Banha da Cobra e Teriaga

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Banha da Cobra e Teriaga

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Mitrídates

O rei Mitrídates governava o Ponto, um dos pequenos estados independentes que bordejavam o Mar Negro. Os tempos corriam difíceis e a autonomia da região era agora ameaçada pelo poderio militar romano. Por si próprios ou por interpostos representantes, a República Romana já administrava algumas regiões que eram habitadas por um grande número dos seus cidadãos. A colonização alterou equilíbrios e introduziu modificações no relacionamento com os povos locais.

Depois da morte precoce e inesperada de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., o seu império ficou entregue à disputa entre os generais que lhe sobreviveram. Pouco tempo depois, aquele imenso território unificado desintegrou-se e ficou dividido em pequenos estados autónomos. O reino do Ponto, na zona norte da Turquia moderna, era um deles. A Grécia, que já estivera sob o domínio da Macedónia, estava ocupada pelos romanos. Com mais de quinhentos anos desde a sua fundação, Roma sobrevivera a combates estrénuos, ora no seu seio, ora em lutas prolongadas contra outras potências. A temível força que representava o seu poder militar dava lugar a submissões inaceitáveis para os que pretendiam conservar a independência. A intriga entre os vários poderes locais alimentava disputas, por vezes instigadas pelos romanos. Os equilíbrios eram volúveis, a instabilidade fazia regra; e pouco obstava o recurso ao assassinato como forma de eliminar concorrentes e rivais. Os venenos conhecidos eram armas letais usadas com alguma frequência por ser difícil associar os seus efeitos

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à causa da morte. Guardavam-se e circulavam clandestinamente nas mãos de cúmplices e aliados efémeros. Nesta atmosfera, o conhecimento das drogas era recomendável para quem queria precaver-se contra as ameaças mais perigosas.

Para os romanos, Mitrídates era um bárbaro, nome que os povos poderosos dão aos que não têm os seus costumes, riqueza e poderio militar: são os estrangeiros, com outros valores e outras devoções, todos portadores de imaginados perigos. Bárbaros eram o rei Mitrídates e os pontinos, como bárbaros eram os germânicos, dácios, gauleses, saxões e outros povos do coração da Europa.

O rei do Ponto beneficiava dos modos e cultura dos povos da costa jónica da Grécia Antiga. Pertencia ainda à secular família real da Pérsia, pois tinha uma relação que ascendia a Dario, o Grande. A família da mãe era preponderante na corte do reino Selêucida, fundado por um dos generais de Alexandre, em regiões vizinhas da Síria e Iraque, e que incluía também uma parte do território do Irão moderno. Mitrídates comandava agora um exército numeroso, formado pelos seus súbditos e engrossado por mercenários, o que lhe permitia intimidar os que se tinham aliado aos romanos. Chegou a dispor de uma poderosa frota de barcos construídos com madeiras das extensas florestas da região, uma riqueza que os romanos cobiçavam. A influência regional do reino do Ponto era assinalada pela designação partilhada com formações e acidentes geográficos conspícuos: nesta época o Mar Negro chamava-se Ponto Euxino, o Mar da Mármara era a Propôntide e o estreito de Dardanelos o Helesponto[1].

Os estados clientelares da região significavam dependência e submissão, nada afeiçoadas aos desígnios do rei do Ponto. Avesso a tutelas e inconformado, já alguns anos antes havia tomado o pequeno principado vizinho da Paflagónia, o que ocasionou veementes protestos do senado romano e ameaças de retaliação em defesa deste aliado. Mas a venalidade de alguns senadores veio em socorro de Mitrídates, que usou uma parte da sua imensa riqueza para os corromper com generosos subornos[2]

Nem sempre as conquistas do rei do Ponto se deviam à supremacia das suas tropas, mas antes à argúcia e capacidade de urdir

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estratégias que o tornaram célebre e temido em toda a Ásia Menor. As fileiras do seu exército foram sempre reforçadas ao incorporar os combatentes naturais dos territórios que ia conquistando. Eram trácios e citas do sul do continente europeu, fenícios do Médio Oriente e voluntários de outros países, como os soldados romanos exilados das lutas pelo poder que opunham os partidários de Mário e Sila. O prestígio de Mitrídates atraía gente de zonas ainda mais longínquas, e não se estranhava ver sírios a emparceirar com povos oriundos do interior europeu[3] O

Mitridático

A dura experiência dos primeiros anos da vida de Mitrídates já lhe tinha ensinado o alerta prudente e a desconfiança. Era uma criança quando o pai foi assassinado. Algum tempo depois – não tinha ainda doze anos – foi obrigado a peregrinar um exílio que durou vários anos. Só assim se livrou da intenção assassina dos apaniguados da mãe, que lhe usurpou o trono. Ela viria a pagar com a vida este desamor.

Era um mundo violento. As intrigas e as frias traições eram-lhe familiares. Nunca seriam demasiadas as precauções que o pusessem a coberto da perfídia que poderia germinar na sua própria corte. Numa ou outra ocasião, observara a grande agitação das vítimas a debaterem-se, como que enlouquecidas, para se afundarem depois no grande torpor que antecedia a morte. Invariavelmente, isso acontecia na sequência de indisposições de aparecimento inesperado, que lhe lembravam os cuidados que deveria ter consigo, não viesse semelhante sorte ao seu encontro. O seu interesse pelo conhecimento dos venenos e dos antídotos para os combater nunca mais o abandonou. Para se precaver, obteve a colaboração do seu físico Catervas, um médico de origem grega. Os que se dedicavam à arte de curar conheciam as plantas medicinais e possuíam mesmo uma provisão delas. Sabe-se que Catervas era um estudioso. A ele se atribui a autoria de um belo manuscrito com ilustrações, onde registou as plantas medicinais mais utilizadas. Estas eram o principal recurso medicamentoso e em

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muitas pequenas hortas, para consumo doméstico, havia um recanto para cultivo de plantas com utilidade terapêutica. Todos conheciam os efeitos benéficos do aloés, do funcho e da valeriana para atenuar o sofrimento causado por doenças e indisposições. Estas e outras plantas medicinais abasteciam as pequenas boticas caseiras. Os físicos, que proviam as necessidades dos seus doentes, dispunham de uma mais variada espécie de vegetais. Eram eles que as cultivavam ou as adquiriam localmente ou a mercadores vindos de outras paragens.

Político sagaz, Mitrídates devia ser uma dessas personalidades contraditórias que revelam facetas inesperadas de sensibilidade e gosto pelas coisas elaboradas. Recebia os amigos das artes e os que se empenhavam em alguma forma de criatividade. Os filósofos eram convivas habituais e a sua corte acolhia-os com familiaridade. Era um poliglota[4] e não conquistava uma terra sem exercitar a língua local. Também se dedicava ao desporto e à competição, sendo célebre a sua aptidão como cocheiro ou auriga de carros tirados por dez cavalos[5] Se, entre os romanos, as rédeas eram para mãos servis[6], no mundo helénico não desdenhavam ceder os seus cavalos e quadrigas para as corridas nos Jogos Olímpicos[7].

Catervas contava-se entre os conhecedores da arte de preparar plantas para consumo como medicamento. Na elaboração do antídoto para venenos utilizou, provavelmente, todos os ingredientes que conhecia. Não será descabido pensar que a base racional da sua escolha consistiu numa tentativa de reunir a potencialidade terapêutica de cada uma das plantas medicinais, acreditando que o efeito resultante corresponderia ao somatório da virtude de cada uma delas. A solução final estaria então apta para combater um grande número de doenças, quase todas. Acreditava-se que o vasto poder curativo proporcionado pela mistura de muitas plantas se oporia também aos efeitos nocivos dos venenos. Tinha cinquenta e quatro componentes, alguns raros e difíceis de obter. Mas não eram apenas as plantas que conferiam eficácia. Também o sangue de patos foi usado com idêntica finalidade[8].

Os animais eram alimentados com pequenas quantidades de veneno, durante algum tempo, em doses sucessivamente maiores. Pensavam que, de alguma forma, os organismos vivos se adaptariam à ingestão

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de substâncias deletérias, furtando-se a alguns dos seus efeitos nefastos. Não se enganavam, embora este fenómeno da tolerância farmacológica só viesse a ser comprovado dois mil anos depois. Se assim o fez com os patos, Catervas melhor concluiu que a receita bem se poderia aplicar na pessoa do próprio rei, que ficaria assim com uma maior resistência aos venenos.

Mitrídates era tão temerário nas façanhas da guerra como cauteloso com os venenos. Consta que experimentou primeiro em animais. Antes de se decidir a tomar pequenas doses de veneno, não deixou de observar atentamente o seu efeito em alguns condenados. Fosse para dar mostra de um singular poder de resistir aos venenos, fosse para dissuadir qualquer tentativa de o envenenar, o rei do Ponto não escondeu que tinha um antídoto. A credulidade das gentes alimentava inúmeras histórias fantasiosas e, com maioria de razão, acolhia esta mistura extraordinária, capaz de se opor aos venenos mortíferos. Os poderes do rei tornaram-se conhecidos de todos e adquiriram uma fama que se disseminou rapidamente e correu o mundo que o rodeava. As potencialidades curativas do segredo de Mitrídates adquirem novos matizes, alimentados por uma imaginação que preenche vazios, deleita e entra no domínio do sublime. O remédio ganhou foro de lenda, tornou-se sobrenatural e milagroso. Em homenagem ao seu criador, a mistura do rei do Ponto tomou o nome de mitridático.

A ocupação romana

Além do domínio militar, os romanos tinham obtido pacificamente algumas submissões que lhes proporcionavam vantagens económicas. Era o caso da Capadócia e do principado da Paflagónia, estados vizinhos, a sul do reino do Ponto. Dispensavam um governador romano, em favor de um obediente dignitário local. Já detinham a soberania sobre o extenso reino do Pérgamo, que se estendia para oeste, na costa jónica, que confina com o Mar Egeu. A terra e as suas riquezas tinham-lhes sido doadas pelo rei Atalo III, quando morreu em

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133 a.C. Era o seu tributo aos romanos pela aliança e apoio militar que lhe haviam dado em vida.

Nas regiões já dominadas e submetidas pelos romanos instalam-se os colonos, muitos dos quais antigos soldados, que ficam na posse das mais férteis terras dos territórios conquistados. Os veteranos de guerra, beneficiários destas concessões graciosas, contratavam as populações locais para o trabalho agrícola a troco de uma mal medida subsistência. É certo que alguns cidadãos locais também beneficiavam da liberalidade romana que, em casos raros, concedia o direito de cidade. Uns poucos prestavam serviço público e tinham mesmo possibilidade de adquirir alguns bens; mas estes eram uma minoria, mais atenta ao interesse próprio e curando menos a indignidade que sela a submissão.

A ocupação estrangeira provocava desarticulação social e retirava consistência aos costumes ancestrais. A imposição de uma forma de existência diferente oprimia a cultura nativa e ofuscava a espontaneidade. O constrangimento impedia qualquer forma de intervenção pública, e os conflitos decidiam-se a favor da parte dominante, sempre e sem contemplações. As produções obrigatórias, a fixação arbitrária dos preços e a posse exclusiva da propriedade arrastavam as populações submetidas para uma indigência sem remissão. Os impostos eram abusivos para tão pouca posse e a sua angariação era assegurada pelos publicanos, célebres pela avareza e arrogância no trato. A condição dominadora gera oportunidade para a extorsão e esta satisfaz a avidez insensível de alguns desapiedados do sofrimento alheio. Entre os colonos, os publicanos eram os mais odiados. Sobre eles recaía um desejo de vingança de motivo renovado.

A inevitável sobranceria em relação aos naturais da região alimentava um crescendo de indignação. Mais que todos, penavam os escravos, que se multiplicavam a cada conquista. Com poderes de vida e morte sobre eles, muitos colonos não encontravam freio para um despotismo frívolo, gratuito e injustificado. Esta opressão prolongada das gentes criava a ilusão de normalidade, afinal assente numa enorme paciência que perdeu a memória da tirania e arrosta as

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pequenas e grandes ofensas do quotidiano. Todos as suportam com um sofrimento pouco aparente porque a submissão é um hábito: requer temor, alimenta o desânimo e promove o abatimento. Passam anos, décadas, mas há sempre uma centelha que percorre as gerações e um dia brota para iluminar novamente a identidade adormecida e despertar um secreto sagrado que nunca foi esquecido. A progressiva intromissão romana não agrada a Mitrídates. Se algumas vezes condiciona os acontecimentos aliciando e corrompendo os senadores, finalmente compreende que a ambição de Roma nunca fica aquém do domínio e sujeição dos povos locais. Ao delinear uma estratégia orientada para o futuro, começa por fazer aliados e promove a consolidação de propósitos comuns. Neste tempo, em que as mulheres não faziam escolhas e se obrigavam às decisões masculinas, um dos seus primeiros gestos políticos foi dar em casamento a sua jovem filha ao idoso rei Tigranes, da poderosa Arménia, a leste do Ponto.

Enquanto crescia a tensão nas colónias, Roma era abalada pela guerra civil entre Mário e Sila. A desorganização transitória da sociedade romana feriu a autoridade e tolheu a resposta à insubordinação. Ao longe, Mitrídates fareja o débil, toma a oportunidade e ataca. Destitui o rei Nicomedes da vizinha Bitínia e apodera-se da Capadócia. Com uma rapidez que a todos espanta, caminha para oeste e ocupa a cidade de Pérgamo, a capital do estado oferecido por Atalo III. Um dos governadores romanos é aprisionado e entregue a Mitrídates. Longe de uma generosa contenção, o rei do Ponto julga interpretar os sentimentos de todo o povo e manda que lhe seja oferecido ouro fundido pela garganta abaixo[9]. – É para saciar a grande sede de riqueza, dizia o rei; e a sua mordacidade dava o sinal da emulação pública da vindicta. Determina que se apaguem, pela destruição e pelo fogo, os vestígios da presença romana em terra asiática. Milhares de colonos

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Primeira Guerra do Ponto (87- 83 a.C.)

ficaram entregues à fúria de quem os quisesse matar. Era o apelo aos instintos primários e à mais desbragada das desordens; e veio a resposta: sem freio, espontânea e selvagem, de uma população cansada de abusos e pronta a retribuir, num ápice, todas as maldades sofridas. Foi uma chacina que não poupou ninguém. Oitenta mil romanos foram mortos em poucas horas[10]. Oitenta mil, uma figura que pouco diz do sofrimento de cada uma das famílias, imoladas à vingança que se proclama. Como se o sangue os redimisse do infortúnio da submissão passada, os súbditos de Mitrídates lançam-se na expiação de uma desdita alimentada pela perversa normalidade da opressão. A morte campeia e cometem-se as maiores atrocidades: torturas, violações, mortes e humilhações. Quinhentos anos depois, ainda a memória desta carnificina estava presente. Evocando a violência do massacre do Ponto, o bispo de Hipona recorre à sua marcada inspiração platónica e diz, com candura de santo, que a vítima era ferida no corpo e o assassino na alma[11]

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Mapa da Ásia Menor. As fronteiras dos reinos do Ponto, Capadócia, Paflagónia, Pérgamo e Bitínia variavam bastante devido à grande instabilidade política. érgamo
Sinope Bizâncio Epiro rácia
Mar Negro
Bitínia
Mar Mediterrâneo Rhodes
Jónia

O saque das propriedades e bens dos colonos reverteram na maior parte para o tesouro de Mitrídates. A fortuna reunida foi tal que o rei isentou de impostos, durante cinco anos, uma população maravilhada com o prodígio de tal benesse. A ousadia acalentava a ambição do rei do Ponto, que se via transformado na referência e estandarte da resistência à ocupação romana. Envia emissários a Damasco, a Jerusalém, ao Egipto e ainda à Península Ibérica, onde também grassava a revolta contra os romanos. Não se detém e prepara nova invasão. Na Grécia, já então uma colónia romana, a vitória das tropas pontinas é rápida e o massacre dos romanos continua com a mesma impiedade.

As ocupações do Pérgamo, e agora de Atenas, são uma afronta ao domínio que Roma queria ver implantado na Ásia. A retaliação violenta sobre os colonos era um desafio à honra da República Romana. Por dever e pela oportunidade, os generais entram em cena. E é Sila que abandona a Península Itálica em 86 a.C. Desembarca na costa do Epiro, onde o Adriático confina com o Mar Jónio, ocupa rapidamente a Macedónia e entra pela região da Tessália, a caminho de Atenas. Os seus trinta mil soldados cercam a cidade e acampam à volta da Acrópole. Os bosques que envolvem esta zona mais alta são consumidos como lenha, que aquece o exército romano e fornece madeiras para construir torres e outros engenhos de guerra. Os acarinhados bosques dos gregos e os centenários centros de ensino que aí moram, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, suportam mal esta destruição do exército invasor.

Às tropas do novo governador de Atenas, nomeado por Mitrídates, juntam-se reforços que se fortificam na cidade. Aguardam no porto do Pireu, dentro das muralhas, mas afastado sete quilómetros do casario. Ainda resistiram durante o Inverno, mas a fome provocada pelo cerco ditava a entrega aos romanos. O saque de obras de arte e de outras riquezas gregas é enviado para Roma. Sila ainda se apropriou do ouro do oráculo de Delfos, o mais popular e importante local de culto, para comunicação e consulta ao deus Apolo. Saciou-se também com a destruição do porto do Pireu, que serve a cidade de Atenas.

Mário, o grande rival de Sila, já tinha falecido, mas em Roma os seus partidários detinham o poder. Demitiram Sila do comando das

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tropas da Ásia e enviam o general Marco Falco para tomar posse como comandante dos exércitos. Sila recusa a destituição e mantém-se no comando. Mitrídates está demasiado ansioso e não aguarda o adivinhado confronto entre os romanos desavindos. Ordena um ataque em forma. As tropas do Ponto dispõem de dezenas de pesados carros de guerra tirados por duas parelhas de cavalos, mas os romanos armam-lhes uma cilada e aniquilam a sua resistência. O encontro dá-se em Queroneia, o mesmo campo de batalha onde Alexandre obtivera a sua primeira vitória militar sobre os gregos, há mais de duzentos anos. Os revoltosos não desistem, conseguem recompor-se e voltam a atacar. São novamente derrotados em Orcómeno e têm de aceitar as condi-

ções de Sila: voltar à submissão anterior ao início da guerra, entregar os prisioneiros e pagar uma enorme indemnização em dinheiro. Entretanto, Marco Falco não chega a enfrentar Sila. Em 85 a.C. é morto por um dos seus generais e é outro general, Fimbria, que comanda agora. Em vez de atacar Sila, é este que toma a iniciativa. Já na posse das riquezas do saque que ia acumulando, suborna os soldados de Fimbria. Este quer combater, mas não é obedecido. Escolhe o templo do deus Asclépio, em Pérgamo, para se suicidar[12] .

Sila deixa o controle da região nas mãos de um dos seus generais, dispondo tudo a seu talante. Regressa a Roma e ameaça o Senado com a força militar. Sempre aliado à aristocracia, toma o poder e estabelece um regime de terror que se ocupou a exterminar os inimigos políticos. A morte pairava em Roma como um cheiro; e tomava ares de necessidade que se anunciava nas ruas e praças. Diariamente, em locais públicos, afixaram-se listas de pessoas a abater e deram-se infamantes compensações monetárias aos algozes que executassem as vítimas assinaladas. Também Júlio César teve de se esconder para escapar ao furor assassino dos partidários de Sila[13]. A arbitrariedade estava no poder e os crimes eram uma razão de estado e uma exigência do terror do ditador. Morreram dezenas de senadores, centenas de cavaleiros e milhares de partidários de Mário[14], dia a dia, durante seis meses, apanhados nas suas casas, na rua ou perseguidos pelos esconderijos em todo o império.

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Em 83 a.C., toda a Grécia e a parte da Ásia já conquistada voltavam à supremacia romana. Ao fim de quase cinco anos de guerra, Mitrídates está mais pobre, tem indemnizações a pagar, soma algumas derrotas humilhantes e não alcança nenhum dos seus propósitos.

Segunda Guerra do Ponto ( 73 - 66 a.C.)

Mais do que um tratado de paz, foi um acordo verbal que marcou o fim da primeira guerra do Ponto[15]. Era uma frágil garantia, mas este estado de coisas ainda durou quase dez anos. As condições exigidas a Mitrídates eram penosas, mas o rei do Ponto nunca deixou de representar o movimento emancipador.

Em 74 a.C., a exemplo do que acontecera com o Pérgamo, há pouco mais de cinquenta anos, também o rei Nicomedes doara o reino da Bitínia e o seu tesouro à República Romana. Os pontinos não aceitam este desfecho e reclamam o seu direito a tal herança. A Bitínia repartia com o Ponto a parte ocidental da costa sul do Mar Negro. Era um território opulento, com terras férteis, e onde havia minério em exploração. As florestas perdiam-se de vista e as suas madeiras eram cobiçadas para a construção de frotas mercantes e de guerra. A somar à riqueza, a posse da Bitínia era de grande valor estratégico. O seu vasto território alcançava o estreito de Bósforo, o que permitia o controlo da navegação e comércio entre o Mar Negro asiático e a Propôntide, de comunicação com o ocidente[16].

Com a frota constituída, e na posse de reservas de trigo para alimentar as suas tropas, Mitrídates estabelece aliança com o reino da Cilícia, mais a sul. Esta região notabilizava-se por ser um coito de piratas, que assaltava frequentemente os navios de mercadorias que abasteciam Roma. Os cereais trazidos do Egipto, as especiarias e plantas medicinais da Índia, a seda da China, os tapetes da Pérsia, o garum e outros preparados de peixe da Ibéria, eram as suas presas. Tudo passava pelo Mediterrâneo, que os romanos proclamavam seu, o mare nostrum, que forçadamente partilhavam.

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A presença de um espírito resistente aos venenos transformava o mitridático numa mistura especial. No pensamento de todos – médicos, boticários e utilizadores – difundia-se a ideia de algo mágico, com poderes extraordinários e efeitos terapêuticos superiores aos outros medicamentos. O mitridático passou a ser uma droga de eleição por um longo tempo, desfrutando sempre do favor e entusiasmo público. Depois da introdução da carne de cobra tomou o nome de teriaga, da palavra grega thêriakos, relativo a besta feroz ou theriake, para significar antídoto contra venenos[10]. Em latim ficou a ser a theriaca. Deu origem à teriaga, em português, thériaque, em francês, teriaca em italiano, triaca em espanhol, theriac ou treacle em inglês, e theriaca em alemão. Mas a poção chegou a todo o mundo e os seus fonemas repetiram-se com as especificidades locais: na Índia escrevia-se tiriak e nos países árabes tomou o nome de tiryâk [11] .

A contribuição de Andrómaco de Creta trouxe nova proeminência que inflacionou as indicações da teriaga para outras doenças e a transformou na mais apetecida das substâncias. A medicina tinha um cuidado prudencial menos exigente e a intuição ou impressão pessoal sobre fenómenos e tratamentos dispensavam a prova que a ciência moderna requer. Uma vez em letra de forma, a novidade era perfilhada por outros médicos e foi assim que a teriaga passou a ter aplicação num conjunto apreciável de doenças. No poema de Andrómaco enumeram-se algumas das vantagens da nova poção: boa para “dores de cabeça, surdez, dificuldades de visão, desmaios, tonturas e vertigens, epilepsia, dificuldade em respirar, hemoptises, indigestões, náuseas, doenças do fígado e litíase”. Seria também capaz de fortalecer a língua, suavizar o delírio, além de ser um excelente soporífico, calmante, e única na cura do tétano[12]. De remédio destinado a combater venenos, no século anterior, a teriaga passou a ser um medicamento eficaz contra todas as doenças – uma panaceia.

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Banha da cobra

Um século depois de Andrómaco, a teriaga viria a ser divulgada por um notável médico grego, também estabelecido em Roma. Natural de Pérgamo, na costa jónica da Grécia Antiga, parte integrante da Turquia moderna, Galeno (129-200) produziu uma obra imensa que veio a ser marcante para os médicos de todo o tempo posterior, incluindo os médicos modernos. Sobrepondo-se largamente a outras teorias médicas, a sua doutrina e método dominaram mais de milénio e meio, até ao século XVIII. Os motivos são vários, todos eles fortes. Fixou o conceito de doença, já enunciado por Hipócrates: a proporção alterada da combinação dos humores, ou o seu desequilíbrio, são a causa das doenças. Os líquidos do organismo, os humores, como o sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a fleuma, foram profusamente divulgados na sua obra. O sangue é facilmente reconhecido. A bílis amarela é a bílis propriamente dita, produzida no fígado e concentrada na vesícula biliar. A fleuma corresponde aos líquidos claros ou amarelados como os corrimentos nasais. A chamada bílis negra designava os líquidos orgânicos de cor mais escura, menos frequentes, como acontece com algumas secreções do estômago; mas a maior parte dos líquidos escuros eram provenientes de hemorragias internas. Provavelmente, não eram reconhecidas como tais. Acreditava-se que a bílis negra era produzida no baço e que o seu aumento estava associado a perturbações mentais, como os estados depressivos, designados por melancolia.

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Reprodução de iluminura do século XV: Galeno classificou os temperamentos das pessoas de acordo com a prevalência de cada um dos humores. De cima para baixo e da esquerda para a direita: temperamentos sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico, com predominância de sangue, da bílis amarela, da fleuma e da bílis negra. Até ao início do século XX , nos seus exames clínicos, os médicos ainda atribuíam estas características aos seus doentes.

As doenças provinham da perda ou acumulação excessiva de humores. Por outro lado, as qualidades de cada um deles, a fria e quente, a húmida e seca, deviam estar presentes nas devidas proporções. O conceito de equilíbrio variava com a sensibilidade de cada um. Na verdade, as proporções de combinação não eram quantificadas.

O predomínio de uma das qualidades, avaliada pelos sentidos e determinada por suposição, era outra causa de desequilíbrio causador de doença. Era a partir destas simples premissas – com oposição das qualidades duas a duas, e entre os excessos e perdas – que os médicos antigos interpretavam as doenças e formulavam os diagnósticos.

Tal como hoje, a ciência era feita pela reflexão sobre conceitos que se têm como verdadeiros. Modernamente estes formulam-se como hipóteses que têm de ser provadas a partir da sua desconstrução e análise, o que passa pela experimentação e verificação repetida dos fenómenos para que se confirmem. Pelo contrário, a ciência antiga tomava como certas algumas ideias expressas em postulados ou juízos de aceitação comum. Hoje inadmissíveis, eram tomados como evidências que dispensavam demonstração. A interrogação e a dúvida eram mal contempladas e o raciocínio dedutivo construía-se a partir destas ideias gerais tomadas como verdades, como os humores, as suas proporções de combinação e as suas qualidades.

Os equilíbrios estão ainda na ordem do dia. Os médicos modernos não dispensam os exames analíticos do plasma sanguíneo para verificar os desvios em relação aos valores normais, a que prestam grande atenção; mas os equilíbrios que caracterizam o estado de saúde são múltiplos e não se limitam à resumida equação dos quatro humores e das quatro qualidades. A sua natureza é muito diversa e são incontáveis as relações recíprocas entre as mais diversas variáveis. Mais do que atender as qualidades quente e fria, húmida e seca, o pensamento médico moderno centra-se na quantificação dos fenómenos e dos seus elementos constituintes[1]. As referências são outras, múltiplas e medem-se: uma obrigação que não existia no passado para critério da inteligibilidade das coisas.

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Mitrídates � � � � � � � � � � � 9 Teriaga � � � � � � � � � � � �27 Banha da cobra � � � � � � � � �35 A peste � � � � � � � � � � � 53 A cobra � � � � � � � � � � � �67 Ópio � � � � � � � � � � � � 89 Venenos � � � � � � � � � � � 105 Veneza e a rainha � � � � � � � 117 Uma nova Medicina � � � � � � 129 Outras teriagas � � � � � � � � 141 Notas e bibliografia � � � � � � 155 Índice remissivo � � � � � � � � 165 Índice geral

©Edição: By the Book, Edições Especiais

Título: Banha da Cobra e Teriaga

©Texto: Joaquim Barradas

Revisão: Isabel Costa

Design: Veronique Pipa

Impressão: WOP, World of Printing

ISBN: 978 -989 -53737-8 -9

Depósito legal: 513582/23

1.ª edição: 2023

Créditos de imagem:

p� 33: Jebulon [Pharmacie des Hospices de Beaune]

p 36: [University of California]

p 59: Joaquim Barradas

p 64: In Guiart J – Pourquoi la peste nous a quittés Revue de L’Université� Lyon, Février 1933, p� 73

p 92: Shutterstock, https//livescience com/63471

p 100: acedido em 14 Janeiro 2023, https://www invaluable com/auction-lot/drug-store-sign-bayer

p 125: Samuel Uhrdin

p� 137: José Madureira Lopes

p� 143: Joaquim Barradas

Capa: Pormenor de xilogravura do século XVI da obra Das Neu Distiller Buch de Hyeronimus Brunschwig, Estrasburgo, 1537 [National Library of Medicine, Bethesda, USA]

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