Cosido à linha, colado a quente

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joão eduardo ferreira

cosido à linha colado a quente

Se algum dia tivermos tempo, iremos reparar no modo como a visão (ou o ouvido) nos devolve o sentido (ou a noção) da coisa. Primeiro, os olhos rodam de modo rápido sobre o conjunto, de um lado para o outro, de cima para baixo, tentando a forma geral da dita coisa. Por exemplo, de uma árvore. Fixam pontos vários, aparentemente aleatórios, situam os contornos, as cores, a dimensão, a perspectiva da copa face ao tronco que mergulha na sua sombra. Fixam outras árvores que, de perto, a conduzem. Só depois os pormenores são localizados. Algum ramo mais espevitado, as flores claras ou os frutos gulosos, um gato meio escondido num dos ramos, à coca de um ninho para nós invisível. Este processo coincide com a própria consciência da coisa. Por exemplo, a consciência de uma árvore. De modo semelhante os presentes textos chegaram à luz do papel e da esferográfica. Andaram eles à volta, da esquerda para a direita, de cima para baixo, sem saber se tomavam por real ou por imaginária a forma que tinham na frente. No final, a ficção de uma árvore talvez venha a ser mais verosímil que a imagem que ela nos dá.

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João Eduardo Ferreira nasceu em Lisboa em 1958. Tirou o curso de engenheiro silvicultor no Instituto Superior de Agronomia e trabalha na área da conservação da natureza. Desde que a memória o conhece, anda de li-

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vro no bolso por companhia e por trabalho. Colaborou em alguns periódicos de distribuição mais ou menos volátil, escrevendo sobre discos, livros e filmes (Supermúsica – Centro Comercial Roma, D.I.S.C.O. – Cooperativa dos Bancários, Flirt – Galeria Zé dos Bois, Op. Visões da Matéria). Na editora Apenas Livros publicou Corpos Estranhos (I - na Quinta, II - na Biblioteca, III na Lagoa); azul 25 linhas; Contos Adventícios (tomo I e II). Participou em publicações colectivas com os textos “A Tempestade e um Copo de Água”, sobre a obra de Gonçalo M. Tavares (Esfera do Caos, 2011); “A cidade está no bolso de um larápio” (FCSH Nova, 2012), sobre O Cabalista de Richard Zimler; “caderno Fantasma Útil: É proibido comer na rua” (Apenas Livros, 2013), sobre obras de Stefan Zweig ou Mário de Carvalho.

BY THE

BOOK

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© AUTOR

João Eduardo Ferreira © Edição

By the Book, Edições Especiais Impressão e acabamento

Real Base ISBN

978-989-8614-20-9 depósito legal

380118/14

Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. 213 610 997 www.bythebook.pt


Se pudermos considerar a linguagem uma velha cidade com um emaranhado de ruas e praças, com bairros que remontam longe no tempo, com quarteirões demolidos, limpos e construídos de novo e subúrbios que se vão alargando ao campo circundante, eu serei uma pessoa que, após uma longa ausência, já não consegue encontrar caminho neste aglomerado, já não sabe para que serve uma paragem de autocarro, o que é um saguão, um cruzamento, uma avenida ou uma ponte. Todo o articulado da língua, o ordenamento sintáctico de cada elemento, pontuação, conjugações e por fim até o nome das coisas vulgares, tudo ficou mergulhado numa neblina impenetrável. Austerlitz, W.G. Sebald Quetzal 2012, pp. 115-116, tradução Telma Costa


Na Terra do Ontem

segundo Stefan Zweig

Paraíso

Em certa aldeia distante, tão antiga que já perdera o nome que os séculos lhe haviam atribuído, viviam dois irmãos: João e Maria. Eram crianças normais. Moravam com os pais, os avós por perto, iam à escola de manhã, brincavam muito pela tarde. Ajudavam a tratar dos animais e a colher a fruta no pomar. Andavam de burro e, quando calhava, iam aos figos e às framboesas nos terrenos dos vizinhos. Em redor da aldeia e das hortas serenava um bosque de bétulas e carvalhos. Além do pinhal, mais além. Com os amigos, ali construíam palácios sumptuosos, socorriam princesas desvalidas, travavam guerras fantásticas, lado a lado com os cavaleiros mais valentes. Havia ainda um rio com uma ponte que ultrapassava calhaus rolados, peixes e salamandras. Quando lhes dava o vento, as bétulas e os carvalhos pareciam penas a cobrir o dorso das velhas colinas que, no final do dia ou ao amanhecer, conquistavam a luz e sombreavam a aldeia. Por baixo das árvores, os matos e as ervas altas serviam de refúgio e ninho perfeito para animais silvestres, vertebrados e invertebrados, também duendes matreiros e mouras encantadas. Mas nem sempre as coisas se assemelhavam aos contos de fadas que se esfumam em neblinas densas ou imaginações adormecidas. Por altura das feiras, o mistério desaparecia e os caminhos do bosque tornavam-se mesmo muito 11


movimentados. Eram os dias em que o comércio cruzava, com alegria e barulho, as fronteiras orográficas, unindo tudo o que para lá divagava: outros povos, outras línguas, outros países. As veredas não tinham descanso e enchiam-se de saltimbancos e músicos ambulantes, pregadores, aldrabões e, claro, um ou outro ladrão. De vez em quando, passavam fotógrafos a la minute. Precisavam ter cuidado, mas eram, sem dúvida, os momentos mais divertidos do ano. João e Maria experimentavam comidas esquisitas e escutavam histórias e canções em línguas que mal entendiam. Adormeciam sempre com dificuldade e tinham sonhos agitados. Como foi dito, João e Maria eram crianças normais, logo, crianças felizes.

Purgatório

Um dia, na véspera de uma das feiras francas, houve um incidente considerado de gravidade e, por tal motivo, muito comentado pelos que cruzavam as fronteiras a caminho dos mercados que se organizavam por todo o lado. Uma trupe de meliantes, mascarados de actores de drama, pernoitara numa povoação próxima da de João e Maria, tendo desaparecido dias depois, sem dizer água vai. Os larápios levaram meia dúzia de cabras, quatro cestos de batatas e cenouras e umas quantas ânforas de vinho e azeite, tudo já preparado para a venda nos dias seguintes. O facto mais falado, porém, foi o desaparecimento coinci12


Para onde me levam as minhas escolhas? Para onde me arrasta o erro que estará a crescer dentro da minha escolha? Deverei ter certeza nesses erros? O que me formará? Apostarei na escolha, no erro ou na certeza?

Firme é a linha do vazio perante a atracção dos astros. Livre é o nada Face à palavra que acabou de ser escrita.

Há um cotão muito leve Que rola por baixo Da doce memória dos cedros.

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Dicionário

Em certos momentos, pego na caneta E escrevo uma palavra (por exemplo, “bar“). É a palavra que me agarra. Traz dentro uma frase muitas frases que pegam na citada palavra (por exemplo, “copo“, “mulher“, “silêncio“, “cadeira“) e a traduzem no que ela é dentro de mim sem mim sem ela. Mas ela, a palavra, está dentro de mim antes de mim antes da frase e a frase (por exemplo, “pingo“, “rasgo“, “olhar“, “parede“) tenta subvertê-la sobrepô-la dentro de mim fora de mim e talvez consiga.

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Palavra!?

Um dia encontrarei a palavra. Sim, um dia destes irei procurar o tal vocábulo desconhecido que de mim se afasta como diabo da cruz, como a sombra do sol, como a justa distância inflexível que separa o azeite da água, como o silêncio foge da prova. E mesmo que a palavra se aparta do dia em que estou, e se esvaia na espuma do vulcão, e se esfume na improvável miragem do futuro. Eu irei atrás dela.

E para que serve uma palavra que pega na caneta e não me escreve?

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Costura

Procurar palavras é como tentar procurar uma palha num cesto de costura a abarrotar de agulhas. Não é difícil encontrá-la. Apenas ficamos com as mãos a escorrer sangue. Neste caso, na razão manda a ansiedade, menina petulante e irrequieta que deseja a todo o custo que a saia seja mais curta, pedindo à mãe, impertinente, que lhe refaça uma vez mais a bainha. O que podemos nós fazer com as mãos entrapadas e a cabeça em busca de uma bainha mais generosa?

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Grande Canyon

Tenho o Grande Canyon na palma da minha mão. A Pedra da Anixa a um canto do ouvido. O tempo previsto na outra mão. Tenho o Índico, o deserto liso, a estrela divina, na pálpebra fechada. Um piscar de olho. Arde-me a paisagem. Vento turvo. Visão nula. Mar grosso a alteroso. Avista-se o Cabo Sardão mas o faroleiro cego tarda em olhar o sal. As pestanas ardem, o tempo gasta-se. A cegonha voa. A tarde cai. Anoitece no Golfo da Biscaia, no Mar da Palha, em São Pedro de Alcântara. A Arrábida lá ao fundo, na espessura do mar. Daqui não se vê nada! Tiro a tarde, já é dia roubo a noite para te dar. Vai ao longe a madrugada, fora eu o meu caminho. No alto daquele templo não avisto o vento Zéfiro, nem marmoto, nem bem-querença, nem ruína, nem marulho. 69


Responso por um dia de Sol

Ai, Minha Senhora! Quem me dera um dia de Sol, apenas um dia de Sol para pôr a máquina a lavar. Ai, Minha Senhora! Eu rogo-te por um dia de Sol, apenas uma hora de Sol para fazer uma máquina. Já não sei que voltas dar à casa, com tanta roupa por lavar, tanta roupa por secar, tanta roupa por passar, tanto estendal embaraçado. Ai, tanto filho para cuidar! Ai, tanta gente a pedir! Ai, Minha Senhora, que não sei a quantas ando! Ai, Minha Senhora, ajuda-me por um dia só! Tira-me desta amargura ensopada, tira-me desta angústia alagada, que venho de semanas trocadas, de dias aziagos, de tardes sem sossego, de noites tão infelizes. Ai, Minha Senhora, dá-me tréguas, não me dês trevas! Tira-me este Inverno. Tira-me deste Inferno. Ai, Minha Senhora, que estás no Céu e tudo podes! Faz por mim o que o Mundo e o Firmamento não fizeram. Alivia o fardo que trago às costas. Afasta a montanha que me esconde o caminho. 93


Tudo admite uma metáfora.

Excepto o som. Experimentem ouvir: [1] A água de um ribeiro a correr sobre o xisto, perto de uma aldeia desabitada. [2] O piar de um cartaxo que não é avistado, escondido entre a folhagem agreste de um carrasco, em tarde de Verão. [3] A travagem de um autocarro sobre o asfalto que o aguaceiro acabou de encharcar. [4] A voz de um político que pressente a segunda falha de energia no derradeiro discurso da campanha eleitoral. [5] O descarregar do sifão de um autoclismo engolindo 30 comprimidos de um tranquilizante genérico sacado sem receita médica. [6] A primeira pazada de terra atirada para cima do caixão.

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