médicos nos processos de concepção dos sanatórios.

Para o caso francês, Jean-Bernard Cremnitzer 18 estabelece importantes rela ções com os edifícios para a luta contra a tuberculose. Com um arco cronológico se melhante ao do presente estudo, inicia a sua obra com o nascimento do sanatório, nas suas vertentes de concepção higienista ainda empírica, como resposta a congressos internacionais e à fundação de organismos franceses específicos para a tuberculose, ou seja, uma abordagem disciplinar variada, desde o governo aos decisores médicos. Também importante no seu estudo é a abertura de um debate tipológico, com a variação de utilização de sistemas pavilhonares 19 ou em monobloco, comparando os modelos germânicos, franceses, ingleses, americanos e suíços. O seu método de aná lise, baseado na cronologia e tendo como linha de conduta a história da saúde e da arquitectura, comporta os vários sanatórios franceses, desde as primeiras iniciativas até à concepção moderna, instigando a premência de uma contaminação de mode los, acompanhando uma lógica internacional de regularização do seu funcionamento coordenado. O mesmo autor culmina na obsolescência ou possível actualidade do edifício sanatorial e, no âmbito do DOCOMOMO 20 , e com Bernard Toulier, publicou as actas do colóquio de história e reabilitação dos sanatórios na Europa 21 , onde se des tacam os textos de Anne-Marie Chatelet 22 , Pierre-Louis Laget 23 e Dave Luthi 24 , além das várias análises de obras reabilitadas, como os sanatórios Zonnestraal e Paimio

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25 .

O filósofo Michel Foucault 26 , questiona conceitos como o isolamento, o poli ciamento e a contenção, além de apresentar uma análise radicalmente afastada das visões mais clássicas destes sistemas, muito embora não se referindo, de forma di recta, ao sanatório, na sua verdadeira concepção para a tuberculose. O seu estudo, publicado em 2000 27, estipula relações importantes entre o hospital, a sociedade e os médicos e, em particular, cruciais considerações entre o hospital antigo e o moderno. Esta concepção é, mais tardiamente, contestada e revista por Flurin Con drau 28 , que oferece uma reinterpretação do sanatório para a tuberculose: apresenta novas visões ao estudo destes equipamentos, com um foco mais direccionado para a doença, actualizando o próprio estado da arte internacional sobre estes edifícios. Ainda no campo dos ensaios, e claramente manifestando as relações intrín secas entre arquitectura e medicina, corpo e estrutura, deambulando pela temática das transparências e do Raio X , dos vãos e das aberturas, em que a casa de vidro é o símbolo das novas formas de vigilância e saúde, são de destacar os estudos de Beatriz Colomina 29. A autora apresenta os conceitos de policiamento médico e de vigilância que, tal como acontecera com o desenvolvimento dos métodos de visionamento in terior dos corpos – quer pelo Raio X quer pelo fluoroscópio – relaciona com a arqui tectura moderna. Colomina extravasa este paralelismo para as publicações e para a imagem, passando por Le Corbusier 30 e o seu plano aberto, relações importantes para a compreensão das consequências da vigilância e as galerias de cura, do interior aos jardins, da contemplação e da clausura.

Em Portugal, assiste-se a um aumento de atenção com as relações entre a arquitectura e a medicina, mormente ainda em fase embrionária.

Em relação à história da medicina e da saúde, o trabalho de Manuel Valente Alves 31 vem abrir caminhos a uma visão descentralizada da história da medicina, em que a tuberculose ganha um capítulo, mas as bases continuam a ser os trabalhos de Maximiano Lemos 32 e de Ferreira de Mira 33 . Teles de Araújo 34 , em colaboração com outros autores, estuda a história da tuberculose, permitindo um suporte de análise entre a doença e os sanatórios.

Gonçalves Ferreira 35 explicita as relações entre medicina e as instituições, fundamentando um caminho de decisões políticas, económicas e institucionais, per mitindo referências de contextualização. Neste sentido, e em particular para este estudo, são cruciais os trabalhos de Álvaro Barros Rosa 36 , que clarifica a história da Assistência Nacional aos Tuberculosos até ao seu desfecho. Ismael Vieira 37 estuda, numa perspectiva histórica, pontos do combate à tuberculose, integrando-a, pon tualmente, com alguns sanatórios. Carlos Miguel Ferreira 38 analisa, do ponto de vista sociológico, as suas devastadoras consequências, tal como Maria de Lurdes Ferreira 39 , com um estudo histórico da tuberculose.

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Em relação aos edifícios e, em particular, à sua arquitectura, são já alguns es tudos, muito embora monográficos, que se debruçam sobre os sanatórios. Destacam -se os trabalhos de António Castanheira Santos 40 , João Paulo Martins 41 , Ana Helena Monteiro 42 , Cristina Fé Santos 43 , Francisco Fontes 44 , Maria Solipa Pereira 45 , Luísa Ar ruda 46 ou Renato Gama-Rosa 47. Os sanatórios da região do Porto e Gaia foram es tudados por Anabela Amaral 48 e Ramalho de Almeida 49 e Nuno Ferreira 50 , enquanto que o do Caramulo 51 foi depurado por Cristiane Passinho 52 , depois de publicações de Isabel Costa Santos 53

No caso dos sanatórios de Coimbra, nomeadamente Covões e Celas, é in dispensável o trabalho de Ricardo Jerónimo 54 , para a compreensão do fenómeno e circunstâncias de Bissaya Barreto. André Tavares 55 , num âmbito cronológico mais re cuado, apresenta um estudo sistemático e organizado, percorrendo os caminhos das ideias, das influências e dos processos de decisão, desde os médicos aos arquitectos, permitindo compreender a arquitectura do Sanatório Marítimo do Norte e da Clínica Heliântia, em particular. Uma abordagem global, com uma metodologia sistematizada e profunda, com uma grande componente de pesquisa documental, e que assente em linhas comuns aos sanatórios e às suas arquitecturas, não foi, ainda, desenvolvida, dando motivação a este estudo.

Semelhantes dificuldades também foram encontradas em relação a muitos intervenientes, quer do processo decisório e programático, que permite aferir a ver dadeira indicação sanatorial, quer pelos seus projectistas. Arquitectos com papel pre ponderante, quer por notoriedade quer por volume de obra construída, encontram-se já devidamente estudados, como é o caso de Cottinelli Telmo por João Paulo Mar tins 56 , Carlos Ramos por Bárbara Coutinho 57 ou Rosendo Carvalheira por Elsa Men des 58 , para citar apenas alguns exemplos.

As publicações periódicas da época, a par das várias monografias, nomeada mente da área médica e arquitectónica, foram analisadas para comprometer o estudo com o universo da produção interna e externa, além de ilustrarem o posicionamento que estes edifícios, outrora, tinham na sociedade. Constituem fontes de informação privilegiada, muito embora maioritariamente jornalística, dos próprios edifícios, além de constituírem ilustrações sociais, económicas e políticas. São bases para colmatar estudos que, por diversas razões, não contemplam uma abordagem suficientemente aprofundada de cada um dos edifícios. Operam como coadjuvantes das informações de arquivo, permitindo contextualizar decisões, protagonistas e arquitecturas, discur sos médicos e, inclusivamente, a propaganda que animou os sanatórios, na época, perfazendo a compreensão dos modelos preteridos, além de marcar a solubilidade dos vários modelos, entretanto adoptados.

No que diz respeito à documentação iconográfica e manuscrita utilizada, já referidas as vicissitudes da inexistência de um fundo central (da ANT ), as falhas colma tadas resultaram da interligação e correlação das cópias dos ofícios, copiadores de

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OUTRAS FONTES

correspondência, cartas e relatórios encontrados nos processos do fundo da ex DGEMN , acessíveis e à guarda no Forte de Sacavém, numa consulta de mais de dois anos. Nesse mesmo arquivo, a partir de uma catalogação superficial já feita por estes serviços, foi desenvolvido um trabalho de análise sistematizada de toda a documen tação, para manifestação de interesse, e ao abrigo do qual foi estabelecido um proto colo 59. Foram consultadas instituições paralelas, como as ligadas às ferrovias, arquivos universitários, núcleos fotográficos, arquivos privados, arquivos históricos dos minis térios envolvidos, arquivo da ex-Direcção-Geral das Construções Hospitalares (paten te num edifício do Júlio de Matos e sem qualquer tratamento arquivístico), arquivo e biblioteca da Ordem dos Arquitectos e, não menos importante, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em vários fundos. As fotografias, incluídas a par de outras infor mações de relevo nas fichas dos edifícios, tais como plantas e outros desenhos de arquitectura, foram cedidas por privados, na sua maioria, ou colectadas a partir de monografias ou outras colecções pertinentes, como postais.

Este livro estrutura-se em capítulos que, tematicamente, sequenciam as aná lises das arquitecturas anti-tuberculose em Portugal, nomeadamente os sanatórios. Seguem uma trajectória em forma de roteiro, ou seja, partindo dos princípios fun damentais históricos e contextuais para a compreensão do entrosado fenómeno da arquitectura.

O primeiro capítulo é dedicado a uma radiografia da tuberculose, servin do como introdução dos contextos e conceitos essenciais. O capítulo 2 é dedicado à contextualização da tuberculose enquanto doença e enquanto consequência da criação de sanatórios. A história da tuberculose, com escrupulosos sumários e vinculada às concepções das suas arquitecturas, discorre sobre as fundamentais vicis situdes históricas, as configurações modelares, o higienismo, as patologias inerentes ou, ainda, os papéis e os guiões dos seus decisores.

O capítulo 3 aborda os experimentalismos sanatoriais em Portugal. Serve como apoio à compreensão dos fenómenos próprios e exclusivos do século XX , além de indagar sobre o pioneirismo de Portugal nas questões sanatoriais. São, assim, apre sentadas considerações compreendendo as primeiras experimentações de sanatórios em Portugal, com os estudos de casos que deram origem à arquitectura para a tuber culose: as lições da Madeira e da Serra da Estrela.

O capítulo 4 pretende elucidar e compreender a história da arquitectura, durante a vigência dos sanatórios, formulando as concepções que, nas várias épo cas, moldaram os arquitectos, os decisores e as suas arquitecturas. Focou-se, sempre que necessário, a questão dos sanatórios, e as relações entre as restantes tipologias. O vector orientador deste capítulo baseia-se na condução dos arquitectos e dos edi fícios que, de diversas formas e seguindo caminhos distintos, foram importantes na concepção e entendimento da arquitectura para a tuberculose. Desta forma, tenta-se

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ESTRUTURA

vincular e imprimir uma linha sequenciada nos seus actores – os arquitectos – e a sua contextualização na história da arquitectura portuguesa.

O capítulo 5 estrutura uma análise fundamentada de temáticas cirurgicamen te definidas, com a devida aproximação aos vários sanatórios intervenientes, do pon to de vista arquitectónico. Utilizou-se um critério temático, para responder às várias questões em análise e aferir relações comprovantes, e utilizou-se o critério cronológi co para os seus pontos internos, sempre que possível.

Por um lado, segue-se uma sequência cronológica, onde se categorizam as questões políticas, nomeadamente reformativas, pois correspondem a transforma ções nos sanatórios. Assiste-se a uma mudança formal, de linguagem, de manifes tação de imagem e, também, de conflitos de agência. Analisam-se as relações, agora fundamentadas e analisadas num contexto mais lato mas abrangente, entre a arqui tectura e a medicina, envolvendo todos os seus actores e os seus palcos.

A estrutura deste livro é firmada pelo capítulo 6 . É neste capítulo que são arroladas todas as informações, dentro de uma abordagem crítica, relacional e parti cularmente sistémica que funciona como elemento de ligação entre as diversas notas que, ao longo dos capítulos, abrem caminho para uma leitura geral. Assim, a definição de sanatório (ainda não estudada e relacionada) aparece caracterizada, além das suas vicissitudes evolutivas.

A redacção do presente trabalho não adopta o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, por opção do autor. A linguagem original das mesmas citações, por se achar importante a contextualização gráfica das expressões utilizadas, surge na sequência de uma opção tomada desde o início da escrita.

Por uma questão de economia de espaço, as referências a fontes documentais e legislação são directamente citadas nas notas de fim de capítulo. As restantes re ferências encontram-se na bibliografia. Note-se que, deliberadamente, não se optou pela clássica separação de citações com mais de três linhas para parágrafos autóno mos, pelos mesmos motivos de facilidade de leitura e compreensão das descrições da época.

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REFERENCIAÇÃO E NORMAS

NOTAS

1. Nomeadamente através dos seus programas próprios, da sua génese, da sua linguagem formal e espacial e pela estruturação de uma gramática intrínseca de um sanatório, do ponto de vista sis temático e tipológico.

2. Acrónimo para Assistência Nacional aos Tu berculosos (ANT, 1899), enquanto que IANT (1945) desdobra-se em Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos e, finalmente, SLAT em Serviço de Luta Anti-Tuberculosa (em 1975).

3. A sede da ANT localizava-se num edifício pró prio sito na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, próxi mo ao Cais do Sodré.

4. Fundo da Assistência Nacional aos Tuberculo sos, cota PT/TT/IANT

5. Maioritariamente à guarda do SIPA-IHRU, no Forte de Sacavém.

6. Sito no Parque da Saúde/Júlio de Matos, sem descrição arquivística, cotas ou quaisquer outras referências, estipulado em modo de depósito.

7. Em particular, o fundo à guarda do SIPA com a cota PT DGEMN: DSARH-PESSOAL

8. Ao longo deste trabalho entendem-se como considerações estilísticas, estilos, estilização ou outros conceitos relacionados no seu sentido lato, ou seja, sem quaisquer pretensões estritas, nomeadamente com os estudos de história da arte ou da arquitectura. Desta forma, refere-se à utilização de tais conceitos no universo da lin guagem plástica – ou, inclusivamente, apenas da plasticidade formal e/ou do uso de ornamentação – sem qualquer ligação com conceitos semelhan tes utilizados nas historiografias de referência, e a quem de direito.

9. Torna-se necessária uma nota breve para a terminologia moderna/modernista. Não preten dendo ser uma abordagem leviana, utilizam-se estes conceitos com base, por exemplo, nas pu blicações já referidas de Ana Tostões, com a sua delimitação temporal, com a qual se concorda em absoluto. Para uma definição de modernis mo, cfr. com, a título de exemplo, Susan Friedman (Definitional excursus: the meanings of modern/ modernity/modernism. Modernism/Moderni ty. Baltimore, vol. 8, n.º 3, Sept. 2001, p. 493-513),

Jane Goldman (Modernism, 1910-1945. Image to Apocalypse. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2004) ou ainda Christopher Wilk (“Introduction: What was Modernism?”, in Modernism. Designing a New World. 1914-1939 , London 2006, pp. 11-21). Para uma perspectiva histórica e crítica sobre o Movimento Moderno, a título de exemplo, v. Pa nayotis Tournikiotis (The Historiography of Modern Architecture, Cambridge 1999), Hubert-Jan Henket e Hilde Heyne (Back from Utopia. The Challenge of the Modern Movement, Rotterdam, 2002), Man fredo Tafuri (Projecto e utopia. Trad. do italiano. Lisboa: Editorial Presença, 1985) ou ainda o por tuguês Pedro Vieira de Almeida (O tronco da ar quitectura. Do racionalismo como borbulha. Porto: Centro de Estudos Arnaldo Araújo da CESAP/ESAP, 2002). No entanto, o conceito de “moderno”, longe de consensual, encontra-se num processo de pro blematização e alargamento nas últimas décadas. Outras referências existem, como a questão do moderno na saúde e na história da medicina que, muitas vezes, está internacionalmente acoplada a conceitos que, em Portugal e na mesma altura, não se aplicam em toda a sua acepção.

10. Cfr. Campbell – “What Tuberculosis did for Modernism: the influence of a curative environ ment on Modernist Design and Architecture” in Medical History [em linha] e Campbell – “From Cure Chair to Chaise Longue: Medical Treatment and the Form of the Modern Recliner” in Journal of Design History, 1999

11. Cfr. Hobday – “Sunlight Therapy and Solar Architecture” in Medical History, 1997

12. Cfr. Bynum – Spitting Bloog – The History of Tuberculosis, 2012.

13. Cfr. Daniel – “The history of tuberculosis” in Respiratory Medicine, 2006 [em linha].

14. Cfr. Dormandy – The white death: a history of tuberculosis, 1999.

15. Cfr. Mccarthy – “The key to the sanatoria” in Journal of the Royal Society of Medicine [em linha].

16. Cfr. Barnes – The Making of a Social Disease: Tuberculosis in Nineteenth-Century France, 1995.

17. Cfr. Warren – “The evolution of the sanato rium: the first half-century, 1854-1904” in Canadian Bulletin of Medical History, 2006 [em linha].

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18. Cfr. Cremnitzer – Architecture et santé: le temps du sanatorium en France et en Europe, 2005.

19. Os termos pavilionar ou pavilhonar não exis tem nos dicionários de língua portuguesa, muito embora amplamente utilizados nos artigos cientí ficos consultados. No entanto, optou-se pelo neo logismo pavilhonar (de pavilhão ou esquema em vários pavilhões individualizados) em detrimento de estrangeirismo pavilionar

20. Acrónimo de International Committee for documentation and conservation of buildings, sites and neighbourhoods of the Modern Move ment.

21. Cfr. Toulier, Cremnitzer, et al. – Histoire et réhabilitation des sanatoriums en Europe: actes du colloque, 2005

22. Cfr. Châtelet – “La Naissance du sanatorium en Europe” in Histoire et réhabilitation des sanato riums en Europe: actes du colloque, 2005

23. Cfr. Laget – “Genèse des hôpitaux marins en Europe” in Histoire et réhabilitation des sanato riums en Europe: actes du colloque, 2005

24. Cfr. Luthi – “1870-1950 Le sanatorium en Suisse: du Kurhaus à la clinique de pneumologie” in Histoire et réhabilitation des sanatoriums en Eu rope: actes du colloque, 2005.

25. Cfr. Jonge – “Zonnestraal: restauration d’une architecture transitoire” in Histoire et réhabilitation des sanatoriums en Europe: actes du colloque, 2005 e Kairamo - “La Rénovation du sanatorium de Pai mio” in Histoire et réhabilitation des sanatoriums en Europe: actes du colloque, 2005.

26. Cfr. Foucault – Microfísica do Poder, 1996, com primeira edição original em 1979; Foucault – Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, 1999, com primeira edição original em 1975; Cfr. Foucault – O nascimento da clínica, 1963, com primeira edição original em 1963, entre outras.

27. Cfr. Foucault – “The Incorporation of the Hospital into Modern Technology” in Power: The Essential Works of Michel Foucault 1954-1984 , 2000.

28. Cfr. Condrau – “Beyond the Total Institution: towards a reinterpretation of the tuberculosis sa natorium” in Tuberculosis Then and Now: Perspec tives on the History of an Infectious Disease, 2010.

29. Cfr. Colomina – “Dupla Exposição: uma ar quitectura de raios X” in Insi(s)tu: Espaços Públicos, Jan/Jun. 2003.

30. Cfr. Colomina - “Vers une architecture mé diatique” in Le Corbusier: the art of architecture, 2007.

31. Cfr. Alves – História da Medicina em Portugal: origens, ligações e contextos, 2014.

32. Cfr. Lemos – História da Medicina em Portu gal: Doutrinas e Instituições (vol. 2), 1991.

33. Cfr. Mira – História da Medicina Portuguesa, 1947.

34. Cfr. Araújo – História da pneumologia portu guesa, 1994.

35. Cfr. Ferreira – História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal, 1990.

36. Cfr. Rosa – Da ANT ao SLAT: história sumária da instituição, 1979.

37. Cfr. Vieira – Conhecer, tratar e combater a “peste branca”: a tisiologia e a luta contra a tuber culose em Portugal (1853-1975), Tese de Doutora mento, 2012.

38. Cfr. Ferreira – A medicalização dos sanató rios populares: desafios e formas de um processo social, Tese de Doutoramento, 2007 e Ferreira –Os sanatórios marítimos: construção social da vila da Parede como estância sanatorial, Dissertação de Mestrado, 1996.

39. Cfr. Ferreira – A doença do peito – Contribu to para o estudo histórico da Tuberculose, Disser tação de Mestrado, 2005.

40. Cfr. Santos – O combate à Tuberculose: uma abordagem demográfico-epidemiológica [do] Hospital de Repouso de Lisboa 1882-1975, Disser tação de Mestrado, 2010.

41. Cfr. Martins – “O Sanatório da Covilhã” in Monumentos, 07.2009.

42. Cfr. Monteiro – O Sanatório da Covilhã – Ar quitectura, Turismo e Saúde, Dissertação de Mes trado, 2009.

43. Cfr. Santos – Sanatório Vasconcelos Porto: São Brás de Alportel, 2006.

44. Cfr. Fontes – Sanatório do Seixoso – Singu laridade e Significado, Prova final de licenciatura, 2004.

45. Cfr. Pereira – “O ‘sanatório’ de Sant’Ana. Uma unidade Arquitectónica Notável” in Arquivo de Cascais: boletim cultural do município, 1988.

46. Cfr. Arruda – Hospital de Sant’Ana, 1904 2004: sanatório de Sant’Anna 100 anos, 2004.

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47. Cfr. Costa – “O Sanatório João de Almada e o Armamento Anti-tuberculoso em Portugal (1934)” in Revista Islenha, Jan.-Jun. 2014.

48. Cfr. Amaral – Vivências educativas da tuber culose no Sanatório Marítimo do Norte e Clínica Heliântia (1917-1955), Dissertação de Mestrado, 2007.

49. Cfr. Amaral, Almeida, et al. – Hospitais de Gaia: um século de história. Sanatório Marítimo do Norte, Sanatório D. Manuel II, Hospital Distrital de Vila Nova de Gaia, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, 2008.

50. Cfr. Ferreira – O Mar – Patrimónios, usos e representações: O Sanatório Marítimo do Norte e a Clínica Heliantia de Valadares. Arquitectura, Património e Saúde (Actas do Congresso), 2011 [em linha].

51. Existem publicações monográficas de cariz generalista, com abordagens várias, mas sucintas, como o trabalho do médico Barros Veloso, que também publicou artigos e estudos na área da his tória da tuberculose. Para o caso, destaca-se Velo so – Caramulo – Ascensão e queda de uma estância de tuberculosos, 2009.

52. Cfr. Passinho – Estância Sanatorial do Cara mulo: a aculturação experimental da expressão modema, Prova final de Licenciatura, 2005.

53. Cfr. Santos, Sociedade do Caramulo – Jeróni mo de Lacerda e o Caramulo, 1989.

54. Cfr. Silva – Arquitectura Hospitalar e Assis tencial promovida por Bissaya Barreto, Tese de Doutoramento, 2013.

55. Cfr. Tavares – Arquitectura antituberculose: trocas e tráficos na construção terapêutica entre Portugal e Suíça, 2005.

56. Cfr. Martins – Cottinelli Telmo 1897-1948, Dissertação de Mestrado, 1995.

57. Cfr. Coutinho – “Carlos Ramos, Comunicador e Professor: contributo para a afirmação e divulga ção do Moderno” in Arquitectura moderna portu guesa 1920-1970, 2003.

58. Cfr. Mendes – A obra do arquitecto Rosendo Carvalheira (1863-1919), Dissertação de Mestrado, 2000.

59. Acordo estabelecido com origem na infor mação com a referência 397296, de 30.11.2011, en tre o IHRU e o autor.

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A maternidade vai ser alvo de um projecto, embora não executado, de Carlos Ramos em 1943 para a sua adaptação a Instituto Maternal 593 : as ligações entre os arquitectos e as suas arquitecturas são constantes e profícuas no armamento anti-tu berculoso: por vezes, os arquitectos encontram-se nos mesmos projectos. Este pro jecto (aliás, pouco executado, se tal é permitido) não singrou no panorama hospitalar da época.

Não se pode deixar de considerar a importância destas referências na arqui tectura do virar do século, nomeadamente como marco ilustrativo ou bandeira do lin guajar pouco autóctone, mas assimilado de forma reinante: será possível uma leitura da linguagem – sentido lato utilizado, onde entram conceitos como estilo, estética ou outros termos utilizados pelos artistas e arquitectos da época, não do autor – com preender e relacionar com uma atitude social, antropológica e, acima de tudo, sobre a razão ou a cientificidade? Pretende-se indagar, assim, sobre esse facto, colocadas as introduções e desenvolvendo-se uma linha condutora contextualizada, com foco permanente na arquitectura para a tuberculose.

A geração de arquitectos e artistas do final do século XIX , que procurava um “pensamento português” 594 , onde o romantismo era exaltado com devoção, transpor tou para o século seguinte uma ligação ao passado, mas já com as premissas de mu dança de um vento que tardava, de uma arquitectura plena de eclectismos e estrangeirismos, de Franças, Itálias e Inglaterras, tão miscigenada que não se encon trará tão facilmente, a sua unicidade 595 . Aliás, muito eram já falados os prémios Val mor, como a consagração de um estilo próprio (ou definido, com uma marcação cerrada a aspectos formais e estéticos da arquitectura da época) que foram galardões que, na praça pública, valeram a consagração do arquitecto no linguajar e poder da época.

Rosendo Carvalheira (1864-1919) é, a par dos seus colegas mencionados, uma referência relacionada com a história da arquitectura, e com cruzamentos com a ar quitectura para a tuberculose, com o sanatório de Santana (na Parede), e o sanatório Grandella (em Albergaria).

A edificação do sanatório de Santana foi, paralelamente e por sua própria con sequência, o grande marco da consolidação da zona da Parede como estância sanato rial, para além da Serra da Estrela e da Guarda, a nível continental, e especialmente dedicada à tuberculose usando as suas características – mar e exposição solar – como benéficas para as tuberculoses não respiratórias. Enquanto que nas outras duas (de carácter de montanha e usufruindo a altitude em benefício da cura), num processo que demorou quase duas décadas a ser consolidado, a zona da Parede assumiu, rapi damente, reflexo de um aparente oposto.

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ROSENDO CARVALHEIRA ROSENDO CARVALHEIRA: SANATÓRIO DE SANTANA

Sanatório de Santana.

Um artigo na publicação periódica A Arquitectura Portuguesa - Revista Mensal da Arte Arquitectural Moderna e Antiga em 1908 é particularmente relevante, tanto no aspecto crítico como também nas concepções arquitectónicas do início do século. Assinado por Costa Campos 596 discorre na crítica das obras que não são assinadas por arquitectos, comparando inclusivamente o sanatório a um teatro, do ponto de vista da beleza, ou seja, a obra assinada por um arquitecto tem considerações de “equilí brio de linhas e proporções” 597 .

Esta afirmação é frequente no estudo da arquitectura dos sanatórios, não só pela tomada de posição que os arquitectos vão tendo ao longo do século, mas tam bém porque elucida a evolução de um sistema hospitalar na sua concepção e aqui sição, além da própria aplicação e as suas consequências, ao longo de mais de cem anos. A crítica da época é extensível aos decisores, que escolheram os edifícios (e as suas arquitecturas) de carácter oficial, por estes “chancellados com a ignorância das instancias superiores” 598 , o que aponta a importância destes nos processos de decisão e aplicação de estilos e programas nos edifícios sanatoriais. Poderá levantar-se a mes ma questão para os arquitectos e arquitecturas durante o Estado Novo: verificar-se-á uma resposta redundante?

O autor do artigo refere todos estes parâmetros de análise quando se refere a um sanatório – ao Sanatório de Sant’Anna (como era conhecido na grafia original) – e, como tal, torna-se um registo relacionado com as preocupações de época.

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Este sanatório foi considerado pelo mesmo autor como um dos modernos edi fícios que foram entregues a arquitectos – o que no caso é sinónimo de Rosendo Carvalheira – que contou com o apoio ao projecto de Álvaro Machado. Esta dupla foi significativa dos estilos que se esperariam, e na adopção de uma corrente ainda académica que era já presente no linguajar arquitectónico do virar do século. Mas é de salientar a colaboração de um rol de arquitectos que contribuíram para o projec to: sonantes nomes como António do Couto, Norte Júnior, Marques da Silva, como arquitectos, além de Queriol como desenhador. Enquando Rosendo Carvalheira foi descrito como estudioso, esclarecido, trabalhador e inteligente, com grande experiên cia na construção e, não menos importante, um “homem que estuda e acompanha a constante evolução da sciencia” 599, Álvaro Machado também o foi, mas como pupilo mais novo, com “temperamento de artista” 600 que, embora ainda considerado verde na construção, tinha “os vôos da inspiração” 601 . Além de toda esta velatura, Rosendo Carvalheira já tinha projectado a “Capella do Asylo d’ Ajuda na Calçada da Tapada”, também publicitada na Construcção Moderna de 1903 602 . Note-se, novamente, o cru zamento de dois arquitectos – em sentido evolutivo, é certo – directamente relacio nados com a arquitectura para a tuberculose.

As referências ao sanatório de Sant’Ana não ficam pela literatura especializa da: além deste periódico, também O Século, mais generalista, retrata a mesma “obra monumental” 603 . O tipo de internamento a que o sanatório se destinava, desfiguran do-se os tuberculosos como o centro do problema: a admissão era destinada ao sexo feminino, quer fossem mulheres anémicas, linfáticas, raquíticas ou com tuberculoses cirúrgicas, ou ainda com tumores malignos e, no caso dos homens para cardíacos, perfazendo 100 camas disponíveis, para todos os que “buscam alivio ou (…) cura” 604 .

A notícia, em forma de reportagem, ilustra também a periodicidade com que os doen tes ficavam internados no sanatório. Enquanto que as crianças permaneciam o tempo estritamente necessário, para os homens como para as mulheres funcionava como “asilo permanente” 605 . Os tratamentos disponíveis no sanatório, nos finais da primeira década, consistiam no cumprimento de preceitos de higiene, e na alimentação abun dante, recorrendo-se a óleo de fígado de bacalhau ou a xaropes de iodeto ferroso quando havia intolerância, além dos banhos de mar, antes de cumprirem um regime típico de permanência no sanatório, com horários rígidos: a nada mais se poderia recorrer, além da arquitectura. A presença de fotógrafos nas galerias de cura foi alvo de grande animação para as crianças, cuja imobilização obrigava a meses de perma nência em tabuleiros, quase sempre com aparelhos dolorosos que obrigavam a uma melhor postura 606

Depois da aquisição do terreno, um primeiro projecto foi elaborado pelo ar quitecto José António Gaspar 607, na época professor da Academia de Belas Artes. Depois de todos os percalços nas tomadas de decisão, e em particular na coorde nação do programa, totalmente entregue a médicos, foi então Rosendo Carvalheira

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Sanatório de Santana. Vista geral, com praia, e pormenor da fachada.

chamado a intervir no projecto, quando já tinham sido feitas remoções de terra no local 608 . Sabe-se, assim, que o projecto inicial não é de sua autoria, cuja intenção foi limitada a “algumas modificações feitas na primitiva planta” 609, além da introdução de aperfeiçoamentos de carácter higiénico.

Independentemente da questão autoral, no lançamento da primeira pedra, em 1901, e pela descrição do edifício n’A Construção Moderna, é notada a presença do arquitecto Rosendo Carvalheira entre um rol de convidados relacionados com a obra e com a administração local ou o médico Gregório Fernandes, e referenciados os arquitectos Álvaro Augusto Machado e Manuel Joaquim Norte, tal como Carlos Alberto Monção, Miguel do Valle Queriol e Júlio Silva como “dedicados coadjuvantes do Sr. Carvalheira” 610 . O construtor do Sanatório de Sant’Ana foi José Augusto de Oliveira, de inteira confiança do arquitecto.

Apesar dos característicos rendilhados na trama, escrita, adjectivações e lou vores à obra e aos seus intervenientes, como era característico deste periódico (e não fosse o seu director o próprio arquitecto), denota-se a importância da sua construção, como “edificação de género completamente novo em Portugal, demandado de estu dos especiais e complexos” 611 . A especificidade técnica, além do simples cumprimento do programa envolveu, como nos hospitais ou edifícios de saúde, o conhecimento de regras relacionadas, por exemplo com os blocos cirúrgicos, mas também nos es quemas de circulação e movimentação dos doentes nestes sanatórios. O regime de internamento aliado ao sistema de isolamento, e contenção social e espacial dirigido à tuberculose, quer seja à escala dos serviços quer até do próprio edifício em relação ao tecido urbano (e suas proximidades), foi configurado pelo arquitecto.

As linhas do projecto foram descritas como “demasiado movimentadas” 612 para um edifício daquela natureza, ou seja, manifestavam a grande ornamentação, sinuosidade de curvas e de volumes com a presença de um academismo francês alia do a uma arquitectura portuguesa 613 já na época lançada entre os arquitectos. Esta relação é inclusivamente manifestada na caixa de ar visitável, que o sanatório possuía para a ventilação regulável dos seus interiores, “em geral construída em abobadilha de tijolo pelo systema adoptado no Alentejo e parte do Algarve” 614 . Também o emprego de mármores e cantarias da região ou de carvalho do Norte nas portas e caixilha rias e gradeamentos em bronze são apontamentos do requinte apostado no edifício. Enquanto a planta era modelar e racional, as fachadas comportavam “motivos de bem lançada architectura” 615 , a par da presença de azulejos pintados por Jorge Pinto. Rosendo Carvalheira, para este sanatório, aproximou-se mais a Ventura Terra na dis posição dos espaços e na configuração interligada do edifício, para além das referên cias de carácter formal que se encontram no sanatório de Santana do primeiro, e no projecto para hospital marítimo, relativamente ao último.

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Sanatório de Santana. Planta do 1.º Pavimento, desenho de perspectiva e detalhes construtivos e materiais utilizados.

Sanatório de Santana, sala de jantar.

O programa do sanatório é constituído por camaratas, refeitórios, gabinetes, enfermarias e serviços de apoio, residências do médico e do capelão e os respectivos alojamentos das irmãs enfermeiras 616 . Existiam edifícios de anexos, de pequeno vo lume, onde estavam instalados os sistemas de geração de luz eléctrica, lavandarias, vacarias, habitações do pessoal, cocheiras e cavalarias 617. A par com este modelo, sub sistia um lazareto, que se destinava ao isolamento das crianças que davam entrada, ali permanecendo por um período mínimo de doze dias.

Como é comum em outros sanatórios, são obedecidos critérios próprios –internamente ao projecto – com as “mais utilitárias prescripções de hygiene e salu bridade” 618 : a ventilação, além de cruzada e directa permitida pelas janelas e demais vãos, era assente num sistema que comporta a regulação da entrada de ar, e a ilumi nação totalmente eléctrica.

O seccionamento por sexos contemplava enfermarias para cardíacos homens, com 20 leitos distribuídos por cada uma, com cabines de banho 619. Mesmo que a admissão fosse comum à tuberculose e outras doenças, as crianças portadoras de tuberculose óssea ou osteo-ganglionar eram internadas numa secção distinta das es crofulosas, linfáticas, anémicas ou raquíticas.

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São de salientar duas características deste edifício que, inclusivamente dos de mais sanatórios – quer de altitude quer marítimos – são recorrentes e diferenciadoras dos hospitais ou casa de repouso com sistema de internamento.

A primeira é o salão de inverno, dividido em três corpos por caixilharia envi draçada, ocupando uma área de 300 m2 , que contava com a presença de palmeiras e de azulejos pintados por Jorge Pinto. Era também destinado a aula de ginástica e a um cinematógrafo, onde foram colocados dois pianos. O chão de madeira encerada e o mobiliário “elegante e sóbrio” 620 permitia também acolher as festas do Sanatório. Os espaços de ócio e de lazer, do ponto de vista geral, eram de extrema importância para os tuberculosos – internos ao sanatório – a par de uma imagem agradável, ele gante ou social do sistema, para as populações exteriores, e por isso peça central no programa destes edifícios.

Em segundo, e não menos importante – as galerias de cura, comuns a todos os sanatórios e que os diferenciam de sistemas tipológicos como os hospitais – foram alvo de grande pormenor e estudo neste sanatório. Enquanto foi salientada a impor tância de uma atmosfera interior em tudo semelhante ao exterior (ou seja, à praia), no que concerne aos seus ares, foi também valorizada a entrada do exterior no próprio interior “impregnado pelos effluvios marítimos do Oceano” 621 , já reconhecida pelo médico Sousa Martins na escolha do local.

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Galerias de Cura do Sanatório de Santana.

Era nas galerias de cura, tal como no jardim de inverno, que as crianças respi ravam o ar marítimo, prostradas nas camas ou em banhos de sol quando adquiriam alguma mobilidade para usufruir dos benefícios do seu tratamento. É de ressaltar a explícita referência aos ares marítimos além da helioterapia 622 , e a praia indicativa das vistas que, em sanatórios de montanha, foram substituídas pelos horizontes ver dejantes ou os jardins exteriores (pois, neste caso, o parque, os terrenos anexos não tinham, em 1908, qualquer arborização).

Um outro elemento diferenciador, mesmo que interpretado em conjunto com os demais elementos, pelo simbolismo neste tipo de sanatórios, é a sala cirúrgica. Este espaço é distintivo destes sanatórios, embora fosse mais tardiamente utilizado em sanatórios de altitude para aplicação de outro tipo de abordagens à doença e, neste caso, o símbolo da terapêutica – muitas vezes agressiva e mutilante – que se aplicava aos doentes com tuberculose não respiratória. O equipamento de Raio X está também presente numa sala específica, com um aparelho de fototerapia e bal neários para aplicação de banhos de imersão. É de salientar, neste contexto, que as técnicas de cirurgia para a tuberculose não pulmonar administradas neste sanatório são marcadamente primitivas e sujeitas a limitações várias. Apenas na década de 30 do século XX vão ser aplicadas no seu pleno desenvolvimento, e com técnicas cien tíficas desenvolvidas para os casos de deformação óssea ou intervenção cirúrgica generalista, de apoio.

Rosendo Carvalheira foi seriamente considerado pelo mundo médico, como se constata pelo exemplo da visita de Costa Simões, importante higienista da época, e com ligações à Universidade de Coimbra – aliás, “especialista em conhecimentos relativos à hospitalização” 623 , e que trocou com o arquitecto impressões durante a obra do mesmo sanatório. Estas duas condições – projecção arquitectónica e ligações aos médicos – foram cruciais na sua escolha e responsáveis pelo projecto do sanató rio que, embora delineado por José António Gaspar, ganhou forma com Carvalheira.

A inauguração do edifício deu-se em Junho de 1904, e a ordem de admissão dos doentes não foi exclusiva para tuberculosos, mas também para doentes “anémi cos, linfáticos, raquíticos” 624 ou para tuberculosos de tratamento cirúrgico (onde se destacam as tuberculoses ósseas, ganglionares ou de pele), com plena gratuitidade de serviços.

Esta leitura permite verificar que, mesmo com um acérrimo combate à doença e com a disponibilidade dos meios cirúrgicos no próprio sanatório, os tratamentos eram longos, fastidiosos e resultavam em cuidados paliativos dos doentes, principal mente nos acometidos com a tuberculose já em idade adulta. Esta modificação é pos terior aos primeiros objectivos do sanatório, que se destinava primitivamente a “velhos cardíacos” e “creanças tuberculosas ou tuberculizáveis” 625 , com a peculiaridade da

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Sanatório de Santana. Sala de cirurgia e de tratamentos; enfermaria.

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