Subtrópicos n24

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revista da editora da ufsc

abril 2016

#24

Envolvimento, meio ambiente e interesse público • Derrida e Blanchot: morar, demorar • Capoeira na roda, capoeira na vida • O preconceito sem nome • O avanço do precariado • A experimentação da violência • A arma dos fracos • Uma última carta • Fotografia: Carla Linhares


expediente

em Geografia da UFF, ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 em Literatura Brasileira e Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente na categoria Ciência e Tecnologia — 2004, conferido pelo Ministério do Meio Ambiente.

Carlos Walter Porto-Gonçalves (Rio de Janeiro, 1949) é doutor-professor do Programa de Pós-graduação

Envolvimento, meio ambiente e interesse público É preciso sair dessa armadilha que separa o social do natural, enraizada à esquerda e à direita e, também, no senso comum dos cientistas Carlos Walter Porto-Gonçalves Há, pelo menos, duas maneiras de entender o papel do Estado em sua relação com a sociedade. Uma, que vê o Estado como um aparato político-administrativo que encerra o poder das classes dominantes sobre o conjunto da sociedade; outra, que vê o Estado como uma instância de regulação ou mediação dos pactos socialmente conformados que encerrariam o que, nesse caso, se vê como interesse público. No primeiro caso, os interesses privados se sobrepõem ao interesse geral, público, podendo mesmo ser, no limite, um Estado patrimonialista-cartorial. Nesse caso, como bem definira Raimundo Faoro, temos Os Donos do Poder, os fidalgos da parceria público-privada, como se diz hoje. A palavra deriva de filhos de alguém

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abril 2016

#24

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Fábio Lopes da Silva Conselho Editorial Fábio Lopes da Silva (Presidente) Ana Lice Brancher

(fi’ d’algo), quando o Estado concedia aos filhos de alguém as encomiendas, as capitanias hereditárias, as terras para serem ocupadas (produtivas). Ainda hoje, no Brasil, sabemos como se dão as concessões de canais de rádio e televisão aos “amigos do rei”, verdadeiros fi’d’algos. Sabemos que os interesses privados, em geral, e os do capital, em particular, não podem prescindir da mediação pública. Todavia, uma coisa é o interesse particular de cada um, outra é o interesse do capital, que, sendo uma relação social, implica muitas vezes antagonismos com outros grupos e classes sociais-povos-etnias-nacionalidades. Outras vezes, em determinadas conjunturas, interesses de classes proprietárias e não proprietárias podem se aproximar, mesmo contra o interesse geral da sociedade. É o que, com frequência, se vê com relação ao tema ambiental. Por exemplo, os interesses da indústria automobilística e o de operários das montadoras, ainda que o aumento do número de veículos produzidos e de empregos garantidos faça aumentar o congestionamento de trânsito e a poluição do ar. Ou ainda, os interesses dos grandes capitais da área de mineração e do agronegócio exportando commoditties e, assim, permitindo aumentar não só a acumulação de capitais em mãos de oligarquias, como também aumentar a arrecadação de mais-valia sob a forma de impostos geridos pelos gestores, muitas vezes ao arrepio

Andréa Vieira Zanella Andréia Guerini Clélia Maria de Mello Campigotto Luis Alberto Gómez João Luiz Dornelles Bastos Marilda Aparecida de Oliveira Effting Editor Dorva Rezende Planejamento gráfico Ayrton Cruz Foto da capa Ayrton Cruz Revisão Aline Valim Gráfica Copiart Tiragem 500 exemplares

Acesse a versão eletrônica da Subtrópicos no site da Editora da UFSC — www.editora.ufsc.br

museu do prado

geografia

2 da legislação ambiental, questão de interesse geral tanto quanto muitos dos programas sociais que são beneficiados por esses impostos. Para não falarmos dos interesses de grupos sociais específicos como povos-etnias-nacionalidades, quilombolas, camponeses ribeirinhos e outras campesinidades, que se veem rigorosamente atropelados-alagados com o avanço do capital por meio de estradas e barragens que acreditam avançar por “vazios demográficos”. Sabemos como a questão social vem sendo pensada em contraposição à questão ambiental, nos marcos do pensamento eurocêntrico à direita e à esquerda do espectro político. É o consenso que se vê, hoje, em curso na América Latina, onde as divergências entre esses campos políticos não se distinguem diante da questão ambiental. É o que o pintor espanhol Goya (1746-1828) representara com dois lutadores em contenda, que lutam sobre um pântano e, quanto mais se movimentam, mais afundam. Não poderia haver melhor imagem de um contrato social sem contrato natural. Na América Latina, desde finais dos anos 1990, sobretudo depois do ano 2000, os movimentos sociais conseguiram pautar uma questão que até então fora um tema brandido quase que exclusivamente pelas esquerdas: a desigualdade social. Desde então, independentemente da coloração dos governos que se implantaram na região, os níveis de desigualdade social diminuíram sensivelmente, conforme consta de vários relatórios da CEPAL. Mesmo países que não foram governados por forças que se reivindicam progressistas (expressão que, entre nós, é identificada à esquerda), como o Peru e a Colômbia, viram seus níveis de desigualdade social diminuir. Essas conquistas se fizeram nos marcos de uma retórica de crítica ao neoliberalismo, ainda que aprofundando o desenvolvimento desigual centro-periférico do capitalismo mundial, em que nossa região se desenvolve através da superexploração do trabalho da natureza. Essa retórica de crítica ao neoliberalismo foi ainda reforçada por uma retórica antiestadunidense, mas não anti-imperialista, para o que muito contribuiu a reconfiguração geográfica do capitalismo mundial, com a industrialização globalizada da China. O paradoxal dessa nova fase da organização do espaço de nossa região, em sua nova conformação ao sistema-mundo capitalista moderno-colonial, é que a América Latina viu diminuir o intercâmbio comercial intrarregional desde os anos 2000, assim como viu aumentar

Campus Universitário — Trindade Caixa Postal 476 88010-970 — Florianópolis/SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 editora@editora.ufsc.br www.editora.ufsc.br www.facebook.com/editora.ufsc.5


a participação percentual de bens primários na nossa pauta de exportações entre 2000 e 2014, conforme dados da CEPAL. Ou seja, a crítica ao neoliberalismo e à retórica antiestadunidense se mostra estruturalmente compatível com o aprofundamento do desenvolvimento do subdesenvolvimento e, até mesmo, contra o que o pensamento de esquerda entendeu como sendo políticas estruturais para afirmar um projeto socialista na América Latina, qual seja, a industrialização e a integração regional. Insistimos: os dados da CEPAL apontam para a diminuição do intercâmbio comercial intrarregional e para a reprimarização da pauta de exportações. Assim, vivemos o paradoxo de vermos o complexo de poder técnico/industrial-financeiro-latifundiário/mineiro-estatal do agronegócio e da mineração avançar sobre territórios em extensão (latifúndio e novas fronteiras) e profundidade (pré-sal e aquíferos). O latifúndio, antes condenado por improdutivo, tornou-se produtivo e, parece, vai sendo assim consagrado, mostrando que a crítica ao latifúndio não era por concentrar poder, mas sim por não ser produtivo. O subsolo, nos anos 1950/60 estratégico para os projetos de afirmação da soberania nacional, hoje é objeto de concessões público-privadas, reinvenção, com expressões novas, de velhas práticas (encomendas, capitanias hereditárias, concessões aos “amigos do rei”). Os códigos de mineração foram, em todos os países de nossa região, adequados ao novo “consenso das commoditties”, irmão-gêmeo do Consenso de Beijing. A República da Soja, como descaradamente se autodesignam os latifundiários modernos de exportação da oleaginosa das regiões temperadas tropicalizada pela pesquisa estatal da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), chegou a derrubar um presidente do campo progressista (Fernando Lugo, no Paraguai) e tentou dividir o território boliviano, separando as terras baixas, só não o conseguindo pela decisiva ação da Unasur, em particular pela iniciativa do Brasil, então sob o segundo mandato do governo Lula da Silva, que impediu que o mapa da Bolívia e da região fosse modificado. Esse mesmo governo brasileiro tinha dirigentes da República da Soja (membros da ABAG, presidentes de grupos empresariais da indústria de carnes, como a Sadia) entre seus principais ministros. E, dispondo do segundo maior banco de fomento do mundo, o BNDES, o Brasil financiava as condições gerais de produção — estradas, portos, hidrovias, hidrelétricas, aeroportos e comunicações — para que a iniciativa privada, enfim, para o capital privado, pudesse avançar. Como as áreas sobre as quais avançam o latifúndio produtivo e a mineração não são vazios demográficos, o que está em curso é uma nova geopolítica da despossessão, que atualiza o desenvolvimento do subdesenvolvimento. Nos últimos 30/40 anos, e particularmente nos últimos 15 anos, os glaciares foram ameaçados no Chile e Argentina pela indústria mineral; o Chaco e a Patagônia viram seus povos originários e camponeses pressionados pelo agro e pelo hidronegócio. O mesmo nas savanas/cerrados brasileiros; nas terras ma-

puches no Chile; na Chiquitania na Bolívia; no Chaco paraguaio; na Amazônia brasileira e em toda a região andino-amazônica, que se veem sob expansão da IIRSA/Cosiplan, em grande parte financiada com capitais brasileiros em benefício de construtoras e grandes empresas brasileiras, e com empresas chinesas e russas, de um lado, e estadunidenses, canadenses e espanholas, de outro. Como não podia deixar de ser, 1492 parece não ter fim. Os povos originários, seus parentes campesíndios-camponeses e habitantes das periferias urbanas se tornam cada dia mais presentes no noticiário protagonizando (r)existências. Os camponeses dos cerrados brasileiros sabem que não conseguem mais prever o tempo certo do plantio. A poluição e a mudança do regime hidrológico e pluviométrico já não trazem mais os pássaros que vinham comer os insetos e, assim, anunciar a hora da semeadura. Os répteis já não saem das águas de acordo com as luas. Até mesmo os deuses, como os Aruanã dos Karajás, já não gozam de confiança, pois as águas de onde procedem foram poluídas. A soja poluiu seus deuses, e isso não é retórica. Mas não apelemos a esses enraizamentos telúricos típicos dos românticos, para usar os argumentos com que se costuma condenar esses fatos, esses saberes, essas práticas. São Paulo, o maior centro urbano-industrial brasileiro e o estado em que mais avançou o agronegócio, está passando pela maior crise hídrica de toda sua história, e, mais uma vez, se diz que não há provas de que isso tem a ver com o agronegócio, com as mudanças climáticas ou com a aprovação do novo Código Florestal. Ora, não abusemos do bom princípio da “dúvida metódica” de Descartes, bom para um mundo científico separado da vida, longe daqueles e daquelas que têm que plantar na hora certa para ter o alimento na hora certa, ou seja, aqueles/as cujo conhecimento tem que responder ao “instinto da fome”, como bem disse Josué de Castro. O número de furacões, também nos dizem, não pode ser associado às mudanças climáticas, embora seu número faça aumentar o número de vítimas. A industrialização do que antes era a pecuária fez com que as cadeias tróficas sejam mediadas tecnicamente. O frango e o porco deram origem a gripes e a vaca ficou louca! Prova?! Quem há de fazer a pesquisa em nome do interesse público se, cada vez mais, a pesquisa está sendo financiada pelas corporações, mesmo em universidades públicas! É preciso sair dessa armadilha que separa o social do natural, enraizada à esquerda e à direita e também no senso comum dos cientistas! Não associemos o desenvolvimento ao ambiente, como um novo/velho senso comum vem afirmando. Afinal, ambiente — enviroment — é envolvimento e não (des)envolvimento. É preciso nos reenvolvermos na physis. A matriz de conhecimento que temos é, também, parte do problema, até porque saber é poder. Há grupos classes sociais, etnias, povos e nacionalidades que detêm acervos de conhecimentos que nos ajudam nessa transição. Há cientistas e técnicos sensíveis ao diálogo de saberes e movidos pelo interesse público que estão aí e a quem devemos agradecer e... apoiar!

lançamentos da

EdUFSC

livros

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Iraque: Dos Primórdios à Procura de um Destino autor: Bernardo de Azevedo Brito Neste livro, em sua segunda edição, o leitor é guiado através da história de um Iraque criado por Churchill em 1921. À monarquia imposta pelos britânicos seguiram-se anos turbulentos de uma república logo dominada por Saddam Hussein. Erros de cálculo levaram a oito anos de guerra com o Irã e à ocupação do Kuwait, que teve por consequência uma retaliação militar desastrosa para o regime de Bagdá. O destino já caminhava então para a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, ocorrida em 2003. Apesar da dificuldade em superar divergências internas e do persistente clima de insegurança, agravado em 2014 por um califado retrógrado, resultante da proximidade do Iraque das convulsões que têm marcado na Síria a Primavera Árabe, a nova democracia e a produção de petróleo em expansão sugerem que o país está no limiar de tempos promissores.

Soldados de Seis Pernas: Usando Insetos como Armas de Guerra autor: Jeffrey A. Lockwood Este livro, com tradução de Carlos Brisola Marcondes, conta uma história ainda pouco conhecida: a do uso de insetos como armas de guerra e instrumentos de tortura e terror. Em um texto fascinante e ricamente documentado, o entomologista americano Jeffrey A. Lockwood descreve e analisa os diferentes modos como, desde o Paleolítico, os seres humanos têm recorrido aos pequeninos soldados de seis pernas para espalhar doenças, dor e destruição.

Língua e Literatura na Época da Tecnologia organizadores: Mailce Borges Mota, Anelise Reich Corseuil, Magali Sperling Beck, Celso Henrique Soufen Tumolo Com 18 capítulos e a participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, esta coletânea foi organizada a partir de palestras proferidas no 3.o Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores Universitários de Inglês (ABRAPUI), realizado na UFSC com o objetivo de refletir sobre o que significa, na atualidade, pensar e investigar língua e literatura na época da tecnologia.

notas universitárias w A Editora da UFSC está comemorando a 60.a edição de seu programa na Rádio Joinville Cultural. wT odos os áudio estão disponíveis no link https://radio.joinville. sc.gov.br/radio/index/categoria/46


gerard ronde

filosofia

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Alice Serra (Caeté, 1976) é doutora em Filosofia

pela Universidade de Freiburg — Alemanha, professora adjunta do Departamento de Filosofia da UFMG.

Derrida e Blanchot: morar, demorar O espaço literário nunca pertenceu a alguém. Ele é sem centro e é partilha (partage) de sentido — ou seja, o que se partilha com outros e também o que se parte —, e, assim, cada escrita se dissemina

Alice Serra A tradução do livro de Jacques Derrida, Demorar: Maurice Blanchot, realizada pelas professoras Flavia Trocoli (UFRJ) e Carla Rodrigues (UFRJ) e publicada pela Editora da UFSC em 2015, vem contribuir enormemente para a pesquisa sobre

a obra de Derrida em língua portuguesa e, especificamente, sobre seus diálogos com Maurice Blanchot e a literatura. Se Derrida insinua não haver uma fronteira estanque entre filosofia, escrita autobiográfica e escrita literária, entre experiência objetiva e ficção, esse livro traz importantes considerações acerca dessas relações, enfocando a especificidade do testemunho literário. Ao colocar em questão se o livro de Blanchot, O instante de minha morte, é uma ficção ou o testemunho de uma experiência do autor, Derrida relembra como Blanchot parece reportar, mais tarde, ao tema do livro, em primeira pessoa. Na narrativa do livro, um homem jovem está prestes a morrer, como se o instante imediatamente anterior ao acontecimento sem tempo da morte se prolongasse, demorando-se na escrita. Por sua vez, numa carta escrita por Blanchot, cinquenta anos mais tarde, ele menciona um evento autobiográfico em que, na juventude, esteve prestes a ser fuzilado pelos alemães. Todavia, entre Blanchot, o narrador e o personagem, não há uma identidade estrita, mas um tensionamento a partir do qual a literatura tem lugar. Como Blanchot enuncia em O livro por vir, a escrita literária instaura um espaço neutro, no sentido de um apagamento a que é convidado aquele que escreve e no sentido daquilo que se inscreve quando o já sido se dissipa e as palavras advêm desde um inapreensível porvir. A condição do escritor diante do texto por vir é, assim, de uma passividade e de uma resistência que se rompe. Entre um silêncio que habita sua origem e a desproteção diante de um exterior que irrompe, o texto literário não faz, senão, acolher o que passa a ter lugar nele, e somente nele. A essa condição, Derrida, em Demorar: Maurice Blanchot, alude como passividade do testemunho literário, o que denota tanto uma paixão no sentido de padecer, de receber uma determinação a partir de algo outro que de si mesmo, quanto uma atração irresistível pelo que, no texto, se deixa a cada vez espaçar. Nessa condição, o espaço literário não pertence mais; de fato, ele nunca pertenceu a alguém. Ele testemunha, na ausência de atestação, na possibilidade de verdade e de perjúrio. Ele é sem centro e é partilha (partage) de sentido — ou seja, o que se partilha com outros e também o que se parte, em não coincidência com um acontecimento único que supostamente estivesse na origem do texto. Cada escrita assim se dissemina, dirá Derrida, e é nesses percursos e nesses rastreamentos que a desconstrução, pacientemente, mora e demora (demeure). Desconstrução e literatura nisso se aproximam: moradas nômades e desviantes, mas que também, e a cada vez de um modo singular, aterram.


Fábio Machado Pinto A universidade brasileira, pela primeira vez, reconhece o notório saber de um mestre de capoeira. Mestre Nô, ou Norival Moreira de Oliveira, é um expoente da Capoeira Angola no Brasil e exterior. Reconhecido no meio popular, conhecedor dos fundamentos, tradições e história da capoeira, tornou-se legitimo guardião da cultura da capoeira. Como educador, trabalhou na formação de capoeiras, mestres e educadores por todo o Brasil. Seu método é cultivado desde os anos 1970 e, em Florianópolis, a partir de 1987. Mestre Nô é um educador que ensina o que faz, nas rodas e na vida. Nasceu em 1945 na vila de Coroa, Ilha de Itaparica, onde seu avô Olegário o incentivou à prática da capoeira. Em 1954, em Salvador, encontra seu primeiro mestre, Nilton, na Cidade Baixa, bairro Massaranduba. Aprende e treina com outros jovens, como Fernandinho (mestre de Mestre Pop, o precursor da capoeira em Florianópolis). Em 1964, começa a ensinar, depois de receber o diploma das mãos de Nilton. Logo criou o grupo Academia de Capoeira Angola Retintos (1964-1969) e, em 1969, muda para Associação de Capoeira Angola Orixás da Bahia (1969-1979). Nesse momento, seu trabalho desloca-se para um bairro nobre de Salvador, Pituba, onde ensina discípulos de diversas classes sociais. Em 20 de novembro de 1979, funda a Associação Brasileira Cultural de Capoeira Angola Palmares (ABCCP). É o responsável pela formação de mestres como Alabama, Marretinha, Sergipe, Periquito, Braulino, Macaô, Nelson,

Dunga, Valdir Axé, Alemão, Sabiá, Dindo, Calunga (Florianópolis), Polegar (Florianópolis), Khorvão (Florianópolis). Esse trabalho acontece por sua iniciativa de viajar ao sul do Brasil (Canoas e Florianópolis) desde 1983. Educador solidário, comprometido com os velhos mestres da Bahia, se fez acompanhar por eles: Ferreirinha, Bobó, João Pequeno, Bom Cabrito, Mala, Curió, Virgílio, entre outros. Desde 1990, seu legado se encontra no exterior, num projeto de resgate e difusão dos fundamentos da capoeira angola. Em 2010, ele foi contemplado com o Prêmio Viva Meu Mestre, reconhecimento pelo trabalho realizado como mestre de capoeira, em consequência do Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2007). Lá se lê: “A capoeira é uma manifestação cultural que se caracteriza por sua multidimensionalidade — é ao mesmo tempo dança, luta e jogo. […] Em todas as práticas atuais de capoeira, permanecem coexistindo a orquestração musical, a dança, os golpes, o jogo, embora o enfoque dado se diferencie de acordo com a singularidade de cada vertente, mestre ou grupo.” Recentemente, na UFSC, se produziu o Dossiê Mestre Nô, elaborado por iniciativa do grupo de pesquisadores e educadores populares ligados ao projeto Capoeira da Ilha e ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea. Esse documento utiliza entrevistas realizadas a partir de 1990 com os pioneiros da “capoeira da ilha”: Pop (Lourival Leite), Alemão (Carlos Alberto Dal

educação de Lisboa, mestre e doutor em Ciências da Educação/Université Paris 8. Professor do programa de Pós-graduação em Educação e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea. Professor do grupo de Capoeira Angola Palmares.

Mestre Nô, capoeirista e educador baiano, recebeu homenagem na UFSC e foi personagem de um documentário exibido em 2015 no Festival Audiovisual Mercosul, em Florianópolis

Molin), Pinóquio (Valdemiro Pereira Filho) e Calunga (Wilson Colunga), bem como o material resultante da Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil, publicada em 2010. Foram duas décadas de estudos que retratam os principais aspectos da obra de Mestre Nô e seu impacto na formação do sentido da Capoeira da Ilha (de Santa Catarina), desde sua chegada em 1987. Como fonte documental, contamos com o apoio dos capoeiristas dos grupos Palmares e Quilombola do mundo todo: documentos, fotos, vídeos, reportagens, materiais e informações. Os acervos de Contramestre Alemão (Canoas/Florianópolis) e Mestre Paulo Amarelinho (Salvador) foram fundamentais. Os sete dias em Salvador, em julho de 2013, na presença do mestre, passados por uma equipe de pesquisadores formada pelos mestres Pinóquio e Polegar e os professores Bagé e Danuza, com apoio da contramestre Jô Capoeira, garantiram maior qualidade ao estudo. Acostumados a conversar com ele e escutá-lo atentamente em centenas de atividades, jamais tínhamos tido a experiência de, acompanhados por ele, penteando a história a contrapelo, adentrar as “veias abertas de São Salvador da Bahia de Todos os Santos”, a periferia do território soteropolitano, com seus três milhões e meio de habitantes. Conhecer a vida de um capoeira permitiu conhecer também a cidade e o país, territórios marcados pelo entrechoque de culturas brilhantemente descrito por Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro. Em 350 anos de escravidão, foram queimados cerca de 10 milhões de escravos oriundos de povos africanos. “Carvão” que aqueceu os motores da indústria e permitiu o desenvolvimento da Europa e suas extensões. Gente à margem, com escassos bens culturais e econômicos, sob a chibata ou o cassetete. É nesse contexto que surge a capoeira como ferramenta de sobrevivência, em que o corpo e o que ele era capaz de fazer se constituem no seu último recurso. Em fuga da casa-grande, o negro encontrava a cãa-puera, que, segundo Waldeloir Rego, era um vocábulo tupi-guarani para denominar mato baixo, que nasce no lugar de outro, cortado, floresta, maior. Era na capoeira que se escondia o negro fugido. Acompanhamos Mestre Nô em seus locais de infância e juventude, na Ilha de Itaparica, no bairro pobre de Massaranduba, até chegar na Boca do Rio, passando pela Orla (Clube Português) e Pituba. Em todos os locais, eram imensos o reconhecimento e a popularidade, isso que o legitimou como um exímio capoeira e educador, alguém que, por meio dos seus ensinamentos, transformou vidas. Em todo o lugar encontrávamos com antigos amigos e alunos, pessoas que traziam no brilho do olhar a admiração pelo velho mestre, exaltando seus feitos, sua dedicação, sua forma responsável e engajada de transmitir a arte da capoeira. Em tempo: um documentário Nego bom de pulo sobre a vida e obra de Mestre Nô foi lançado no FAM 2015 e, mais tarde, distribuído gratuitamente junto com o primeiro Caderno de Capoeira, com recursos do PROEX/ MEC/SESu.

Fábio Machado Pinto (Bagé, 1971) é graduado em Educação Física/UFSC (1991-1994), mestre em Sociologia/Universidade Técnica

Capoeira na roda, capoeira na vida

agecom

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Representações da soropositividade e o horror às doenças sexualmente transmissíveis em uma série para a tevê e dois filmes contemporâneos

des willie/bbc

cinema

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O preconceito sem nome Marcio Markendorf De acordo com um preceito pragmático da ciência, aquilo que não tem nome não existe. Ao menos o inominado não tem existência como algo referenciável, condição que faz o objeto, o fenômeno ou o fato ser empurrado para uma zona de invisibilidade. Sem voz, o inominado é um fantasma da realidade, imperceptível em sua aparente imaterialidade, o que impossibilita radicalmente qualquer consideração quanto aos efeitos de sua presença sobre os afetos. Por serem questões historicamente mais antigas, embora tratadas apenas muito recentemente com o devido rigor, os debates acerca da raça e do gênero têm dado abertura para a defesa de um dos direitos humanos fundamentais — o da igualdade. Essa inserção de uma voz progressista no seio da política e da ideologia reacionária vigentes foi possível unicamente com a discriminação nominal dos fenômenos produzidos no desequilíbrio do social: o preconceito racial e o preconceito de gênero. São sentimentos hostis e intolerantes dotados de substantivo e adjetivo e, portanto, imbuídos de uma existência palpável, visível, denunciável, criminalizável. O preconceito, tratado de modo genérico, não parece ter a capacidade de agenciar a desconstrução de estigmas e instrumentalizar a luta contra as violências simbólicas. O caráter abstrato do preconceito apenas se desvanece ao ser acompanhado de uma segmentação adjetiva. É notório que as instâncias metafóricas amparam em muito os discursos preconceituosos, ofensivos, desqualificadores. A me-

Série In the Flesh, produzida pela BBC e criada e dirigida por Dominic Mitchell, teve duas temporadas entre março de 2013 e junho de 2014

táfora, na condição de uma comparação implícita, faz com que um objeto A estabeleça uma relação de identidade com um objeto B. Em tal equação, A e B são equivalentes, trocam-se mutuamente um pelo outro, recebem a mesma significação, são sinônimos. No preconceito racial, por exemplo, se o objeto A for um sujeito negro e o objeto B um macaco, a ordem metafórica decorrente é extremamente negativa e humilhante, remetendo a uma hostilidade histórica de outridade identitária que reduz o ser humano à animalidade. No entanto, se a raça e o gênero são categorias analíticas que têm possibilitado contendas científicas interdisciplinares, há outros campos nos quais o preconceito ainda sofre de abstração, ainda que seus efeitos sejam mais do que visíveis, incluindo mensagens de instituições que, de maneira geral, deveriam defender os prejudicados. Observe-se, a título de ilustração, a semiótica das metáforas construídas por peças visuais e a narratividade alegórica de produtos audiovisuais, bem como a diferença das abordagens de cada um. A visual agenda da ONG francesa AIDES, produzida pela TBWA\France em 2004, pretendia produzir uma chocante sensibilização para a consciência quanto ao uso do preservativo nas relações sexuais. A campanha publicitária, com circulação também pelo Brasil, teve como slogan “Sem camisinha você está dormindo com AIDS. Proteja você mesmo” e duas peças: na primeira, uma mulher loira, branca, provavelmente de classe média, posicionada em um sofá, recebia

sexo oral de uma gigantesca tarântula; na segunda, um homem branco, de cabelos escuros, fazia sexo em uma cama com um colossal escorpião. O maior equívoco da campanha reside exatamente a correlação metafórica. Se o objeto A é um sujeito soropositivo e o objeto B se apresenta sob a forma de dois aracnídeos visualmente repulsivos da campanha (aranha/escorpião), pode-se concluir, então, que uma pessoa com HIV é tão repulsiva e amedrontadora quanto aquelas espécimes artrópodes. Esse fato “sensibiliza” as pessoas a adotar uma postura de pânico em relação à AIDS e ao HIV, especialmente porque os soropositivos são representados como “inimigos”, animais magnificados, seres impuros e perigosos. É um modo de representação que só reforça devastadores estigmas associados ao vírus e à doença decorrente dele, colocando as pessoas que vivem com HIV como agentes de vilania, figuras monstruosas das quais é preciso se proteger a todo custo. Afinal, dormir (com ou sem camisinha) com esses sujeitos, segundo o conceito preconceituoso da campanha, continuaria a ser um intercurso monstruoso e grotesco. Se A é igual a B, o soropositivo é destituído de humanidade. A AIDES pretendia, com sua mensagem, conter o avanço de pessoas infectadas pelo HIV, mas com base em um custo muito alto: o da dessensibilização em torno dos soropositivos. A campanha instaura um tipo de terror sexual no imaginário público e reforça/aprofunda um equivocado preconceito quanto à soropositividade, um preconceito sem nome. Há de se notar, ainda, como semelhante ordem do terror sexual é explorada em recentes obras audiovisuais de ficção, das quais se destacam a série In The Flesh (2013-2014) e os filmes Contracted (Eric England, 2013) e Corrente do Mal (It follows, David Robert Mitchell, 2014). Produzida pela britânica BBC, a série In The Flesh, tomando como ponto de foco um adolescente gay, pode ser considerada um


cinema

Escrito e dirigido por David Robert Mitchell, Corrente do Mal se utiliza de um tema recorrente nas narrativas de horror, a multiplicação diabólica

dição”, algo que a seguirá para o resto da vida. A única saída para atenuar o mal é passando-o adiante, ou seja, fazendo sexo sem proteção o quanto antes com outra pessoa. O mal adquirido é apresentado como algo visível apenas para a pessoa infectada, figurativizado na forma de fantasmas desnudos e caminhantes de pessoas conhecidas ou não, à procura de sexo. Pela lógica implícita na narrativa, passar a malignidade adiante, por esta não ter “cura”, é o modo de homogeneizar o mundo pela supressão da diferença (a separação entre os “infectados” e os “não infectados”). Vale lembrar que, no cenário dos filmes de horror, incorporando o avesso da divina multiplicação, o tema da multiplicação diabólica é bastante recorrente. Para comprovar tal fato, basta recordar a tradicional mitologia dos monstros, na qual está explícito o caráter da contaminação: a mordida do lobisomem, do vampiro, do zumbi. Corrente do mal enfatiza em seu título em português esse componente das fábulas do horror, o oposto da corrente do bem, acentuando o processo estabelecido pela trama de criação de multiplicadores. Depreende-se, também, que o filme não apenas faz alusão às doenças sexualmente transmissíveis — muito possivelmente à AIDS, considerada ainda hoje o “câncer gay” —, mas também aos efeitos psicológicos devastadores das inquietações associadas à contração de uma doença dessa natureza. Algo que parece reverberar a campanha publicitária desenhada pela agência canadense Bleublancrouge Montréal em 2009. O slogan da peça criada para One Life Resource Centre é “Cada vez que você dorme com alguém, você também dorme com o passado dela. Faça o teste de HIV”. Em uma das imagens veiculadas, vê-se, em pé, um homem sendo acariciado por outro imediatamente atrás dele, no ambiente de um vestiário. Esse sujeito às costas é caracterizado por um “repertório” de outras relações sexuais, um “passado” representado por várias outras mãos que também acariciam o homem em primeiro plano. Em outra imagem, vê-se um casal heterossexual em um sofá: a mulher, de costas, sentada no colo do homem, é abraçada por diferentes mãos, metafóricas relações pretéritas.

Mais acertada que a propaganda para a ONG francesa AIDES, a campanha assinada pela Bleublancrouge aposta na ideia da invisibilidade do passado dos sujeitos, por um viés humanizador, sem monstrificar o soropositivo ou colocá-lo como um agente do Mal. A ideia da história sexual de um sujeito é entendida como uma sequência de eventos na qual é possível ter ocorrido inadvertidamente algum dano, de modo que é necessário realizar um teste de HIV para certificar-se de que o corpo continua livre de infecções. Em certo sentido, o histórico invisível de relações sexuais poderia ser lido como a metáfora presente no filme Corrente do Mal — pessoas conhecidas (com quem se teve relação sexual) e desconhecidas (com quem indiretamente se teve uma relação sexual pelo corpo do outro) podem perturbar a tranquilidade psicológica na busca pelo “momento zero” da infecção. Os fantasmas persecutórios, de acordo com tal hipótese interpretativa, seriam os possíveis responsáveis pela condição sorológica dos “amaldiçoados”. Como é possível verificar nos casos analisados, a correlação metafórica entre soropositivos e a monstruosidade/malignidade apenas demonstra o quanto prevalece um severo ataque estigmático contra pessoas que, ainda hoje, são obrigadas a viver em uma zona indistinta e silenciosa, à sombra da maioria e da alteridade. E, por falta de um nome para esse tipo de preconceito, prática que poderia agrupar todas as discussões políticas sobre os direitos e deveres dos soropositivos, um número cada vez mais significativo de pessoas percebe sua representação na cultura de massas como doentia, perversa e aterrorizante. Em vista da correlação temática entre sexo e horror e da operação metafórica mantida entre soropositivo e monstruosidade, é mais do que necessário criar dispositivos legais para impedir que a produção/reprodução de ideologias estereotipadas e estigmatizadas continue exercendo semelhante violência simbólica. Afinal, se a igualdade é um desejo planetário, a única saída possível dessa “crise da diferença” é pela via da humanização das relações, a que permita que os fatos sejam tratados sob a ação de efeitos afetuosos. Para todos, sem distinção.

Marcio Markendorf (Guarapuava, 1981) é doutor em Teoria da Literatura e professor do curso de Cinema na UFSC.

drama sobre o tema da (in)tolerância. De acordo com a fábula criada, após o ano da Ascensão, mortos teriam se levantado dos túmulos e atacado os vivos, provocando grande destruição. Constituindo uma espécie atípica de zumbis, os chamados “rotters”, esses mortos-vivos poderiam ser tratados com remédios, uma vez que a medicina descobriu tratar-se de uma doença chamada de PDS (Partially-Deceased Syndrome), algo como Síndrome do Parcialmente Morto. Para que os doentes pudessem ser reintegrados à sociedade, um duo de dispositivos (maquiagem e lentes de contato) deveria ser usado pelos zumbis para mascarar as marcas da enfermidade, algo associado a injeções diárias para o controle do avanço da síndrome no corpo dos infectados. Tendo como centro do drama a luta de uma pequena comunidade contra a reintegração dos “rotters”, muito especialmente pela milícia HVF (Human Volunteer Force), parece inarredável entender o contexto ficcional como uma alegoria da ascensão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida na década de 1980, epidemia compreendida à época (e ainda hoje, por alguns) como uma praga provocada pelos homossexuais, além da alusão feita pela narrativa às terapias antirretrovirais. Os hospitais estatais de tratamento de In The Flesh, muito semelhantes a campos de concentração, parecem dar materialidade às preocupações de Alan Moore em 1988, registradas em V de Vingança, acerca do receio de que centros de confinamento militar para pessoas com AIDS fossem construídos, algo acalentado por jornais tabloides do seu tempo. Ou, ainda, o horror do roteirista quanto a declarações do governo conservador sobre a proposta de reduzir a homossexualidade (ainda lida como doença) a um valor abstrato. Exemplos que só relembram que, na esteira da história, muitos foram vitimados pelo irrealismo da normatividade e pela marginalização fóbica e opressiva — indígenas, judeus, negros, homossexuais, soropositivos, pessoas com deficiência etc. É o preconceito como fábrica de monstros. No filme Contracted, seguindo por outro caminho, uma jovem faz sexo com um sujeito e contrai uma doença desconhecida que a transformará em um ambulante corpo pútrido. O grotesco toma forma por meio de corrimentos viscosos, rash cutâneo, feridas necrosadas, vermes na vagina, dentre outros efeitos. A narrativa enfoca o aspecto nauseante de uma doença sexualmente transmissível agindo sobre o corpo, constituindo a ficcional enfermidade uma clara referência aos efeitos da AIDS. A produção audiovisual, com tal ênfase, acaba por sugerir que aquilo que poderia ser uma fonte de prazer pode tornar-se exatamente o desprazimento mais incisivo, tendenciosamente produzindo uma ideia do ato sexual como um objeto fóbico. Já em Corrente do Mal, depois da primeira noite de sexo com o novo namorado, a protagonista desenvolve um tipo de “mal-

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luiza puiu

economia

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O avanço do precariado Economista britânico aponta o crescimento de uma nova categoria de trabalhadores refém das artimanhas da voracidade e da racionalidade capitalista

e doutor em Educação (UFSC), professor do Centro de Ciências da Educação da UFSC.

Jéferson Dantas (Bagé, 1973) é historiador

Jéferson Dantas Guy Standing, economista britânico nascido em 1948 e professor de Estudos de Desenvolvimento na escola de Estudos Orientais e Africanos na Universidade de Londres e um dos fundadores da organização não governamental Basic Income Earth Network, tem se dedicado nos últimos anos a pesquisas sobre economia e flexibilização do mercado de trabalho, desemprego, proteção/seguridade social e políticas de ajustamento estrutural. Uma de suas últimas investigações é, justamente, sobre o fenômeno social emergente que denominou precariado — conceito com o qual nomeou a obra O precariado: a nova classe perigosa, publicada na Inglaterra em 2011 e traduzida no Brasil, em 2014, por Cristina Antunes, para a Editora Autêntica.

O exame realizado pelo economista britânico é salutar tanto pelo esforço de análise e levantamento de dados empíricos quanto pela identificação da emergência de uma classe social intermediária, em nível mundial, que ele denominou precariado. Seguindo a sua linha de raciocínio, a origem do termo é bastante controversa, já que, segundo o autor, o precariado carece de uma identidade ocupacional. O precariado, nesta direção, por meio da argumentação do autor, não se localizaria no mesmo status dos proletários clássicos e muito menos no dos assalariados da classe média. O precariado está inserido em ofícios degradantes, como são os casos dos call centers, em estágios mal remunerados das médias e grandes empresas, definidos pelo “curto prazismo”, sem qualquer chance de construção de uma carreira profissional. Tais situações mortificadoras

de subempregabilidade têm levado ao aumento alarmante de suicídios e doenças psicossociais em diversas partes do mundo. No Japão, por exemplo, a expressão karoshi representa bem essa condição, compreendida como morte por excesso de trabalho. Standing problematiza, também, o uso das novas tecnologias de informação e comunicação nos hábitos do precariado, entendendo-as como novas formas de reprogramação do cérebro. A vida digital ou virtual estaria destruindo o processo de consolidação da memória de longo prazo, “que é a base do que gerações de seres humanos vieram a considerar como inteligência, a capacidade de raciocinar mediante processos complexos e de criar novas ideias e modos de imaginação”. Em outras palavras, as redes sociais estariam fortalecendo vínculos frágeis de sociabilidade e enfraquecendo vínculos fortes, como são as redes familiares e o trabalho coletivo, reprimidos num presentismo interminável e desistoricizado. O economista britânico aponta que os “multitarefeiros” são fortes candidatos ao precariado, pois teriam menos concentração e dificuldades em distinguir informações relevantes das irrelevantes, além de sofrerem muito mais com o estresse e a fadiga orgânica; a força de trabalho exaurida do precariado acaba levando-lhes aos desengajamentos políticos e sociais. Standing calcula que 25% da população mundial faz parte do precariado. Outro aspecto apresentado por Standing refere-se à ausência de perspectivas por parte da juventude, que se vê cada dia mais na qualidade de “nômade urbano” e sem o respaldo da família, à diferença do que acontecia décadas atrás. Essa cadeia, por sua vez, destrói a perspectiva de solidariedade com os familiares no envelhecimento. O autor também dedica muitas páginas à discussão sobre a mercantilização da educação em todos os seus níveis de ensino, revelando que tal tendência global tem produzido um inflacionamento de diplomas supersimplificados para trabalhadores supersimplificados, naquilo que o mesmo denomina de streaming schooling (algo como “escolarização superficial/aligeirada”, numa tradução livre). Standing faz uma série de advertências sobre o caráter “perigoso” do precariado, tendo em vista que é uma classe menos afeita aos engajamentos políticos, com pouquíssima adesão sindical e até mesmo avessa aos regimes democráticos. Essa “nova” classe — e Standing o indica — é virtualmente refém de concepções totalitárias. Fica-nos, assim, como horizonte de debate, a contribuição desse economista britânico na esfera de projetos sociais em luta que, muitas vezes, ainda que bem intencionados, são insuficientes para combater a voracidade da racionalidade capitalista e suas artimanhas para pauperizar e desedificar ainda mais a classe trabalhadora.


Algumas notas conceituais sobre o filme O Vídeo de Benny, de Michael Haneke, e sobre a incoerência da condição humana perante a existência do mistério elementar Marco Túlio Ulhôa Para determinada tradição filosófica, a disposição da alma e do seu equilíbrio com a matéria é a conjunção que impede a progressão infinita da linha reta que significa a racionalidade e, por fim, mantém vivo os anseios da nossa própria animalidade. Assim, é possível dizer que talvez tenham sido as bases do pensamento metafísico o principal ponto de apoio para os questionamentos levantados em praticamente toda a cinematografia do diretor austríaco Michael Haneke. Entretanto, a origem das interrogativas que circundam a obra do cineasta são os acordos e dessemelhanças entre a perspectiva crítica de Haneke e a forma como ela se faz visível em seus filmes, partes de um vasta especulação filosófica sobre a economia da barbárie diante dos aportes da civilização ocidental. Para além dos diferentes tipos de “desordens” psicosociais retratadas nos enredos dos filmes de Michael Haneke, o sentido ordenativo dado não só ao seu método cinematográfico, mas também ao tratamento dos personagens e às questões dramatúrgicas, revelam a profundidade dos questionamentos levantados pelo diretor, sob a qual os pontos de tensão se ocultam numa visibilidade normativa. Algo que, como na explanação filosófica que abre o texto, apresenta as distorções entre a disposição dos fatos narrativos, mediante o seu equilíbrio com a forma cinematográfica. Portanto, para me aprofundar em tal relação, me detenho em algumas considerações sobre o filme O Vídeo de Benny (1992), segunda obra da trilogia conhecida como Trilogia da Era do Gelo Emocional (também chamada

de Trilogia da incomunicabilidade ou Trilogia da glaciação). Filme que não figura entre os mais importantes da cinematografia de Michael Haneke, mas que traça fortes indícios do nascimento de uma postura que, a partir dali, permearia toda a sua obra. Em O Vídeo de Benny, a história protagonizada pelo garoto Benny amplifica a visão de Michael Haneke sobre o contexto da classe média austríaca, a partir do retrato de um adolescente de 14 anos que, trancafiado na escuridão do seu quarto, dedica boa parte de seu tempo aos videotapes, muitos deles, por ele mesmo realizados. Dentre os registros videográficos feitos pelo garoto está a execução de um porco, ocorrida na fazenda de seus familiares. O voyeurismo sádico que normalmente circunda o exercício de apreciação desses vídeos decorre no momento chave do filme, em que Benny vê a sua rotina “abalar-se” por um evento trágico — ao menos para nós espectadores. Após convidar uma garota desconhecida para ir até sua casa, Benny propõe-lhe um flerte com a mesma arma usada na execução do porco, arma recebida como um presente de seu pai. Na ocasião, a arma dispara, e o momento é registrado por uma das câmeras de vídeo, habitualmente, utilizada para registrar os movimentos do ambiente do quarto de Benny. No entanto, em um ato ambivalentemente cercado de desespero e frieza racional, com a garota ainda viva e estendida no chão, Benny recarrega a arma mais duas vezes, a fim de terminar a mal sucedida execução. Solitário em casa, o garoto oculta o cadáver em seu próprio armário e, posteriormente, sai para se divertir com um amigo. Com o retorno de seus pais, Benny convida-

cinema doutorando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense e especialista em Produção e Crítica Cultural pela PUC Minas.

A experimentação da violência

-os para assistir ao vídeo da morte da garota. Diante de certo abalo, porém sem demais afetações emocionais, os pais de Benny se põem a pensar em um plano para dar fim ao corpo e às evidências do crime. O pai de Benny se propõe a realizar tal tarefa, enquanto o garoto parte de férias com sua mãe rumo ao Egito. Após deixar para trás não só a árdua responsabilidade de arcar com os seus próprios atos, mas também o ambiente escuro de seu quarto, Benny imerge em um cotidiano tomado pelo entretenimento e o brilho do sol. No entanto, o que deveria ser um respiro para o garoto acaba por remeter ao tédio e à insatisfação. A pressão psicológica que acompanha a mãe de Benny não apresenta ameaças para a sua estabilidade emocional. Sendo assim, Benny atravessa uma dualidade indiferente ao contraponto entre a claridade na qual seu quarto se encontra após o seu retorno, frente ao clima obscuro comum àquele ambiente. Nesse momento, é complicado entender até que ponto Haneke busca consequências para os atos de Benny nas suas aspirações voyeurísticas. Apesar do fascínio do garoto pelas imagens, a linguagem do diretor não parece impelir a nenhum tipo de determinismo perante a complexidade do personagem ou de qualquer mea-culpa social. Em determinados momentos, a narrativa ressalta o apego de Benny a pontos específicos de seus vídeos. Entretanto, considerando a falta de explicações para as variações entre a frieza dos atos do garoto e outros momentos de certa impulsividade (como na seqüência onde Benny resolve raspar a cabeça), vemos no personagem a exposição de um paralelo entre a rebeldia e a completa apatia. Portanto, na analise da obra de Michael Haneke não se trata apenas de inverter a lógica de um mundo sem princípios, em busca das figurações sensíveis da violência. A grande questão não estaria só no esvaziamento emocional de Benny, na falta de perspectiva moral ou nas impostações das imagens de Haneke como crítica à própria austeridade da forma. O que fica como incógnita na conduta do garoto é a experimentação do mistério e a exploração do que ainda por ele não foi desvendado. Se a frieza e a estabilidade emocional são as bases da percepção de sua conduta humana, a obscuridade do enigma interfere na busca de desvendar novos desfechos, por mais que a indiferença exacerbada de Benny seja o resultado dessa equação. A curiosidade e a falta de explicação para seus próprios atos são a distorção na progressão da linha reta. Nesse sentido, Haneke não se detém necessariamente sobre o exercício da razão, mas sim sobre a incoerência da condição humana perante a existência do mistério elementar, como problema proposto ao determinismo niilista. Em O Vídeo de Benny, a violência surge então como experiência proposta ao equilíbrio da alma. Equilíbrio que se encontra na liberdade de escolha que, ao contrário de ser “livre” e determinada ao nada, é aberta e relativizada pelo ininteligível. Pois, o ato livre nada mais é do que a expressão da alma inteira no momento em que ela o realiza.

Marco Túlio Ulhôa (Belo Horizonte, 1985) é jornalista,

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política internacional

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A arma dos fracos A ameaça do terrorismo ganha novas dimensões com o ataque de extremistas islâmicos ocorridos recentemente na Bélgica

Bernardo de Azevedo Brito (Rio de Janeiro, 1935)

é embaixador aposentado e autor do livro Iraque: dos primórdios à procura de um destino (2.a edição, EdUFSC, 2016).

Bernardo de Azevedo Brito Os acontecimentos trágicos que acabam de abalar a Bélgica, com um grande número de mortes e de feridos, causam justa revolta pela covardia e pela desumanidade que refletem. Como tudo indica tratar-se de desdobramento dos ataques terroristas que extremistas islâmicos praticaram em Paris em novembro de 2015, mais razão haveria para que se procurasse analisar o que está se tornando a praga do século 21. Se não for possível encontrar de imediato um antídoto, além da correção em alguns casos de injustiças históricas, que se possa ao menos ter uma compreensão melhor do problema, de maneira inclusive a não confundir uma confissão religiosa, digna de nosso respeito, com um comportamento na verdade contrário aos seus próprios preceitos. Os ataques terroristas, que a comunidade internacional tem condenado de maneira inequívoca, vêm-se tornando mais frequentes, como se sabe. Trata-se de fenômeno que não é novo, e que por isso mesmo merece cuidadosa reflexão. Numa observação lapidar, que resume a essência do problema,

David Fromkin afirmou, em ensaio por ele publicado em julho de 1975 na revista Foreign Affairs, que o terrorismo é a arma dos fracos, enquanto a guerra e a revolução são as armas dos fortes. Às palavras de Fromkin acrescentaria que o terrorista, pelo medo que procura inspirar através dos seus atos violentos e cruéis, visa criar a falácia de possuir uma força invencível, à qual mesmo os poderosos devem se render. São variadas as situações em que o terrorismo já foi praticado, mesmo por vezes no contexto de movimentos inspirados por causas justas. Na atualidade, quando falamos de terrorismo, estamos aludindo em geral, contudo, às iniciativas do chamado Estado Islâmico que, em junho de 2014, criou um novo Califado nos territórios ocupados por suas milícias entre a margem oriental do Mar Mediterrâneo e o rio Eufrates, no Iraque. Nunca é demais lembrar, a propósito, que os antecedentes são muitos, embora sem a escala ou a sistemática de terror dos novos bárbaros do nosso século. O atentado que vitimou o herdeiro do Império Austro-Húngaro, servindo de estopim para o início da Primeira Guerra Mundial, foi um dos muitos exemplos de violência de origem política. Na verdade, situações de natureza similar têm-se multiplicado nas últimas décadas. Ora foram atos identificados com movimentos de libertação de uma etnia, como ocorreu na Irlanda no século 20; ora foram populações que se revoltaram, com os meios a seu dispor, contra forças invasoras, como no caso de iniciativas da resistência francesa contra as tropas nazistas que ocuparam parte do seu país na Segunda Guerra Mun-

dial; ora foram simplesmente pessoas tresloucadas, que pretendiam fazer uma cruzada em favor de suas ideias políticas extremadas — como se verificou há poucos anos na civilizada Noruega. Promover o caos é, na maioria das situações, o objetivo do terrorista, que estima que o resultado último lhe será favorável. É o que teria acontecido, com roupagens anarquistas, nos anos turbulentos que, na Rússia Czarista, precederam a Revolução de Outubro. No caso específico do Estado Islâmico estamos diante de uma situação em que não basta promover o caos. O objetivo de Abu Bakr al-Baghdadi, o autoproclamado Califa que vem operando no Iraque e na Síria, é fazer tábua rasa do mapa político do Oriente Médio, e criar uma entidade com poder absoluto, tanto temporal como religioso, sobre todos os muçulmanos da vertente sunita, sejam eles árabes ou não. Trata-se de projeto que pareceria impraticável, mesmo no cenário limitado da aludida região. Para assegurar a submissão pelo medo, a violência passa a ser a norma, e não se trata apenas de violência praticada contra os infiéis, ou mesmo contra os odiados apóstatas xiitas, pois dela são vítimas também populações muçulmanas reduzidas elas próprias a condições de servidão e grande sofrimento. É na reação dessas populações que haveria talvez a esperança de o fundamentalismo do Estado Islâmico acabar por ceder espaço para uma sociedade identificada com as aspirações pacíficas do verdadeiro Islã. Ao Ocidente se imporia por sua vez uma atitude firme na defesa da sua segurança, mas ao mesmo tempo de prudência.


No dia 2 de agosto de 1940, Walter Benjamin escreveu ao amigo Theodor W. Adorno sobre a sua desesperança de tentar escapar do horror que fez a Europa se esquecer da própria consciência história Alexandre Fernandez Vaz Há 75 anos, Walter Benjamin escrevia em Lourdes, França, uma carta a seu amigo Theodor W. Adorno, já então vivendo em Nova York, para onde emigrara depois de um curto período na Inglaterra. Ambos haviam deixado a Alemanha em razão da ascensão do Nacional-Socialismo. Benjamin peregrinara por vários países e procurara fixar-se em Paris para não deixar a Europa, onde havia “posições a defender”, mas também porque lá escreveria, até onde lhe fora possível, a monumental obra Passagens, uma arqueologia da modernidade em seu momento áureo, o século 19, e em sua capital, Paris. Seu objetivo, no momento em que assinava a carta, em 2 de agosto de 1940, era juntar-se ao amigo nos Estados Unidos da América, destino de muitos intelectuais e artistas judeus, de esquerda ou simplesmente opositores do regime totalitário que se instalara, definitivamente, em 1933. Hannah Arendt, Thomas Mann, Bertold Brecht, Hans Eisler, Fritz Lang, entre tantos, viveram nos Estados Unidos, principalmente em Nova York e na Costa Oeste, onde vários encontraram trabalho na indústria cinematográfica em Hollywood.

Adorno era membro do Instituto de Pesquisa Social, naquele momento abrigado na Columbia University, em Nova York, liderado por Max Horkheimer. Na Europa, a situação financeira de Benjamin era extremamente difícil, e uma bolsa do Instituto, mais a remuneração eventual de trabalhos literários, garantia-lhe a precária subsistência. A essas alturas, sua cidadania já havia sido cassada e parte de seus manuscritos confiados a George Bataille. O que restara de sua biblioteca seria confiscado pela Gestapo. Munido de uma carta de Horkheimer que lhe fora entregue no Consulado estadunidense em Marselha em 23 de setembro, mais o visto para a América, Benjamin pretendia chegar ao porto de Lisboa, mas na fronteira franco-espanhola em Port Bou, na Catalunha, é impedido de seguir viagem. A ordem é ir a Paris para buscar um visto de saída, que seria, naquelas circunstâncias, não apenas impossível, mas a senha para entregar-se à morte, provavelmente depois da deportação a um campo de concentração e extermínio. Extenuado e sem esperanças, Benjamin põe fim à própria vida na noite entre 26 e 27 de setembro, não sem antes pedir a Hanny Gurland, que o acompanhava, que transmitisse “meus pensamentos ao

filosofia é pós-doutorando na Leibniz Universität Hannover e no Walter Benjamin Archiv (Berlim), com bolsa CNPq.

Uma última carta

meu amigo Adorno e [que] lhe explique a situação em que me vi colocado. Não me resta muito tempo para escrever todas aquelas cartas que eu desejara escrever”. A carta de 2 de agosto foi a última de Benjamin para Adorno, colocando fim a uma longa correspondência que começara 12 anos antes. A leitura do volumoso livro que a reúne, publicado no Brasil em tradução de José Marcus Mariani de Macedo (São Paulo: Editora da UNESP, 2013), mostra muito do desenvolvimento do trabalho de ambos, da leitura mútua e do clima intelectual da época, assim como também da amizade que se desenvolveu entre o então jovem e brilhante Adorno e o já estabelecido e não menos brilhante filósofo e crítico berlinense. As cartas também trazem as peculiaridades dessa amizade: solidariedade, respeito, admiração, mas também disputas, mal-entendidos e severas discordâncias. Mostra ainda a presença de Gretel Adorno, muito amiga de Benjamin, que a ela se refere como Felizitas, e com a qual também exercitou longa correspondência. Na derradeira carta, impressiona a tremenda coragem de Benjamin, cujas dificuldades passadas incluíam um período de internação em um campo de prisioneiros em Nevers: “Espero que eu lhe tenha passado até agora a impressão de que mantenho a calma mesmo em momentos difíceis. Não imagina que isso mudou. Mas não posso me fechar ao perigo da situação. Receio que aqueles que conseguirem se salvar serão um dia contados nos dedos.” A insegurança é enorme, a derrocada do que é civilizado vai se dando de forma acelerada e o receio “é que o tempo à nossa disposição seja muito mais reduzido do que supúnhamos”. Aqueles meses do verão de 1940 marcam também a escrita do último texto conhecido de Benjamin, Sobre o conceito de história. Uma de suas questões mais importantes é a urgência de se construir um novo conceito de tempo, contra aquele “homogêneo e vazio” de historicistas e positivistas, tempo que se colocasse como revolucionário. Não houve tempo para salvar-se, muito menos para uma carta de despedida. Cartas são hoje um gênero literário que se tornou anacrônico. Ao lembrar a morte de Walter Benjamin e das cartas, fica o espanto frente a um pensamento que parece mais atual do que quando foi formulado, que nos alimenta na luta pela memória, pela história e sua transformação: “A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio.”

Alexandre Fernandez Vaz (Porto Alegre, 1967)

walter benjamin archiv

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e-mail: carlalinhares@yahoo.com site: http://www.carlalinhares.com

fotografia

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Carla

(Itabira, MG, 1975). Bacharel em desenho pela Escola de Belas Artes da UFMG, 2000. Participou de cursos e seminários sobre arte contemporânea e fotografia no Brasil e exterior, como Paraty em Foco e TransUrbanism, Netherlands Architecture Institute, Rotterdam, Holanda. Realizou uma série de exposições individuais e coletivas, como Portraits 2014 — The Center for Fine Art Photography/USA; Multitude, SESC Pompéia/SP, 2014; 10.o Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco/RJ, 2014; Tudo é Brasil — Instituto Itaú Cultural/SP, 2005.

Linhares

“Túnica Matão é parte da série Matão, em que fotografo museus de arte, e os insiro em um cenário no qual as plantas começam a invadi-los, desenvolvendo uma situação de pós catástrofe ou destruição de um estado de coisas. Passado ou futuro? Talvez Matão esteja em um lugar atemporal, em uma espécie de heterotopia, se configurando como um lugar à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do tempo em que vivemos.”


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