Zine isso é só literatura vol 02

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Isso ĂŠ sĂł literatura batata sem umbigo


Zine “isso é só literatura #02. Foto de capa: Marylise Vigneau; ensaio feito em um hospital psiquiátrico do Paquistão


Imago Rolou para o lado e saiu do casulo. Seu corpo todo suado e um medo crescente trazido pela luz do mundo ali fora. Não conseguia distinguir se acordara de um sonho bom, ou se adormecido, adentrara em um pesadelo. O corpo estranho pulsava, sentia medo e não conseguia desgarrar das cobertas. Antes se encontrava em terreno seguro e confortável, a vida era mansa, e os dias transcorriam com leveza, tudo estava em seu lugar e em ordem. Mas, agora, tudo parecia ser tão opaco, quase que irreal. Apercebeu-se que há muito tempo não se movia e foi esticando os membros um a um. Uma centelha de alívio invadiu sua cabeça, como que no meio da testa, entre seus olhos... Como se sentisse seu corpo por inteiro pela primeira vez. À medida que o corpo esticava e as articulações estalavam, uma crescente tensão irradiou de seu peito agora arfante, uma dor que começou fraca, se intrometeu na mente e aumentou; câimbra motora avassaladora, contração e constrição – cólica do eu. Teve medo de morrer enquanto lembrava o calor afável do enrolar da cama. Era feliz, sabia disso, e sentia-se completo. Agora o mundo todo se fazia de formas diferentes de antes, linhas curvas e outras tantas retas e tudo colorido. Vozes. Sons mecânicos e aves. Que mundo era esse onde mal conseguia ouvir sua própria voz? – onde o mundo era só seu. “EU” (?) E se lágrimas rolassem e pudesse voltar atrás, desfazer o tempo, desfazer seus movimentos? – Mas lágrimas não lhe saiam mais, na realidade, seus olhos estavam bem abertos e as pupilas dilatavam conforme se acostumava à luz. Sentia dor, mas seu coração freneticamente batendo parecia jorrar seu sangue para fora do corpo, estava se arrebentando por dentro, mas, no fundo, sentia um prazer cômico, como que advindo de um lado de sua personalidade que dizia que a dor ia parar quando ele se acostumasse; pois a dor era parte de sua vida agora, e isso não era ruim. Aos poucos, seu corpo se fez leve, e todo o peso que concentrava em si migrou para um ponto indeterminado das costas, era o seu peso do mundo, o peso que iria carregar de agora em diante. O peso era o mundo e o mundo


também era ele. Parado, concentrou sua respiração, controlando o ar que entrava e saia do peito, não iria morrer, entendeu isso e, descartada essa possibilidade, tentou organizar as ideias que desdobravam em sua cabeça. Tudo parecia girar ao encontro daquilo que tinha sido e naquilo em que se transformara. Inexorável. Essa palavra surgiu-lhe na cabeça corrompida por uma sensação de vazio. Não se muda aquilo que já foi, mas se muda mesmo assim, e essa ideia da permanente mutação, que parecia ser o que estava vivendo naquele instante, encheu-lhe de alegria, uma alegria levemente adocicada – quanto de espera cabe na palavra esperança? Notou que não estava pensando coisa com coisa, adiava assim seu próximo passo, pois ainda suas mãos agarravam fortemente os trapos que antes o envolviam, quanto tempo ainda permaneceria nessa mesma posição? A mente parecia toda repleta de coisas novas que não compreendia, e o esforço de tentar entendê-las lhe causava mais confusão, sentiu uma iminência de choro, e dessa vez chorou por inteiro, o corpo todo se estremeceu e se entregou sem nenhuma piedade a todas essas coisas que não conseguia organizar no pensamento. O corpo tomado de lágrimas escorria e pingava, e continuava, mais e mais, até subitamente parar. Com grande esforço, soltou uma das mãos cerradas na coberta e alisou seu rosto molhado e salgado. Gostou do conforto do carinho autoimposto, era como que redescobrir o prazer do toque, o tato. Enrijecia ao passar a mão liberta pelo pescoço e pelo peito, as dobras dos sovacos sentindo leves cócegas. Entregou-se a uma risada pura, até que mais uma vez algumas lágrimas rolaram, só que causadas pelo espanto da gargalhada. Ouviu sua voz. Voz que, louco em seu medo inicial, pensou não possuir mais. Podia falar, podia então gritar. E como se preencheu de prazer ao dar seu primeiro grito, como um uivo que traz aos ouvidos algo que se encontra entre o terror e o desejo. Tomado de uma coragem então descoberta, firmou as pernas com um enlace dos panos e, entre pequenos gritos e espasmos de humor meio débil – como as risadinhas de bebês quando recebem cócegas vagarosas na


barriga –, esticou os dois braços em busca do vazio e balançou o corpo. Fechou os olhos para apenas sentir o movimento. Mais rápido, e mais rápido ainda... não tinha mais como se segurar por causa da velocidade que atingira. Soltou-se, esticou as asas, que eram para ele o peso do mundo, bateu-as sem saber como. E antes mesmo de encontrar o solo, voou inteiro.




julia

Vênus em pelos Marte em couro bebendo sempre o sangue de outro Anima latente que me desanima e me deita em puro transe desejante E me abusa! Foge de mim Me faz capaz de te laçar Vampirona Me faz tua zona erógena, sagrada tua confusão Não desejo mais do que a intensidade do cosmos sem a responsabilidade dos deuses Vampira Suave violência Dilacerante afeto e doces entranhas Morde meus lábios Arranca meus olhos Retorce minha espinha Sei lá!!!! Me leva pro hades Me dá um rolê Me tira daqui E eu te levo onde você quiser Tenho rotas sagradas de brilhante loucura E de tanto falar Já nem sei onde estou Meu sonho se realizou Você sugou todo meu Sangue



julia

Por esse amor transitório, improvisado e marginal Eu caio Ou melhor Eu me jogo Pulo Me esculacho No passo cigano Eu sigo no engano É um passo alado Descuidado Entre olhos e achados Eu me permito Enganar-me por você Doce Vida Doce Eu lambo os lábios Eu caio Ou melhor Eu me jogo Pulo Me esculacho Assim eu me gasto Em você Por inteira ser Você em mim Eu em você Seguindo em engano Em prazer Eu caio Ou melhor Eu me jogo Pulo Me esculacho Garanto o estrago Sem tragos desperdiçados Eu caio Ou melhor Me jogo Eu pulo Eu me esculacho


Tenho conversações que talvez só ocorram daqui a vinte anos, quando eu encontrar a pessoa certa, aquela que eu criarei, digamos, quando chegar o tempo apropriado. Todas essas conversas ocorrem em um terreno baldio que está ligado à minha cama como um colchão. Certa vez dei um nome a este terrain vague: chamei-o de Ubiguchi, mas não sei por que Ubiguchi nunca me satisfez. Era inteligível demais, muito cheio de significação. Seria melhor deixá-lo apenas como terrain vague e é o que eu pretendo fazer. As pessoas pensam que o vazio é o nada, mas não é assim. O vazio é uma plenitude discordante, um fantástico mundo superpovoado no qual a alma sai em reconhecimento. Trópico de Capricórnio (Henry Miller) – 1938

Cena do filme “Tão longe, tão perto” de Wim Wenders (1993)



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