António de Magalhães Ramalho – Fundador do INII e pioneiro da investigação industrial

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“Abandonemos de uma vez para sempre um certo parti pris ou desdém com que, no geral, tendemos a encarar as questões da ciência. Ele fez já a sua época e está há muito ultrapassado pelas realidades da hora presente. Não o reconhecer é colocarmonos mal com nós próprios e sobretudo perante as gerações futuras, que algum dia nos poderão perguntar se, havendo um instrumento de trabalho tão poderoso como o da investigação científica séria, porque lho não forjámos a tempo e lho não passámos em estado de perfeita utilização.”

António de Magalhães Ramalho Fundador do INII e pioneiro da investigação industrial MARGARIDA DE MAGALHÃES RAMALHO

© Bruno Simões

António de Magalhães Ramalho

“(...) se há conveniência ou necessidade de se fazerem sacrifícios, que se façam, mas que se evite também cair no risco das soluções excessivamente geométricas e frias. Na verdade, são já bem visíveis as dificuldades com que deparam quase todos os Serviços oficiais para poderem exercer as suas funções;(…) Sabe-se também que as condições de vida do funcionalismo público – sobretudo do mais modestamente remunerado e das classes inactivas – atingiram já um nível abaixo do qual seria perigoso descer. Não se desconhece, igualmente, que a suspensão de admissões e promoções de pessoal criou um mal estar e ressentimento que, a manter-se por muito mais tempo, pode afectar inconvenientemente o moral e o rendimento útil de trabalho de quem vê todas as portas do seu futuro fechadas.”

MARGARIDA DE MAGALHÃES RAMALHO

“No campo dos conceitos julgo que, embora tomando-se as providências adequadas para se evitarem abusos ou devaneios à sombra da investigação, não se deverá esquecer que foi e é apoiando-se largamente nas actividades da Ciência pura – que trabalha sempre num plano de mera curiosidade mental – que as ciências aplicadas e a tecnologia têm podido avançar e resolver essa miríade de problemas que interessam ao desenvolvimento, subsistência e bem-estar das sociedades modernas.”

Margarida de Magalhães Ramalho é licenciada em História da Arte. Entre 1987 e 2005 dirigiu as escavações arqueológicas na Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, em Cascais. Entre 1993 e 1998 pertenceu aos quadros da EXPO’98 onde comissariou algumas exposições. Como freelancer continuou a comissariar exposições sendo também co-autora do Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes. Obras publicadas: Comboios com Histórias, Assírio e Alvim (2000) Fotobiografia do rei D. Carlos, Círculo de Leitores (2001) As Fortificações Marítimas da Costa de Cascais (em parceria), Quetzal (2002) Uma Corte à Beira-Mar, Quetzal (2003) D. Carlos de Bragança – Cadernos de Desenho, Inapa (2003) Aldeias Históricas, Inapa, (2004) 1908 – Um olhar sobre o Regicídio, Sextante (2008) Fotobiografia de Amadeo de Souza-Cardoso, Círculo de Leitores (em parceria), (2009) Os Barcos na Pintura, Um mar de histórias, Scribe (2009) O Estoril, a vanguarda do turismo, By the Book (2010) Lisboa na Pintura, Scribe (2010) Escrever sobre Sintra, By the Book (2010). Portugal na Pintura, Viagens na nossa Terra, Scribe (2011) Lisboa. Uma Cidade em Tempo de Guerra, INCM (2012) Vilar Formoso – Fronteira da Paz, Câmara Municipal de Almeida (2014)



Ao meu pai, naturalmente, mas à minha mãe também, que o amou profundamente, e que nesse amor foi retribuída na mesma proporção


título

António de Magalhães Ramalho Fundador do INII e pioneiro da investigação industrial © Texto

Margarida de Magalhães Ramalho © Edição

By the Book, Edições Especiais Design

Forma, design: Margarida Oliveira, Veronique Pipa Coordenação Editorial e Produção

Ana de Albuquerque, Maria João de Paiva Brandão fotogr afia

Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Arquivo de família; Casa-Museu Medeiros e Almeida; Colecção António Gallo; Colecção Luís Moura Vicente reprodução Fotogr áfica e tr atamento de imagem

Giorgio Bordino, Maria João de Moraes Palmeiro Revisão

Fernando Milheiro Impressão e acabamento

Real Base ISBN

978-989-8614-13-1 depósito legal

372487/14

BY THE

BOOK

Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. +351 213 610 997 www.bythebook.pt


AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho ficou a dever-se, em primeiro lugar, ao empenho dos meus irmãos e sobrinhos (em sentido lato), que suportaram financeiramente a investigação necessária a este trabalho e a publicação do livro subsequente. A todos eles, Muito Obrigada. Agradeço também àqueles que trabalharam ou contactaram de perto com António de Magalhães Ramalho e que partilharam comigo essa experiência. Foram eles: Abdool Valik, Acácio Pereira Magro, Alda Rosa, Amadeu Pires, Amílcar Martins, Antera Seabra, António Dias Correia, António Gallo, Eduardo Gomes Cardoso, Eduardo Sérgio Pessoa, Eugénio Borralho, Eva Cabral, Fernando Melo Antunes, Isabel Barreno, João Cravinho, João Cruzeiro, José Guimarães Morais, José Manuel Prostes da Fonseca, José Maria Brandão de Brito, José de Melo Torres Campos, José Veiga Simão, Luís Casanovas, Luís Frazão, Luís Moura Vicente, Manuel de Santos Loureiro, Manuela Albernaz, Manuela Barbosa e Maria Helena de Matos. Agradeço ainda à presidência do INETI/LNEG as facilidades concedidas, à Ana Garcia que dactilografou a transcrição do diário de Magalhães Ramalho, ao Giorgio Bordino, autor de todas as reproduções fotográficas que não pertencem ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, à Paula Candeias, responsável pela Biblioteca do LNEG, pela sua ajuda inestimável durante a investigação que fiz nos fundos desse

arquivo, a Marina Valle, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lamego e à Margarida Cunha Belém, que me ajudou na revisão das notas de rodapé e, finalmente, ao Rui Cardoso, que, como sempre, fez uma última revisão do livro.


Índice Prefácio, José Maria Brandão de Brito 9 Palavras Prévias 19 Introdução 22 Um homem do Douro 25 O paladino da investigação e da industrialização 35 O II Congresso da Indústria e dos Economistas Portugueses 61 Um Grand Tour industrial 75 Uma cronologia do INII, um Instituto pioneiro no panorama nacional 89 Rede Nacional de Frio, um processo congelado 160 Aventuras e desventuras da Fábrica-Escola Irmãos Stephens (FEIS): um processo digno de Kafka 167 Apontamentos para o estudo do Design Industrial 192 Epílogo 201 TESTEMUNHOS 207 PUBLICAÇÕES DO INII (1959-1969) 279 BIBLIOGRAFIA 285


TESTEMUNHOS Alda do Lago Cruz Rosa 208 Amadeu Augusto Pires 213 António José Gallo 217 Eduardo Cruz Gomes Cardoso 221 Eduardo Sérgio Pessoa 225 Eugénio Borralho 227 Fernando Melo Antunes 231 Maria Isabel Barreno de Faria Martins 234 João Cardona Gomes Cravinho 237 João Manuel Antunes da Silva Cruzeiro 243 José A. de Guimarães Morais 246 José Manuel Prostes da Fonseca 250 José de Melo Torres Campos 254 Luís Efrem Elias Casanovas 259 Luís Moura Vicente 262 Manuel de Santos Loureiro 265 Manuela Barbosa 271 Maria Helena de Matos 275 Maria Manuela da Silva Nunes Ribeiro Cruzeiro 277



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PREFÁCIO José Maria Brandão de Brito Professor do ISEG, Universidade de Lisboa

Esta é a história da simbiose quase perfeita entre um Homem e uma instituição pela qual lutou, e finalmente conseguiu criar. Como se o caminho percorrido pelo homem – António de Magalhães Ramalho – tivesse como propósito inelutável e único constituir a instituição, o INII (Instituto Nacional de Investigação Industrial). É desse encontro, dessa simbiose, que trata basicamente este livro; depois desse encontro estamos perante uma espécie de “biografia” dos dois, correndo em paralelo: os trabalhos, as preocupações e as emoções do homem, e a constituição, o trabalho, os desencontros, as dificuldades do organismo criado. Apesar da história curta dessa relação (uma escassa dezena de anos), ela é densa e interessante e, acima de tudo, constitui um elemento importante para ajudar a completar o conhecimento que se tem do Estado Novo, na que foi, do ponto de vista económico, a sua década de ouro. Para se ficar a conhecer essa parte sempre esquecida da História, que são os bastidores atrás dos quais se vai fazendo. António de Magalhães Ramalho (1907-1972) foi/era um homem singular no contexto do Estado Novo. Senhor de uma actividade desbordante, era inegavelmente um homem do regime, eventualmente crítico. Foi maltratado, como alguém referiu, a partir de certa altura “porque quem quisesse ser inovador não era bem-visto” – para os seus detractores havia sempre uma alternativa melhor, menos perturbadora, mesmo que essa alternativa fosse a de não fazer nada. Poucos se escaparam a esta regra não escrita do salazarismo. Ramalho foi compreendendo, ao longo da sua vida pública, como era difícil querer fomentar o progresso e a modernidade e como, com todo a ganga do corporativismo, não só não se podia ir longe, como o próprio regime não conseguiria sobreviver ao seu fundador. É por isso que este livro, que conta a história de um homem e de uma instituição, é sobretudo uma homenagem a um dos poucos protagonistas que viveu com o Estado Novo e conseguiu romper essa norma perversa. E, como vários testemunhos atestam, na curta fronteira do que era possível fazer, Magalhães Ramalho foi, à época, um inovador. Era um homem com convicções e com ideias que tentou concretizar, num período em que tudo ainda se passava lentamente na Administração Central do país, nos anos 60. Como se o Mundo não existisse, nem se estivesse a mexer aceleradamente, no quadro dos trinta gloriosos anos do capitalismo.


Ant贸nio de Magalh茫es Ramalho com a sua filha mais nova, Margarida. 1954


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PALAVRAS PRÉVIAS

António de Magalhães Ramalho era meu pai. Morreu em Julho de 1972 quando eu tinha acabado de fazer 18 anos. Dele tenho, por isso, uma memória boa mas muito esbatida. No ano em que morreu, eu era, na prática, a única filha em casa. Os meus irmãos mais velhos já estavam casados e a minha irmã Ju estava em Inglaterra. Foram tempos estranhos. Por um lado, era-me difícil ver aquele homem, que eu conhecera activo e combativo, imerso numa profunda depressão por não saber o que fazer com todo o fogo que ainda ardia dentro dele. Por outro, foi uma experiência comovente vê-lo tentar compreender aquela filha mais nova, cuja cabeça estava cheia de ideias revolucionárias e que lia, entre outras coisas, o contestatário Comércio do Funchal. De início, olhava desconfiado para aquele jornalzinho cor-de-rosa onde eu gostava de sublinhar com convicção tudo aquilo com que concordava. Depois, pediu-me para ver um. Temi o pior. Afinal era um jornal “do contra” e ele sempre estivera mais ou menos enquadrado no regime. No dia seguinte veio buscar outro. Ao fim duns dias, era leitor assíduo… Um dia encontrei-o na salinha de estar, imerso nos seus pensamentos e com um desses jornais na mão. Ao ouvir os meus passos disse, sem se voltar: “E é que eles têm razão!”. Nunca esqueci o tom com que disse aquela frase. De algum modo, percebi que os seus alicerces tinham sido abalados. A sua morte inesperada, de um ataque de coração, na madrugada de 31 de Julho, deixou-me sem fôlego. No entanto era ainda muito nova. Tinha acabado de me apaixonar e estava cheia de projectos de futuro. Semanas depois, a minha vida continuava a fluir e, aos poucos, aquele drama familiar foi-se atenuando, apesar de assistir impotente à dor de minha mãe, dor essa que só desapareceria quando, finalmente, também ela partiu em 1986. Quando enveredei profissionalmente pela investigação histórica, em 1984, os meus objectivos não passavam, de forma alguma, pela História Económica e muito menos pelo Estado Novo. Naquela altura o meu interesse radicava-se nas fortificações marítimas do século XVI, área em que trabalhei durante anos (e ainda trabalho).


Quinta da Ponte Velha Portelo de Cambres


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Um homem do Douro Três da manhã. Estranha insónia faz-me assomar à varanda do Douro… No vale de Cambres desenrola-se, mais uma vez, esse espectáculo esplendoroso de uma noite de luar na minha terra: concha de negrumes em que alvejam por entre sombras os vultos das casas; espuma de prata polvilhando as alturas; aromas vegetais da terra mãe que sabem a saudades da minha infância! Frio penetrante de ar da serra. Transparências de cristal deixam recortar na linha do horizonte o perfil majestoso do eterno Marão, assaltado por insofrida cavalgada de nuvens, que afinal acabam por morrer a seus pés deixando bem vincadas na noite a crista altiva das cumeadas. Mil ruídos conhecidos fazem vibrar em surdina essa harpa maravilhosa do silêncio de uma noite na aldeia: murmuram rezando, fontes e ribeiros; um grilo canta em soluços; marcam a sua presença o noitibó discreto e o latir magoado do cão que vela estremunhado… Palpitam ansiosas as estrelas na imensidão dos céus… Momento ideal em que a vida, como que suspendendo-se se presta à meditação de quem não atina com a causa da vigília a que se vê forçado. (…) António de Magalhães Ramalho portelo de cambres, Julho de 1949


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Mesmo sem querer, somos marcados de uma forma ou de outra pelo torrão que escolhemos para enterrar as nossas raízes. Esse lugar que nos liga à Terra nem sempre coincide com o sítio onde vivemos toda uma vida. Pode ser o local onde nascemos e ao qual voltamos, vezes sem conta, por ser terra de pais e avós. Dominado pelas serras do Alvão e do Marão, o Douro é umas das regiões mais fortes e telúricas de Portugal. Imponente, austera, agreste mesmo, foi moldada durante séculos por gerações de homens e mulheres desconhecidos que, com a sua tenacidade, foram transformando as margens abruptas do rio em suaves socalcos, de forma a que outros pudessem produzir um vinho que a maior parte deles nunca iria provar. Estas e outras vivências fortes lá estão, gravadas na paisagem e diluídas no ar, sempre prontas a alimentar as raízes dos filhos ou netos do Douro. Apesar de ter vivido sempre em Lisboa, António de Magalhães Ramalho, descendia de sucessivas gerações de durienses e lá manteve sempre a sua alma. Quinto filho de Alfredo Mendes de Magalhães Ramalho e de Maria Amélia de Gouveia da Costa Fiel de Sousa Sobral, uma sua parente afastada, nasceu em Lamego a 19 de Setembro de 1907. Depois do seu nascimento, os pais ainda viriam a ter mais dois irmãos. Sem ser propriamente abastada, era uma família conceituada, com algumas propriedades na região. O pai, que nascera em Mesão Frio em 1865, era bacharel em Matemática e oficial de Cavalaria. Representante de Portugal nas grandes manobras do Exército francês em 1902 foi, entre muitas outras coisas, o último governador civil de Lisboa antes da República. Membro do Partido Regenerador, foi deputado por Lamego de 1902 a 1910, tendo-se distinguido, como se afirma na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “como parlamentar pelo brilho e elegância dos seus discursos”. Esta capacidade oratória será herdada pelo filho António. Apesar de viverem em Lisboa, a mãe fazia questão de regressar ao Douro, onde tinha uma pequena quinta, para ter os seus filhos. Por isso, em Julho de 1907, já em avançado estado de gravidez, Maria Amélia chega com a família à casa de Portelo de Cambres, a três quilómetros de Lamego, para esperar o nascimento da nova criança. Poucos dias depois, é diagnosticada a Gustavo, o filho mais novo, de oito anos, uma apendicite. Sem hospitais por perto e na impossibilidade de levar a criança para o Porto, o pai vai a cavalo procurar gelo que ajudasse a conter o processo inflamatório. Em vão! Depois de percorrer centenas de quilómetros, chega com o gelo envolvido em palha para não derreter, já depois de o filho ter morrido de peritonite.


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Este episódio dramático no final da gestação terá contribuído, porventura, para o temperamento emocional que caracterizou António de Magalhães Ramalho e que se traduziu, por vezes, numa preocupação quase obsessiva pela saúde das crianças em geral, e em particular pela dos seus filhos. Três anos após o seu nascimento e quando o pai tinha acabado de ser convidado para um cargo ministerial, sobreveio a implantação da República. Começa a longa “travessia do deserto” de Alfredo de Magalhães Ramalho. Apesar de promovido a tenente-coronel em 1912, três anos mais tarde é passado compulsivamente à reserva depois de um suposto amigo o ter denunciado como monárquico. Só após a ascensão do polémico Sidónio Pais – o presidente-rei –, em Dezembro de 1917, volta a ser reintegrado no Exército, sendo promovido a coronel nesse mês. Terminará a sua carreira como general. Os filhos iam crescendo e enquanto as raparigas estudavam em casa, como era costume na época, os rapazes iam para o liceu e, mais tarde, se pudessem, para a faculdade. Por vontade do pai, o filho mais velho, que se chamará também Alfredo, teve de seguir Medicina. No entanto, a sua intenção era, terminado o curso, oferecer o diploma ao pai e fazer Engenharia. Contudo, as dificuldades financeiras causadas pelo afastamento do pai do Exército, em 1915, levam-no a desistir da ideia e a exercer Medicina, nomeadamente durante o período da pandemia que vitimou, entre 1917 e 1919, milhares de pessoas e ficou conhecida como “a pneumónica”. A sua actuação nos hospitais civis e militares valeu-lhe a medalha da Cruz Vermelha Portuguesa. Mas nem assim a Medicina o tentou, apesar de ter concluído com 19 valores, em 1920, o doutoramento. Os trabalhos que desenvolvia, desde há anos, como assistente do Professor Augusto Celestino da Costa, na cadeira de Histologia, vão ditar-lhe nova carreira ligada à Biologia. Com este professor vai trabalhar na adaptação do Aquário Vasco da Gama a Estação de Biologia Marítima, vindo a ser naturalista assistente deste organismo e mais tarde, a partir de 1924, seu director. Em França, vai participar em 1920 num cruzeiro de estudos do navio Perche, do Office Scientifique des Pêches, aprendendo as técnicas dos trabalhos oceanográficos. De regresso a Lisboa, e em colaboração com a Marinha portuguesa, vai retomar, à luz dos novos conhecimentos, o reconhecimento sistemático da costa lusa. Estes trabalhos, que vinham na sequência das campanhas oceanográficas desenvolvidas entre 1886 e 1907 pelo rei D. Carlos, realizaram-se a bordo do navio rebaptizado 5 de Outubro, o último iate usado para este fim pelo monarca português, o Amélia IV.


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À Noruega irá tratar do apetrechamento científico de um novo navio oceanográfico, o Albacora, encomendado pela Marinha portuguesa. Aproveita para frequentar, em Bergen, um curso de Oceanografia Física organizado pelo Professor Helland Hansen. Até 1931 realizará, anualmente, em vários pontos do Atlântico – em colaboração com várias instituições nacionais e estrangeiras – cruzeiros oceanográficos a bordo do Albacora, comandado pelo tenente Luciano Sena Dentinho, com quem trabalhará em diversos estudos científicos. Alfredo Ramalho foi membro correspondente da Zoological Society of London, vogal-naturalista da Comissão Central de Pescarias, sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa e sócio da prestigiada Linnean Society of London. Recebeu o brevet de chevalier da Légion d’honneur e foi galardoado com a medalha grand module da Société Centrale d’Agriculture et de Pêche de Paris. Não admira, portanto, que o irmão mais velho de António de Magalhães Ramalho viesse a ser, ao longo da vida, uma referência e um exemplo a seguir. Sem o mesmo fogo que consumia Alfredo e António, os outros dois irmãos, João e José optarão por carreiras discretas na função pública. Centremo-nos agora em António. Após a instrução primária, entra, em Setembro de 1918, no Liceu Camões. Até ao quinto ano será um aluno regular. A partir dessa altura as suas notas melhoram consideravelmente, sobretudo em Química, História, Geografia e Filosofia. Em 1925 termina o curso dos liceus, sendo aprovado nos exames finais com distinção. Por essa altura, Portugal vivia no rescaldo de um dos momentos mais dramáticos da vida da jovem República, o assassinato do Presidente do Conselho, António Granjo, e de dois dos heróis da República, Carlos da Maia e Machado dos Santos. Esta tragédia, que marcará fortemente o imaginário nacional, vinha na sequência da demissão do governo presidido por Liberato Ribeiro Pinto. Descontentes com a saída daquele que era um dos pilares do Partido Democrático e sobretudo do homem que, enquanto comandante da Guarda Nacional Republicana, tinha transformado esta força numa verdadeira guarda pretoriana, militares da GNR levam a cabo uma série de sublevações, a última das quais em Outubro de 1921. Aproveitando a confusão, alguns marinheiros e arsenalistas resolvem por iniciativa própria dar caça a várias figuras públicas e militares que consideravam ser seus inimigos. Para além dos acima referidos, serão ainda mortos o comandante Freitas da Silva, Secretário do Ministro da Marinha, e o coronel Botelho de Vasconcelos, um sidonista.


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Sem saber o que se passava em Lisboa, Alfredo de Magalhães Ramalho sai com a família de Portelo de Cambres, a 20 de Outubro, para regressar à capital. Já no comboio fica a saber que há revolução na capital. Ainda pondera regressar a Cambres, mas passageiros do comboio que vinha de Lisboa dizem-lhe, quando as composições se cruzam, que já nada se passava. Ao chegar a Lisboa verifica que não é bem assim. Ainda na Estação do Rossio fica a saber que a situação está longe de estar calma. Avisado por um vizinho de que nessa madrugada, a “camioneta fantasma” – nome pelo qual ficou conhecido o veículo carregado com os políticos que viriam a ser assassinados – também tinha ido à sua procura à Rua Açores, onde morava, Alfredo de Magalhães Ramalho resolve ir para casa de familiares. No dia seguinte regressa com a mulher e os filhos mais novos a Lamego, à espera que a situação acalme. Em Lisboa ficarão apenas os mais velhos, por causa das aulas que entretanto já tinham começado. António, será um deles. Escusado será dizer como este incidente terá marcado a família, sobretudo os mais emotivos, como era o caso de António. A situação política vai continuar agitada, sucedendo-se vertiginosamente governos, revoltas e intentonas. O descontentamento e o medo tornam-se uma constante e alastram às famílias tradicionalmente republicanas. Infelizmente, esta situação caótica estava prestes a abrir a porta a um dos mais longos regimes autoritários da Europa. No entanto, quando se dá o golpe militar de 28 de Maio de 1926, ninguém tinha a noção disso e o país, na esmagadora maioria, apoia o movimento. A marcha triunfal de Gomes da Costa, de Braga a Lisboa, sem disparar um tiro é prova disso. Acabado o liceu, em 1925, António de Magalhães Ramalho ingressa no Instituto Superior Técnico, formando-se em 1931 em Engenharia Mecânica e, no ano seguinte, em Engenharia Electrotécnica. Com o curso acabado, arranja o seu primeiro emprego como engenheiro na Direcção-Geral dos Serviços de Viação e Estatística. Dois anos depois é nomeado Secretário do Conselho Superior de Viação, cargo que ocupa até 1937. Entretanto, durante umas férias de Verão em São João do Estoril, conhece através dos irmãos, Maria Luísa de Oliveira Marques, com quem se virá a casar alguns anos mais tarde. Filha de Emma de Oliveira e de Jayme Arthur Marques, um relativamente bem-sucedido homem de negócios que se instalara em Lisboa depois de ter vivido longos anos em Inglaterra, era a mais nova de cinco irmãos. O pai, que sempre mantivera uma forte ligação à Grã-Bretanha (à excepção do ano de 1890, após o Ultimato inglês, altura em que, por imperativo patriótico se despediu da empresa britânica


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onde trabalhava) quis educar todos os filhos em Inglaterra, enviando-os para colégios internos. Maria Luísa será a única a ficar em Lisboa devido ao início da I Guerra Mundial. Como outras meninas da sua classe social na época será educada em casa. Era uma rapariga culta e com interesses muito particulares, nomeadamente fotografia, música, história e arqueologia. Este seu gosto pelas coisas do passado levou-a a oferecer-se como voluntária para as escavações arqueológicas das Grutas da Alapraia (São João do Estoril) chefiadas pelo comandante Afonso do Paço. Durante os trabalhos que efectua no Verão de 1935, acabará por ter a alegria de encontrar uma das peças mais importantes dessa campanha de escavação, uma meia-lua de pedra, que pertence hoje ao espólio do Museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Tendo, também, uma veia frustrada de actriz, carreira que lhe estava interdita por preconceito social, adorava disfarçar-se sem que ninguém a reconhecesse. Já noiva de António, resolveu tentar perceber como a família do futuro marido se comportaria perante os desvalidos da sorte. Assim, irá bater-lhes à porta vestida de velha mendiga e, como contará mais tarde aos filhos, gostou da forma como a trataram, e sobretudo de ter sido levada carinhosamente para a cozinha onde lhe deram de comer, sem nunca terem desconfiado de quem se tratava… Não tendo propriamente um grande ordenado e tendo em vista o futuro casamento, António de Magalhães Ramalho candidata-se a um segundo emprego. Desta vez a um lugar de professor numa escola nocturna de Lisboa para adultos. Os alunos são, em grande número, gente que trabalha: operários, caixeiros, etc. Muitos têm formação política e, na sua esmagadora maioria, não estão contentes com o regime imposto pela revolução de 1926. Por essa razão, o director da escola avisa Magalhães Ramalho que “aquela gente é perigosa” e que, ao mais pequeno problema, deveria chamar a polícia, cuja esquadra ficava perto. Alguns dias depois, António é confrontado com um burburinho na aula enquanto está a escrever no quadro. Pergunta aos alunos a que se deve a risota e um deles explica-lhe que lá atrás há um rapaz a dormir com a cabeça em cima da secretária. Sem se mostrar preocupado, Ramalho pergunta qual a ocupação do dorminhoco. Entre risos é-lhe explicado que mora longe, se levanta muito cedo para trabalhar e que, por causa das aulas, se deita tarde. Para espanto da rapaziada, António despe o sobretudo que tinha vestido por ser Inverno, tapa o rapaz adormecido e pede à turma que fale baixo para o deixar dormir sossegado.


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Este gesto conquista uma turma potencialmente problemática, criando uma forte ligação com os alunos. Quando a 7 de Dezembro de 1935 se casa com Maria Luísa na Igreja de Santos-o-Velho, estes aparecem em peso e oferecem-lhe um relógio de pulso em prata. O rapaz que dormia nas aulas chamava-se Vladimiro Lenine de Jesus, e durante anos manteve a ligação com o seu antigo professor. No ano seguinte, na véspera de Natal de 1936, Magalhães Ramalho fica feliz por ter sido aceite na Ordem dos Engenheiros. Será o sócio 711. À época, a entrada na Ordem não era apenas uma questão formal ou burocrática. Ser aceite significava o reconhecimento do mérito para desempenhar a profissão. A 23 de Junho de 1937 nasce Miguel, o primeiro filho. A partir daí a família vai aumentar, já que de dois em dois anos nascerão mais três crianças: Pedro, Paulo e Maria do Rosário. Muda-se do andar que tinha alugado na Rua Alexandre Braga para o r/c do n.º 8 da Avenida Defensores de Chaves, onde viverá com a família até ao Verão de 1970. Nesse ano, mudar-se-á com a mulher e as duas filhas mais novas para a Parede onde viverá os seus dois últimos anos. Uma vida familiar feliz e estabilizada permite-lhe, profissionalmente, começar outros voos, já que as suas qualidades de chefia e capacidade de trabalho começam a fazer-se notar. Em Julho de 1937 é convidado a chefiar o Serviço de Economia de Combustíveis do Instituto Português de Combustíveis, cargo que vai exercer até Junho de 1948. Durante o período conturbado da II Guerra Mundial vai também presidir à Comissão Reguladora do Comércio de Carvões, organismo que se manterá em funcionamento até 1948, quando são dadas como ultrapassadas as dificuldades de abastecimento de combustíveis decorrentes das hostilidades. Apesar de extinta a Comissão, António de Magalhães Ramalho mantém-se na área, sendo nomeado engenheiro-inspector superior da Direcção-Geral de Combustíveis, tornando-se, mais tarde, vice-presidente do Conselho de Combustíveis. Será, também, vogal do Conselho Superior da Indústria e do Conselho Superior de Minas. Pouco se sabe da actuação destas comissões, já que se desconhece o paradeiro dos respectivos arquivos. Nessa época, aos cargos de responsabilidade não correspondiam ordenados principescos. Não possuindo fortuna própria, Magalhães Ramalho desdobra-se, fora das horas de serviço, em trabalhos particulares de consultoria técnica para ajudar a equilibrar as contas da sua já extensa família. Mesmo assim, o desafogo nunca será grande e haverá Natais em que nos sapatinhos dos filhos vão estar apenas uns vales de fabrico caseiro com a promessa da prenda para dali a umas semanas…


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A entrada para o Governo em 1951, como Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria não resolve a situação, apesar de alguma subida de remuneração. As novas funções obrigavam a maior visibilidade e, consequentemente, a maiores despesas. Em contrapartida, e por razões éticas, entendia não dever continuar a exercer actividade privada. A família, entretanto, voltara a crescer, com a chegada de mais duas filhas, Maria de Jesus e Maria Margarida. No final do seu mandato como Subsecretário de Estado, em 1958, o problema volta a pôr-se com maior acuidade. É então que Magalhães Ramalho pensa deixar o Estado para aceitar um dos muitos convites que lhe tinham sido feitos para o sector privado. Fica a saber pelo seu antigo Ministro, Ulisses Cortês, que havia a intenção de o Governo o nomear para uma representação do Estado em empresas electrotécnicas. “Entre outras razões, (...) estaria a intenção de me assegurar os meios materiais indispensáveis a bem poder exercer uma missão de grande responsabilidade, que oportunamente me seria confiada. Abstraindo mesmo de quaisquer considerações de ordem pessoal, a decisão pareceu-me a todos os títulos bem pensada, porque se o encargo que se tinha em vista confiar-me era aquele que eu suspeitava – a direcção do Instituto Nacional de Investigação Industrial – o seu exercício viria efectivamente a exigir um relativo desafogo económico, até pela intensidade de relações sociais com altas personalidades estrangeiras a que obrigaria.” 1 A criação de um Instituto Nacional de Investigação era um sonho que Magalhães Ramalho defendia com “unhas e dentes” há vários anos. Assim, não é de estranhar que a possibilidade de vir a chefiar esse organismo, que começava a tomar forma no papel, fosse incentivo suficiente para deixar cair importantes ofertas de emprego no sector privado. Alterações ministeriais levam a que, um ano depois, nada tivesse acontecido. Preocupado com a sua situação financeira, Magalhães Ramalho, que tem nesse período os seis filhos a estudar, alguns já na universidade, resolve expor, por carta, o assunto ao Presidente do Conselho: “Decorrido, porém, um ano e esgotadas as esperanças de que o assunto venha a ser esclarecido pela pessoa a quem normalmente competiria, vejo-me forçado a recorrer para Vossa Excelência, para poder dar ao menos um rumo consciente à minha vida, sem que amanhã me acusem de que não confiei até ao fim ou me precipitei.” 2


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Não se conhece a resposta de Oliveira Salazar – se a houve –, mas ainda em 1959, o projecto do Instituto Nacional de Investigação Industrial arrancava, e António de Magalhães Ramalho iria ser o seu primeiro director.

1. e 2. Carta de Magalhães Ramalho a Oliveira Salazar. 1-8-59. Arquivo Salazar, correspondência particular. António de Magalhães Ramalho e a irmã mais nova, Maria. c. 1915 Magalhães Ramalho enquanto aluno do Instituto Superior Técnico, no ano lectivo de 1930-1931. Da esquerda para a direita: Magalhães Ramalho, Hermes Guerreiro Boto, António Carrisso, João P. Barbosa Batista, Neuriquete Manuel Pereira, (não identificado) e Mamede Fialho. A família Magalhães Ramalho em Portelo de Cambres. c. 1953

Antonio de Magalhães Ramalho durante o serviço militar.

António e Maria Luísa, na sua casa da Defensores de Chaves com os filhos.


Grupo do Serviço de Produtividade em 1962. Da esquerda para a direita em pé: (não identificado), António Lopes Paulo, Acácio Pereira Magro, (não identificado), Luís Pereira Júnior, Artur Sampaio, (não identificado), Silva Rodrigues, Amadeu Pires, Silva Guerra. Sentados: Reis Santos, António Brás Frade, Mário Cardoso dos Santos, Celeste Leite dos Reis, Isabel Barreno, Carlos Correa Gago, Luís Moura Vicente, José Torres Campos, José Pinto dos Santos. Colecção Luís Moura Vicente


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TESTEMUNHOS

Os testemunhos que se seguem, e que estão ordenados por ordem alfabética a partir do primeiro nome, são na esmagadora maioria transcrições de gravações de conversas informais realizadas no âmbito deste trabalho durante os anos de 2012 e 2013. Não seguiram um esquema rígido de perguntas e foi deixado ao critério de cada entrevistado falar sobre o que quisesse dentro do âmbito do INII. As transcrições destas conversas foram depois enviadas aos entrevistados para que fizessem as correcções que entendessem necessárias. Os textos de Manuel de Santos Loureiro e o de João Cravinho foram substancialmente reformulados e aumentados. No entanto, algumas das informações fornecidas nas entrevistas, apesar de não estarem no testemunho final, foram utilizadas ao longo do livro. Apenas em dois casos, os entrevistados optaram por enviar o seu testemunho por email. Foi o caso de Alda Rosa e de Amadeu Pires. Cada testemunho é antecedido por alguns dados biográficos do entrevistado, à excepção de Manuel Loureiro, como se explica na página respectiva.


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Alda do Lago Cruz Rosa

Nasceu em Braga, a 13 de Maio de 1936. Completou o Curso Superior de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e, mais tarde, o Curso Superior de Design Gráfico, no Ravensbourne College of Art and Design, em Inglaterra. Em 1965 entrou para o INII (Instituto Nacional de Investigação Industrial), tendo feito parte da comissão organizadora das Exposições de Design Português promovidas pelo INII em 1971 e 1973. Exerceu funções na DGQ (Direcção-Geral da Qualidade), no IPQ (Instituto Português da Qualidade) e no ICM (Instituto Cultural de Macau). Integrou a Comissão Instaladora do CPD (Centro Português de Design), como representante do Ministério da Indústria. Criou o sector gráfico do Instituto Cultural de Macau, que dirigiu entre 1987 e 1989. Dedicou-se ao design de mobiliário, cenários e figurinos para bailado e cinema e, sobretudo, ao design gráfico. É sócia fundadora da APD (Associação Portuguesa de Designers) , cuja direcção integrou entre 1990 e 1993. Em 1990 foi delegada da APD no BEDA (Bureau of European Designers Association). Integra o Registo Europeu de Designers do BEDA . Consultora do Centro Português de Design até à sua recente extinção e do Museu Nogueira da Silva, em Braga.

“Ao escrever sobre o Eng.º Magalhães Ramalho recordo os meus primórdios profissionais e o meu interesse pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial, lançado uns anos antes pelo Eng.º Magalhães Ramalho como conceito e estrutura administrativa inovadores. O Arq.º Duarte Nuno Simões, com quem trabalhava, falou-me um dia numas conferências sobre design no âmbito da I Quinzena de Estética Industrial a realizar pelo INII, e a que, achava ele, devíamos assistir. Nessa altura já havia alguns ateliers interessados nas questões do design; era o caso, entre outros, dos ateliers do Conceição Silva, do Eduardo Anahory, do Manuel João Leal, do José Espinho e dos ateliers de arquitectos ligados ao Movimento de Renovação da Arte Religiosa


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(MRAR) e aquele em que por uns tempos trabalhei, do Duarte Nuno Simões e do José Daniel Santa Rita. Fazendo arquitectura, punha-se o problema: quem faria depois os interiores? E com o turismo a exigir mais hotéis, quem desenharia os móveis e tudo o resto? E as novas igrejas? Era uma bola de neve… Começou por aí, mas também pelo aparecimento de novos cafés, restaurantes, que precisavam de toda uma parafernália de peças, mobiliário, louças, candeeiros… Havia gente que começava a desenhar essas coisas. Arquitectos, pintores e decoradores. Muitos deles tinham o conhecimento do que se fazia lá fora. Pelas revistas, sobretudo nórdicas, onde a vida nos interiores das casas é especialmente privilegiada, ou porque viajavam muito e por isso estavam a par das novidades... Mas isto era, no meu tempo e do meu conhecimento, o panorama em Lisboa. Nenhuma destas actividades de projecto tinha expressão industrial. E levar o design à indústria era uma tarefa a que o INII se propunha. Voltando à Quinzena de Estética Industrial que o Instituto Nacional de Investigação Industrial realizou em 1965: o Duarte Nuno Simões e o José Daniel Santa Rita tinham tido conhecimento da Quinzena através da escultora Maria Helena de Matos, antiga colega em Belas-Artes e que, como responsável pelo Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial do INII – como então se designava o Núcleo de Design Industrial – era a organizadora. E lá fui eu, com eles, assistir às palestras. Foi importante, ajudou-me a estruturar as ideias nessa área, e os conferencistas eram muito bons, projectavam no ecrã imagens inspiradoras e trocavam ideias práticas com a assistência. Vale a pena ler as comunicações feitas por eles e publicadas pelo INII porque estiveram cá oradores de primeira linha: Henri Vienot, Madini-Moretti, Noel White, Sergio Asti, Olof Gummerus, Xavier Auer. As conferências tiveram bastante assistência e penso que foram importantes porque estabeleceram uma certa cidadania para o assunto – veja-se a repercussão que tiveram na imprensa. Entre a assistência não havia muitos designers ou aspirantes a isso. A maioria era constituída por industriais e curiosos de outras áreas que entretanto tinham ouvido falar no assunto e queriam saber mais. Daí o despertar da minha intenção de entrar para a equipa que, no âmbito da administração pública, punha em marcha os conceitos e a aplicação dos temas do Design Industrial. Sempre achei que a administração pública tinha uma responsabilidade única, e envolvia, no caso do INII, aspectos da partilha do conhecimento, da cultura e


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da inovação no sentido do desenvolvimento industrial a que então a adesão de Portugal à EFTA nos desafiava. Sempre tive esta ideia acerca do serviço público. O meu pai foi funcionário público durante uns tempos. E o meu pai era o homem mais culto e empenhado que eu tinha conhecido. E essa ideia também me aproximou do INII, muito mais do que dos ateliers que me convidaram, quando vim de Londres depois da licenciatura, com convites atractivos… O que eu queria mesmo era ingressar no INII que era quase uma universidade, com cursos leccionados pelos melhores especialistas, recrutados no que havia de melhor a nível internacional, com investigação aplicada, com divulgação de informação técnica e, sobretudo, com uma ligação privilegiada à indústria. Depois do 25 de Abril, saíram do INII para as estruturas técnicas dos ministérios dos primeiros governos provisórios, inúmeros colaboradores que no INII tinham adquirido as competências indispensáveis para o exercício das suas novas funções. E acabo por entrar no Instituto, em 1965, porque o Arq.º Duarte Nuno Simões, que estava temporariamente a trabalhar no Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial, sugeriu o meu nome. Ele depois saiu, mas eu fiquei lá a trabalhar como colaboradora em part-time, até à minha ida para Londres. No entanto, tive alguma dificuldade em me integrar, a minha percepção era de que o ambiente no Núcleo era soturno e pouco estimulante. No Núcleo, naquela altura, depois da realização da Quinzena de Estética Industrial e umas exposições de produtos industriais, pouco mais se fazia do que «arranjos gráficos». Havia na sala de desenho uma desenhadora, que criou à sua volta uma série de pessoas com um grau de exigência muito grande e que, ela própria, desenhava de uma maneira correctíssima e muito clara os impressos solicitados pelos Serviços: formulários, organogramas, mapas, etc. As maquetas eram executadas com Letraset e tinta-da-china, sobre papel vegetal, para reprodução posterior numa pequena oficina gráfica existente no INII e que trabalhava muito bem. A chefe da sala de desenho, era esta a sua designação, tinha um grande prestígio. Mas não se tratava de design gráfico. Era mais passar a artes finais os impressos estudados e esboçados pelos técnicos dos vários Serviços. Além da sala de desenho, colaboravam também na produção dos impressos um laboratório de fotografia e a tal oficina de reprografia. Isto passava-se nas instalações do INII da Rua Garcia de Orta, onde se situava a sede, os Serviços de Apoio, o Serviço de Documentação Técnica, a Biblioteca e o tal Núcleo de Design Industrial, entre outros. Por isso era frequente encontrar


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o director, o Eng.º Magalhães Ramalho, que mostrava curiosidade pelo trabalho que eu fazia na altura, pedia explicações sobre as decisões tomadas no design das capas, na escolha das cores, dos elementos… A minha ideia sobre a nossa actividade de design gráfico no INII era que o Núcleo de Design deveria dar apoio apenas às iniciativas próprias, e não justificar a sua existência como um Serviço de apoio às actividades dos outros Serviços do INII, como parecia ser a percepção geral. Ou seja, ocuparmo-nos a fazer o material promocional dos Serviços de Formação, da Produtividade, da Economia ou dos Laboratórios era, quanto a mim, perdermos o tempo e a energia que deveriam ser canalizados para a promoção da nossa área específica, do Design Industrial. E éramos muito poucos… Por outro lado (há sempre um outro lado), esse nosso apoio na área do design gráfico aos outros Serviços do INII teve um lado bom: explicávamos aos colegas desses Serviços a importância de uma estratégia de comunicação coordenada, demonstrando que as acções por eles realizadas deveriam ter uma identidade visual, criando desse modo um maior impacto. E de caminho motivávamos também os participantes nessas acções… Teve essa importância. Ilustrávamos no concreto, conceitos como identidade corporativa, imagem coordenada, etc. Mas falando ainda de imagem, uma coisa interessa dizer: o facto de se realizarem no INII actividades ligadas a congressos, cursos, simpósios em que o material promocional era produzido por nós, começou, digamos, a fazer doutrina. E tornou-se evidente que esse material promocional não só criava identidade como constituía uma achega essencial à própria organização geral desses eventos. Mais tarde iniciámos consultas sobre assuntos que escapavam à nossa competência técnica e, nalguns casos, à nossa capacidade para as desenvolver, e canalizávamos esses pedidos para quem os pudesse satisfazer. Ou seja, começámos a fornecer clientes aos ateliers de design que iam surgindo. Pelo Núcleo apareciam às vezes pessoas para trocar ideias. Vi lá, por exemplo, o Dr. Américo Soares (irmão do pintor António Soares, mestre de futuros arquitectos e pintores que foram pioneiros no design), que pretendia organizar uns encontros com industriais de cutelaria, em Guimarães, onde vivia, e que vieram a realizar-se mais tarde. E fui para Londres frequentar o curso de Design Gráfico no Ravensbourne College of Art and Design, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, com o compromisso de, na volta, pôr o conhecimento aí adquirido ao serviço do INII. Para tal, comecei


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a procurar em Londres, a nível institucional, tudo o que pudesse ser replicado cá na área do apoio ao Design IndustriaI. Passei a estar atenta às actividades do Design Centre e ir lá regularmente às exposições, frequentar a biblioteca, estudar a organização do sistema de informação à indústria, etc., e mandava para a Maria Helena de Matos o resultado dessa investigação. Interessava-me sobretudo essa vertente de divulgação da documentação e cada vez me convencia mais que o objectivo da responsável do Núcleo era a criação de um Centro de Design. Não era essa a minha ideia. No entanto, tudo o que eu fiz na altura foi um pouco nesse sentido. O meu relacionamento com o director do INII era muito bom. Foi sempre extremamente simpático e encorajador comigo, e ouvia-me com uma atenção que a minha juventude e falta de experiência normalmente não justificaria. Às vezes chamava-me para saber a minha opinião sobre assuntos da minha área. Mas ele não estava muito confiante no Núcleo. O Eng.º Magalhães Ramalho achava que havia falta de ânimo naquela estrutura. Ele dizia-me: «Vá para Londres, estude, que eu depois tenho grandes projectos para si». Gosto de pessoas que têm um sonho. Ele tinha. Mas quando regressei a Portugal, ele já não estava no INII. Tinha sido substituído pelo Eng.º Torres Campos, um tecnocrata… Outros tempos.”


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