Mistérios do Mar

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Os Mistérios do Mar

Escrito e ilustrado por: Ana Rita Mateus Inês Casimiro Inês Bem-Haja


Os Mistérios do Mar

Ana Rita Mateus Inês Casimiro Inês Bem-Haja

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CAPÍTULO I A vida era simples e mágica, até se tornar banal… De repente, as cores, a variedade de animais, de personalidades, de vida… Tudo se tornou monótono! Não havia nada que não se tivesse já visto. Eu necessitava de algo novo, algo espantoso, algo que me deixasse sem respiração. Demorou algum tempo até que a minha vida mudasse de ritmo. Antes de acontecer a trágica mudança, eu acordava, comia pequenos peixes e plâncton, convivia com os meus amigos e voltava a dormir. Foi então que conheci uma nova amiga. Ela era pequena e estranha. Um ser do outro mundo que não andava por aquelas águas. Quando a encontrei, pensava que estava a alucinar, pensei que fosse a minha mente a fazer jogos mentais com ela própria. Até que percebi que não estava doida. Era mesmo real, um ser vivo anormal, que eu nunca tinha visto, estava a pedir a minha ajuda para encontrar a sua população. Segundo o que eu percebi pela sua explicação, ela fazia parte de uma ordem de animais chamada Lophiiformes. Quando estes nascem sobem para a superfície e, ao amadurecerem, voltam para o fundo do oceano. Fiquei surpreendida por ser um fenómeno comum. E eu a pensar que dava importância aos pormenores, que tinha o dote de reparar no que os outros animais não conseguiam ver. Quando me fez o pedido, duas coisas passaram pela minha cabeça: o que é que eu sei sobre o sítio onde ela nasceu? Eu nunca o visitei, aliás dizem-me sempre para lá não ir. Como é que eu a posso ajudar? Por outro lado, eu sempre fui curiosa e estava desesperada para sair da minha rotina. Tendo em conta o peso de cada um dos argumentos, eu decidi ajudá-la. Porque não? Ela precisava de ajuda e eu queria conhecer algo novo. Acho que ambas ganharíamos. Então, assim fomos, numa aventura para o fundo do mar. Uma experiência que nunca mais se voltaria a repetir e que seria lembrada para sempre.

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CAPÍTULO II Uma coisa que nunca antes tinha reparado é que, quando se acaba de conhecer um peixe, é sempre constrangedor o primeiro contacto. Mas mesmo muito constrangedor! Aqui estava eu a ser simpática para um animal que nunca antes tinha visto e nem um obrigado me disse durante a viagem. Nem um! Nem que fosse para quebrar o gelo! Nesse momento, quando a minha indignação atingiu o pico, vi a sua pequena boca a abrir e a fechar como se tivesse alguma coisa para dizer. Hesitando para falar. - Hum… Obrigado, pela… - tossiu, para limpar a sua pequena garganta- pela ajuda… Eu não sabia muito bem o que dizer. “De nada” parecia muito simples e “não tens de quê” parecia muito formal. Por isso, sorri e acenei com a minha cabeça, tornando o ambiente ainda mais constrangedor. Uau, parabéns! Estava tão chateada comigo pelo que tinha feito, que nem reparei no saco de plástico que vinha, lentamente, contra a minha cara. - Ahahahah! - ria-se ela desenfreadamente. - Caramba… os humanos estão sempre a atirar coisas para o mar! Eles não sabem que aqui existe vida? – resmunguei comigo própria, enquanto, numa tentativa falhada, tentava tirar o plástico da minha cabeça. - Em vez de estares aí especada a olhar, porque é que não me ajudas? Finalmente, o meu stress acabou. Depois de ela ter contido o riso, num ato nobre, foi-me ajudar. - Se quisesses podias ter demorado mais tempo! - Desculpa, é que eu estava mesmo a adorar a tua carinha de desesperada… - A sério? Queria ver se fosses tu! E assim, com este exercício de confiança, passámos de estranhas a amigas. Partilhando a nossa vida, o nosso nome, que até agora não tinha sido revelado. Ela chamava-se Lina, e eu? Ainda não vos disse. Eu chamo-me Gina. Naquele momento, como achávamos que já tínhamos nadado muito, decidimos perguntar a algum peixe se já estávamos perto do fundo do mar. Foi aí que reparámos num solitário, sem ninguém em seu redor. Nem família, nem amigos. - Desculpe, sabe se estamos perto do fundo do oceano, sr…? - perguntou a apressada Lina. - Senõr Rodriguez. Perto do fundo do mar? Ainda falta muito até lá chegarem! - Desculpe se esta pergunta vai parecer muito pessoal, mas o que faz aqui sozinho? – questionei-o.

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- Desde a década de 80 para cá, os humanos têm vindo a pescar excessivamente a minha espécie, porque achavam que as espécies que viviam no fundo do mar se reproduziam tão rapidamente como as da superfície. - fez uma pausa para não desatar a chorar. Óbvio que este assunto era muito pessoal, e lá tinha eu de ter ido perguntar! - Quer dizer, pelo menos é o que eles dizem. – continuou num tom irónico. – E nem sabes o que é que eles fazem connosco! Mataram toda a minha família e amigos para fazer filetes, que segundo os humanos, são muito bons por não possuírem muitas espinhas e serem brancos. É que pelo menos podiam ter comido os meus primos, os peixes-vermelhos! Esses, quando se vai a ver, já são o dobro! – disse, troçando. Eu tinha medo de lhe perguntar como sabia tanto. Era impossível ele já ter vivido isto, senão estava morto e não estávamos a falar com ele agora. Como? Foi a questão que passou pela minha cabeça. -A desculpa deles foi que não sabiam que os peixes da nossa espécie apenas atingiam a idade adulta aos 30 anos e que podiam viver até 200 anos. Então, irresponsáveis como são, decidiram basear as nossas quotas de pesca naquilo que se conhecia sobre as espécies que viviam na superfície, que são de crescimento rápido. - continuou indignado – Foi assim que ficámos em vias de extinção!... Enquanto o Señor Rodriguez falava sobre o deplorável fim da sua espécie, eu reparei no fundo. O espaço que estava por detrás dele. Era miserável, não tinha vida. Os corais, que antes me aborreciam, tinham perdido a cor e estavam partidos, como se tivesse havido um forte tremor de terra que os tivesse derrubado. Aliás, eu estava a rezar para que tivessem sido causas naturais a provocar aquilo, mas da forma como ele falava sobre os humanos, receei que fossem estes os responsáveis por aquela catástrofe. Fechei a boca para esconder o meu espanto, ergui a cabeça e enchi o meu peito de ar para parecer maior, como se não ficasse assustada com a minha próxima pergunta. - O que aconteceu aos corais? - Ainda bem que me perguntas isso! As mesmas redes utilizadas para pescar os da minha espécie, por serem muito pesadas, são arrastadas pelo fundo do oceano levando com elas os corais e as esponjas que neles vivem. O que é muito preocupante, pois como os corais apenas crescem milímetros por ano, são necessários milhares de anos para que eles se regenerem na sua totalidade! - Vá, vamos. Eu quero-me ir embora. -disse a Lina impaciente. - Já estou farta de o ouvir. – sussurrou. Sinceramente, não me apetecia nada ir embora. Não o queria deixar sozinho. Ninguém merece... No entanto, assim fomos, fazendo a vontade à alteza!

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À medida que íamos para um ambiente mais profundo, a luz ia diminuindo, e eu sentia cada vez mais o batimento do meu coração, como se ele quisesse ter a certeza de que a adrenalina chegava a todo o meu corpo. Até que, de relance, vi uma sombra a passar perto de nós. Ao assustarmo-nos, os nossos sentidos ficaram mais apurados, eu queria ficar estática, mas conseguia ver nos olhos da Lina uma ideia maluca, que me avisaram para nunca fazer. Fugir... Eu pedi-lhe para estar parada e calma. Se fosse o animal que eu pensava… Já tinha ouvido mitos sobre ele! Toda a gente diz que é perigoso e o seu nome não ajuda. Ao aproximar-se, confirmei as minhas suspeitas. Era a lula-vampira-do-inferno! O seu corpo tinha um tom lilás morto, os seus olhos que eram azuis, ao olharem para nós, pareciam conseguir ver a nossa alma. Mais, tinha uma capa que juntava os seus oito tentáculos. Agora sim, eu percebia o medo que os outros animais sentiam! - Olá! Eu chamo-me Bela, mas podem-me tratar por Belinha! - diz ela como se já nos conhecêssemos há anos. - Não se assustem, eu não faço mal! Toda a gente pensa que sou perigosa por causa do meu aspeto. No entanto, eu sou como o que os humanos designam por “neve marinha”, que consiste numa mistura de corpos de animais em decomposição, detritos, fezes e resíduos biológicos, em geral, que são formados próximos à superfície e afundam a uma velocidade mínima, podendo demorar meses para chegar ao fundo. Ah, desculpem, estou a divagar. Quem são vocês? Para onde vão? - Eu sou a Gina e ela é a Lina. Nós vam… - Ah! Eu vivo aqui, mas já fui a todo lado. Já fui ao oceano Pacífico, ao Índico. A todos! Sou muito viajada! Sim, porque eu tenho família em todo o lado! Ainda no ano passado fui visitar a minha prima Nessi e ela até me deu um presente. Ah! Espera aí! Vou buscar! 6


Olhámos uma para a outra com o mesmo pensamento em mente. Era agora. Agora podíamos fugir sem ela descobrir. Apesar de ter sido em vão. - Olhem só para esta obra de arte! É o fóssil da minha tetravó! Como podem constatar, eu sou um fóssil-vivo. - O que é isso? – disse rapidamente para não ser interrompida e ela não mudar de assunto. - Um fóssil-vivo é uma expressão que os humanos utilizam para qualificar organismos de grupos biológicos atuais que são morfologicamente muito semelhantes a organismos dos quais há conhecimento no registo fóssil. Frequentemente, os fósseis-vivos pertencem a grupos biológicos que, no passado geológico da Terra, foram muito mais abundantes e diversificados do que atualmente. - Bem, nós temos que ir embora. - disse a Lina num tom desinteressado. - Vão para onde? Posso ir convosco? - Não!- respondemos as duas simultaneamente. - Quer dizer, eu só vou levá-la ao fundo do mar, não faz sentido tu ires connosco. - disse, depois de ter ganho a coragem para responder. - Tens a certeza? Assim fazia-te companhia no regresso para cá. - insistindo. - Não, a sério. Não precisas. Não dando margem para uma resposta, fomos, num desespero e com dores de cabeça, em direção do fundo do mar.

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CAPÍTULO III Chegámos! Chegámos àquilo que parecia o fundo do mar. Era escuro e tinha alguns animais luminosos. A Lina, ao vê-los, pensou que tinha encontrado a sua família, nadando o mais rápido que alguma vez a tinha visto fazer. Era fantástico, a cada dia que passava, ela ficava mais impaciente e mais forte, totalmente diferente de como a tinha conhecido. Embora tenha encontrado um animal que produzia luz, não fazia parte da sua família. Era fino, transparente, longo (quase interminável) e parecia frágil. Claramente, as suas espetativas não tinham sido correspondidas. - Olá! - disse. - Olá! – e, para meu espanto, não foi só um ser a responder, foram milhares! Pareciam um exército! - Quem são vocês? Era tanta gente a responder, que não entendi a resposta de nenhum deles. Foi então que se decidiram organizar e, um deles, que dizia ser o especializado em porta-voz, decidiu falar: - Nós somos uma colónia, e somos da Ordem Siphonophorae. - O que é isso? –perguntei curiosa. - Uma colónia é o nome dado a uma relação ecológica intraespecífica, em que um grupo de organismos da mesma espécie forma uma entidade diferente dos organismos individuais. Em quase todas as colónias, incluindo a nossa, cada organismo especializa-se numa determinada função necessária à colónia. - E cada um de vocês é um quê? - Nós somos zooides, organismos multicelulares. E cada um de nós é especializado numa determinada função, por exemplo, tal como eu sou especializada em porta-voz, há outros que são especializados na reprodução, na propulsão, em apanhar e digerir o alimento. E acrescentou: - Para apanhar as nossas presas algumas das minhas colegas lançam uma cortina de tentáculos, constituídos por células que produzem químicos letais, que capturam qualquer coisa que nela tropece. - E a organização em colónia é vantajosa, certo? – perguntei, estupefacta. - É claro! A organização em colónia permite-nos possuir especialização celular, que conduz a uma diminuição da nossa taxa metabólica e a um aumento do nosso aproveitamento energético. Para além disso, a nossa especialização celular já é tão elevada, que não conseguiríamos viver isolados. Mesmo que quisesse, já

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não me podia livrar destes! – disse o porta-voz, largando uma gargalhada. Todos os outros zooides se manifestaram. Tentei focar-me naquilo que o pequeno zooide me dizia. Mas não conseguia desprender o meu olhar daquela luz avermelhada. Era tão mágica! E, como se porta-voz tivesse lido os meus pensamentos, voltou a falar: - Não querendo parecer convencido, outra particularidade dos seres da nossa espécie é o facto de sermos um dos dois únicos animais capazes de produzir luz vermelha! O que não quer dizer que não haja outros animais a produzir luz! Pelo contrário, a maior parte dos animais apresenta luminescência nestas zonas profundas. Ou produzem luz verde ou azul. A conversa continuou com a típica pergunta da Lina “Já chegámos?” para tal a resposta era sempre “não” e, farta de ouvir sempre a mesma coisa, olhei em redor, para a escuridão que cada vez mais se acentuava. Foi então que comecei a sentir que estávamos a ser observadas. Voltei a olhar, agora com olhos de ver, à procura de mais detalhes e reparei num peixe a nadar lentamente por baixo de nós, com os olhos na nossa direção. Era diferente, como todos aqueles que conhecemos até agora. Subitamente, ele pára, põe-se numa posição vertical e nada velozmente, como se nos fosse atacar. Perante esta ameaça, não consegui reagir, fiquei estática a olhar para os seus enormes olhos verdes. Como era possível? Podia crer que, há poucos segundos, tinha visto os seus olhos no topo da sua cabeça. No entanto, eles estavam agora na parte da frente da sua cara. Quando viu o meu olhar fixo no dele, começou a fugir. - Ei, ei, ei! Volta aqui! Que pensas estar a fazer? – disse Lina, muito indignada. É em momentos como este, que dou graças ao Deus das raias por fazer os adolescentes muito rebeldes e destemidos. Sem ela, a esta hora, estava no papo daquele peixe. - Eu estou a fazer pela vida! – responde ele, como se comer animais inocentes fosse o mais normal do mundo. - Estás a fazer pela vida, comendo-nos! Não tens vergonha? - O quê? Nada disso! Eu não vos ia comer, ia tirar sem permissão alguma da comida da Siris. – e depois acrescentou, dirigindo-se à Siphonophorae – Eu tenho filhos para criar, não me castiguem… - Agora percebo porque é que às vezes nos desaparece comida miraculosamente… Mas que não se volte a repetir! – exclamou o porta-voz . O porta-voz da Siphonophorae e o estranho peixe, que entretanto tínhamos descoberto ser da espécie Macropinna microstoma, continuaram a conversar, agora de uma forma amigável. Mas nada do que eles expressaram foi registado pelo meu cérebro. Estava demasiado interessada numa pergunta que me tinha surgido e sobre a qual eu não conseguia chegar a nenhuma conclusão. Estava a intrigar-me tanto, que decidi verbalizá-la: 9


- Como consegues resistir ao tão poderoso químico produzido pelas células da Siris? - Para que te possa explicar isso, acho que devo primeiro explicar-te o meu processo de alimentação. - É impressão minha ou estes peixes cá das profundezas não se calam? -sussurrou Lina para mim. Como é claro, mandei-a calar. Era uma falta de educação! O Pina, sem sequer imaginar o que Lina tinha acabado de dizer, continuou a falar: - Normalmente ando calmamente a nadar pelas águas, olhando para cima com os meus olhos tubulares em busca de uma Siphonophorae. Desculpa, Siris. -disse o Pina, esboçando um sorriso. - Quando capto a sua presença, os meus olhos rodam-se apontando para a frente enquanto eu rodo o meu corpo de uma posição horizontal para vertical, para me alimentar. Como as Siphonophorae apresentam esse tal químico que tu referiste, e muito bem, eu utilizo esta cúpula transparente e cheia de fluido por cima dos meus olhos para os proteger dele. É uma adaptação de génio! - É sim senhora… - respondeu a Lina, secamente. Conseguia ver pela sua cara, que já estava farta de ali estar. Decidi então despedir-me de ambos e seguimos viagem.

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CAPÍTULO IV Será que foi uma boa opção ter embarcado nesta aventura? Sinceramente, não sei. Já não tenho tanta confiança na minha resposta inicial. A partir do momento em que o estado da minha saúde se agravou, comecei a ver o verdadeiro inferno por detrás desta viagem. Gradualmente o meu cansaço aumentou, a minha respiração, que antes me vinha de uma forma natural, tornou-se aflitiva. Como quando somos arrastados pela maré e, por consequência, obrigados a lutar pela nossa vida fora de água. Lina ao perceber-se dos meus sintomas perguntou: - Queres parar durante uns segundos? - Sim… - respirei fundo. - Pode ser… - disse enquanto me encostava numa rocha. Aqui estava eu a pensar que ia ter o descanso merecido, quando reparei que Lina se estava cada vez mais a afastar. Será que estava a fugir? Não. Ela estava virada para mim, com uma cara de preocupada. - O que se passa? - perguntei. Ela não respondeu, apenas me olhou com uma cara de medo. Uma cara que me fez questionar se aquele seria o meu último dia no oceano. Não foi assim que pensei ir, sempre pensei que fosse quando tivesse mais idade. Quando fosse bisavó e tivesse tido tempo para ver os meus filhos, netos e bisnetos a crescer. Olhei em redor para tentar perceber o que estava a acontecer. Foi então que reparei que, ao longo do tempo, me tinha afundado. O pânico instalou-se e “socorro” era a única palavra que saía da minha boca. - Agarra-te à minha barbatana! - dizia Lina ao chegar-se mais perto de mim. Mais uma vez Lina, reunindo forças dentro de si, conseguiu salvar-me. Depois do susto, olhei para onde me tinha afundado e, surpreendida, exclamei: - Isto é um peixe! Não me conseguia controlar… Como um peixe? Da maneira como me sugou, mais facilmente seria um buraco negro do que um peixe! “Respira fundo”, lembrei-me. Era sempre o que a minha mãe me dizia para me acalmar. Após o meu momento zen, decidi seguir o caminho racional da questão e perguntar-lhe que coisa estranha era aquela que ele tinha como corpo. - Desculpe, pode explicar-me o que acabou de acontecer? - disse, desconfiada. Para meu espanto, o estranho peixe, quando ia para responder, começou a gritar: - Ahhhh! Dois extraterrestres! Acudam-me! – disse o peixe, em pânico. Havia apenas duas hipóteses que poderiam explicar o que acabou de acontecer. Ou eu era ainda mais feia do que pensava e tinha chegado ao ponto de ser confundida com um extraterrestre, ou o peixe era maluco de todo! 11


-Tenha calma, senhor! Só estamos à procura do fundo do mar! – disse Lina, enquanto se ria da situação. - Oh meu Deus! Os extraterrestres vão destruir o fundo do mar! -Não é nada disso! Vou-lhe explicar tudo. – respondeu outra vez Lina. – Eu pertenço à espécie Melanocetus johnsonii, que vive no fundo do mar. Nesta espécie, a fêmea, após a fecundação dos seus óvulos, liberta os ovos numa fina folha de material gelatinoso, que flutua livremente no mar até que saiam dos ovos pequenas larvas. Após a eclosão, estas dirigem-se para a superfície para se alimentarem de plâncton. Foi nesta fase que conheci a minha amiga raia, que se disponibilizou para me ajudar a encontrar o caminho de volta para casa. Como podes ver, não tens razões para te exaltar! - Realmente… Desculpem-me, fui muito desagradável! – admitiu o peixe. - De qualquer forma, tenho boas notícias. Estão mesmo muito perto do fundo do mar! Finalmente, as palavras que Lina esteve à espera de ouvir durante toda esta viagem! -Bem, então acho que devíamos ir nadando. – disse Lina, entusiasmada. No entanto, uma força interior dizia-me que devia ficar ali e ouvir um pouco da história daquele peixe. Ele parecia-me tão triste e sozinho… Decidi então reunir todas as forças que tinha e agarrar Lina para que ela não tivesse qualquer hipótese de fugir. - Bem, parece-me incorreto irmo-nos embora sem sequer saber um pouco da história de quem nos ajudou. - Pois, bem! Eu sou o Bob e sou um blobfish (peixe-gota). Tal como já deves saber, visto que te deste ao trabalho de o experimentar, tenho um corpo gelatinoso, que me permite suportar as elevadas pressões destas profundezas. - fez uma pausa e depois continuou. -Pode parecer que não, mas o meu corpo até é bastante vantajoso… Por exemplo, como tenho uma densidade menor que a da água, consigo flutuar sem gastar muita energia e ingerir o material comestível que se atravessa à minha frente sem muito esforço.

- Brutaaaaal! – disse a Lina, mostrando algum entusiasmo pela primeira vez. – Se eu fosse a ti, Bob, juntava os teus amigos da tua espécie e fazia um festão todas as noites! Já viram? Uma festa com Blobfishes trampolins!? O quão divertido seria!? Mas, para meu espanto, Bob não se riu da tentativa de graça de Lina. Pelo contrário, ficou ainda mais triste. -Pois, mas para isso era preciso que os peixes não se assustassem comigo. Pareço um monstro… - Porque dizes isso? – perguntei. - Os peixes da minha espécie foram eleitos pelos humanos, numa iniciativa da Ugly Animals Preservation Society em 2013, como os animais mais feios do 12


mundo. Eu soube há pouco tempo, que esta iniciativa tinha o intuito de chamar a atenção para espécies ameaçadas, mas é sempre triste quando nos classificam por estas razões… Sem saber o que dizer, apenas lamentei a falta de sensibilidade dos humanos e assegurei-lhe que de feio, não tinha mesmo nada. Assim, não tendo mais nada para dizer, continuamos a nadar, à procura do já próximo fundo do mar…

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CAPÍTULO V - Eu sinto, eu sinto! – gritou Lina. Como podem imaginar, a estas profundidades, a escuridão já é tão acentuada que nem uma tubarão branco dá para ver à frente. E, como é óbvio, eu nem sequer poderia imaginar do que se tratava. - Oh meu Deus! Ainda bem que não sou a única! Eu não me queria queixar mas também sinto dores por todo o corpo… É na cabeça, é nas costas, é na cauda, é n… - respondi, com toda a minha sinceridade. - Oh rapariga, cala-te! Não é nada disso! Eu sinto que cheguei ao meu habitat! NÓS ESTAMOS NO FUNDO DO MAR! -Tens mesmo a certeza, Lina? Já não é a primeira vez que dizes isso… -Sim! Desta vez não estou enganada, o instinto diz-me que sim! De repente, a Lina petrificou. Olhava para algo atrás de mim com tal intensidade, que nada desviava a sua atenção. Fiquei apavorada com o que poderia estar atrás de mim. Seria o tão conhecido Pé Grande do fundo dos mares? A criatura lendária que assustava raias crianças e não as deixava dormir há séculos? Subitamente, os meus pensamentos, que eram monstruosamente maturos e lógicos, cessaram. Não porque tenha ganho juízo, mas porque Lina desatou aos gritos. -OLHA ALI, OLHA ALI! É uma fêmea da minha espécie! Aquela fêmea em nada se parecia com Lina. Mesmo tendo as mesmas feições e o mesmo tamanho, esta fêmea apresentava não só uma barbatana caudal, mas cinco! Rapidamente concluí que, embora pudessem ser de espécies que divergiram há relativamente pouco tempo, definitivamente não pertenciam à mesma. Portanto, decidi avisar Lina, antes que ganhasse ainda mais esperanças. - Eu não te queria mesmo desiludir, Lina, mas aquele peixe que passou não me parecia nada ser da tua espécie… Olha bem para aquela quantidade de barbatanas! - Oh Gina, vê-se mesmo que não sabes nada sobre a minha espécie! - disse Lina, entre gargalhadas. – Não são barbatanas! São machos! -Como assim machos?! – perguntei, estupefacta. - Vou-te explicar... A minha espécie tem um método de reprodução muito pouco frequente. Para além do macho ser muito mais pequeno e completamente diferente da fêmea, em termos de aparência, quando atinge a idade adulta, o seu sistema digestivo degenera, impossibilitando que este se alimente sozinho. Assim, para que consiga sobreviver, ou encontra uma fêmea que lhe disponha alimento, ou morre de fome. Para se agarrar à fêmea, o macho utiliza os seus pequenos e bicudos dentes que, ao morder a pele da fêmea, liberta uma enzima que funde a pele da sua boca com a do corpo dela. Desta forma, os seus vasos sanguíneos ligam-se, passando a fazer parte de ambos os seres. O macho fica

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assim confinado a viver o resto da sua vida com a fêmea, vivendo como uma parasita. - Uou! Estou a ver que quem manda na tua espécie são as mulheres! Acho muito bem, a poliandria está a entrar em desuso… Temos de a trazer de volta! – e, fazendo um grande esforço para não me rir, acrescentei – Curiosidade: sabes dizer-me até quantos machos pode uma fêmea carregar? - Ao mesmo tempo, pode carregar até seis! – disse Lina, orgulhosa da sua espécie. – Pode parecer muito bizarro, mas este método de reprodução permite assegurar que, quando a fêmea entra na época de reprodução, tem um parceiro imediatamente disponível. Estava cheia de inveja! Como seria possível que houvesse espécies que brilhavam no escuro, fossem praticantes de poliandria e tivessem uns dentes espetacularmente assustadores, e outras que eram simplesmente achatadas? Era tão injusto! E assim continuei com os meus devaneios durante mais algum tempo. No entanto, a certa altura, apercebi-me de que ainda não tinha respondido a Lina, e decidi virar-me para o fazer. Mas ela não estava lá. Ela não estava em lado nenhum! Procurei debaixo das rochas, procurei nas águas envolventes, procurei em todo lado! Mas nem sinal dela. O que lhe teria acontecido?

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CAPÍTULO VI E esta é a história de como cheguei às profundezas, uma história que, embora alegre, também me trouxe muita tristeza. Deu-me a alegria de poder aprender, descobrir e ver coisas que mais ninguém viu e, por outro lado, a tristeza de perder alguém. Desde o desaparecimento inesperado de Lina, que não consigo deixar de me sentir abandonada e sozinha… Queria tanto encontrá-la! Mas tinha de me conformar, ela tinha seguido com a sua vida e, agora, eu tinha de seguir com a minha. O primeiro passo era libertar-me do passado e, para isso, precisava de me focar no presente. -Foca-te no que te rodeia, foca-te! – repeti. Ao respirar fundo, começo agora a aperceber-me de todas as luzinhas, que os animais em meu redor, produzem. Luzes que me fazem lembrar as estrelas, a cintilar no céu de uma noite escura de lua cheia. Que lindo! Era lamentável o facto de estes animais não poderem ser vistos com mais frequência e apreciados por toda a gente. Como é possível produzirem luzes tão brilhantes? Eu entendo a bioluminescência e para que serve. Entendo que é a produção e emissão de luz por um organismo vivo, e que se usa para comunicar ou para avisar os animais de que se devem afastar. Mas não entendo porque não a tenho. Porque é que eu sou tão banal. Porque é que não posso ter luz, em vez de estas simples pintas amarelas. Eu era a raia mais estranha que vivia nas águas superficiais. Não pela minha aparência, mas pela maneira como pensava. Os outros peixes limitavam-se a viver com aquilo que tinham, não tinham ambições, não se interessavam pelo novo. Eu era o oposto. Eu era a aventura em corpo. Mas, às vezes, até a aventura se cansa de aventurar. E eu já ando a precisar de uma casa, da minha casa. Que saudades que sinto de estar lá, de ver os meus amigos, de voltar a ter a mesma rotina, de quando a luz refletia no mar, da cor dos corais, da variedade de animais! De todos os pormenores... Quero tanto voltar! Quero a minha vida de volta! Mas o que é que me impede? Enquanto me estava aqui a lamentar, podia muito bem voltar para trás, voltar para onde pertenço. Afinal de contas, não precisava de me preocupar mais com a Lina! Pelo que parece, a nossa amizade foi apenas temporária, existiu enquanto ela precisava de encontrar a sua população. Está decidido, vou-me embora. - Calma… - disse para mim própria. Estou a começar a sentir uma dor de cabeça enorme, que me abala a cabeça... Será que isto é um sinal? As luzes dos peixes, que antes eram nítidas, estão agora desfocadas… Estou a ver tudo turvo e a andar à volta. Não sei como é que vou voltar para casa neste estado... O que é que vou fazer agora? 16


- Anda, tu consegues! - grito, baixinho, de forma a aumentar a minha autoestima. – Tens que voltar! E, assim, começo a nadar o mais que posso. Não estou a reparar no que está a acontecer à minha volta. Se calhar já passei por todos os peixes que conheci, se calhar já estou perto. À medida que vou mais para cima, a minha respiração começa a melhorar e mais oxigénio chega aos meus pulmões. Os meus olhos, que antes me doíam de tanto os esforçar, estão… mais leves. -As minhas dores de cabeça pararam! - digo, sentindo um grande alívio. Sentia-me como se tivesse renascido! De repente, paro, olho à minha volta e reparo em tudo o que me é habitual. Estou em casa! Finalmente estou em casa a mirar a lua cheia. Aquela lua cheia, que brilhava com tanta intensidade, que me parecia estar a dizer: ”Bem-vinda de volta!”

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CAPÍTULO VII (Ponto de vista da Lina) Não era este o desfecho que planeava para a nossa história. Mas não havia outra hipótese, eu precisava incessantemente de me conhecer, de conhecer os meus. O problema era que, quanto mais nadava e me afastava de Gina, mais sozinha me sentia. Não havia ninguém por perto. A comunidade gigantesca, pela qual eu esperava ser recebida calorosamente, não existia. Foi então que percebi que não queria esta vida solitária para mim. O que me faria realmente feliz era continuar a minha jornada com Gina, a minha única amiga. Tinha de voltar para trás! Ainda sabia o caminho de volta, não haveria problema. - Por favor, que ainda estejas aqui! – rezei, enquanto procurava por Gina, naquele escuro labirinto. Eu procurei e procurei, por todo o lado, por onde ela ainda poderia estar. Até que a vi de relance. Era ela! Não se tinha ido embora, tinha esperado por mim! Poderíamos continuar a nossa aventura. Era o que mais queria neste mundo! Olhei para ela com mais atenção, e percebi que estava a dormir. Era compreensível, depois de tantos quilómetros a nadar. Depois, toquei-lhe para a acordar. - Gina… Gina… - disse. No entanto, como não obtive resposta, vi-me obrigada a levantar a voz. – Gina! Gina!! – gritei. Novamente, não me voltou a responder. Foi aí que me surgiu uma ideia assustadora: Estaria ela morta? Fui ver se estava a respirar… Negativo. Ela não respirava. Ainda tentei com que ela voltasse para mim, mas não consegui. Estava em choque… Não me conseguia mexer… A única coisa que fiz foi ficar abraçada à minha amiga, a chorar a sua morte. -Como é que isto foi acontecer? Nós íamos ter mais aventuras como esta, nós… nós… Lembro-me de tudo o que aconteceu na nossa aventura, de todos os peixes que conhecemos, de tudo o que aprendemos, de todas as nossas brincadeiras, de todos os nossos segredos… Quando ainda nem tinha conhecido Gina, um peixe centenário disse-me estas sábias palavras: ”O passado não morre. O passado nem sequer passa”. Nessa altura, não assimilei bem aquelas palavras, não as entendi. Mas, agora, faziam todo o sentido. Não ia ser fácil esquecer a minha amiga, aquela que aceitou ajudar-me a encontrar a minha casa, mesmo não me conhecendo de lado nenhum, mesmo sabendo que não conseguiria aguentar a pressão destas profundidades. Ela tinha a determinação, a generosidade e a coragem que eu nunca irei ter.

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FIM

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ANEXOS:

IMAGENS REAIS

Estado Larval 1 de Melanocetus johnsonii

Estado Larval 2 de Melanocetus johnsonii

Estado Adulto de Melanocetus johnsonii

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Macropinna microstoma

Hoplostethus atlanticus

Psychrolutes marcidus

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Ordem Siphonophorae

Vampyroteuthis infernalis

Taeniura lymma

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