Babel Poética 2 - Local

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BABEL POร TICA Nยบ 2 | abril/maio 2011

R$ 0,00 - VENDA PROIBIDA

LUGARES ONDE SE PASSA A

VIDA


BABEL Poética

Ano I, n.º 2 – abril/maio de 2011 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais.

MINISTÉRIO DA CULTURA Secretaria de Políticas Culturais ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA João Maurício de Araújo Pinho | Presidente REDE DE REVISTAS PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO Sergio Cohn e Elisa Ventura | Coordenadores Rita Ventura | Produtora Luana Villutis | Coordenadora de rede Filipe Gonçalves, Elisa Ramone e Lilian Diehl | Assistentes de Produção REVISTA BABEL POÉTICA | babelpoetica.wordpress.com Ademir Demarchi | Editor | ademirdemarchi@uol.com.br | Santos/SP Amir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | amir_brito@yahoo.com.br | Belo Horizonte/MG Daniela Maura | Assistente de Edição Gráfica | danimaurasan@gmail.com | Belo Horizonte/MG Paulo de Toledo | Revisão | paulodtoledo@uol.com.br | Santos/SP CONSELHO EDITORIAL Ademir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC)

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Adalberto Muller (MS/RJ), Ademir Assunção (SP), Ademir Demarchi (PR/SP), Alexandre Brito (RS), Antonio Vicente Seraphim Pietroforte (SP), Berimba de Jesus (BA/SP), Carlito Azevedo (RJ), Carlos Felipe Moisés (SP), Cláudio Portella (CE/SP), Claudio Willer (SP), Dirceu Villa (SP/Londres), Edson Bueno de Camargo (SP), Eduardo Sterzi (RS/SP), Elisa Andrade Buzzo (SP), Enzo Potel (SC), Fabiano Calixto (PE/SP), Fabio Romeiro Gullo (SP), Fernando José Karl (SC/PR), Francisco Alvim (MG/DF), Fuzzil (SP), Joca Reiners Terron (MT/SP), João Filho (BA), Jorge Henrique Bastos (PA/SP), Juliano Garcia Pessanha (SP), Luana Vignon (SP), Lucia Bettencourt (RJ), Madô Martins (SP), Marcelo Ariel (SP), Marcelo Sahea (RJ), Marcelo Steil (SC), Márcio-André (RJ/Lisboa), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Marcos Siscar (SP), Marco Vasques (RS/SC), Mardônio França (CE), Natanael Gomes de Alencar (SP), Nelson Capucho (PR), Paulo Franchetti (SP), Poeta de Meia-Tigela (CE), Régis Bonvicino (SP), Reynaldo Damazio (SP), Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR), Sérgio Vaz (SP), Solivan Brugnara (PR), Valdemir Klamt (SC), Wilmar Silva (MG), Ylo Barroso Fraga (CE)

CAPA Fotografia de Eliana Borges – SP/PR - “carto+grafias[subjetivas]” 2005/2007 [Rua Tiro Naval, Santos-SP] GESTÃO DO PROJETO Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência www.projetocamara.org.br Rua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira Mar CEP 11040-020 São Vicente –SP AGRADECIMENTOS Expressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos. IMPRESSÃO E DISTRIBUIÇÃO Programa Cultura e Pensamento/MinC

IMAGENS Daniel Escobar detalhe de As Cidades e o Desejo,2009 p. 2 www.danielescobar. com.brrEliana Borges p. 7, 10 Fábio Morais do livro Fábio Catador (Dulcinéia Catadora, 2011) p. 14, 51 http://fabio-morais.blogspot.com/ Elisa Campos da série Observatório p. 20, qualquer lugar lugar nenhum p. 33, 35, 37, 39 http://www.elisacampos.net.br Tales Bedeschi xilogravuras da série Onde começa o céu p. 24. www.talesbedeschi.blogspot.com Michel Zózimo da série Filatelia de Lugares Imaginários p. 28, 47, 63 Tony de Marco São Paulo No Logo p. 43. http://www.flickr.com/photos/tonydemarco/

VINHETAS Amir Brito Cadôr e Daniela Maura

TIRAGEM 10 mil exemplares - Distribuição Gratuita – Venda Proibida CORRESPONDÊNCIA Ademir Demarchi / BABEL Poética Rua Espírito Santo, 55, apto. 36 CEP 11075-390 - Campo Grande - SANTOS – SP


Esta publicação foi selecionada entre os projetos que se inscreveram no Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais. Foram escolhidos quatro projetos, e desta forma contemplamos quatro revistas culturais bimestrais cujas tiragens, somadas, chegam a 240 mil exemplares. O objetivo desta iniciativa é estimular a criação de publicações culturais permanentes, e de alcance nacional – não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo. Ao patrocinar este projeto, a Petrobras reafirma, uma vez mais, seu profundo e sólido compromisso com as artes e a cultura em nosso país – confirmando, ao mesmo tempo, seu decisivo papel de maior patrocinadora cultural do Brasil. Desde a sua criação, há pouco mais de meio século, a Petrobras mantém uma trajetória de crescente importância para o país. Foi decisiva no aprimoramento da nossa indústria pesada, no desenvolvimento de tecnologia de ponta para prospecção, exploração e produção de petróleo em águas ultra-profundas, no esforço para alcançar a autosuficiência. Maior empresa brasileira e uma das líderes no setor em todo o mundo, a cada passo dado, a cada desafio superado, a Petrobras não fez mais do que reafirmar seu compromisso primordial, que é o de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Patrocinar as artes e a cultura, através de um programa sólido e transparente, é parte desse compromisso.

CULTURA E PENSAMENTO é um programa nacional de estímulo à reflexão e à crítica cultural. Desde sua primeira edição em 2005, seleciona e apoia projetos de debates presenciais e publicações. O objetivo do programa é dar suporte institucional e financeiro a iniciativas que fortaleçam a esfera pública e proponham questões e alternativas para as dinâmicas culturais do país. Em 2009, o Programa abriu a terceira edição dos editais para financiamento de debates e de periódicos impressos de alcance nacional. Os editais são abertos a propostas de intelectuais, pensadores da cultura, artistas, instituições e grupos culturais, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros agentes, visando à promoção do diálogo sobre temas da agenda contemporânea. O projeto de revistas do Programa Cultura e Pensamento busca ofertar gratuitamente conteúdos de elevada qualidade a um público amplo e diversificado de leitores, através de uma rede de circulação formada por 200 pontos de distribuição em todo território nacional, entre eles instituições culturais, universidades e pontos de cultura. Ao longo dos 24 meses o projeto prevê o lançamento de 20 títulos, cada um com 6 edições bimestrais, totalizando a circulação gratuita de 1.200.000 exemplares de revistas com discussões sobre arte e cultura, oriundas de diversos estados do país. A rede abrangerá mais de 200 colaboradores editoriais de cinco regiões e 19 estados brasileiros. A edição 2009-2010 do Edital de Revistas do PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO tem patrocínio da Petrobras e é realizada pela Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa. Este projeto foi contemplado pela seleção pública de revistas culturais do programa CULTURA E PENSAMENTO 2009/2010



Lugares Onde se Passa a Vida


EDITORIAL

Lugares onde se passa a

E

sta segunda edição de Babel Poética tem como tema o local. Em desdobramento ao tema da edição 1, “Poesia na Era Lula”, os poemas foram selecionados buscando-se o registro que os poetas brasileiros fazem dos lugares onde nasceram, moram, transitam. Seguindo a proposta de mapeamento da poesia nacional, com presenças regionais, há poetas de todo lado, com os mais variados registros, que vão do urbano ao rural, da metrópole ao interior, da praia à fronteira seca, da cidade à floresta e até mesmo à pura fantasia, pois num dos poemas pode-se ir do Pátio do Colégio à Praça do Árabe de Ouro em Veneza através de uma parede lateral. A vida urbana das grandes metrópoles brasileiras refletida nessa poesia transparece a tensão da miséria, da droga e do convívio de estranheza com o outro, às vezes tratado não a palavras, mas a pauladas – assim como o populismo getulista ecoa na Era Lula, um poeta também avisa: Portinari não morreu. Numa metrópole como São Paulo, um morto pode passar horas na via pública. No interior, ele ainda fica dentro da casa, aberta como um templo. O interior pode ser o cachaprego, mas também pode estar ligado via satélite e ser ele mesmo uma metáfora do próprio eu poético. Se no interior o corpo se perde na imensidão dos espaços, a ponto de se sentir saudade do ronco de um motor e de um pneu opressor sobre o peito, na metrópole ele parece não encontrar sequer ar, sendo um parasita que habita uma barriga de um monstro orgânico. A metrópole é, assim, para um, um monstro orgânico, para outro um zôo – os parasitas daquele são neste os pastores de ternos curtos, os políticos pederastas, os punks apáticos, vistos por um pipoqueiro que sabe das coisas. Nessas paisagens desses locais, em meio à desgraça de um alagamento um sofá de putas pode deslizar rio abaixo, personagens esquisitos como um Zé Pilintra

vida

ou homens tetra-pak perambulam ou brigam, a sorte pode ser lida da mão ao tarô, bastando, para isso, a ilusão. Mesmo a cidade planificada se transforma em mausoléu e museu. Mas brilha na face caipira. Um pequeno mugido de festa pode surgir numa história cosmológica do boi, em meio a Jão Travoltas, sempre dispostos a destrinchá-los em pedacinhos: outro poeta lembra que se está em Fodaleza. O mar de um nordestino dessa Fodaleza se encontra com o mar sulista de um catarinense. No meio, uma favela de Cubatão queima como o Inferno de Dante. Outra inesperada favela branca, de europeus pobres, se imiscui do Sul nas paisagens dos poemas, o Trianon se liga com o Capão, a canção do exílio ecoa a própria terra em que se está, que não é de ninguém. O efêmero desses lugares é como uma sombra: até mesmo o local da foto da capa já não existe mais tal como foi registrado, pois após a visita da artista Eliana Borges a Santos, na intervenção que ela fez naquele lugar com uma espécie de agulha de acupuntura gigante, em que BABEL a acompanhou, houve uma reforma uniformizante até na cor e aquele local visto e registrado deixou de ser. Efêmero se combina com ambíguo, enquanto se alterna de berçário para esquife: para a poesia, impregnada da negatividade que a potencializa como poesia, este país não existe e não presta ao mesmo tempo e não porque ela seja ambígua, mas porque o próprio país e sua história é que o são pois, como registra um poeta, trata-se de um país em que os portinaris não morrem, o populismo é persistente, assim como ele não decide, na passagem de 40 anos de um episódio histórico, se ele foi uma “revolução” (31 de março) ou uma “piada” (1º de abril), realizando banquetes sobre fantasmas de montes de ossos de desaparecidos. Transitando na corda bamba entre o ambíguo e o transitório, são nesses lugares que se passa a vida.


Nelson Capucho (PR)

[nasceu e vive em Londrina-PR; poema do livro HO.MI. NI.MA.LIS, Londrina, Atrito Art Editorial, 2002; mais em http://www.londrix.com.br/colunas.php?colunista=2]


Juliano Garcia Pessanha (SP)

CORPO-EM-GHEGADA (BORACEIA)

Para meu primo, Alberto Bonanomi

Eu morava numa catacumba branca que era um hotel de Nova Iorque. Pela janela via passarem esquifes velozes, prateados e blindados. A mulher comigo era um cubo-de-espelhos. Ao falar fabricava névoa e névoa e seu sexo era um videotape. Quando a quarta sinusite começou a martelar as minhas têmporas (acompanhada de uma secreção esverdeada), fugi até um litoral esquecido e rolei na areia de uma praia imensa. Arrastado por ondas e correntezas, boiei horas olhando as estrelas nascerem. Ao sair do mar, vigiado por um surfista pasmo, o ferrão de uma abelha inaugurou meu corpo – doravante ele tinha um lugar e uma casa.

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema de Instabilidade perpétua, Ateliê Editorial, 2009]


Berimba de Jesus (SP)

(...) ter razão sem correr riscos entrecortando cores entrosando sonhos quentes entestando pessoas justificando a fase da foto tornando a cidade com suas luzes e sombras perfeita às urgências da rua (...) pelas ruas, olhares fundos riem à toa, me sinto contra todos. não é meu – mas a grosso modo, quem tem razão se vivemos em guerras?

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema do livro Encarna, Annablume, 2008; mais em htttp://berimbadejesus.blogspot.com]


Solivan Brugnara (PR)

VILA DIAS É uma favela paranaense favela branca, de europeus pobres com um pouco do marrom terra dos caboclos. Lá e em todo o oeste e sudoeste do Paraná a cultura gaúcha encontrou-se com a do caipira. E quando culturas se encontram espera-se choque, divisão ou amálgama. Nas não houve embate nem o gaúcho e o caboclo mesclaram-se culturalmente somente desenvolveram uma coexistência única O paranaense singularmente adotou como sua duas culturas que continuam distintas e puras dentro dele em uma dualidade tão natural que nem é percebida. Nos velórios da Vila Dias o caixão fica dentro das casas sala aberta como templo. Reverenciado pela curiosidade o morto como um santo no oratório decorado com coroas de alumínio cujas flores cheiram a tintas esmaltadas. Conversas, chimarrão, rezas e choro fermentam num bolo sonoro salgado com suor. Percebe-se em alguns um certo sentimento de triunfo festivo os vivos sentem-se vitoriosos perante a morte. No bar, música embriagada e a vizinha assiste à novela porque na Vila Dias a morte é cotidiana e a morte sem os dramas das mortes dos semideuses da classe media a morte é comum, doméstica é parte da vida não causa traumas. Gosto de artemistificar a morte Compará-la a quintais abandonados. Porque vejo na briga de galo entre a guaxuma e o picão renitência do sempre renascer.

Da inútil na insistência de florir sua flor feia e dissonante sua flor desperfumada. Sempre que vejo quintais abandonados sinto vontade de ser novamente o menino que via revoada de rainhas vestidas Com asas nupciais em dias de sol e chuva juntos que enluarava telhados engrutava porões paradificava guarda chuvas cachoeirizava torneiras e savanizava quintais abandonados. Do meu brincar sem nunca individualizar sem nomear, sem especificar todas as formigas eram formigas. Assim nada morre tudo continua, se um gafanhoto morre não importava os gafanhotos não morreram outro igual nascia e o pedaço era reposto. Meus soldados também eram renitentes morriam e renasciam como gaxumba. Só a perca era uma espécie de morrer e o achar ressurreição. Outros quintais abandonados Em outros lugares são só quintais abandonados Quintais oníricos São os quintais de Quedas Quintais com guaxuma e picão que reencarnam.


SOBRE QUEDAS [DO IGUAÇU] E DIGRESSÕES Os Polacos ao chegar fatiaram araucárias construíram com este lenho puro imaculado suas casas. Católicos martelavam com vigor porque sabiam que neste lenho puro imaculado não tinha as mãos de Jesus. A araucária não tinha o pecado do cedro. Neste tempo as ruas de Quedas mudavam de plumagens ao ano no verão áspero pó vermelho no inverno uma nupcial neblina. Mas dos eslavos e capivaras e pinheirais da comunidade mítica desta primeira dentição de madeira restam apenas algumas casas apodrecidas. Hoje as ruas são práticas e cinzas e prédios matemáticos feitos de cimento e cálculos. porém em suas calçadas de hexágonos sem mel aparecem índios vendendo balaios sua solidão lembra que esta cidade quando vista de um alto ainda parece uma destas cidades perdidas na mata. Não gosto do sabor insosso das linhas retas. Artificialidades, não gosto de artificialidades. Gosto de Gaudí que fez o frio concreto cometer excessos cometer luxúrias. Já a voluptuosidade de Niemeyer é uma voluptuosidade seca, estilizada. voluptuosidade tem que ter exuberância. seus edifícios parecem esterilizados, sem germes.

Não confio em lugares que não tenham germes lugares santos são cheios de germes a beleza é sempre cheia de germes. Porém a artificialidade não é desumana a artificialidade é algo racional portanto mais humana que a exuberância. A exuberância esta sim é algo mais animal mais artística. Os bares de Quedas são os nascedouros das lendas a cachaça com ervas e lascas de sassafrás e um santo daime, um peiote. O Orixá Mário de Andrade desce como espírito santo a linguagem entra em transe peixes tornam-se monstruosos e em quantidade milagrosas os tiros são mágicos e matam uma onça mitológica e o caçador e o cavalo da anta morta no êxtase, na língua do sonhar. E alguém imita um polaco coro de risos. Das livrarias gosto da livraria de seu João heroicamente agarrada ao passado um carrapato agarrado ao ano de 1967. Mesmo o jornal do dia se comprado na livraria do seu João já sai um jornal cinquentenário e muito mais sábio que o mesmo jornal comprado na outra esquina. Já é um jornal para ser guardado uma relíquia uma peça de antiquário.


POEMA AO RIO IGUAÇU Rio represado domado pela inflexível posição marcial do concreto. Rio com hora marcada, espera contido, espera angustiado a hora de fluir feliz por entre estas vaginas metálicas. Meu rio de margens indefinidas, e às vezes litigiosas. Iguaçu de pouco peixe que lança lambaris aos pescadores como quem joga moedas ao mendigo da praça. Rio importunado por projetos, urbanizado pela pouca poesia das casas de veraneio. Enquanto pesco à sombra de um outdoor da Severo Materiais de Construção, penso que teu caule passa aqui, mas tua rosa flor branca abre-se em Foz do Iguaçu e lembro do dia que levou vilas e pontes inclusive a zona do Chopim-Dois. Foi-se o sofá das putas deslizando rio abaixo. Adeus sofá das putas sentirei saudades.

[nasceu e mora em Quedas do Iguaçu-PR; mais http://pergaminhosolivan.blogspot.com]

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Márcio-André (RJ/Lisboa)

BALEIA aqui do estômago desta baleia a cidade é um cardume cintilante e a estátua de drummond tem as costas ao oceano – [as estátuas são para os homens não para o mar] cultivar um peixe por dentro para um dia comê-lo esperando uma mulher surgir da precisão da ossada um dia somos felizes em nosso jardim cetáceo e ela caminha suavemente ao meu lado sonhando o domingo mais triste do mundo no subúrbio do lado de lá um dia estamos na meia idade e bebemos porque não há opção

o rio é o contorno de uma outra cidade que não é o rio e mesmo s. paulo poderia ter outro nome e ser outra cidade disfarçada nas mesmas ruas desde a métrica [vascular] dos viadutos ou o aro retrátil nas luzes desta prisão que se chama espaço: nenhuma outra vida ou cidade pode se cumprir além dessa [não se pode ser jovem em outro lugar] sobra o caroço-adorno de um semáforo relíquia única de única memória

e o guindaste no cais estará esmagado como um inseto morto diante das mil falhas na goela das águas

uma

mulher nua para cada lugar onde se esteja –

duas

cidades sonhando-se mutuamente

o mar está na foto dos homens não no sonho das estátuas

quando não estamos dentro todo edifício almeja leveza de paisagem

por um animal todo-feito de tetra-pak que se devora enquanto se move esse animal-caligrama que transpassa o alfabeto através do corpo e a imundície da rua através do tempo usina de merda contra as mil falhas tectônicas do céu mesmo a morte faz mais sentido quando fodemos usina de força gerando forças contrárias uma pedra sobre a mesa tem mais alma q um rinoceronte a lograr-se no ladrilho das placas ou ainda esse ordinário que vive das coisas complexas: o dia a dia alternando suave os terrenos baldios a ordem das casas os vagões de trem

[nasceu no Rio de Janeiro-RJ e mora em Lisboa, Portugal; mais em http://www.marcioandre.com]

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Marcelo Sahea (RJ)

CLEC PÔU FFFFFF

CASA

Desce a Praça do Perigo dobra na Av. São Medonho e chega na Rua da Tensão

carro corpo abrigo cama igreja umbigo nuvem casco estrada quem o que faz a sua morada?

Vai pela Rua Por um Triz desce a Rua Bala Perdida e vai dar na Praia do Arrastão Pega a Medroso da Silva desce a Av. Calculista e dobra na Santa Aflição Após o Parque Já Era pegue a saída da Rua Perdeu desce a Rua Paranoia siga pela Rua Aiaiai desça à direita na Rua Ai de Mim e cai na Desconsolação

barraco ponte mansão cova casaco papelão palafita ventre cela quem casa quer asa ou janela? cabana caverna tenda quartel pensão fazenda hotel castelo praça você se sente em casa em casa? concha iglu toca favela kit oca semente ovo ap a casa se sente em casa com você?

Desce na Estação Corre-Corre sai no Viaduto Santa Manha e chega no Coração na Mão Sobre a Delirantes pega a Av. Presidente Imprudente e sai na Av. Vacilão Do Viaduto do Presunto corta a Rua Coronel Tô no Céu até avistar o Minhocão

[nasceu no Rio de Janeiro-RJ; poemas do livro Nada a dizer, [e]/Annablume, 2010; mais em poesilha.blogspot.com]

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Francisco Alvim (MG/DF)

PIORA

BRIGA

Adotou um gatinho que ia visitar toda a semana no asilo de gatinhos velhinhos Quis procurar o dono do cavalo cabisbaixo fincado nas quatro patas que via todo o dia na beira do trilho quando passava no trem Uma vez quase desceu de sua sala para falar com o mendigo da praça dono de um cachorro mais estropiado do que o admissível cujo sofrimento era o dele cachorro e o dela

Nunca fui com tua cara nunca escondi eu sou franco me dê tua mão quando nos conhecemos te cumprimentei assim a mão mole homem cumprimenta duro era um insulto você devia ter percebido sou filho família não quer dizer que seja rico pra não passar fome já domei burro passei dois anos sem rir chorando escondido eu que sou alegre se teu pai está com câncer o meu está com enfisema e se você quer saber papai vai morrer

[nasceu em Araxá-MG e mora em Brasília]

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Eduardo Sterzi (RS/SP)

ESTRANGEIRO

PAÍS

Nunca estrangeiro o bastante Segunda-feira, janeiro, ninguém acorda [porque] Ninguém dorme

Isso que chamamos “amigos” e às vezes perdemos porque o repuxo os carrega sempre mais para o fundo: para antes das ondas, onde dormem os peixes; para depois da memória, onde morrem duas vezes

Todos estão mortos O dragão que os devorou é um dragão mudo Mímica e ensaios de fuga no interrogatório

(nenhuma resposta, nunca, satisfatória)

O estrangeiro (nunca o bastante) traz na carne (a só bagagem) a única lei inflexível desta cidade: a lei de um rosto desfeito a marteladas

– isso desfaz-se sombra que a luz do farol atravessa.

§

Isso que é tábua de solidão a que nos agarramos quando falta o chão e, náufragos, sonhamos com terra – isso é quase um país. Mas esse país não existe. Esse país não presta. 31 de março – 1.º de abril 2004

[nasceu em Porto Alegre-RS e mora em São Paulo-SP; poemas do livro Aleijão, 7Letras, 2009]

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Adalberto Müller (MS/RJ)

VERDADE, MATO GROSSO UNIVERSAL A Joel Pizzini Um boi pasta sob um céu de estanho. Não cresce a terra para o céu: O horizonte é interminável No deserto verde de pasto Um boi e um menino existe: O boi ruminando capim O menino ruminando palavras.

ÉPURA Já não estou mais onde nasci nasci onde nunca estive e hoje vivo na fronteira dos ventos na linha imaginária que sobrou entre os marcos Invisíveis de um mundo que se move.

[nasceu em Ponta Porã-MS e mora no Rio de Janeiro; mais em http://lisuff.wordpress.com/]

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Sérgio Vaz (SP)

MORRO DAS NUVENS (JD. LEME) No coração das nuvens a pátria se esconde atrás da cortina de madeira. Mas os homens, das casas simples e almas bravias, mantêm as portas abertas e as vidraças limpas para o deleite do amanhecer. Ferida aberta, a vida – essa nuvem passageira cortada em fatias – deixa sempre a parte menor pra quem acorda perto do anoitecer.

[mora em Taboão da Serra-SP; poema de Colecionador de Pedras, Global Editora, 2007; mais em http://www.colecionadordepedras1.blogspot.com/]

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Mardônio França (CE)

O POETA DO MAR

para os argonautas de chico buarque para glauco leandro e ítalo sou filho do mar é o mar que me rege o mar e seus cabelos que tem raízes na lua sou filho do mar é o mar que me impede suplico sair dessa ilha salgada, sagrada(?) cercada de criaturas ferozes fogueiras redes raios raios que parta que ferozmente - ele - a terra - nessa luta deixa meu sangue que corre e que não cai ou não-estaca nessa pedra que carrega a terra nessa pedreira nessa luta dessa terra assustadora terra terrível terra e de onde vem o terraço terra e o terreno quero o mar quero ver o mar na sua total-maresia sou filho dele sou filho das sereias dos argonautas quero o mar sou filho do mar quero a escola de sagres quero o barco dos fenícios quero iansã e iemanjã, as minhas mães quero o mar os botes as canoas sou filho do mar por esses olhos que seguem o meu sangue o meu mar as minhas armaduras do mar que sou que estou e desesperadamente jangadas caravelas barcos 18

o barco o bardo o todo torto dançante dançar - imitação das marés o mar o mar o vento o mar o mar quero o mar e não quero trafegar tenro está de estático quero o movimento do mar que é libertação me perco no mar nos açudes nas cachoeiras quero fugir para Titã - que lá encontraram o mar o mar de saturno o mar dos enamorados do amor amar amaré do mar de marte mar manso e revolto mar do mar que não somos donos que a lua cairá no pranto do mar nos fins do tempo no dia do amor entre Terra e Mundo e Mar e Lua enamorados sou filho do mar e quero me salgar, com seus cardumes seus peixes estrelas-do-mar gaivotas o peixe-do-mar. camurim - peixe - amar.

[mora em Fortaleza-CE; mais em http://www.corsario.art.br]


Ademir Demarchi (PR/SP)

DE UMA CIDADE QUE CORROEU A FLORESTA outono as árvores expelem folhas como caspa nas passarelas urbanas de magérrima beleza o silêncio urde esquifes nos troncos às ruas falta ar como asma a solidão suprema do inverno, maringá todos tentando preencher o vazio que ficou da floresta nas ruas nuas o grito terrificante de vida prometido pelos ipês roxos e amarelos na primavera os flamboyants agonizando cor ao lado da discrição contida das sibipirunas

VENTO DO DIABO para gilberto mendes o noroeste é morno como bafo de diabo vento de saci sopra pra todo lado crispa o mar de manchas brancas desenhando gaivotas mas enquanto venta não há sinal de ave nenhuma guará, pomba, garça, bem-te-vi todas somem não se sabe onde as árvores sempre plácidas se contorcem como se quisessem se livrar de algo - um espírito ruim que delas se aposse vindo de dentro embora é de fora que assopra a paisagem se crispa e se altera até na cor o ar se enche de areia fina que voa e a tudo penetra recobrindo móveis e o que esteja estático como fuligem ou cinzas vindas da chaminé do crematório de corpos da vila belmiro ou de aço de cubatão

o mato anunciando flores ignoradas pela rudeza dos olhares esquizos que passam alheios em seus sentimentos fendidos ancorados em corpos que se arrastam como esquizeáceas plantadas

[nasceu em Maringá-PR e mora em Santos-SP]

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Edson Bueno de Camargo (SP)

ORGÂNICA a paisagem urbana se amarra ao por do sol em cabos elétricos e postes luminárias de fogos ardentes ao tomar ares de nave espacial venusiana os fios costuram o céu em armações e nervuras como capilares sanguíneos que se enredam por toda cidade onde sangue de elétrons transportam movimento e números as construções buscam a luz competem em devorar horizontes dia a dia jardins estéreis da babilônia recobrem a terra ao infinito muralhas sem reboco babel que nunca termina devora cimento virado nas calçadas em manhãs de domingo fome insaciável de pedra e cal e lajotas vermelhas que nunca cobrem suas vergonhas a cidade é orgânica monstro vivo e cada vez mais lento e somos os parasitas que habitam a sua barriga

[nasceu em Santo André-SP e mora em Mauá–SP; mais em http://umalagartadefogo.blogspot.com]

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Ylo Barroso Fraga (CE)

ÉTER, HETEROGÊNESES “Cidade flor ou z,” Carlos Emílio C. Lima Para Cecília Bedê

uma cidade e suas têmporas exangues um hiato e depois uma brecha bêbada insinua-se para um longe de cães vadios quase e passa a se vingar são vinte que aquecem o passo aquece teu passo eu aqueço o passo na cidade é minha cidade silêncio moído com brio doía no peito uma lágrima algazarra dos anjos em debandada furor entrópico dos gestos corpos que não chegam a se formar na minha cidade e suas cidades de corpos de pelourinhos que ainda transpiram e patíbulos que ainda sangram e pedaços de cidade ajuntados nos vestígios de selva invisível e uma beleza que é como o tempo e esvai-se em tinta e é minha cidade e não sabe se sonha ou acordada refaz o mito de si

heterogêneses ainda tijolos ainda matéria dessedentando o éter seus cavalos suas tropas as volúpia encarcerada já quase derrama no furor entrópico dos gestos é minha cidade de açúcar e alumínio e do veloz outro acorrentado como a dama da notícia à solidão de um nome esquecido na entranha solidão de parágrafo reptiliana múltipla como um pomar um poema é minha cidade nossa cidade nossa andorinha aquece teu passo e me acha outra vez que ande com a cidade acompanha o andor ele cresce e caminha é a cidade a fórceps

[mora em Fortaleza-CE; poema de tris, Editora Corsário, 2008; mais em http://www.corsario.art.br/]

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Cláudio Portella (CE/SP)

TODOS CANTAM SUA TERRA TAMBÉM VOU CANTAR A MINHA Sou um homem desesperado andando à margem do rio Ceará. Sou um homem com Glauber Rocha na cabeça e uma câmera na mão. Andando fico à margem de minha terra: Fodaleza. Terra nos olhos da lente. Só filmo planos gerais. Planos. O hospital de saúde mental Mira y Lopes. Ando pelas ruas e tudo de repente é novo para mim: a Aldeota, a grama, o meu caso de amor, a estação da estrada de ferro Fodaleza-Caucaia um dia de manhã. Minha terra tem coqueiros onde canta o Vento Aracati. E uma água com gosto de infância. E um poço. E eu menino. Como posso agora cantar minha terra estando tão longe-perto dela. Como posso eu e essa miséria louca descobrir destruir as ruínas de lar. Citação: não teremos destruído nada se não destruirmos as ruínas.

UNIVERSAL Chove Chove, o cheiro da terra molhada Só o cheiro da terra molhada é universal O cheiro de terra que sinto agora no Nordeste eu o sentiria em Pequim Nem a chuva é universal Só o cheiro da terra é universal A terra que carrego nas unhas A terra em que se plantando tudo dá Nem a terra é universal Só o cheiro é universal O poema que carrego nas costas Nem ele é universal Escrevo para os meus pares O agricultor rural que masca fumo e bebe pinga no mercado Só o cheiro da terra molhada é universal Nem as lágrimas são universais Só o cheiro da terra molhada Chove

[nasceu em Fortaleza-CE, mora em São Paulo-SP; poemas de Fodaleza, 2009 e As vísceras, 2010, Expressão Gráfica, Fortaleza; contato: clautella@ig.com.br]

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João Filho (BA)

NOTURNO DO VALE DO CANELA O corpo agitado da cidade em seu individualismo heterogêneo sob o crepúsculo chuvoso; o fluxo metálico do trânsito; a idêntica miséria dos passantes e dos pedintes; a hora escura dentro e fora que imperativa pendula seu peso vivo; o ângelus ao longe, e algum demônio em sua gravidade patética, no topo do prédio, vigia; na luz confusa deste tempo semi-líquido, a certeza cruel nada diz, mas muito expressa: a vida empobrece e crispa-se de frio, que agora sopra mais agudo e no seu vir traz a noite completa. Sabe quem a atravessa que a casa, a mão meiga, a ceia, o imperceptível Arcanjo, que por entre a multidão passeia, têm pouca serventia de consolo ou escudo.

Neste viaduto sobre o vale, quando a chuva mais se adensa, aproxima-se do parapeito, quando a treva é mais intensa, e o vôo sem asas é quase aceito. O coração com os seus caminhos aéreos nunca repousa em satisfações, quantas vezes queda em negativas indagações. Com o trânsito a multidão escoa, um cão se encolhe num canto ou é uma pessoa? Aceitar o conflito contínuo que a vida respira, mesmo quando a luz dos postes bate nula contra a noite, a chuva, a desesperança.

Tão seco e terrestre nesta solidão sem Deus, bale e bale contra o próprio muro. Ouve a lógica desesperante do eco pelos vazios corredores do corpo, que insiste no provisório e no acidental.

[nasceu em Bom Jesus da Lapa-BA; mais em http://www.voosempouso.blogspot.com/]

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Fuzzil (SP)

TIRANDO ONDA

TRIANON

O Capão é Redondo O Jardim é das Rosas Irene Magdalena Fica bem próximo.

Longe das ruas de terras Do Capão conhecido Dos becos e vielas Lugar onde vivo

O Valo é Velho Santo é Eduardo Campo é Limpo Salve, São Marcos. A Vila é das Belezas Três Estrelas... Fernanda, Ângela e Rosana.

Longe do Parque Fernanda Longe do gueto querido Longe do Parque Santo Dias Eis me aqui... Na Paulista Longe de casa... Só Longe da amada... Ó No Parque Trianon. Cercado de árvores brisa na face Enquanto escrevo meus versos Os pedestres passam.

No Morro Canta Galo Horizonte é Azul Embu das Artes Embu Guaçu. Pira... Jussara Santa é Tereza.

[mora no Capão Redondo-SP; mais em http://fuzzil.blogspot.com/]

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Paulo Franchetti (SP)

TRÊS 1. Na estrada cheia, Em breve, cada um acenderá as luzes – Centenas de estrelas em fila, Retas constelações moventes, Cercando a nebulosa da cidade Sob um céu de chuva. 2. Sobre a neblina, o sol Espalha seu calor inútil. Uma lata de leite, virada com o pé, Mostra a parte de dentro. Ela quase brilha, Atingida pela luz difusa. 3. Pela janela, As colinas cobertas de casas. Na do avô, A noite descia como uma tampa, Apagando as frutas e os cães que vagavam No meio do pomar. A luz aqui vem do chão, quando anoitece, E lança a sombra dos prédios Para dentro do céu cinza.

[nasceu em Matão-SP e mora em Campina-SP; poema de Memória Futura, Ateliê Editorial, 2010; mais em: http://www.unicamp.br/~franchet/]

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Lucia Bettencourt (RJ)

Canção do exílio De quem é a terra? Minha não é, mas tem palmeiras, tem coqueiros, tem roça de cana. De quem é a terra? Dele também não é, mas tem pé de café, tem madeira de lei, tem soja, feijão e trigo. E, como se não bastasse, nessa terra que não é minha e dele também não é, tem passarinho cantando, tem sabiá na palmeira, tem curió e araponga. E como se não bastasse, nessa terra que não é dele e minha também não é, tem poeta poetando o tamanduá bandeira, e as onças pantaneiras. Quando eu morrer, essa terra há de ser minha, ou eu é que vou ser terra: roxa, prá cafezal, massapê, pra canavial, ou mesmo um barro vermelho sem qualidade nenhuma, servindo, talvez, de abrigo, na parede de um mocambo. Quando ele morrer, sete palmos dessa terra hão de ser dele, e o exílio se repetirá: exumação.

[nasceu e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em http:// www.nadanonada.blogspot.com/]

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Marcelo Ariel (SP)

VILA SOCÓ LIBERTADA (depois do fogo) no outro dia (sem poesia) as crianças (sub-hordas) procuram no meio do desterror botijões de gás para vender um menino indianizado encontra uma geladeira pintada por Pollock dentro o cadáver de uma grávida incinerado com a barriga estourada a mão do feto devorato (por Saturno) atravessa as tripas sai para o fora do fora ali ao lado onde o silêncio do menino é calmo (a quietude neutra avalia o inconsolável) um jornalista – a cem metros do projeto caminha (a câmera-sombra focando um canto) atrás dele um rapaz que julga ver nos escombros um Lázaro ele corre e ao agarrar um braço o braço vem junto e ao ser largado no ato por um instante entre o chão e o espaço é fotografado pelo pai de um dos meninos do gás na foto revelada: uma realidade desfocada (sem mortos, vivos ou paisagem) tudo é uma névoa-nada. [nasceu em Santos-SP e mora em Cubatão-SP, mais em www.teatrofantasma.blogspot.com; www.ouopensamentocontinuo.blogspot.com]

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Carlos Felipe Moisés (SP)

Conversa de botequim Vá pedir ao seu gerente que pendure essa despesa no cabide ali em frente. Noel Rosa Encostar a barriga no balcão do boteco antigo : rabode-galo, torresmo, pernil, prosa fiada, sem perigo. O pernil tá bom demais, tá coisa fina, ô gente boa! Embrulha aí o que sobrou, que eu vou levar pra patroa. Filar um cigarro, bater a ponta na unha encardida. Vai mais uma? Agradecer, obrigado, eu já tô de saída. Não saber se o cara ao lado é bandido, irmão, algoz : a humanidade que sobrou em cada um de nós.

[nasceu e mora em São Paulo-SP]

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Marcos Siscar (SP)

INTERIOR VIA SATÉLITE Começar de dentro, do interior, de onde as coisas começam. Onde terminam sua elipse vertiginosa. O interior é o fim da partida, é o começo da volta. Sair como quem volta, voltar como quem sai. A ficção viagem. Estar perto da própria coisa não está longe do extravio. Veja as mãos do adolescente, suando frio, sem saber virar as páginas de um livro. O interior é o lugar do extravio, lugar não se fica. Que lugar é um lugar onde não se fica? É o limite, o limite é interior. Do interior, se vai. Como de pequenas cidades, you know you have to leave. Não se fica, no interior se chega, do interior se vai, aonde se chega, no interior não se fica. Areia, cabra, pedra, e grito, mas não se fica.

A ficção origem. A ficção precisa ser cultivada, memória aparada, mentira amparada, piedosamente. Velha história, morno ludíbrio da literatura. Interior é a ficção, a terra. O interior é bem real, é a terra, um chão onde cair. Ter onde cair, morto, é motivo de partir. Interior. Se for pra partir, quero que seja para não deixá-lo. Interior é onde tudo começa, como forma de não se deixar cair. Quem nunca caiu de uma árvore, precisa de segurança? Quem já se jogou de uma árvore, conhece a dor da queda? Meu silêncio me trai. Apago os parênteses. O interior é síncope. Você não reclama, não pede, não aceita, não fica, não arreda o pé. O interior se fecha, se oferece. Carrapicho, áspera misericórdia.

O interior se trai. Só realiza, quando se trai. O exterior das coisas é quando o interior se trai. Por isso, não há exterior puro, poesia pura, aquilo que não se trai. Não há silêncio que não se traia. No interior, as coisas ressoam ocas. Nada para se ver. Aqui só se ouve a coisa oca soar. Um barco enferrujado soa, devolvido pelo rio, debaixo da amoreira.

[nasceu em Borborema-SP e vive em Campinas-SP; poema publicado na revista Modo de Usar & Co. 1, 2007]

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Madô Martins (SP)

RAÍZES

Moro numa cidade com nove canais que garças sobrevoam. Nessas veias abertas corre o mar. Moro numa ilha, que é também um porto, boiando no Atlântico. Moro no Sul e jamais migro. Procuro mensagens em garrafas, na areia da praia, mas só encontro conchas e maresia.

[mora em Santos-SP; contato: madomartins@yahoo.com.br]

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Jorge Henrique Bastos (PA/SP)

Trazes uma floresta dentro de ti Aguardas o encontro colérico das águas e inauguras a viagem, a vaga do verbo eleito trama a sua rota, ecoa na explosão que arrasta o olhar. O barco transportando terror atravessa o delta esquecido da língua, ventos póstumos escavam o fóssil da voz longínqua a murmurar ainda. Crescem urzes na linguagem que abandonaste, sorves a clorofila da palavra tempo e inoculas em ti mesmo o veneno. Escoa a maré que ajudaste a gerar mas nenhum porto aceita a tua âncora. Inflama o pus que recebeste como dádiva na voragem da manhã coagulada. Trazes uma floresta dentro de ti a tremer alucinada, plantando estátuas de pânico sobre o charco onde procuras teus ossos e o silêncio cumpre o seu exílio. Abres uma clareira no poema: o abismo.

[nasceu em Belém do Pará-PA e mora em São Paulo-SP; mais em http://amargemdaletra.blogspot.com/ ]

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Natanael Gomes de Alencar (SP)

A PEDRA Uma criança joga uma pedra, a pedra, lenta, vai encontrando pássaros, fagulhas de relâmpago, sons de aviões a jato, gritos fragmentados com escuros traços, gritos de alegria com claros entornos, e a pedra vai fazendo uma parábola, parando um instante a que um matemático/físico tire fotos, posando para um poeta antes de ser mais uma em meio ao caminho, imaginando que possa atingir o espaço infinito antes da curva final, a pedra curva o ar com destino ao rio da minha aldeia cubatense, e quando atinge a flor da água vai em câmera lenta pelas pétalas dos peixes, peixes bronzeados, com barrigas de tanquinho de óleo e águas servidas, antes de atingir o leito do rio, a pedra sente o fluir das moléculas estrangeiras, o frescor dos restos que negaceiam a boca dos predadores, chegando ao fundo num cansaço extremo de quem já viveu tudo.

[nasceu e vive em Cubatão-SP]

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Elisa Andrade Buzzo (SP)

ÔNIBUS ENTALADO acidente feio no cruzamento na mudança de trajetória motorista e cobrador decidem o sexo dos anjos o ônibus não passa por debaixo da ponte os passageiros gatos pingados correm sério risco de vida eu não me importo (nem se chego ou não) a mão de niemeyer com o mapa da américa latina lembra meu coração sangrento

Ondulações No entortado da letra forjo a cidade em palavras mata-borrões. Mancha gráfica é a cidade que imprimo fora de cores na noite. No limite negroazul entre ela e a madrugada, os autos não respeitam os sinais no horizonte. Cada buraco, cada reentrância oscilante – fratura no asfalto – na qual indiretamente me deito e logo depois sou alçada. Um observador externo certamente veria as gorduras das bochechas e dos peitos tremendo. Sobressai minha caligrafia tremida sobre a noite amortecida; ressaltam-se sinais, rugas, sulcos gelatinosos. Na velocidade da luz noturna, o ônibus bóia no espaço, sou parte dessa estrutura que levita. Ele sobe tão rápido que minha escrita se descompassa, as fachadas de metal das lojas tornam-se um risco cinza de grafite definitivo. Escrevo as cenas que desabrocham na noite, como as camélias brancas desprendem um aroma doce e enérgico. A tentativa de reter essa fragrância é inexpressiva. Na noite quente de primavera, grilos esperneiam – e a cidade omite os insetos nas verduras. A escuridão fresca absorve a tinta da caneta: papel-chupão. Existe um momento na madrugada paulistana em que o atrito se desfaz das ruas. E as letras escorrem tranqüilas e macias.

[nasceu e mora em São Paulo; poema do livro Notícias do lugar algum - Noticias de ninguna parte, publicado no México pela Limón Partido, em 2009; mais em http://caliope.zip.net]

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Fabio Romeiro Gullo (SP)

O(M)NIBUS no ponto (de ônibus) um pneu círculo galvanizado pára úmido ferramenta de levar gente de ponto a outro no espaço (ligue os pontos e terá a cidade) eventualmente a ferramenta esmaga um corpo no asfalto

[nasceu e mora em Santos-SP; mais em http://fabioromeirogullo.blogspot.com/]

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Carlito Azevedo (RJ)

PARAÍSO

INFERNO

Foi quando a luz voltou e vimos o rosto da jovem que se picava junto à mureta do Aterro, a camiseta salpicada, a seringa suja. “Nenhum poema é mais difícil do que sua época”, você disse em meu ouvido sem que eu soubesse se era a ela que se referia ou se ao livro que passava das mãos para o bolso da jaqueta. Distinguimos lá longe a Ilha Rasa, calçamos os tênis e seguimos sem atropelo sentido enseada.

povres fameletes povres hospitaulx povres gens V. Villon Você a reconheceu como sendo a menina coreana da Central de Fotocópias do Catete aquela com camiseta salpicada presilhas fluo mureta e hipodérmica pendente do braço e me abraçou e me olhou com um olhar que me atravessava e ia atingir atrás de mim bem lá na frente no bazar futuro dos dias no meio das bugigangas espelhadas, espalhadas um outro crepúsculo cinza uma outra noite chuvosa e sem luz em que veríamos o inferno refletido nos olhos de um vira-lata que cruzava as pistas do aterro virado pelos feixes dos faróis (relâmpagos de nenhum céu) dos 4x4 a toda velocidade.

[nasceu e mora no Rio de Janeiro-RJ; poema do livro Monodrama, 7Letras, 2009; mais em http://www.7letras.com.br/inimigo-rumor.html]

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Luana Vignon (SP)

EU ME APAIXONEI PELA GAROTA DO 701 a garota e seus pezinhos saltitando degraus o cabelo chanel e uma enorme bolsa de oncinha a tiracolo ela lê Garcia Márquez de pé no ônibus e nunca olha pros outros passageiros nem pros transeuntes do lado de fora mas hoje ela olhou pra mim não se sei foi pra mim ou pro final daquele corredor apertado eu sei que vi seus olhos também apertados se espremendo debaixo das axilas fedorentas foi bonito quando o olhar dela esbarrou no meu ela e suas putas tristes eu e meus poemas vagabundos o cobrador podia entregar um deles pra ela mas não são todos uns sacanas esses cobradores nada discretos ela desce num ponto antes do meu e eu só fico olhando acho que eu me apaixonei pela garota do 701.

[nasceu em Araçatuba-SP e mora em São Paulo-SP; poema de Seu herói foi embora, Assunción: YiYi Jambo, 2010; mais em Fake Souvenir http://luanavignon. wordpress.com/ e http://panelinhabooks.blogspot.com/]

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Alexandre Brito (RS)

ZÉ PILINTRA DO CATIMBÓ o mal-ajambrado pretende fazer boa figura presunçoso nos modos e no vestir não sente constrangimento algum de seus atos censuráveis dá um trato no visU e sai por aí esbanjando malandrage idade não desmerece preto quase preto retinto terno branco de bric camisa de cetim vermelho, chapéu branco também, usadinho em bom estado e já vai ele de bengala corrente dourada, anéis nos dedos elegância manemolente lhe cairia bem um dente de ouro no sorriso mas não tem pro gasto vai baixar lá no Catimbó da Mãe Serena antiga na religião renega Umbanda, Candomblé, Batuque Catimbó é tradição Mãe Preta gosta de beber batidinha de coco pinga com butiá ou purinha mesmo Mãe Serena é Zé Pilintra tem festa no Congá.

[nasceu e mora em Porto Alegre; mais em http://alexandre-brito.blogspot.com/]

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Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR)

a cidade sou eu sem parar

para dalton trevisan

as putas do centro las niñas do capão raso trabalhos com os guias para recuperação amorosa (mulheres de banheiro, mas tb homens, mulheres de papel, mas tb cães, mas tb aves, tb árvores em formato de vaginas, mas tb meninas em púrpuras espaçonaves) as turbinadas da ecoville trazer a pessoa amada de volta (mas tb gás, e o fogo, e o gozo na piscina, mulheres de celofane, de celuloide, monica vitti, mulheres do céu, de celulite, com os cus para o céu) as gatas do campina do siqueira trabalhos para acender a chama do amor (e sem véu, mulheres novas e velhas, e professoras, lombas, e lobas e lontras, escorregadias, lisas, em feitio de oração, em formato de coração, mulheres de mão, à mão, moças sem senão, de atenas, no quarto, sobre o colchão, no chuveiro, pela janela, moças esvoaçantes, feiticeiras, ciganas, escravas) as putanas puritanas do batel amor com ponto de união (devaneios, mulheres ao meio, anãs, febris, neuróticas, irmã, mãe, pajens e mulheres no mel, mal no bem, sim no não, mulheres então, rotas, ratas, fundas, rasas, anjos sem asas, em casa, mulheres-diário, diabas) as piranhas da água verde marque uma consulta com os guias (rodando a cabeça, rodando as palavras na placenta, dançando, mulheres em bando, empilhadas como livros, mulheres de armário, várias, em todos os planos, mulheres de fuga, de fumo, madalenas, madeleines, mulheres-memória, muitas santas, todas, mulheres voando) as gostosas do são brás veja o que a sorte e o futuro lhe reservam (voando peixinhas, sereias na veia, a mancheia, mulheres de areia, aquelas, mulheres a beça, bestas, vespas, num cesto, num berço, do avesso) as ordinárias do caiuá você que está só venha ver o que o futuro lhe reserva no amor (toda terça, toda sexta, a semana toda) as moreninhas do sítio cercado jogos de tarô com as cartas originais da cigana (mulheres eternas, de terno, teóricas, de quatro) as brancas do juvevê consultas com e sem hora marcada (na cama, de bruços) as filhas do boqueirão problemas de impotência? (mulheres no susto, narcisas, precisas e imprecisas) as galinhas dadeiras do rebouças o legítimo baralho cigano (únicas, várias, necessárias) as descoladas do jardim social as irmãs tias e primas do seminário

[nasceu em Governador Valadares-MG e mora em Curitiba-PR]

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Fernando José Karl (SC/PR)

PALMEIRAS REAIS

O MAR QUE CHOVE

Um sábado sopra com o vento: curvas do sapato espelham esquinas.

Uma cambada de peixes se inclina: salgam, as carpas, a fundura: o mar chove-se: nenhuma palavra nas molhadas

Minhas palavras em tua mente. Senti um despenhar de abismos dentro de mim: palmeiras reais ao vento. Elas crescem com o vento.

cerâmicas do mar que chove músicas para cima

[nasceu em Joinville-SC, às margens da Baía da Babitonga, e mora em Curitiba-PR; mais em http://nautikkon.blogspot.com/]

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Lucas Dupin. Palavra forma paisagem, 2010. Trabalho realizado durante residĂŞncia artĂ­stica em Terrauna.


Marcelo Steil (SC)

DUAS HISTÓRIAS MARINHAS EM TRISSÍLABOS ouço as ondas espraiarem sua luz na paisagem

pôs-se ao mar com sua redes não guardando o feriado

quando o barco pôs-se a pique no pontal do arrecife

ouço as ondas que nos contam no seu ritmo seu quebrar

a senhora mãe de deus que nas águas se arvora

nome santo não deixou marinheiro sem sua vida

tanta história desses barcos e sua luta contra o mar

quedou-lhe tempestades quis mostrar-lhe as verdades

hora a nado se reuniram lá na praia todos vivos

teve aquele marinheiro que no dia de resguardo

teve o caso do pesqueiro cujo nome era santo

e rezaram de joelhos a seu santo padroeiro

agostinho protetor dos meninos dos quebrantos

[nasceu e vive em Blumenau-SC, no vale do rio Itajaí-Açu; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]

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Valdemir Klamt (SC)

ARQUITETO DOS DIAS “Gosto da palavra crer. Em geral, quando alguém diz ‘sei’, não sabe, mas crê” – Marcel Duchamp Na minha cidade todas as pessoas caminham do lado esquerdo da rua. Todos os sapatos são do mesmo tamanho. As mil faces arquitetadas, construídas em sonho, são o uivo da dor incessante. Na minha cidade não há respostas. Os gatos foram banidos dos telhados. A oração que minha avó repetia a toda hora Não conteve os pilares de pedra, De casas com gosto de ontem. Hoje habito um ritual de maquinaria e danço na névoa que há entre os homens. Umedeço os lábios na água que os dias trazem nas flores. Sei que sou feliz. No dia de Nossa Senhora Aparecida a prefeitura inaugurou uma ponte sobre um campo de trigo.

[nasceu em Iporã do Oeste-SC, no extremo Oeste, e vive em Florianópolis; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]

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Ademir Assunção (SP)

As ruas estão estranhas esta noite

Paisagem crivada de balas

Pétalas destroçadas tingem a noite de vermelho. Mister Morfina se arrasta pelas ruas, os bolsos cheios de câmaras-de-ar furadas, tranqueiras, e cacos de vidro. Peixes coloridos saltam sob a luz dos semáforos. Uma Rosa cospe um blues na poça das sarjetas. Um Opala caindo aos pedaços bate de frente no Monumento aos Desesperados Anônimos.

As rajadas podem ser ouvidas de Pirituba ao Pontal. Escopetas, uzis israelenses e fuzis russos sangram as bordas da Noite Drogada. “Estamos tornando a paisagem inabitável, não levem a mal, é apenas nosso fluxo de consciência poética” — pensa Black Ice, o indicador rodopiando os cubos de gelo no copo de uísque.

O vidro do aquário se estilhaça. Os peixes fogem montados em motocicletas envenenadas. Orelhões suicidas gritam palavras obscenas para velhinhas traficantes. Mister Morfina acende um cigarro e observa a palidez de 50 topmodels que desfilam descalças na passarela cheia de cacos de vidro.

Punks com sangue de barata e dentes de borracha sentam-se nas muretas da orla marítima para vaiar o Pôr-do-Sol. Antes da última bala perdida. Do alto do morro do Pavãozinho um franco-atirador mira e dispara, enquanto é enrabado por um guri pantagruélico. Tiro certeiro. O sol tomba na boca banguela da Guanabara, tingindo de vermelho o Atlântico.

Deus está solto. E dizem que Ele está armado.

[nasceu em Araraquara-SP e mora em São Paulo-SP; poema de A musa chapada, São Paulo, Demônio Negro, 2008; mais em http://zonabranca.blog.uol.com.br/]

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Lucas Dupin. Palavra forma paisagem, 2010. Trabalho realizado durante residĂŞncia artĂ­stica em Terrauna.


Antonio Vicente Seraphim Pietroforte (SP)

SÃO PAULO EM QUATRO CANTOS GROGUES

I

II

atravessa o inferno a procurar por ela pronto pra virar poeta

está parado em frente ao Elevado na Amaral Gurgel

será que vale a pena?

toma cuidado o emplasto que segura o saco o talco no lugar da flor

vale se o teor da erva é boa se o travesseiro dela tem recheio de macela do campo como flor aberta

puro Mistral desceu pelo nariz nervoso havia um sex shop ali ano passado

atravessa o oceano no navio imundo trancado no porão fera

beleza há um pôster de mulher pelada imenso em cada prédio

estranho na cidade grande não deixa pedra sobre pedra macaco feito King Kong queda

dureza fingir indiferença à mendiga suja o pé descalço a coxa dura a curva da cintura no vestido dado vazio? por que duas lésbicas precisariam de um pinto de borracha para completar o trio?

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III

IV

asfalto ao meio dia cinza agreste o centro de São Paulo sob o trópico de Capricórnio a catedral da Sé o largo de São Bento e a Liberdade

Mafu visita a Liberdade

garganta seca o homem na multidão faz o deserto imenso o olho seco espinho cigarro de maconha aceso no prédio do arquiteto comunista

o iokai das drogas tem poderes fumaça! surge uma neblina imensa pela madrugada farinha! neva cocaína na cidade de São Paulo um oriki para Mafu na página do livro! uma pala o poeta gago anuncia

a alça da mira está em toda parte os fuzis e as metralhadoras em ação no Brasil cover do Zappa no café Piu-Piu a namorada sado

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema do livro A musa chapada, em co-autoria com Ademir Assunção, Editora Demônio Negro, 2008]

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Marco Aurélio Cremasco (PR/SP)

URBANA 1. uma hora para nunca mais é daqui a pouco ou jamais? 2. a cidade brilha na face caipira cintila ilhas de fantasia sorri sereia ao náufrago

o idílio soturno da luz pastel ofusca o sol madrugada conta paga restaurante chinês hora de ir recomeçar pela cama o dia por ter

3. a pedra na estrada espera o vento para se ver talhada o dia assim a noite inteira a rua do silêncio continua iluminada 4. a noite tece labirintos no vão de estrelas a cidade em vão anoitece 5. compêndio noturno: o guarda-rouba sorriso da ladra 50

10. os pombos colhem nos bicos cálidos as chagas dos inválidos os seres exatos equacionam o trajeto inesperado dos vôos rasantes sobre logradouros e logrados

6. o sol anuncia começo fim de mais um dia

encantado em cimento cal areia

cristo mendiga salário na greve dos bancários

a luz (se) revela intervalo das trevas 7. meninos meninas ratos ratazanas gárgulas anjos grotescos povoam esgotos da cidade barroca 8. meninos apanham detritos no lixo chaminés elevam glórias a Deus 9. praça guardada pastor livro sagrado palavras profanas

11. são cidades homens alternados nos esquifes berçários a noite guarda resquícios da manhã seria tudo isso nosso delírio? 12. não escravizem o sol deixem-no vadiar em nossos rostos enquanto passeamos despretensiosos pelas avenidas desta cidade poluída prendam-me se quiserem mas deixem liberto o sol para que no mínimo acaricie as mentes vadias desta cidade sem sal

[nasceu em Guaraci-PR e mora em Campinas-SP]



Claudio Willer (SP)

Na cidade 1

2

SEMPRE

HÁ POUCO

Cruzo todas as vias paralelas deste bairro e passo por esquinas atentas. Prossigo em direção ao Sul: é sempre para o Sul, seja para qual direção for. Um simples Santo Amaro, este é o último destino da vez, mas, ainda assim, sensação de perda, de que nunca chegarei a lugar algum ao passar por tantos lugares (todos) onde já estive (sempre), no automóvel que segue vagaroso, quase reverente: o automóvel é o navio fantasma, sou o personagem lendário, e sigo ladeado pelos tripulantes perdidos no tempo. São meus, estes fantasmas que me acompanham. Mas o itinerante é belo. E o poema de hoje à tarde, de há pouco, de agora será perfeito, pois navego. Singro. Sempre em direção ao Sul. (este poema é hermético)

O centro velho de São Paulo me aparecia belo. O Largo São Bento, as copas das árvores convertendo-se em silhuetas de sombra que avançam sobre a fachada europeia do mosteiro à luz de fim de tarde. A Rua Florêncio de Abreu e seus casarões banhados em claridade crepuscular, um trecho familiar, agora diferente, como se repentinamente revelado. Admirava a sossegada beleza de amplas salas de escritórios em prédios velhos, como se as visse pela primeira vez. Há uma doce luminosidade nos lugares de onde se vai partir. A terna beleza das despedidas. O que fica para trás, o que nunca mais será visto, tinge-se de claridade. Ganha a solenidade das derrotas, um ritmo mais pausado que pulsa no que ainda não é morte, ainda não passado, apenas iminência suspensa em seu instante. O quase fantasma, por pouco não sombra, que agora enxergamos melhor, este a um passo do passado, ainda vivo em seu último relance. Retorno ao largo. A cidade acabou de anoitecer, etapa em sua rota para deixar de existir.

[nasceu e vive em São Paulo-SP; poema de Estranhas experiências e outros poemas, Lamparina, RJ, 2004; mais em http://claudiowiller.wordpress.com/]

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Enzo Potel (SC)

ITAJAÍ-AÇU

SÁBADO EM SÃO PAULO

Parece que foi ontem que a grande enchente cobriu a cidade de Ilhota quase que totalmente.

Praça da Liberdade:

E como se nada tivesse acontecido inúmeras casinhas voltaram a florescer às margens do rio Itajaí-Açu. O Ser-Humano não se represa. A CAMINHO DE CABEÇUDAS O velho pescador espera de boca aberta que alguém compre as secas mandíbulas de tubarão penduradas na varanda de sua casa. FLORIANÓPOLIS Florianópolis daria um filme de faroeste! Daria.

comida boa e baratas. SALVADOR Acho que alguns baianos não sorriram com a minha presença afim de evitar que o local ficasse demasiado branco. A arrogância é uma massa frita em azeite de dendê entregue pelas mãos de abafadas senhoras como serpentes dentro de um cesto nas ruas e nas praias. Também meus pés lavados gratuitamente por meninos descalços. Eu não pedi. Eu não vim aqui para passear nesse Mercado Modelo de confusão entre o masoquismo da subserviência e a alforria da vingança. Meu Deus... a vingança. O que me resta? Levar para casa o cartão postal de um elevador.

Por enquanto Florianópolis é só um deserto com uns terminais de ônibus.

[nasceu e mora em Itajaí-SC; poemas do livro Cura, editora Nova Letra, Blumenau, 2007; mais em http://www.pagina3.com.br/coluna/emergencia]

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Wilmar Silva (MG)

cachaprego opunahlpontalm de parapanema que avança lá para omeiodocerrado oscamposmais íbridio apaz aredos rumanm pelso mil invaernos nas árovaresa e naslajes mais nvesve elargaas e vastas as hélicess ezauridas de tantoscavlagar visiavsis a átimos eos pendões que aepnas preás que arrãsfecem o perfumepreto de micosfugidos que dançam nos cipós de anéis invi zíveis pêsegos que despendcam a um jaú uns juás e a um jacu na enchãorrada uns loboz e suaszebras de ânagulos agateados noquadrantes negros um balaiaofurado de pêsegos para dardos afendas para cães asóse famintos a esmnos nas latassujas pelasquinas de opalas que uns corcéis escurecem os rumos pardacentos e mesmoa gora com as unhas gsrandes e os pés em nódoas de folhas de bananas que severm também para v estir o meu sono do frio e abraza o cicio da chuva e meu cio sem lontra debaixo de pausfrontais que me protejem das corolas de rosas e coroas de véuntos que vem de longe para os confisn contidos a contíguas frechas de mãos que apazcentam meus cabeloscaídos pela testa e pelos ombros sem escoras

[nasceu em Rio Paranaíba-MG e mora em Belo HorizonteMG; mais em http://www.cachaprego.blogspot.com/]

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Régis Bonvicino (SP)

RASCUNHO

MORADORES

Pauladas não há palavras morto a pauladas não há palavras para dizer morto a pauladas

Na ponta do túnel, numa de suas saídas para a avenida de edifícios altos, onde há um canto, pintado na parede um detalhe de Retirantes de Candido Portinari, óleo sobre concreto sem lâmpada no teto, os carros transitam sem parar a mãe e seu bebê sentados numa caixa de madeira ao lado um pescoço de manequim feminino decepado – um volume cinza cinza talvez da tinta da caveira do bebê no colo da mãe decora a sala de visitas ao meio-dia um sofá, real, verdadeiro um par de caixas feito de cadeira e mesa ao mesmo tempo onde se compartilha monóxido de carbono, aqui, um homem vadio se dedica ao ócio passageiros dos carros atiram pontas de cigarro na calça jeans e na blusa rosa pendurados nas tábuas soltas de um armário varais a lua cheia no quadro, outra caveira, no colo do pai?

matar a pauladas um mendigo e seus utensílios sacola, cobertor e calçada morto a pauladas a lua em quarto minguante verga nuvens ásperas encarneiradas enquanto isso aqueles que se locupletam com o caso sem pistas não há palavras morto a pauladas a corda no pescoço? de manhã – poça de sangue – feridas na cabeça e no rosto não há palavras morto a pauladas não tem conversa não

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poemas de Página órfã, Martins, 2007; mais em: www.sibila.com.br]

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Marco Vasques (RS/SC)

ELEGIA URBANA 3 Descontente com todos e descontente comigo, bem gostaria de me resgatar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. (Charles Baudelaire) caminhei mais duas horas de meu dia com o pensamento e olhar naquela cadeira de rodas que atravessa a rua autômata e sem sangue e sem riso no espaldar de ferro um botão substitui o caminhar de quem um dia sentou no seu estofado e eu que saí de casa de olhos vendados vi homens tristes nas esquinas e mulheres baratas à minha espera e seios tatuados com cifras de todos os dinheiros dependurados em fios elétricos prontos para o choque dos corpos suados

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dos homens que abrem valetas na rua onde serão enterradas suas próprias carnes no esgoto jamais estancado aberto pelos braços agora amputados tudo isso e muito mais a imagem daquela cadeira de rodas vazia sob a árvore da praça onde crianças riam nas gangorras de ferro que mais parecia um pátio de hospital ou mesmo o inferno e eu que saí de casa de olhos vendados vi tudo isso e muito mais

[nasceu em Estância Velha-RS e mora em FlorianópolisSC; poema de Elegias urbanas, Bem-Te-Vi, 2005; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]


Reynaldo Damazio (SP)

URBANIDADE

PROJETO PILOTO

Estas ruas não me dizem nada, sua afetada urbanidade, ou mesmo a sofrida deserção; não há caminhos que me cruzem ou que conformem uma sintaxe para discursos de boa ação, do compromisso com a miséria das intenções, ou com o oco dos atos políticos;

de olhos no concreto tão vasto e certo parece a cidade prenhe do desacerto

sinto uma triste indiferença ao labirinto estético, pretensamente estético, das ruas, porque não reflete outra coisa senão o desprezo por qualquer sinal de vida, de festa, do trânsito gratuito de interesses, do exercício de uma improvisada cidadania;

sábio plano que petrifica espaços desplanifica acasos mistifica casas

ruas mortas para toda estripulia, inúteis para sensações, sujas de metais pesados, de consciência doente e arredias ao mistério de transeuntes sem meta, do comércio sem público-alvo, da prostituta que cantarola um tango argentino; o corpo que se dissolve na esquina, a pele que se ressente do asfalto, a voz que se cala diante do alto-falante: detalhes que as ruas engolem e não metabolizam, porque estão planas e bem alinhadas com as lixeiras coloridas de reciclagem – sua maior ambição é reciclar, voilà, o espírito do andarilho que se entrega a pauladas e queimaduras, em purificadora imolação: – Por nós!, alguém dirá.

vias perfeitas de diálogo duro entre o corpo e seu impuro logos

frio concreto incomunicável e reto molda-se na ânsia de panteão eterno mausoléu do poder ou museu do ser? nada sobra sob as linhas do saber cidade-casulo cravada em informe história gesta do traço e seus deuses obscenos morada de gênios ingênuos, estes móbiles-embrião nas malhas do desenho

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poemas dos livros Nu entre nuvens, Ciência do Acidente, 2001, e Horas perplexas, Editora 34, 2008]

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Dirceu Villa (SP/Londres)

PRECISA-SE DE COZINHEIRO COM PRÁTICA

BAIRRO DORMITÓRIO

Que ele, de qualquer forma, faça aqueles ovos estalados, sunny-side up, como os dois olhos de Hélios boiando no óleo, nas ruas do centro velho fedendo a urina. Não são portas de castelo aquelas paredes com rochas enormes, espessas, onde num cubículo estão os caras trabalhando em algo gorduroso; ou um grupo de senhoras magras e suadas com o cabelo preso e óculos, cigarro na boca, costurando sentadas em filas nas máquinas Singer. É duro fazer aquilo, quer dizer, elas parecem absortas num contorno preciso. E a nuvem cinzenta que paira como em mesas ensebadas de baralho, é claro, não ajuda. Que o cozinheiro saiba torturar lingüiças na chapa como os diabinhos fazem com as almas perdidas em qualquer Juízo Final de painéis medievais. Sabe sim. Com olhos sorrindo no rosto pespegado de gotículas de suor, ele vira e diz: Tá um inferno aqui, chefia.

Viemos dormir algumas horas Chegamos com malas de plástico repletas de tranqueiras E a cabeça repleta de cerveja Zonzos, rimos e trombamos Não se assuste: os perigosos vão de carro Por quatro horas rolaremos nos beliches empilhados Quartos quentes como fornos, nem há como tomar banho Uns disfarçam na torneira e um pouco d’água nos sovacos Enquanto fumam seus cigarros Mas isso não é regra Nos ônibus nós dormimos de manhã E cheiramos mesmo a álcool e suor: os nossos sonhos Acertam os cidadãos nos ombros ou as janelas ensebadas Onde a luz baça e preguiçosa da manhã nos fere os olhos de amarelo Mas temos braços fortes e boas pernas Pra juntar a bugiganga que o meganha quer garfar E sebo nas canelas.

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CÃES JARDIM EUROPA

FESTIVAL DAS ESTRELAS, BAIRRO DA LIBERDADE

passear a extensão do punho um cão a extensão da forca um adorno animal à cobiça senhoras a virilidade sob laço

Os postes de luz, caules vermelhos e esguios, terminam em lâmpadas com o sinuoso desenho que lembra um brinco-de-princesa;

ávido verde e calçadas lavadas lojas de carro ternos feios escuros óculos escuros e cães resfolegando

carrego um casaco e olhamos para o alto quando o vento dá vida a inúmeras fitas coloridas em que ouvimos o brilho das estrelas.

um desfile de dentes de ferro sorrindo nos portões de famílias que vendem tudo (mesmo?) a extensão do punho tem dentes e baba de sede sob o sol doente.

[nasceu em São Paulo-SP e mora em Londres, Inglaterra; mais em http://odemonioamarelo.blogspot.com/]

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Poeta de Meia-Tigela (CE)

HISTÓRIA COSMOLÓGICA DO BOI Para Rosemberg Cariry

O Boi – quem não viu, Não sabe o que é bom. Melhor que bombril, Melhor que bombom.

1. O BOI ORIGINAL

2. O BOI DE MITRAS

No princípio dos tempos, Arimã Não dominava tudo com Seu Mal. Mas logo procurou difundir Caos Matando o Homem Perfeito e à Terra sã.

Coisa que se mistura e expande é Mito. Deu que na Roma Antiga existiu Mitras, Deus da luz e do sol que sacrifica O Boi para que deste surja muita

Esse malvado amigo de Satã Deu fim mesmo no Boi Original. Nem grão de açúgar nem pedra de sal, Ninguém restou, adeus linda manhã.

Coisa que se misture e expanda, mirtos, Flores, brotos, Vida em todo milímetro. Eis que Hades sobe ao mundo com Ministros E instaura a Dor em dose tripla, aos litros.

Opa, aguardem que o Bem já se revolta Prometendo estar em breve de volta Do Boi salvando os restos, o cadáver.

Mitras e Hades farão guerra entre sis E há de ser catastrófico o conflito, Antecipadamente apocalíptico.

Donde nascerão belas Terras outras E homens bonitos como Jão Travolta, Mulheres maravilhas, Avas Gardners.

Um Touro virá como jamais vi Para dar fim ao Reino do Sinistro, Assegurando a Paz: com Chifre e Cetro.

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3. O BOI-BUMBÁ

4. O BOI MANSINHO

Todo o Universo cabe no Nordeste. Se não fosse heresia, diria eu Ser o Nordeste até maior que Deus (Calo, pois temo qu’Este me moleste).

Estava me esquecendo de contar-lhes O caso do Boi-Santo, o Boi Mansinho Mandado de presente ao meu Padinho Ciço e cuja presença era de talhe

Também aqui o Boi, aquele Ancestre Avivou e depois desfaleceu. Catirina pediu e o bom Mateo O matou e trinchou. Ora, acontece

Tal, que José Lourenço pôs-se a dar-lhe Atenção devotada e aos bocadinhos Foi-lhe enfeitando os chifres, o focinho, O lombo, os bagos, sem deixar detalhe

Que o dono protestou, fez escarcéu (Com razão já que o Vítimo era seu). A poder de orações, cantos e preces,

Do Zebu descoberto de bentinhos, Mais parecendo um nobre de Versalhes: Tanto que antes que o culto mais se espalhe

Bumba!: a carne do Bicho revivesce Virando o que era susto em grande festa. Agora O relembramos sempre em êxtase.

Floro Bartolomeu manda cortar-lhe O corpo em pedacinhos, finos talhes — Mas Ele encarna em cada bezerrinho...

[nasceu e mora em Fortaleza-CE; mais em http://opoetademeiatigela.blogspot.com/]

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Fabiano Calixto (PE/SP)

A canção do vendedor de pipocas

Para Angélica Freitas

em frente ao Banco de La Nación Argentina o vendedor de pipocas da avenida Paulista desvenda os mistérios do Honda prata que passa lentamente, soberbo (“coisa mais sem gente!”) pensa na noite crônica no organismo da tiazinha de vestido florido (onde predomina o ruivo) agora assobia e coloca milho na panela os estouros acordam a minha fome (no El País El presidente apuesta por las políticas a favor de los “más olvidados” y “los que pueden menos” – risco outro fósforo, acendo outro cigarro, outra melodia frustrated incorporated) quando chega o outro, de bicicleta noticiando o acidente na Rebouças (“foi feio pra caralho, mano!”) logo envelopa a fala, se cala a chuva recomeça sua cantilena preciso das horas, mas não encontro meu celular uma moça linda (ensopada) pára em frente a mim, balbucia can you help me remember how to smile? silencio e miro a placa brilhante que traz o nome do meu amor – imagino que as canções de Bob Dylan existam para nos fazer suportar dias como este – a cidade se altera, oxida de alteridade e acídia (La Contenta Bar está muito muito longe e a noite passada você não veio me ver

Uma outra manhã em Santo André Para Marcos Moraes sem índice, eu disse a mim mesmo, que esclareça a delicadeza azeda que elide uma sílaba deixando uma cilada semântica se porventura aquele homem-sanduíche não caísse desmaiado de fome sobre a geometria viva do calçadão de Sacilotto que outro assédio escroto nos visitaria nesta manhã de sol libidinoso, enquanto tramam no planalto central outro (e outro) assalto? na abrupta seqüência de trevas Offrant à la gloire de Dieu Le triomphe de ma tristesse... – e à esta cidade (província cheia de ridículos dedos), um remorso vagabundo – estas mãos inclassificáveis (que andam freqüentando poemas e acácias) (muitos metros acima dos imponentes sacos de lixo entre gigantescas janelas azuis limpíssimas e adolescentes consumindo cocaína e coca-cola, a vertigem: gárgulas, pestes e plumas) [nasceu em Garanhuns-PE e mora em São Paulo-SP; poemas do livro Sangüínea, Editora 34, 2007; mais em http://revistamododeusar.blogspot.com/]

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Joca Reiners Terron (MT/SP)

ESTRELAS MORTAS SOB BOTAS DE COWBOY Sei das malditas alturas acachapadas por céus imensos acobertadas pelas estrelas invisíveis sempre rugindo seu eterno murmurar noturno e audível Ainda assim, me pergunto como pude ter os sapatos atolados na lama vermelha dos solos do sul, que engolem tudo e devolvem na forma de campos de soja, polígonos vistos das rodovias? Medos ulcerosos me morderão a fronte: (Hugo mastiga – a oeste, Mato Grosso)

O grande estômago range como caminhões na planície, gado mugindo ao matadouro O sol se afoga na mistura de água e plantas do Pantanal: deliro? O sol se afogou. Ouro torrando emas sucuris sshhhhhh E então, quando ouvirei

de novo

o ronco do motor duma cidade, um pneu opressor sobre meu peito?

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CINE PIVA O correr dos olhos velozes se esconde em vestidos negros, bocas rubroluzentes com cigarros nos cantos.

Eles o mataram em Alexandria, no Egito. O evangelista retorna então à sua novela na tevê.

À meia-noite são abertas as portas do zôo da cidade.

Marylin permanece sorrindo na coluna do Elevado, enquanto placas de neon e gotas iluminam a noite. Um mendigo a ama. Agora ela está feliz.

Largos são invadidos por pastores com ternos pequenos demais acompanhados por missionários ex-gays prestes a morrer de gestos exagerados e políticos pederastas encaçapando apáticos punks para suas empapadas e desesperadas noites de suor áspero. Numa parede lateral do Pátio do Colégio há uma passagem para a Praça do Árabe de Ouro em Veneza. Nas madrugadas chuvosas, São Marcos estica o pescoço para fora e confirma se despistou os estranguladores enviados por Abraxas.

A cidade: Vida que Vegeta. O nome da cidade: Boca de Lobo. A lateral do ônibus mastodôntico projeta anúncios de pesticidas. Vultos velozes nos alambrados suturam os dorsos dos edifícios. Faróis de carros cruzam sinais. Vozes rápidas. O brilho elétrico e mágico da luz. Não sai de cartaz esse filme sem público. Uma rua inteira de cinemas fechados.

[nasceu em Cuiabá-MT e mora em São Paulo-SP; mais em http://jocareinersterron.wordpress.com/]

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BABEL Poética

Ano I, n.º 2 – abril/maio de 2011 Copyright © dos editores e dos autores BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais.

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