Revista da Academia Catarinense de Letras n27

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ACADEMIA CATARINENSE DE LETRAS Fundada no dia 30 de outubro de 1920 em Florianópolis. Reconhecida de utilidade pública: Estadual — pela Lei n.o 1.664, de 24 de outubro de 1927. Municipal — pela Lei n.o 870, de 16 de maio de 1968. CNPJ 78.828.951/0001-40 © Academia Catarinense de Letras Revista da Academia Catarinense de Letras Fundada em janeiro de 1968. Coleção ACL — Ano XLVII — Período 2013 e 2014 — n.o 27

Academia Catarinense de Letras Presidente

Salomão Ribas Jr. Pinheiro Neto Secretária Lélia Nunes Tesoureiro Amilcar Neves Conselho Fiscal Celestino Sachet, Moacir Pereira e José Artulino Besen Vice-Presidente

revista da ACL Jr. e Pinheiro Neto Olsen Jr. (DRT/SC 875) Conselho Editorial Flávio José Cardozo, João Nicolau Carvalho e Pinheiro Neto Capa Projeto gráfico de Olsen Jr. com designer de Mauro Ferreira sob aquarela do artista Átila Ramos Miolo Ayrton Cruz (planejamento gráfico, ilustrações e fotos) Ilustrações Idésio Leal (Guantánamo, p.88) e Rodrigo de Haro (Meio Invisível, p.90) Revisão Ana Bessa e Artêmio Zanon

Projeto Editorial Olsen

Editor responsável

Agradecimentos especiais Salomão Ribas Jr., porque acreditou no projeto; Artêmio Zanon nas pesquisas históricas e digitação; Miro Morais sempre presente nos encaminhamentos e nas decisões que tornaram tudo possível e Pinheiro Neto pela viabilização econômica do projeto.

Avenida Hercílio Luz, 523 Casa José Boiteux — Centro 88010-970 — Florianópolis — SC Telefone: (48) 3665-6341 www.acl-sc.org.br academiacatarinensedeletras@gmail.com


5 Acadêmicos

Cadeira 1 Cadeira 2 Cadeira 3 Cadeira 4 Cadeira 5 Cadeira 6 Cadeira 7 Cadeira 8 Cadeira 9 Cadeira 10 Cadeira 11 Cadeira 12 Cadeira 13 Cadeira 14 Cadeira 15 Cadeira 16 Cadeira 17 Cadeira 18 Cadeira 19 Cadeira 20 Cadeira 21 Cadeira 22 Cadeira 23 Cadeira 24 Cadeira 25 Cadeira 26 Cadeira 27 Cadeira 28 Cadeira 29 Cadeira 30 Cadeira 31 Cadeira 32 Cadeira 33 Cadeira 34 Cadeira 35 Cadeira 36 Cadeira 37 Cadeira 38 Cadeira 39 Cadeira 40

Edy Leopoldo Tremel Urda Alice Klueger Moacir Pereira João Alfredo Medeiros Vieira Vaga Hugo Mund Júnior Leatrice Moellmann Vaga João Nicolau Carvalho Júlio de Queiroz Olsen Jr. Edson Nelson Ubaldo José Artulino Besen Vaga Celestino Sachet Vaga Gilberto Gerlach José Curi Sérgio da Costa Ramos Miro Morais Vaga Antônio Carlos Konder Reis Flávio José Cardozo Pinheiro Neto Carlos Ronald Schmidt Lélia Pereira da Silva Nunes Pedro Bertolino Péricles Luiz Medeiros Prade Napoleão Xavier do Amarante Jali Meirinho Walter Fernando Piazza Amilcar Neves João Paulo Silveira de Souza Osvaldo Della Giustina Rodrigo de Haro Vaga Artêmio Zanon Salomão Ribas Junior Gilberto Callado de Oliveira Vaga


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7 editorial

A

primeira edição da Revista da Academia Catarinense de Letras se deu em janeiro de 1968. De lá para cá a publicação sofreu várias oscilações, seja em seu conteúdo, seja em sua periodicidade. Se antes tinha como ponto de referência o ensaio crítico-literário, mais tarde passou a ser um repositório da produção acadêmica sem uma organização que lhe desse uma linha editorial. Premiava-se a continuidade, a presença marcada de tempos em tempos e, finalmente, em seus últimos números ganhou um método, quando as colaborações passaram a compor um todo obedecendo à ordem das Cadeiras ocupadas pelos integrantes da Academia, mas ainda assim ressentida de um projeto para lhe emprestar uma personalidade gráfica, uma organicidade e um conteúdo abrangente, ou ainda, uma dimensão capaz de justificar o interesse externo no que se faz aqui e que se percebe no material recebido e publicado até então. A partir destas constatações havia a necessidade de se criar e desenvolver um novo projeto, algo moderno e contemporâneo, capaz de contemplar uma abrangência maior de assuntos e temas simultaneamente em que os apresentasse de maneira leve e pertinente, levando em conta a produção acadêmica (que justifica a publicação) e incorporando opiniões diversas sobre iniciativas ligadas à área literária, fomentando o debate de maneira crítica (o que torna a publicação necessária). Além disso, mesmo correndo o risco da redundância, nós deveríamos pagar os textos encomendados. Com a iniciativa nos desembaraçávamos das colaborações (não encomendadas) sem constrangimentos e ao mesmo tempo inauguraríamos um procedimento não usual em nosso meio: remunerar o trabalho intelectual. A tabela do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Santa Catarina servirá de referência neste caso.


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Outras novidades aparecem nesta edição número 27 da Revista (em que pela última vez aparecem encartados na publicação os anais da Academia Catarinense de Letras), que mesmo em fase de transição (ou por isso mesmo) revela algumas sessões que constarão nas edições subsequentes. Assim, a Revista foi totalmente repensada, a partir de textos acadêmicos (poesias, contos, crônicas, ensaios e artigos) que ganharam sessões bem definidas, outras foram criadas: inicialmente um ensaio, que deverá ser um texto instigante, motivador, inquietante, nesta edição “As Maneiras de Dizer a Verdade”, de Bertolt Brecht, produzido em 1930, mas parece que foi escrito ontem; há um espaço para as traduções (nesta edição, inaugurada com a participação de Silveira de Souza traduzindo o conto “Berenice”, de Edgar Allan Poe); também um lugar para uma reportagem em cada edição (agora aberta com um texto de Raul Caldas Filho sobre “Os Velhos Cinemas de Florianópolis,” ilustrada com uma dúzia de telas do artista plástico Átila Ramos); principalmente, demos um grande passo no sentido da integração entre a Academia e a comunidade, onde está inserida que foi a incorporação da ideia de se convidar em todos os números, até cinco pessoas (especialistas em suas áreas) para comentar sobre assuntos diversos o que se passa no imaginário coletivo nacional em temas com vinculação comportamental nas artes e na cultura e que nos integra num mesmo pathos social. Nesta edição podemos aprender um pouco sobre as Leis de Incentivo à Cultura no texto “Consolidar Boas Práticas”, de Márcio Godoy, um pioneiro neste modus operandi em Santa Catarina; o que se pensa da nova reformulação ortográfica em nosso idioma, com a experiência de quem conhece bem, “Por um Acordão que seja Acórdão do Acordo Ortográfico”, com o escritor Deonísio da Silva; e não poderia faltar um tema político, mas também jurídico, “Democracia e Direito — as tentativas para a politização do Judiciário e do Ministério Público”, pela doutora Márcia Aguiar Arend; finalmente um canto para a memória denominado “Arquivo Pessoal” com entrevistas notáveis e que já traz uma conversa entre o jornalista Moacir Pereira com o polêmico articulista e escritor Paulo Francis, encerrando este número 27 da nossa nova Revista da Academia Catarinense de Letras. Neste projeto ousado de reformulação editorial e gráfico da Revista, temos que destacar uma ideia original que os jornalistas podem denominar de “uma grande sacada”, o pessoal do marketing chamaria de “uma bossa criativa” ou então os acadêmicos de “um insight de gênio”, a começar pelo título que vai aparecer para o leitor menos atento como algo mutante, a cada edição um nome diferente para a publicação, que se chama unicamente Revista da Academia Catarinense de Letras. Decidiu-se homenagear um livro que foi um marco, seja na literatura, ciência, antropologia ou qualquer área em função de datas jubilares ou comemorativas de nascimento ou morte de um escritor ou pesquisador que foi destaque em sua época. A escolha de Tristes Trópicos,


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de Claude Levi-Strauss, se deu em função de que a nossa Revista inicialmente deveria se chamar “Trópicos”, mas para não parecer impertinência, uma vez que este nome é lembrado desde os modernistas (remember a Semana de Arte Moderna em 1922), fizemos esta associação como uma “saída” honrosa e um encontro afortunado com uma nova ideia que teve ampla aceitação entre os acadêmicos consultados antes da nova Revista da Instituição dar o ar de sua graça, o que estamos fazendo agora. Outra boa ideia que parece não ter precedência na área editorial de uma revista literária, foi a iniciativa de se tomar as doze ilustrações da reportagem inicial (dos cinemas que já existiram em Florianópolis) e que além de compor a capa (como fundo) também foram distribuídas ao longo do corpo da Revista, fazendo com isso uma costura arquitetônica e dando uma unidade a todo o material impresso como se fosse um monumento e as peças inseparáveis do todo harmônico e coeso. A mobilização para executar este novo projeto da Revista fez com que reuníssemos vários profissionais de artes ligados à área: designer gráfico, diagramador, fotografia e desenho, enfim, o que sugere para um tempo próximo a criação de um estúdio incorporado às instalações da Academia para servir de apoio, não só à Revista, mas também a todos os interessados em publicar um livro, começando pelos acadêmicos e abrindo o espaço para outros escritores. Depois de tudo isso, o que se pode desejar ainda? Ah! Que tenham uma boa leitura!


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Sumário livro homenageado nesta edição

10 . TRISTES TRÓPICOS Claude Lévi-Strauss ENSAIO

16 . CINCO MANEIRAS DE DIZER A VERDADE Bertolt Brecht tradução

30 . BERENICE

Edgar Allan Poe (tradução de Silveira de Souza) reportagem

48 . OS VELHOS CINEMAS DE FLORIPA Raul Caldas Filho poesia

54 . quatro poemas

Leatrice Moellmann 70 . NANO POEMAS À META POESIA Pinheiro Neto 88 . GUANTÁNAMO Emanuel Medeiros Vieira conto

60 . DUAS VIRGENS PARA O VIDENTE MANOEL Edson Ubaldo 76 . TOMA LÁ... DÁ CÁ Júlio de Queiroz 90 . MEIO INVISÍVEL Péricles Prade 128 . ZÉ DA UNHA E A MÚSICA CAIPIRA José Curi


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artigo

66 . Consolidar Boas Práticas

Márcio Godoy 80 . POR UM ACORDÃO QUE SEJA ACÓRDÃO DO ACORDO ORTOGRÁFICO Deonísio da Silva 118 . DEMOCRACIA E DIREITO: as tentações para a politização do Judiciário e do Ministério Público Márcia Aguiar Arend resenha

84 . O ESCRITOR E HISTORIADOR MOSIMANN João Alfredo Medeiros Vieira crônica

94 . três textos

Urda Alice Klueger 132 . Othon D’Eça e Vitorino Nemésio Sérgio da Costa Ramos arquivo pessoal

102 . Entrevista com paulo francis Moacir Pereira

138 . anuário 218 . datas comemorativas 230 . memória / Sessão da Saudade 262 . resenhas


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13 livro homenageado nesta edição

TRISTES TRÓPICOS Claude Lévi-Strauss (28.11.1908 — 30.10.2009)

Foi num domingo de 1934, às nove horas da manhã, que ele decidiu o seu futuro. Um telefonema de Célestin Bouglé (diretor da Escola Normal Superior) com a pergunta: “Você continua com vontade de fazer etnografia?”. “Sem dúvida!”. “Então, apresente sua candidatura para professor de sociologia da Universidade de São Paulo. Os arredores estão repletos de índios, a quem você dedicará os seus fins de semana. Mas é preciso dar sua resposta definitiva a George Dumas (professor e psicólogo da Escola Normal Superior) antes do meio dia”. Assim, o próprio Lévi-Strauss abre a Parte II (anotações de viagem), inaugurando o capítulo 5 (olhando para trás) de sua obra Tristes Trópicos, objeto de nossa homenagem. Lévi-Strauss já tinha estudado direito e se graduado em filosofia na Sorbonne (com doutorado e a tese: “As Estruturas Elementares do Parentesco” — uma paráfrase ao título de Emile Durkheim As Formas Elementares da Vida Religiosa, publicada posteriormente em 1948), mas sua indecisão sobre o que fazer da vida terminou ali no momento em que aceitou o convite para vir ao Brasil, São Paulo, na USP, onde lecionaria a disciplina de sociologia. Sua experiência como antropólogo iniciou oficialmente em 1938, véspera de completar 30 anos, com uma das últimas expedições no estilo oitocentista fazendo o mesmo caminho do marechal Cândido Rondon e percorrendo, em seis meses, mais de 1.000 km de uma só vez, conhecendo e convivendo com várias tribos indígenas. O contato com os silvícolas raramente excedia a uma ou duas semanas e, contrariando o que normalmente se fazia, não se detinha em estudar com profundidade cada grupo étnico, invés disso, buscava os traços que os aproximava, no idioma, nas práticas do dia a dia, rituais, cultura, artes e costumes.


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Ironicamente o relato desta experiência (que para muitos dos integrantes da expedição tinha redundado em um completo fracasso), escrito 15 anos depois, deu origem ao livro Tristes Trópicos, publicado em 1955 e considerado um marco, um divisor de águas, a obra mais vanguardista na área das ciências humanas, sua experiência no Brasil colocou no mapa a insipiente disciplina de antropologia. Tristes Trópicos é a única obra não acadêmica de sua vasta produção definida num estilo que apenas se insinuava em seus trabalhos anteriores (mais formais), onde vários elementos da técnica modernista estão incorporados, como a justaposição, a colagem, a descontinuidade narrativa, que passaram a fazer parte de sua escrita. Ao oferecer uma abordagem que procurava desnudar as simetrias ocultas que se encontravam sob todas as culturas, conseguiu cativar os leitores expondo outra realidade de trabalho — dando uma coerência inesperada à aparente confusão desordenada de ideias e práticas indígenas. Depois da experiência brasileira, Lévi-Strauss voltou para a França e durante algum tempo chegou a flertar com o jornalismo, mas com a chegada dos alemães exilou-se nos Estados Unidos. Em seu exílio conheceu o linguista russo Roman Jakobson e assimilou uma das mudanças fundamentais no pensamento do século XX, a transferência do sentido para a forma, do eu para o sistema. Seu fundamento filosófico — o objetivo de “compreender o ser em relação a si mesmo e não em relação a mim” que definia o Projeto Estruturalista, anunciava uma guinada modernista tardia nas ciências sociais. Através de Jakobson, conheceu as ideias do linguista suíço Ferdinand de Saussure, e começou a aplicá-las em suas pesquisas. A partir daí, a linguagem se tornou a metáfora para a análise cultural, segundo Saussure, a cultura começou a ser vista como um sistema de elementos em contraste, como as formas na linguagem. Seu sonho era uma convergência entre áreas do conhecimento (separadas há muito), as ciências sociais, as ciências exatas, a cultura e a natureza. Contra as correntes filosóficas dominantes ele — quando percebeu de que a maneira como se organizar a cultura estava em última análise radicada no funcionamento cerebral — passou a estudar o intelecto em lugar do indivíduo, o pensamento abstrato em lugar da experiência subjetiva — uma ruptura radical numa atmosfera intelectual então dominada pelas filosofias introspectivas, o existencialismo e a fenomenologia. No pós-guerra os filósofos Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus tiveram de se confrontar com a nova maneira de ver a realidade, cedendo a primazia para esta tendência onde surgiram Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Lacan. Lévi-Strauss nunca dissimulou de ninguém sua busca de inspiração no surrealismo, na linguística, na estética e na música abrindo novas perspecti-


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vas para as ciências humanas. Durante a carreira submeteu o parentesco, o mito e o pensamento religioso indígena a reinterpretações iconoclastas. Do livro Tristes Trópicos, de Patrick Wilcken citado na biografia “Claude Lévi-Strauss — o poeta no laboratório”, já se disse: “Uma obra que começou com análises etnográficas altamente técnicas e terminaou com reflexões sobre o nascimento do romance, a evolução da música ocidental e o declínio irreversível das artes visuais”. As notas de campo de Lévi-Strauss estão conservadas na Bibliothèque Nationale em Paris. Ao observador menos avisado, o que se constata são anotações dispostas de maneira aleatória, sem um método aparente, onde uma lista interminável de suprimentos necessários para a expedição estão ao lado de detalhes técnicos, juntando palavras do vocabulário básico de diferentes grupos indígenas, misturando diagramas de parentesco e intercalando com ilustrações das técnicas de tessitura, desenhos de animais, rostos e lanças. Reunindo esta memória de seu trabalho de campo no Brasil e para dar-lhe coerência e unidade, Lévi-Strauss afastou-se da ciência e se aproximou da literatura. A narrativa expondo a maneira como tudo foi acontecendo motiva o leitor despertando-lhe uma curiosidade semelhante àquela causada por uma boa obra de ficção, daí, talvez, se explique o grande sucesso de Tristes Trópicos.


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19 ENSAIO

CINCO MANEIRAS DE DIZER A VERDADE Bertolt Brecht

CINCO DIFICULDADES NO ESCREVER A VERDADE1 Quem, nos dias de hoje, quiser lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de superar ao menos cinco dificuldades. Deve ter a coragem de escrever a verdade, embora ela se encontre escamoteada em toda parte; deve ter a inteligência de reconhecê-la, embora ela se mostre permanentemente disfarçada; deve entender da arte de manejá-la como arma; deve ter a capacidade de escolher em que mãos será eficiente; deve ter a astúcia de divulgá-la entre os escolhidos. Estas dificuldades são grandes para os escritores que vivem sob o fascismo, mas existem também para aqueles que fugiram ou se asilaram. E mesmo para aqueles que escrevem em países de liberdade burguesas. 1. A Coragem de Escrever a Verdade Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades, nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos. Desagradar os proprietários, quer dizer renunciar à posse de bens. Renunciar ao pagamento de determinado trabalho significa, em certas circunstâncias, renunciar ao trabalho. Recusar a glória dos potentados quer dizer renunciar de vez à glória. Isto requer coragem.

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Texto escrito em 1934 para ser divulgado na

Alemanha hitlerista. Publicado ilegalmente na revista Nosso Tempo, editada pela “União de Escritores Alemães”, em Paris. (Re)publicado no Brasil pela revista Cadernos de Opinião, vol. 1, Rio de Janeiro, 1975.


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Os tempos de máxima opressão são aqueles em que quase sempre se fala de causas grandiosas. Em tais épocas, é necessário ter coragem para falar de coisas pequenas e mesquinhas como a comida, a moradia dos que trabalham, no meio do palavreado homérico em que o espírito de sacrifício é agitado como estandarte glorioso. Quando se derramam homenagens sobre os camponeses, é corajoso falar em máquinas agrícolas e forragem barata, quer tornarão mais fácil o seu tão louvado trabalho. Se todas as emissoras berram que o homem sem cultura e sem instrução tem mais valor que o instruído, então é corajoso perguntar: tem valor para quem? Se falam de raças inferiores e superiores, então é corajoso perguntar se não é a fome, a ignorância e a guerra que provocam deformações graves. Também é preciso ter coragem para falar a verdade sobre nós mesmos, sobre os vencidos. Muitos dos que estão sendo perseguidos perdem a capacidade de reconhecer seus erros. A perseguição parece-lhes a maior injustiça. Os perseguidores, porque perseguem, são os maus, e os perseguidos terminam caçados por causa de sua bondade. Mas essa bondade foi derrotada, impedida, vencida. Então era uma bondade fraca, uma bondade ruim, insustentável, desmerecedora de confiança. Porque não é admissível aceitar a fraqueza como parte intrínseca da bondade, assim como se constata a umidade da chuva. Dizer que os bons são vencidos, não porque sejam bons, mas porque são fracos, isto requer coragem. Naturalmente, a verdade deve ser dita na luta contra a mentira e não cabe disfarça-la em algo generalizado, sublime, sujeito a múltiplas interpretações. A verdade é feita precisamente desse caráter genérico, sublime e ambíguo. Se de alguém se diz que falou a verdade, é porque, antes, alguns ou muitos, ou um só, falaram algo diferente, uma mentira ou qualquer generalidade. Ele, porém, falou a verdade: algo prático, efetivo, inegável, aquilo de que se tratava. Não é preciso grande coragem para queixar-se da maldade do mundo, do triunfo da crueldade em geral, e de acenar com o triunfo do espírito e uma parte do mundo onde isto ainda é permitido. Aí muitos se comportam como se fossem alvo para canhões. Na realidade, estão servindo apenas como alvo de binóculos de teatro. Proclamam suas exigências vagas perante uma plateia ingênua. Exigem uma justiça em geral pela qual jamais fizeram qualquer coisa; uma liberdade genérica, para obter uma parte do que já há muito foi partilhado com eles. Acham que verdade é o que soa bem. Se a verdade vem expressa em cifras, como algo árido, e consiste em fatos que demandaram esforço e estudo para ser discernidos, então essa verdade não lhes serve, não consegue entusiasmá-los. Tem apenas o comportamento exterior dos que dizem a verdade. Sua desgraça é ignorar a verdade.


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2. A Inteligência de Reconhecer a Verdade Uma vez que é difícil escrever a verdade porque em toda a parte ela vem sendo suprimida, muitos pensam ser questão de foro íntimo escrever a verdade ou não. Acreditam que somente é necessário coragem. Esquecem a segunda dificuldade: a do descobrimento da verdade. De forma alguma se pode dizer que é fácil encontrá-la. Para começar, já não é fácil decidir qual a verdade que merece ser dita. Assim, por exemplo, afunda-se agora, perante o mundo inteiro, na barbárie mais extrema, uma nação atrás da outra. Ademais todo mundo sabe que a guerra interna, conduzida com uma ferocidade espantosa, qualquer dia poderá ser transformada em guerra externa capaz de reduzir nosso continente a um montão de escombros. Isso sem dúvida é uma verdade, mas naturalmente existem ainda outras verdades. Por exemplo, não deixa de ser verdade que as cadeiras têm assento, ou que a chuva cai de cima para baixo. Muitos poetas escrevem verdades dessa espécie. Parecem pintores que pintam naturezas mortas nas paredes de navios que estão naufragando. Nossa primeira dificuldade não existe para eles e, mesmo assim, têm a consciência tranquila. Não perturbados pelos detentores do poder e igualmente insensíveis aos gritos dos violentados, dão suas pinceladas e fabricam seus quadros. O absurdo de sua conduta produz neles um “profundo pessimismo”, que vendem por bom preço, recompensa que de fato deveria ser dada a outros, e não a esses “mestres”. Mesmo assim, não é tão fácil reconhecer nas suas verdades aquela simples verdade sobre as cadeiras ou a chuva, já que soam diferentes como se falassem verdades sobre assunto de real importância, porque a atividade artística consiste em realçar a importância de qualquer objeto. Somente analisando minuciosamente depreende-se que eles apenas dizem: uma cadeira é uma cadeira, e ninguém pode se revoltar contra o fato de a chuva cair para baixo. Essa gente é incapaz de achar as verdades que devem ser escritas. Outros se preocupam realmente com as tarefas mais em evidência. Não se amedrontam perante os donos do poder e não tem medo da pobreza. Mesmo assim não podem descobrir a verdade. Faltam-lhes conhecimentos. Estão cheios de velhos preconceitos, de famosos preconceitos já formulados de maneira bonita em tempos antigos. O mundo é demasiadamente complicado para eles. Não conhecem os fatos e não enxergam as conexões. Além da convicção são necessários conhecimentos que podem ser adquiridos e métodos passíveis de serem apreendidos. É necessário para todos os escritores, nessa época de grandes complicações e grandes alterações, conhecer a dialética materialista, a economia e a história. Estes conhecimentos podem ser adquiridos em livros


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e compêndios, quando existe vontade e diligência. Pode-se descobrir muitas verdades da maneira mais simples, partes de uma verdade ou de fatos que levam ao descobrimento da verdade. Para quem quer pesquisar, o método é bom, mas também é possível achá-la sem método, mesmo sem procurar. Todavia se se consegue assim, de maneira casual, é quase impossível alcançar uma verdade capaz de oferecer aos homens um caminho para a ação. Gente que somente descreve pequenos fatos, não é capaz de manejar as coisas deste mundo. Mas a verdade só tem este objetivo, nenhum outro. Essa gente não é competente para escrever a verdade e atender às suas exigências. Se alguém está disposto a escrever a verdade e é capaz de reconhecê-la, restam três dificuldades. 3. A Arte de Tornar a Verdade Manejável Como Uma Arma A verdade deve ser dita por causa das consequências que dela resultam para a conduta. Exemplo de uma verdade, da qual não se devem tirar conclusões erradas, é a de que alguns países chegaram a um estado lastimável causado pela barbárie. De acordo com essa opinião, o fascismo é uma onda de barbárie que desabou como uma catástrofe da natureza sobre alguns países. Segundo essa opinião, o fascismo forma uma terceira força ao lado (e acima) do capitalismo e do socialismo; nem o movimento socialista, nem o capitalismo poderiam existir sem o fascismo etc. Esta é, naturalmente, uma afirmação fascista, uma capitulação perante o fascismo. O fascismo é uma fase histórica em que o capitalismo entrou — nesse sentido, é uma nova, porém ao mesmo tempo velha. O capitalismo existe nos países fascistas somente na forma de fascismo, e este pode ser então combatido em seu conteúdo capitalista, capitalismo de maneira mais desnuda, mais descarada, mais sufocadora, mais fraudulenta. Como poderá alguém dizer a verdade sobre o fascismo ao qual é contrário, sem querer falar do capitalismo que o produz? Que aspecto prático poderia ter esta “verdade”? Os que são contra o fascismo, se tomar posição contra o capitalismo, os que lastimam a barbárie como resultado da barbárie, parecem pessoas que querem comer sua porção de vitela sem abatê-la. Querem comer a vitela, mas não querem ver o sangue. Contentam-se em saber que o açougueiro lava as mãos antes de trazer a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie. São apenas contra a barbárie. Levantam a voz contra ela e fazem isso em países onde existem perniciosas relações de propriedade, mas onde os açougueiros ainda costumam lavar as mãos antes de servir a carne. Ruidosas acusações contra a barbárie e suas manifestações podem ter efeito durante um curto período, enquanto os ouvintes acreditam que em seus


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respectivos países tais violências não são possíveis. Certos países são capazes de manter relações de propriedade por meios que se afiguram menos violentos do que em outros. Aí a democracia ainda presta serviços; em outros, apela-se para a violência a fim de garantir a propriedade dos meios de produção. O monopólio das fábricas, das minas e da terra está criando terríveis situações em toda a parte, embora nem sempre evidentes. A barbárie se torna visível quando o monopólio pode ser protegido somente com a força bruta. Alguns países que ainda não foram forçados pelos bárbaros monopólios a renunciar às garantias formais de um estado constitucional, nem tiveram de renunciar a certas vantagens como a arte, a filosofia, a literatura, alegram-se especialmente em ouvir visitantes de outros países acusando sua pátria por ter renunciado a tudo isso. Disto esperam tirar vantagens nas guerras que são aguardadas. Deve-se afirmar que aqueles visitantes teriam descoberto a verdade, quando proclamam em altos brados: a luta sem quartel contra a Alemanha deve ser feita porque “ela é a verdadeira pátria do mal em nosso tempo, a filial do inferno, o covil do anticristo”? Deveria dizer-se, isto sim, que essas pessoas são tolas, ignorantes, prejudiciais, porque, admitindo-se tais asneiras como verdade, esse país deveria ser riscado do mapa: todo o país, com todos os seus homens, porque o gás venenoso não localiza os culpados quando mata. A pessoa leviana, que não conhece a verdade, se expressa em termos gerais, pomposos e imprecisos. Vem fantasiando sobre os alemães, choramingando sobre o mal, romanceando as coisas de tal maneira que o ouvinte não sabe o que fazer. Deve-se resolver não ser alemão? Desaparecerá o inferno se ele for bom? Assim também, pomposamente, expressa aquele palavreado sobre a barbárie como resultado da barbárie. Segundo essa conversa, a barbárie é consequência da barbárie e cessa apenas com a cultura, que é condicionada pela formação intelectual. Tudo isso são palavras vazias que nada dizem a ninguém e nenhuma contribuição oferecem à atuação prática. Essas exposições mostram somente poucos elos de uma série de causas e caracterizam determinadas forças em ação, como forças incontroláveis. Tais exposições são obscuras, nelas se escondem forças geradoras de catástrofes. Gasta um pouco de luz sobre elas e logo aparecem homens no palco, como causadores de catástrofes. Porque estamos vivendo uma época em que o destino do homem é o homem. Fascismo não é nenhuma catástrofe da natureza e pode, portanto, ser explicado pela “natureza” do homem, mesmo as catástrofes da natureza podem ser explicadas de forma digna, quando se apela para a capacidade de luta do homem. Após o grande terremoto que destruiu Yokohama, podiam ver-se fotos, em muitas revistas norte-americanas, mostrando as ruínas. A legenda dizia: “steal stood” (o aço ficou em pé). E realmente quem viu somente ruínas,


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à primeira vista, notou que alguns edifícios haviam escapado intactos. Nas descrições de um terremoto, são de maior importância os pareceres dos engenheiros civis, os quais levam em consideração a movimentação da terra, a força dos impulsos, a intensidade do calor, e conseguem formas de construção capazes de resistir ao tremor. Quem quiser fazer uma análise sobre o fascismo e a guerra, apesar de que grandes catástrofes não são catástrofes da natureza, tem que argumentar com verdades práticas. Tem que mostrar que as grandes catástrofes são preparadas pelos proprietários dos meios de produção, para grandes massas humanas que não os possuem. Se quiserem escrever com êxito a verdade sobre graves situações, deverão escrever de maneira que permita reconhecer suas causas evitáveis. Reconhecendo as causas evitáveis, pode-se lutar contra essas situações. 4. A Capacidade de Escolher Aqueles em Cujas Mãos a Verdade se Torna Eficiente Durante centenas de anos, o comércio das publicações no mercado das opiniões e da literatura em geral tornou o escritor despreocupado quanto ao seu produto. O escritor tinha a impressão de que o seu editor ou o intermediário levaria seu escrito a todos. Pensava: eu falo e os que querem ouvir escutam-me. Na realidade, falava. E os que podiam pagar, escutavam-nos, mas a sua mensagem não era ouvida por todos. E os que ouviam, não queriam ouvir tudo. Sobre isso já se falou muito, ainda que demasiadamente pouco. Quero somente realçar aqui que do “escrever a alguém” ficou apenas um “escrever”. A verdade, porém, não se pode escrever assim. Ela realmente tem que ser dirigida a alguém que saiba fazer algo com ela. A compreensão da verdade é um processo comum, tanto para os escritores quanto para os leitores. Para se poder dizer coisa boa há que ouvir bem e ouvir coisa boa. A verdade deve ser dita calculadamente e deve ser ouvida calculadamente. Para os escritores, é de máxima importância saber a quem dizemos e de quem ouvimos. Devemos dizer a verdade sobre a grave situação àqueles que estão em uma péssima situação e deles devemos aprender os pormenores. Não nos devemos dirigir somente às pessoas de posição política definida, mas também às pessoas que já deveriam ter tomado essa posição em virtude de sua situação. E os ouvintes mudam constantemente. Mesmo os carrascos podem ser abordados, se o pagamento para o enforcamento não está em dia ou se o perigo tornou-se demasiadamente grande. Os camponeses da Bavária eram contra qualquer revolução, mas quando a guerra já tinha durado bastante tempo e os filhos, chegando em casa, não encontraram mais ocupação na fazenda, neste momento, então, puderam ser ganhos para a revolução.


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Para o escritor é importante encontrar o tom da verdade. Geralmente, o que se ouve é um tom muito manso e lamentoso de pessoas que não podem fazer mal sequer a uma mosca. Quem escuta esse tom e está na miséria, torna-se ainda mais miserável. Assim falam pessoas que talvez não sejam inimigas, mas que certamente não são companheiros de lutas. A verdade é combativa. Não luta somente contra a inverdade, mas também contra certos homens que a divulgam. 5. A Astúcia de Divulgar a Verdade Entre Muitos Muitas pessoas, orgulhosas de divulgar a verdade, felizes por tê-la encontrado e talvez um tanto cansadas pelo esforço despendido em dar-lhe forma palpável, na espera impaciente da ação daqueles cujos interesses defendem, acham desnecessário utilizar ainda uma astúcia especial pra divulgá-la. Muitas vezes essa atitude tira todo o efeito do seu trabalho. Em todas essas épocas, a astúcia tem sido utilizada para divulgar a verdade, sempre que esteve subjugada e oculta. Confúcio modificou velhas lendas chinesas, alterando certas palavras. Quando se dizia que o potentado de Kun havia mandado “matar” o filósofo Wan por ter dito isto ou aquilo, Confúcio escreveu em lugar de “matar”, “assassinar”. Quando se disse que o tirano fora vítima de um “atentado”, ele escreveu “foi executado”. Com isto, Confúcio abriu lugar para uma nova interpretação da história. Quem em nosso tempo diz “população” em vez de povo e diz “propriedade” em vez de “terra”, já não dá apoio a muitas mentiras. Tira das palavras sua mística podre. A palavra “povo” quer dizer uma certa unidade, pretende traduzir, e dar a entender interesses comuns; portanto, deveria ser utilizada quando se fala de diversos povos, porque só nesses casos poderão existir interesses comuns. A população de um território tem diversos interesses comuns e contrários. Eis uma verdade geralmente suprimida. Quem fala do solo, descrevendo apenas o cheiro da terra e a cor, apoia as mentiras dos que a dominam, porque não depende da fertilidade do chão, nem do amor do homem à terra, nem do seu trabalho, mas especificamente o que conta é o preço do trigo e da mão de obra. Os que lucram não são aqueles que plantam o trigo. E o cheiro da terra é completamente estranho no bolso, o cheiro aí é diferente. Aí, a terminologia mais acertada é a propriedade feudal; com isso pode-se enganar menos. Onde existe opressão a palavra disciplina deve ser substituída pela palavra “obediência”, porque a disciplina também é possível sem o déspota e, consequentemente, tem o significado mais nobre que obediência, melhor que a palavra “honra”, é a expressão “dignidade humana”. Com isso não se perde o indivíduo tão facilmente do campo de visão. É bem sabido que espécie de canalha se arroga defender a “honra” de um povo, e como os saciados arrotam honrarias


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sobre os que garantem sua fartura com a própria fome. A astúcia de Confúcio ainda hoje pode ser utilizada. Confúcio substituiu interpretações inexatas de acontecimentos nacionais por interpretações exatas. O inglês Thomas Moore escreveu um livro utópico sobre um país que vivia em estado de perfeita justiça — era um país bem diferente daquele em que ele vivia, mas que se parecia muito com este. A única diferença é que no país utópico existia justiça. Lenine, ameaçado pela política do czar e querendo caracterizar a exploração e a opressão na ilha de Sacalina pela burguesia russa, escreveu Japão em vez de Rússia, e Coreia em lugar de Sacalina. Os métodos da burguesia japonesa lembraram a todos os leitores os métodos russos em Sacalina, porém o artigo não foi proibido porque o Japão era inimigo da Rússia. O que não pode ser dito hoje sobre a Alemanha, poderá ser dito sobre a Áustria. Pode-se enganar o Estado desconfiado através de muitas astúcias. Voltaire lutou contra o credo milagroso da igreja, escrevendo um poema galante sobre a virgem de Orleans, no qual descrevia os milagres que devem ter acontecido, para que Joana, no meio de um exército, de uma corte e de monges, permanecesse virgem. Pela elegância de seu estilo, e relatando aventuras eróticas tiradas da vida voluptuosa dos governantes, conduziu-os a renunciar a uma religião que lhes proporcionava os meios de uma vida tão licenciosa. Além do mais, possibilitou que seus trabalhos chegassem de maneira ilegal às mãos daqueles para os quais eram destinados. Seus leitores poderosos estimularam ou toleravam sua divulgação. E o grande Lukrez acentuava que ele se aproveitava da beleza dos seus versos para a divulgação do ateísmo epicurista. Um alto nível literário pode servir de garantia para uma denúncia. Muitas vezes, porém, causa suspeita. Nesse caso, deverá ser empregada uma forma literária mais acessível. Pode ser feita, por exemplo, na forma do tão desprezado romance policial, contrabandeando em trechos despercebidos descrições embaraçosas. Tais descrições justificam perfeitamente um romance policial. O grande Shakespeare baixou propositadamente seu nível por considerações muito menos importantes quando deixou falar a mãe de Coroliano, enfrentando o filho que ia lutar contra sua cidade natal. De maneira propositadamente elementar, queria que Coriolano não fosse detido por razões lógicas nem emocionais que o fizessem desistir de seus planos, mas por certa preguiça que lhe era peculiar. Um outro exemplo de verdade divulgada por meio da astúcia encontra-se em Shakespeare, no discurso de Marco Antônio perante o cadáver de César. Realça, repetidamente, que Brutus, o assassino de César, é um homem honrado. Mas relata também o delito e faz a descrição desse delito. E é mais expressivo que a descrição do autor. O orador se deixa vencer pelos fatos; e os torna mais eloquentes do que ele mesmo.


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Um poeta egípcio, há quatro mil anos, utilizou método parecido. Era uma época de grandes lutas de classe. A classe, até então dominante, defendendo-se a muito custo da sua antagonista: a parte da população até então oprimida. No poema, surge na corte do imperador um sábio chamado à luta contra o inimigo interno. Relata a desordem surgida pelo levante nas camadas mais pobres de maneira longa e impressionante. Seu relatório tem o seguinte aspecto: Realmente, é assim: Os nobres vivem cheios de queixa e os pobres cheios de alegria. Cada cidade diz: expulsemos os fortes de nosso meio. Realmente, é assim: Os escritórios dos nossos burocratas foram arrombados, e foram retirados seus arquivos; os escravos tornaram-se cavalheiros. Realmente, é assim: Não se pode mais reconhecer o filho do respeitado, o filho da senhora tornou-se criança da escrava. Realmente, é assim: O cidadão está na mó. Os que nunca viram a luz do dia, partiram. Realmente, é assim: Os cofres de esmolas de ébano foram destruídos. As maravilhosas madeiras de Sesnen foram despedaçadas e transformadas em camas. Vejam, a residência foi derrubada em uma hora. Vejam, os pobres do país ficaram ricos. Vejam, quem não tinha pão, agora possui celeiro, e o que está no seu sótão é propriedade de um outro. Vejam, faz bem a um homem quando não tem comida. Vejam, quem não tinha centeio, agora possui celeiro; quem pediu donativo de centeio, agora o está distribuindo. Vejam, quem não tinha junta de boi, hoje tem rebanho; quem não podia emprestar um rebanho para arar, hoje possui rebanhos inteiros. Vejam, quem não podia ter uma alcova para si, possui agora quatro paredes. Vejam, os conselheiros procuram refúgio no celeiro, quem quase não tinha permissão para sentar no muro, tem agora cama. Vejam, quem não construiu o barco para si, agora possui navios.


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Se o proprietário olha para eles, conta que não mais lhe pertencem. Vejam, os que possuíram vestidos, vestem agora trapos, e quem nunca teceu para si, possui agora linho fino. O rico dorme com sede, e quem antes pediu sua graça, agora tem cerveja forte. Vejam, quem nunca entendeu de tocar harpa, tem uma harpa; quem nunca cantou, agora elogia a música. Vejam, quem de pobre dormiu sem mulher, agora tem damas; quem tinha de olhar seu rosto na água, agora tem espelho. Mesmo os coronéis do país agora estão sem emprego. Aos grandes não se relata mais nada. Quem era mensageiro, agora manda um outro... Vejam, aí estão cinco homens mandados pelo amo; eles disseram: “Façam vocês mesmo o caminho, nós chegamos”.

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O autor refere-se à declaração do Partido Nazista, quanto à permanência do “Grande Reich”, estimada por Hitler em mil anos, após o Congresso do Partido, em Nuremberg.

É evidente que isto relata um estado de desordem que, para os oprimidos, era bastante desejável. Mesmo assim é difícil apanhar o poeta. Ele está condenando expressamente esse estado de coisas, ainda que de maneira vaga. Jonathan Swift propôs, em um pequeno livro, que para o país chegar à riqueza, dever-se-ia por as crianças dos pobres em salmoura e vender a carne. Fez cálculos meticulosos do que poderia ser economizado se não houvesse vacilação em aplicar essa fórmula. Swift se fez de bobo. Defendeu determinada maneira de pensar odiada por ele. Fez isso com muito ardor e meticulosidade em uma questão onde a baixeza era claramente reconhecida. Todo o mundo poderia ser mais inteligente do que Swift, ou ao menos mais humano. Especialmente aqueles que não haviam analisado certos pontos de vista decorrentes de determinados fatores. A divulgação do pensamento, não importa em que terreno seja, é sempre útil à causa dos oprimidos. Uma divulgação assim é muito necessária. Em governos que servem à exploração, o pensamento tem cotação baixa, como baixo é considerado tudo o que é útil aos oprimidos. Baixa é a eterna preocupação pela comida, baixo é recusar as honras prometidas pelos “defensores” da pátria, duvidar do “Führer”, ter má vontade para com o trabalho que não sustenta o homem, revoltar-se contra a imposição de tomar atitudes sem sentido. Baixo é pensar. Os famintos são insultados como comilões; os que nada têm para defender são apontados como covardes; os que duvidam dos opressores são acusados de duvidar de suas próprias forças; os que reclamam salários por seu trabalho são chamados de vagabundos etc. Sob tais governos, o ato de pensar, em geral, é considerado como baixo e suspeito.


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O pensamento não é mais cultivado. E, quando é cultivado, termina sendo perseguido. Mesmo assim, sempre existem campos nos quais, sem perigo de ser apanhado, pode-se exercer com êxito o pensamento; são os campos nos quais até as ditaduras necessitam do pensamento. Pode-se provar os êxitos do pensamento nos campos da ciência militar e da técnica. Assim, o aumento das reservas de lã pela organização e invenção de matérias sintéticas (ersatz), exige raciocínio. A qualidade cada vez pior dos alimentos, o treinamento da juventude para a guerra, tudo isso exige pensamento, o que pode ser descrito. O elogio da guerra, que é um pensamento irrefletido, pode ser astuciosamente evitado. Assim, o pensamento que tem o objetivo de responder à pergunta sobre como levar a guerra da melhor maneira, conduzirá a uma outra pergunta: esta guerra tem sentido? Pode-se também propor uma outra pergunta: qual é a maneira de evitar uma guerra sem sentido? Esta pergunta naturalmente é muito difícil de responder em público. Seria possível divulgar esse pensamento de maneira eficiente e atuante? Seria. Numa época como a nossa, de opressão, onde ainda vigora a exploração de uma parte da população pela parte menor, é necessário, para a continuidade desse domínio, determinado comportamento da população que deve abranger todos os terrenos. Uma descoberta no campo da zoologia, como a do inglês Darwin, conseguiu subitamente por em perigo a exploração. Mesmo assim, durante certo tempo somente a igreja tomou conhecimento, enquanto a polícia nada havia percebido. Nos últimos anos, as pesquisas dos físicos determinaram consequências no campo da lógica, capazes de abalar toda uma série de dogmas que visam à exploração. O filósofo do estado prussiano, Hegel, dedicando-se a uma série de pesquisas difíceis no campo da lógica, forneceu a Marx e Lenin, os clássicos da revolução proletária, métodos de valor inestimável. O desenvolvimento da ciência realiza-se em conexão, porém de maneira desigual, e o Estado não tem capacidade de tudo manter sob seu controle. Os vanguardeiros da verdade podem escolher terrenos de luta relativamente pouco vigiados. Tudo depende de um pensamento genuíno, de um pensamento que englobe todas as coisas e fenômenos no seu aspecto passageiro e mutável. Os dominadores tem antipatia por mudanças acentuadas. Gostariam que tudo ficasse imutável, de preferência por mil anos2. Seria melhor que a Lua ficasse parada e o Sol não estivesse em movimento. Neste caso, ninguém teria mais fome, nem exigiria jantar. Quando disparavam seus fuzis, os nazistas não admitiam que os adversários pudessem responder a seus tiros. Uma consideração que acentue bem o transitório, é um bom meio para encorajar os oprimidos. Ao mesmo tempo, é importante mostrar aos vitoriosos que, em tudo, em cada coisa, em cada acontecimento, existe uma contradição que se manifesta e cresce inexoravelmente. Tal modo de ver (com a dialética do en-


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sinamento sobre o fluxo das coisas), pode ser assimilado para ser utilizado na análise de acontecimentos, escapando por um tempo à vigilância dos dominadores. Pode-se utilizar em biologia ou pode ser relatada assim, sem despertar demasiadamente a atenção. A dependência de cada coisa de uma série de outras, que mudam constantemente, é um pensamento perigoso para a ditadura, e pode aparecer de múltiplas maneiras, sem oferecer pretextos à polícia. Um relato completo sobre um homem que pretendia abrir uma charutaria pode resultar em sério golpe contra a ditadura, se forem bem focalizados e os processos, as circunstâncias que o charuteiro tinha de aguentar. Quem refletir um pouco, encontrará o porquê. Os governos que levam as massas à miséria, tem de evitar que na miséria, essas massas se lembrem do governo. Falam muito do destino, e os governantes mais tem culpa da penúria. Quem pesquisar as causas da penúria, será preso antes de poder mostrar sua verdadeira causa. Mas é possível enfrentar o palavreado do governo, mostrando que o destino do homem é preparado pelo homem. Isso pode ser feito de muitas maneiras. Por exemplo, pode-se contar a história de um pequena fazenda, na Islândia. Toda a aldeia está convencida de que certa maldição pesa sobre ela. Uma camponesa jogara-se dentro do poço, e o camponês seu marido se enforcara. Certo dia, casa-se o filho do camponês com uma moça que trouxe como dote algumas terras. A maldição desaparece da fazenda. A aldeia não chega a uma conclusão comum sobre essa mudança feliz. Uns dizem que vem da alegre natureza do jovem camponês. Outros, porém, dizem que foram somente as terras trazidas pelo casamento que colocaram a fazenda em condições de sobreviver. Mesmo num poema retratando a natureza, pode-se alcançar algo quando se liga à natureza a obra feita pelo homem. É necessário usar a astúcia para divulgar a verdade. Conclusão A grande verdade de nossa época (cujo conhecimento não basta, mas em o qual não se achará outra verdade de importância) é que nosso continente submerge na barbárie, por querer manter pela força as atuais relações de propriedade dos meios de produção. Qual a valia em escrever algo corajoso, revelador do estado de barbárie em que estamos afundando, se não definimos claramente porque chegamos a ele? Devemos denunciar que torturas são perpetradas para que as relações de propriedade sejam mantidas. Naturalmente, dizendo isso, perdemos muitos amigos, que são contra as torturas porque acreditam na possibilidade de manter as relações de propriedade sem torturas (o que não corresponde à verdade).


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Mais ainda: devemos dizer a verdade sobre o estado bárbaro em que se encontra nosso país, para possibilitar aquilo que conduz ao desaparecimento desse estado. Isto é, devemos dizer como podem ser alteradas as relações de propriedade dos meios de produção, mesmo participando dos lucros. E devemos agir com muita astúcia. Todas as cinco dificuldades devem ser solucionadas ao mesmo tempo, porque não podemos pesquisar a verdade sobre o estado de barbárie, sem pensar ao mesmo tempo em suas vítimas. Quando evitamos os acessos de covardia, devemos procurar as verdadeiras conexões para aqueles que estão dispostos a aplicar os conhecimentos. Devemos também pensar e entregar-lhes a verdade, de maneira que ela possa tornar-se uma arma em suas mãos, astuciosamente, para não ser descoberta e anulada pelo inimigo. Exige-se muito, quando se exige do escritor que escreva a verdade.

Bertolt Brecht (1898-1956). Foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir

Berliner Ensemble realizadas em Paris, durante os anos 1954 e 1955. Ao final dos 1920, Brecht torna-se marxista, vivendo o intenso período das mobilizações da República de Weimar, desenvolvendo o seu teatro épico. Sua praxis é uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator e Vsevolod Emilevitch Meyerhold, do conceito de estranhamento do formalista russo Viktor Chklovski, do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, entre os anos 1917-1926. Seu trabalho como artista concentrou-se na crítica artística ao desenvolvimento das relações humanas no sistema capitalista. das apresentações de sua companhia o anos


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33 tradução

BERENICE Edgar Allan Poe Tradução de Silveira de Souza Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas.1 (Ebn Zaiat)

MISERY is manifold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the wide horizon as the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch — as distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon as the rainbow! How is it that from beauty I have derived a type of unloveliness? — from the covenant of peace, a simile of sorrow? But as, in ethics, evil is a consequence of good, so, in fact, out of joy is sorrow born. Either the memory of past bliss is the anguish of to-day, or the agonies which are, have their origin in the ecstasies which might have been. My baptismal name is Egaeus; that of my family I will not mention. Yet there are no towers in the land more time-honored than my gloomy, gray, hereditary halls. Our line has been called a race of visionaries; and in many striking particulars — in the character of the family mansion — in the frescos of the chief saloon — in the tapestries of the dormitories — in the chiselling of some buttresses in the armory — but more especially in the gallery of antique paintings — in the fashion of the library chamber — and, lastly, in the very peculiar nature of the library’s contents — there is more than sufficient evidence to warrant the belief. The recollections of my earliest years are connected with that chamber, and with its volumes — of which latter I will say no more. Here died my mother. Herein was I born. But it is mere idleness to say that I had not lived before — that the soul has no previous existence. You deny it? — let us not argue the matter. Convinced myself, I seek not to convince. There is, however, a remembrance of aerial forms — of spiritual and meaning eyes — of sounds, musical yet sad — a remembrance which will not be excluded; a memory like a shadow — vague, variable, indefinite, unsteady; and like a


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shadow, too, in the impossibility of my getting rid of it while the sunlight of my reason shall exist. In that chamber was I born. Thus awaking from the long night of what seemed, but was not, nonentity, at once into the very regions of fairy land — into a palace of imagination — into the wild dominions of monastic thought and erudition — it is not singular that I gazed around me with a startled and ardent eye — that I loitered away my boyhood in books, and dissipated my youth in reverie; but it is singular that as years rolled away, and the noon of manhood found me still in the mansion of my fathers — it is wonderful what stagnation there fell upon the springs of my life — wonderful how total an inversion took place in the character of my commonest thought. The realities of the world affected me as visions, and as visions only, while the wild ideas of the land of dreams became, in turn, not the material of my every-day existence, but in very deed that existence utterly and solely in itself. *** Berenice and I were cousins, and we grew up together in my paternal halls. Yet differently we grew — I, ill of health, and buried in gloom — she, agile, graceful, and overflowing with energ y; hers, the ramble on the hillside — mine the studies of the cloister; I, living within my own heart, and addicted, body and soul, to the most intense and painful meditation — she, roaming carelessly through life, with no thought of the shadows in her path, or the silent flight of the raven-winged hours. Berenice! —I call upon her name — Berenice! — and from the gray ruins of memory a thousand tumultuous recollections are startled at the sound! Ah, vividly is her image before me now, as in the early days of her light-heartedness and joy! Oh, gorgeous yet fantastic beauty! Oh, sylph amid the shrubberies of Arnheim! Oh, Naiad among its fountains! And then — then all is mystery and terror, and a tale which should not be told. Disease — a fatal disease, fell like the simoon upon her frame; and, even while I gazed upon her, the spirit of change swept over her, pervading her mind, her habits, and her character, and, in a manner the most subtle and terrible, disturbing even the identity of her person! Alas! the destroyer came and went! — and the victim —where is she? I knew her not — or knew her no longer as Berenice. Among the numerous train of maladies superinduced by that fatal and primary one which effected a revolution of so horrible a kind in the moral and physical being of my cousin, may be mentioned as the most distressing and obstinate in its nature, a species of epilepsy not unfrequently terminating in trance itself — trance very nearly resembling positive dissolution, and from which her manner of recovery was in most instances, startlingly


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abrupt. In the mean time my own disease — for I have been told that I should call it by no other appellation — my own disease, then, grew rapidly upon me, and assumed finally a monomaniac character of a novel and extraordinary form — hourly and momently gaining vigor — and at length obtaining over me the most incomprehensible ascendancy. This monomania, if I must so term it, consisted in a morbid irritability of those properties of the mind in metaphysical science termed the attentive. It is more than probable that I am not understood; but I fear, indeed, that it is in no manner possible to convey to the mind of the merely general reader, an adequate idea of that nervous intensity of interest with which, in my case, the powers of meditation (not to speak technically) busied and buried themselves, in the contemplation of even the most ordinary objects of the universe. To muse for long unwearied hours, with my attention riveted to some frivolous device on the margin, or in the typography of a book; to become absorbed, for the better part of a summer’s day, in a quaint shadow falling aslant upon the tapestry or upon the floor; to lose myself, for an entire night, in watching the steady flame of a lamp, or the embers of a fire; to dream away whole days over the perfume of a flower; to repeat, monotonously, some common word, until the sound, by dint of frequent repetition, ceased to convey any idea whatever to the mind; to lose all sense of motion or physical existence, by means of absolute bodily quiescence long and obstinately persevered in: such were a few of the most common and least pernicious vagaries induced by a condition of the mental faculties, not, indeed, altogether unparalleled, but certainly bidding defiance to anything like analysis or explanation. Yet let me not be misapprehended. The undue, earnest, and morbid attention thus excited by objects in their own nature frivolous, must not be confounded in character with that ruminating propensity common to all mankind, and more especially indulged in by persons of ardent imagination. It was not even, as might be at first supposed, an extreme condition, or exaggeration of such propensity, but primarily and essentially distinct and different. In the one instance, the dreamer, or enthusiast, being interested by an object usually not frivolous, imperceptibly loses sight of this object in a wilderness of deductions and suggestions issuing therefrom, until, at the conclusion of a day dream often replete with luxury, he finds the incitamentum, or first cause of his musings, entirely vanished and forgotten. In my case, the primary object was invariably frivolous, although assuming, through the medium of my distempered vision, a refracted and unreal importance. Few deductions, if any, were made; and those few pertinaciously returning in upon the original object as a centre. The meditations were never pleasurable; and, at the termination of the reverie, the first cause, so far


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from being out of sight, had attained that supernaturally exaggerated interest which was the prevailing feature of the disease. In a word, the powers of mind more particularly exercised were, with me, as I have said before, the attentive, and are, with the day-dreamer, the speculative. My books, at this epoch, if they did not actually serve to irritate the disorder, partook, it will be perceived, largely, in their imaginative and inconsequential nature, of the characteristic qualities of the disorder itself. I well remember, among others, the treatise of the noble Italian, Coelius Secundus Curio, “De Amplitudine Beati Regni Dei;” St. Austin’s great work, the “City of God;” and Tertullian’s “De Carne Christi,” in which the paradoxical sentence “Mortuus est Dei filius; credible est quia ineptum est: et sepultus resurrexit; certum est quia impossibile est,“ occupied my undivided time, for many weeks of laborious and fruitless investigation. Thus it will appear that, shaken from its balance only by trivial things, my reason bore resemblance to that ocean-crag spoken of by Ptolemy Hephestion, which steadily resisting the attacks of human violence, and the fiercer fury of the waters and the winds, trembled only to the touch of the flower called Asphodel. And although, to a careless thinker, it might appear a matter beyond doubt, that the alteration produced by her unhappy malady, in the moral condition of Berenice, would afford me many objects for the exercise of that intense and abnormal meditation whose nature I have been at some trouble in explaining, yet such was not in any degree the case. In the lucid intervals of my infirmity, her calamity, indeed, gave me pain, and, taking deeply to heart that total wreck of her fair and gentle life, I did not fall to ponder, frequently and bitterly, upon the wonder-working means by which so strange a revolution had been so suddenly brought to pass. But these reflections partook not of the idiosyncrasy of my disease, and were such as would have occurred, under similar circumstances, to the ordinary mass of mankind. True to its own character, my disorder revelled in the less important but more startling changes wrought in the physical frame of Berenice — in the singular and most appalling distortion of her personal identity. During the brightest days of her unparalleled beauty, most surely I had never loved her. In the strange anomaly of my existence, feelings with me, had never been of the heart, and my passions always were of the mind. Through the gray of the early morning — among the trellised shadows of the forest at noonday — and in the silence of my library at night — she had flitted by my eyes, and I had seen her — not as the living and breathing Berenice, but as the Berenice of a dream; not as a being of the earth, earthy, but as the abstraction of such a being; not as a thing to admire, but to analyze; not as an object of love, but as the theme of the most abstruse although des-


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ultory speculation. And now — now I shuddered in her presence, and grew pale at her approach; yet, bitterly lamenting her fallen and desolate condition, I called to mind that she had loved me long, and, in an evil moment, I spoke to her of marriage. And at length the period of our nuptials was approaching, when, upon an afternoon in the winter of the year — one of those unseasonably warm, calm, and misty days which are the nurse of the beautiful Halcyon, — I sat, (and sat, as I thought, alone,) in the inner apartment of the library. But, uplifting my eyes, I saw that Berenice stood before me. Was it my own excited imagination — or the misty influence of the atmosphere — or the uncertain twilight of the chamber — or the gray draperies which fell around her figure — that caused in it so vacillating and indistinct an outline? I could not tell. She spoke no word; and I — not for worlds could I have uttered a syllable. An icy chill ran through my frame; a sense of insufferable anxiety oppressed me; a consuming curiosity pervaded my soul; and sinking back upon the chair, I remained for some time breathless and motionless, with my eyes riveted upon her person. Alas! its emaciation was excessive, and not one vestige of the former being lurked in any single line of the contour. My burning glances at length fell upon the face. The forehead was high, and very pale, and singularly placid; and the once jetty hair fell partially over it, and overshadowed the hollow temples with innumerable ringlets, now of a vivid yellow, and jarring discordantly, in their fantastic character, with the reigning melancholy of the countenance. The eyes were lifeless, and lustreless, and seemingly pupilless, and I shrank involuntarily from their glassy stare to he contemplation of the thin and shrunken lips. They parted; and in a smile of peculiar meaning, the teeth of the changed Berenice disclosed themselves slowly to my view. Would to God that I had never beheld them, or that, having done so, I had died! *** The shutting of a door disturbed me, and, looking up, I found that my cousin had departed from the chamber. But from the disordered chamber of my brain, had not, alas! departed, and would not be driven away, the white and ghastly spectrum of the teeth. Not a speck on their surface — not a shade on their enamel — not an indenture in their edges — but what that period of her smile had sufficed to brand in upon my memory. I saw them now even more unequivocally than I beheld them then. The teeth! — the teeth! — they were here, and there, and everywhere, and visibly and palpably before me; long, narrow, and excessively white, with the pale lips writhing about them, as in the very moment of their first terrible development. Then came the


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full fury of my monomania, and I struggled in vain against its strange and irresistible influence. In the multiplied objects of the external world I had no thoughts but for the teeth. For these I longed with a phrenzied desire. All other matters and all different interests became absorbed in their single contemplation. They — they alone were present to the mental eye, and they, in their sole individuality, became the essence of my mental life. I held them in every light. I turned them in every attitude. I surveyed their characteristics. I dwelt upon their peculiarities. I pondered upon their conformation. I mused upon the alteration in their nature. I shuddered as I assigned to them in imagination a sensitive and sentient power, and even when unassisted by the lips, a capability of moral expression. Of Mademoiselle Salle it has been well said, “Que tous ses pas etaient des sentiments,” and of Berenice I more seriously believed que toutes ses dents etaient des idees. Des idees! — ah here was the idiotic thought that destroyed me! Des idees! — ah therefore it was that I coveted them so madly! I felt that their possession could alone ever restore me to peace, in giving me back to reason. And the evening closed in upon me thus — and then the darkness came, and tarried, and went — and the day again dawned — and the mists of a second night were now gathering around — and still I sat motionless in that solitary room — and still I sat buried in meditation — and still the phantasma of the teeth maintained its terrible ascendancy, as, with the most vivid hideous distinctness, it floated about amid the changing lights and shadows of the chamber. At length there broke in upon my dreams a cry as of horror and dismay; and thereunto, after a pause, succeeded the sound of troubled voices, intermingled with many low moanings of sorrow or of pain. I arose from my seat, and throwing open one of the doors of the library, saw standing out in the ante-chamber a servant maiden, all in tears, who told me that Berenice was — no more! She had been seized with epilepsy in the early morning, and now, at the closing in of the night, the grave was ready for its tenant, and all the preparations for the burial were completed. *** I found myself sitting in the library, and again sitting there alone. It seemed that I had newly awakened from a confused and exciting dream. I knew that it was now midnight, and I was well aware, that since the setting of the sun, Berenice had been interred. But of that dreary period which intervened I had no positive, at least no definite comprehension. Yet its memory was replete with horror — horror more horrible from being vague, and terror more terrible from ambiguity. It was a fearful page in the record my existence, written all over with dim, and hideous, and unintelligible


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recollections. I strived to decypher them, but in vain; while ever and anon, like the spirit of a departed sound, the shrill and piercing shriek of a female voice seemed to be ringing in my ears. I had done a deed — what was it? I asked myself the question aloud, and the whispering echoes of the chamber answered me, — “what was it?” On the table beside me burned a lamp, and near it lay a little box. It was of no remarkable character, and I had seen it frequently before, for it was the property of the family physician; but how came it there, upon my table, and why did I shudder in regarding it? These things were in no manner to be accounted for, and my eyes at length dropped to the open pages of a book, and to a sentence underscored therein. The words were the singular but simple ones of the poet Ebn Zaiat: — “Dicebant mihi sodales si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas.” Why then, as I perused them, did the hairs of my head erect themselves on end, and the blood of my body become congealed within my veins? There came a light tap at the library door — and, pale as the tenant of a tomb, a menial entered upon tiptoe. His looks were wild with terror, and he spoke to me in a voice tremulous, husky, and very low. What said he? — some broken sentences I heard. He told of a wild cry disturbing the silence of the night — of the gathering together of the household — of a search in the direction of the sound; and then his tones grew thrillingly distinct as he whispered me of a violated grave — of a disfigured body enshrouded, yet still breathing — still palpitating — still alive ! He pointed to garments; — they were muddy and clotted with gore. I spoke not, and he took me gently by the hand: it was indented with the impress of human nails. He directed my attention to some object against the wall. I looked at it for some minutes: it was a spade. With a shriek I bounded to the table, and grasped the box that lay upon it. But I could not force it open; and in my tremor, it slipped from my hands, and fell heavily, and burst into pieces; and from it, with a rattling sound, there rolled out some instruments of dental surgery, intermingled with thirty-two small, white and ivory-looking substances that were scattered to and fro about the floor.


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BERENICE Edgar Allan Poe Tradução de Silveira de Souza Diziam meus companheiros que, se visitasse o túmulo da amiga, minhas inquietações seriam bastante suavizadas. (Ebn Zaiat)

O infortúnio é múltiplo. A infelicidade na terra tem muitas formas. Dominando o amplo e curvo horizonte, seus matizes são vários como os vários matizes de cores do arco-íris, e igualmente distintos, ainda que numa gradação toda particular. Dominando o amplo horizonte como o arco-íris! Por que fui derivar da beleza algo tão atroz? Da promessa de paz tal símile de tristeza? Mas se, na Ética, o mal é uma consequência do bem, então, de fato, a tristeza se origina da alegria. Assim como a memória da felicidade passada é a angústia de hoje, ou os tormentos atuais são frutos dos êxtases que uma vez existiram. Meu nome de batismo é Egeu; não mencionarei o de família. No entanto, não há na região torreões mais notórios e antigos do que aqueles que abrigam as minhas lúgubres e cinzentas salas hereditárias. Nossa linhagem tem sido chamada de uma estirpe de visionários; e, em muitas particularidades extravagantes, no caráter da mansão familiar, nos afrescos do salão principal, na tapeçaria dos dormitórios, nos cinzelados de alguns botaréus na sala de armas, mas em especial na galeria de pinturas antigas, no estilo da biblioteca e, por último, na peculiar natureza de conteúdo dos volumes dessa biblioteca, encontram-se evidências mais que suficientes para justificar tal denominação... As lembranças de minha infância estão ligadas à biblioteca e os seus volumes; mas destes últimos não falarei nada. Na biblioteca morreu minha mãe. Ali eu nasci. Mas seria frivolidade dizer que eu não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Você não acredita? Não vamos discutir o assunto. Convencido eu próprio, não busco convencer ninguém. Há, contudo, uma lembrança de formas aéreas, de olhos espirituais e significativos, de sons melodiosos ainda que tristes, uma lembrança que não será excluída da memória, lembrança como uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstan-


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te; e como uma sombra, também, dada a impossibilidade de livrar-me dela enquanto existir a luz de minha razão. Nasci nessa sala. Assim, acordando da longa noite do que parecia, mas não era, o nada, enveredei-me em seguida, repentinamente, nas próprias regiões da terra das fadas — num palácio de imaginação —, num selvagem domínio de pensamento e erudição monásticos. Não admira que olhasse ao redor com olhar ardente e assustado, que desperdiçasse minha infância em leituras e dissipasse minha juventude em devaneios; mas o curioso é que os anos rolaram e a plena maturidade encontrou-me ainda na mansão de meus pais. É espantoso como a estagnação tenha caído sobre as fontes de minha vida. Espantoso como uma total inversão tenha se apossado da natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, somente como visões, enquanto as selvagens ideias da terra dos sonhos tornaram-se, por sua vez, não o material de minha vida diária, mas de fato a minha total e única existência. *** Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos na minha mansão paterna. Entretanto crescíamos de modo diferente: eu, com problemas de saúde, afundado em tristezas; ela, ágil, graciosa, transbordante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim, os estudos em clausura. Eu, vivendo concentrado nos meus sentimentos, corpo e alma entregues à mais intensa e penosa meditação. Ela, vagueando pela vida, despreocupada, sem pensar nas sombras do caminho, ou no voo das horas, tão silencioso como as asas de um corvo. Berenice! — invoco o seu nome —, Berenice! E das cinzentas ruínas da memória mil lembranças em tumulto se agitam ante esse som. Ah! Vívida é agora a sua imagem em minha mente, tal como nos dias antigos de despreocupação e alegria! Oh, esplêndida e no entanto fantástica beleza! Oh, sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade em suas fontes! E então —, então tudo é terror, tudo é mistério, e uma estória que não deveria ser contada. Uma doença, uma doença fatal, caiu como o símum sobre seu corpo, e, mesmo nos instantes em que a contemplava, o espírito de mudança ia abatendo-se sobre ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos, o caráter e, de um modo ainda mais terrível e sutil, perturbando-lhe a própria personalidade! Ai, o destruidor veio e foi embora, e a vítima — onde estava ela? Eu não mais a conhecia —, ou não a conhecia mais como Berenice. Entre o numeroso séquito de males entrelaçados àquele primeiro e funesto, que efetuou uma revolução de espécie tão horrível na natureza moral e física de minha prima, pode ser mencionado entre os mais aflitivos e obstinados uma espécie de epilepsia que não raro se transfigurava em catalepsia,


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catalepsia que se assemelhava a um estado bem próximo da morte real e do qual ela retornava, na maioria das vezes, de forma alarmantemente abrupta. Enquanto isso, minha própria enfermidade — disseram-me que não havia mais chance de curá-la —, minha própria enfermidade, então, cresceu rapidamente e assumiu por fim um caráter monomaníaco, de uma modalidade nova e extraordinária, revigorando a cada hora, a todo instante, finalmente obtendo sobre mim o mais incompreensível domínio. Essa monomania, se assim devo chamá-la, fundamentava-se numa irritabilidade mórbida daquelas propriedades da mente referidas, na ciência metafísica, como “faculdade da atenção”. É mais que provável que eu não esteja sendo compreendido; mas receio, na verdade, não existir nenhum modo possível de transmitir à quase generalidade dos leitores uma ideia adequada dessa nervosa exacerbação de interesse com que, no meu caso, os poderes de meditação (para evitar termos técnicos) se ocupavam e absorviam na contemplação dos objetos, mesmo os mais comuns do universo. Refletir infatigavelmente durante horas, com a mente concentrada em alguma frívola ilustração à margem da página de um livro ou na tipologia desse livro; entregar-me absorto à contemplação de uma curiosa sombra a cair oblíqua sobre o tapete, ou sobre o chão; perder uma noite inteira a observar a chama invariável de uma lâmpada, ou as brasas de uma lareira; devanear durante dias sobre o perfume de uma flor; repetir monotonamente alguma palavra banal, até que o som, devido à frequente repetição, impedisse a transmissão de qualquer ideia ao espírito; perder completamente a sensação de movimento ou de existência física, perseverando obstinadamente e por longo tempo num estado de absoluta imobilidade corporal; tais eram algumas das mais comuns e menos perniciosas extravagâncias induzidas por uma condição das faculdades mentais que, na verdade, não eram ao todo sem paralelos, mas por certo ofereciam um desafio para algo como análise ou interpretação. Vamos entretanto evitar mal-entendidos. A excessiva, grave e mórbida atenção, assim excitada por objetos absolutamente frívolos, não deve ser confundida em sua natureza com a tendência à meditação comum a todos os seres humanos, a que se entregam, em especial, as pessoas de imaginação ardente. Nem mesmo foi, como em princípio se poderia supor, uma condição extrema, exagerada, dessa tendência, mas uma situação fundamental e nitidamente diversa. Naquele caso, o sonhador, ou cismático, ao interessar-se por um objeto usualmente não-trivial, imperceptivelmente vai perdendo de vista esse objeto, enredando-se num emaranhado de deduções e sugestões resultantes daí, até que, ao final de um dia não raro pleno de voluptuosidade, desaparece o incitamentum ou causa primeira de seus devaneios, inteiramente afundado no esquecimento. No meu caso, o objeto inicial é invariavelmente trivial, embora vá assumindo, por intermédio de minha visão doentia, uma


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importância irreal e refratária. Raramente eram feitas inferências e as poucas realizadas retornavam, por assim dizer, de maneira pertinaz, ao objeto original, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis; e, ao final do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora da visão, alcançava aquele interesse exagerado, sobrenatural, que era o traço predominante da doença. Em síntese, as faculdades do espírito mais particularmente exercidas eram, em mim, como já foi dito antes, as da atenção, assim como, para o sonhador comum, são as especulativas. Os meus livros, à época, se de fato não contribuíam para excitar a perturbação, participavam largamente, como pode ser percebido, dada a sua natureza imaginosa e inconsequente, das qualidades características da perturbação mesma. Lembro-me bem, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio De amplitudine beati regni Dei; da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus; do De Carne Christi, de Tertuliano, no qual as sentenças paradoxais “Mortius est Dei filius; credibile est quia ineptum est: et sepultus resurrexit; certum est quia impossible est”1, ocuparam todo o meu tempo por muitas semanas de laboriosa e frutífera pesquisa. Assim pareceria que, deslocada da posição de equilíbrio somente por coisas banais, minha razão mostrasse semelhança com aquele penhasco no oceano mencionado por Ptolomeu Hephestion, o qual, resistindo com firmeza aos ataques de violência dos humanos, como à impetuosa fúria das águas e dos ventos, tremia apenas sob o toque da flor conhecida pelo nome de asfódelo. E embora, a um pensador distraído, pudesse aparentar um evento fora de qualquer dúvida, que a terrível transformação provocada pela infeliz enfermidade na condição moral de Berenice produzia em mim motivos para o exercício daquela intensa e mórbida meditação, cuja natureza ainda tenho algumas dificuldades para explicar, esse entretanto não era o caso, em absoluto. Nos intervalos de lucidez da minha doença, a desgraça dela na verdade me causava sofrimento e, sentindo profundamente a completa decadência de sua beleza e de sua meiga vida, nunca deixei de ponderar com amargura no modo impressionante pelo qual, repentinamente, tão estranha reversão se tivesse abatido sobre ela. Essas reflexões, porém, não faziam parte da idiossincrasia do meu mal; eram como as que ocorriam, em circunstâncias semelhantes, à maioria das pessoas. Fiel ao próprio caráter, minha doença revelava interesse nas menos importantes e, no entanto, mais surpreendentes mudanças na estrutura física de Berenice, bem como na singular e imensamente aterradora distorção de sua personalidade. Durante os dias mais esplendorosos de sua beleza sem paralelos, era mais do que certo que eu nunca a amara. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos, comigo, jamais provinham do coração e as paixões nasciam sempre da mente. Pelas cinzentas madrugadas — em meio às sombras

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O filho de Deus está morto; isto é crível porque é absurdo; e sepultado ressuscitou; isto é verdadeiro porque impossível.


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Porque Júpiter, durante o inverno, dava por duas vezes sete dias de calor, os homens passaram a chamar a este tempo

entrelaçadas das florestas, ao meio-dia —, e no silêncio de minha biblioteca, à noite, ela passava esvoaçante diante de meus olhos, e eu a via — não como a Berenice, ser vivo que respira, mas como a Berenice de um sonho. Não como um ser terrestre — de carne e osso —, mas como uma abstração desse ser; não como algo que se pudesse admirar, mas analisar; não como um objeto de amor, mas como um tema para as mais abstrusas e desconexas especulações. E agora, agora eu estremecia na presença dela, empalidecia à sua aproximação. Entretanto, mesmo lamentando amargamente sua condição decadente e desoladora, eu lembrava que ela havia me amado por longo tempo e que, certa ocasião, num impulso irrefletido, eu lhe havia pedido em casamento. E agora estava por fim se aproximando a data de nossas núpcias quando, numa tarde hibernal, um desses dias intempestivamente quentes, calmos e brumosos, que se assemelham à “ama-de-leite da bela Alcíone”2, eu sentei no gabinete interno da biblioteca e pensei estar sozinho. Mas, ao levantar os olhos, vi Berenice em pé a minha frente. Foi a minha imaginação excitada, ou uma indistinta influência da atmosfera, ou o impreciso crepúsculo do aposento, ou as vestes cinzentas que lhe caíam folgadas sobre o corpo, a causa daquela aparição de contorno tão vago e espectral? Não saberia dizê-lo. Ela não mencionou uma única palavra, e eu — tornei-me incapaz de pronunciar sequer uma sílaba. Gélido calafrio percorreu-me o corpo; oprimia-me uma sensação de angústia insuportável e uma curiosidade irrefreável, dilacerante, passou a invadir o meu espírito. Sentei-me de volta na cadeira, permaneci alguns segundos sem respirar, imóvel, com os olhos pregados naquela figura. Ai! Sua magreza era excessiva e nenhum vestígio existia mais daquele ser de outrora. Meus olhos ardentes examinaram então minuciosamente o seu rosto. A fronte era alta, muito pálida, singularmente serena, parcialmente coberta por uma mecha de cabelos que em outros tempos foram negros como o azeviche, e que sombreavam as têmporas encovadas com anéis agora de um amarelo vivo e contrastavam, pelo seu caráter fantástico, com a melancolia dominante em seu rosto. Os olhos eram sem vida, apagados, parecendo sem pupilas e eu desviei involuntariamente a atenção de seu olhar vítreo para me deter na contemplação de seus lábios delgados e contraídos. Eles se entreabriram: e num sorriso de especial significado, os dentes da transformada Berenice mostraram-se, lentamente, à minha visão. Quisera Deus que eu nunca os tivesse visto, ou, ao fazê-lo, houvesse morrido! ***

benigno e temperado de

“a ama de leite da bela Alcíone”. — Simônides. (Nota de E.A. Poe).

O bater de uma porta que se fechava perturbou-me a atenção e, ao levantar os olhos, percebi que minha prima não estava mais no aposento. Mas do


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desordenado aposento de meu cérebro, ai de mim!, não havia saído nada; ali ficara o lívido e assustador espectro daqueles dentes. Nem a mínima mancha se via em sua superfície; nem um matiz no esmalte; nem a mais leve reentrância na regularidade de suas pontas; nada, a não ser o que os breves instantes de seu sorriso haviam impresso na minha memória. Eu os via agora mais nítidos do que os vira então. Os dentes! Os dentes! — Eles estavam aqui e ali, em qualquer lugar, e visíveis, e palpáveis diante de mim; longos, estreitos, excessivamente brancos, com os lábios pálidos retorcendo-se sobre eles, como no exato e terrível momento em que apareceram pela primeira vez. Então veio a fúria total de minha monomania, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível influência. Ante a multiplicidade de objetos do mundo exterior, o meu pensamento não se ligava a outra coisa a não ser àqueles dentes. Eu os desejava com uma ânsia frenética. Todos os outros assuntos, todos os diversos interesses se absorveram naquela única contemplação. Eles —, apenas eles, se apresentavam ao olho do espírito, e eles, na sua solitária individualidade, passaram a ser a essência de minha vida mental. Eu os examinava sob todas as luzes. Revolvia-os em todos os aspectos. Investigava suas características e demorava-me a estudar todas as peculiaridades. Media a sua forma. Refletia sobre as alterações de sua natureza. Estremecia ao atribuir a eles, na imaginação, um poder senciente, e mesmo quando fazia abstração dos lábios, conferia a eles uma capacidade de expressão moral. Foi dito acertadamente de Mademoiselle Sallé que tous ses pas etaient des sentiments e, de Berenice, eu acreditava com a maior seriedade que toutes ses dents etaient des idées. Des idées! —, ah, estava aqui o pensamento idiota que me destruiu. Des idées! —, ah, por isso eu os cobicei tão loucamente! Pressentia que só a posse deles poderia restituir a minha paz, devolvendo-me a razão. E assim fechou-se a noite ao meu redor —, e então vieram as trevas, que se demoraram, foram embora, e amanheceu de novo, e as névoas de uma segunda noite reuniam-se agora em torno, e eu continuava ainda sentado imóvel naquele aposento solitário, ainda mergulhado em meditação. E a fantasmagoria dos dentes mantinha ainda a sua terrível ascendência sobre mim, como se flutuasse com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras mutáveis do quarto. Por fim, um grito de horror e desalento partiu os meus sonhos; e, em seguida, após uma pausa, escutei o som de vozes assustadas, entremeadas de lamentos de tristeza, ou de dor. Levantei-me do assento e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi na antecâmara, em pé, uma criada que, em pranto, disse-me que Berenice... não mais existia. Tivera um ataque de epilepsia pela manhã, e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta para a sua ocupante e já se haviam completadas as preparações para o enterro. Com o coração pesaroso, ainda que relutante e oprimido pelo medo, dirigi-me para o quarto de dormir da falecida. Era um quarto grande, mui-


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to escuro e a cada passo dado naquele sombrio interior defrontava-me com aprestos do enterro. Os cortinados do leito, assim me disse um criado, recobriam o caixão, e neste, segredou-me ele, se achava tudo o que restou de Berenice. Teria alguém me perguntado se eu não queria olhar o corpo? Não vi ninguém mexer os lábios, entretanto a pergunta havia sido feita e o eco das sílabas ainda ressoava no quarto. Era impossível recusar e com uma sensação de asfixia avancei vagarosamente na direção do leito. Ergui de leve as negras dobras dos cortinados. Ao largá-las, elas caíram sobre meus ombros e, ocultando-me assim dos vivos, envolveram-me numa estrita comunhão com o cadáver. A atmosfera se impregnara inteiramente do odor da morte. O cheiro peculiar do caixão me fazia mal e cheguei a supor que emanações deletérias já exalavam do corpo. Teria dado mundos para fugir dali, voar para longe da influência perniciosa daquele ambiente mortuário, respirar uma vez mais o ar puro dos céus eternos. Entretanto não tinha mais forças para mover-me, meus joelhos tremiam, e eu fiquei plantado ali, a olhar fixamente aquele corpo rígido que jazia estendido no escuro caixão aberto. *** Deus do céu! —, seria possível? Seria o meu cérebro que desvairava, ou teria sido na verdade o dedo da morta que se mexera na mortalha que a envolvia? Gelado por indizível pavor lentamente dirigi o olhar para o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado um lenço ao redor do queixo mas, não sei como, ele se desprendera. Os lábios lívidos estavam retorcidos numa espécie de sorriso e, através dessa lúgubre moldura, uma vez mais cintilaram diante de mim, como palpável realidade, os dentes de Berenice, brancos, nítidos, funéreos. Afastei-me dali em convulsão, sem dizer uma só palavra, precipitando-me como um louco para fora daquele lugar de morte, horror e mistério. *** Encontrei-me outra vez na biblioteca e, de novo, sentado ali sozinho. Parecia acordar novamente de um sonho confuso e excitante. Eu sabia que já era meia-noite e também que Berenice achava-se enterrada desde o pôr do sol. Mas do atroz período intermediário eu não tinha uma lembrança positiva, ou pelo menos uma compreensão definida. No entanto a vaga memória disto estava impregnada de horror, horror mais horrível por ser vago, e terror mais terrível pela ambiguidade. Era uma página assombrosa no registro de minha existência, escrita inteiramente com indistintas, horrendas e ininteligíveis recordações. E eu me esforçava por decifrá-la, mas em vão, enquanto, de vez em quando, como o espírito de um som esquecido, o lancinante e estridente


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grito de uma voz de mulher parecia retinir em meus ouvidos. Eu havia cometido alguma ação —, mas qual era? E os ecos do aposento repetiam: o que era? Sobre a mesa ao meu lado ardia uma lâmpada, e perto dela achava-se uma pequena caixa de ébano. Não havia nenhuma característica notável nessa caixa e já a tinha visto antes muitas vezes, pois pertencia ao médico da família. Mas como ela viera parar ali sobre a minha mesa, e por que eu estremecia ao vê-la? Essas coisas de modo algum eram dignas de importância, e meus olhos finalmente pousaram sobre as páginas abertas de um livro, e sobre as sentenças que nelas se salientavam. Sentenças de palavras estranhas, mas simples, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant míni sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas. Por que afinal, enquanto eu me concentrava na leitura, os meus cabelos se eriçaram até as pontas e o sangue de meu corpo congelou-se nas veias? Alguém bateu de leve à porta da biblioteca. Pálido como o habitante de um túmulo, um criado entrou na ponta dos pés. Seu olhar mostrava-se desvairado pelo terror e ele me falou numa voz trêmula, áspera, muito baixa. Que dizia ele? Ouvi algumas frases truncadas. Falou de um grito lancinante que perturbara o silêncio da noite; da reunião das pessoas da casa; das buscas na direção do som. E daí o tom de sua voz pareceu crescer, vibrante e distinto, quando ele me sussurrou a respeito de um túmulo violado, de um corpo desfigurado deixado à margem da cova com a sua mortalha e, no entanto, ainda respirando, ainda palpitante, ainda vivo! Apontou para minhas roupas, estavam enlameadas, sujas de sangue coagulado. Eu não falei nada e ele segurou-me as mãos com cuidado. Elas estavam marcadas com arranhões de unhas humanas. Dirigiu minha atenção para um objeto encostado à parede. Olhei-o por alguns instantes, era uma pá. Com um grito saltei para a mesa e agarrei a caixa de ébano que estava ali. Mas não consegui abri-la; escorregou de minhas mãos trêmulas e caiu pesadamente sobre o chão, fazendo-se em pedaços. Dela, com um som chocalhante, rolaram alguns instrumentos de cirurgia dentária, misturados a trinta e duas pequenas peças, brancas, parecendo de marfim, que se espalharam pelo assoalho. Silveira de Souza Ocupa a Cadeira n.o 33 da Academia Catarinense de Letras (ACL). EDGAR ALLAN POE (1809-1849). Nasceu em Boston, filho de atores ambulantes. Passou grandes privações na infância até ser adotado por um comerciante, John Allan, cujo sobrenome incorporou ao seu. Poeta, contista e ensaísta de extraordinário talento inscreve-se, ao lado de

Herman Melville e Nathaniel Hawthorne, entre os primeiros escritores verdadeiramente grandes do continente É considerado o criador da moderna literatura policial, principalmente com os contos Os crimes da rua Morgue, O escaravelho de ouro e A carta furtada. Mas foram também as suas histórias de horror, sobrenatural e suspense, entre as quais se inclui Berenice, que consolidaram universalmente a grandeza literária de seu nome. americano.


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OS VELHOS CINEMAS DE FLORIPA Raul Caldas Filho

Entre as décadas de 1940 e 1960, o cinema reinou absoluto como a principal forma de entretenimento dos habitantes da então provinciana Florianópolis. Como, aliás, ocorria em todo o mundo, naqueles tempos pré-televisão. As salas de espetáculo destinadas à projeção das produções cinematográficas (90% norte-americanas) eram cultuadas, portanto, como templos do Olimpo. Esses locais, que entraram na história da cidade, hoje estão transformados em igrejas evangélicas, supermercados ou foram demolidos. Para relembrá-los vamos embarcar na máquina do tempo (que apareceu em tantos filmes e seriados daquela época) e retornar ao final dos anos 40 do cada vez mais distante século 20, quando o autor destas linhas começou a frequentar esses memoráveis e disputados salões com uma assiduidade quase diária. O melhor cinema da capital catarinense naqueles idos era o Ritz. Mas não ostentava nenhum luxo em suas dependências e as cadeiras ainda eram de madeira. Situava-se na rua Arcipreste Paiva, próximo à Catedral Metropolitana, e exibia um filme por dia. Quando o gongo soava, o ambiente escurecia e um feixe de luz iluminava a tela, transportando os espectadores, como num passe de mágica, para pradarias do Arizona ou regiões montanhosas do Wyoming. No dia seguinte, entretanto, esses mesmos espectadores podiam viajar até a Roma antiga, ou, ainda, para longínquos países das Mil e Uma Noites. Eram, na maioria das vezes, produções recentes, em cores ou preto-e-branco, dos grandes estúdios de Hollywood: Metro, Fox, Warner, Columbia, Paramount, Universal e RKO. Os nomes mais famosos da era de ouro hollywoodiana — heróis e galãs como Glark Gable, Tyrone Power, Errol Flynn, Gary Cooper, Cary Grant, ou os dançarinos Fred Astaire e Gene Kelly, e divas como Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Judy Garland e Lana Turner — tinham presença assegurada na tela do Ritz. E, através da técnica e arte cinematográ-


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ficas, viviam aventuras e dramas, lutavam, amavam e, às vezes, até morriam, com suas imagens movimentando-se para os olhos atentos da plateia. Vez por outra passava uma “chanchada” (designação elitista-pejorativa, que anos depois seria reabilitada) da Atlântida, com os inevitáveis cômicos Oscarito e Grande Otelo, a mocinha Eliana e os bonitões Anselmo Duarte e Cyl Farney, revezando-se como galãs. Filme europeu nem pensar. Só em cineclube. As sessões eram às cinco da tarde (a preferida da gurizada, quando o filme não era “impróprio” para menores de 14 anos) e oito da noite. Nesse último horário realizavam-se, às quintas-feiras, as sessões chics — sempre com algum filme de impacto —, ocasião na qual as damas exibiam os seus mais atraentes trajes (algumas iam até de chapéu, para atrapalhar a visão de quem estava atrás) e os cavalheiros envergavam bem-cortados ternos, de casimira no inverno e de linho no verão. Os horários variavam aos domingos, com sessões a partir das 10 da manhã (as ruidosas matinadas, para a petizada) e às terças-feiras, quando ocorriam as sessões das moças. Nessas movimentadas sessões, as “moças” (de todas as idades) pagavam apenas um ingresso simbólico e os lugares na plateia eram disputados quase a tapas. O cinema lotava desde as primeiras horas da tarde e as filas chegavam a dar a volta no quarteirão. Não raras vezes ocorriam entreveros entre citadinos e marinheiros em visita à Ilha, dispostos a conquistar o coração — para usar uma expressão figurativa — de alguma jovem local. Já o Cine Odeon funcionava no Teatro Álvaro de Carvalho, com um amplo auditório e galerias. Às vezes apresentava “eletrizantes espetáculos de tela e palco”. No palco: Waltrudes, a falsa traidora, ou O Nauta Veneziano, de Idelfonso Juvenal. Na tela: Amar foi a minha ruína, com Cornel Wilde e Gene Tierney. Mas por volta de 1950 o cine/teatro já se encontrava em irremediável decadência. A pintura descascava-se, muitas cadeiras, além de incômodas, estavam quebradas e quando chovia a última galeria ficava encharcada, devido aos furos no telhado, afugentando os casais que lá se refugiavam para colóquios amorosos. As exibições restringiam-se a reprises, com cópias velhas, mostradas em programas duplos. Se o espectador desse uma cochilada e despertasse, depois de algum tempo, já estaria vendo outro filme. Mesmo assim às vezes passavam grandes produções, como O Corcunda de Notre Dame, com Charles Laughton, como o corcunda e (a belíssima) Maureen O’Hara como a cigana Esmeralda; Casablanca, com o cínico Humphrey Bogart e a maravilhosa Ingrid Bergman, e Gilda, com a deslumbrante Rita Hayworth e o ainda canastrão Glenn Ford (mais tarde ele melhoraria). A gota d’água (para me utilizar de um eufemismo) da lamentável situação em que se encontrava o cine/teatro ocorreu, porém, quando um líquido viscoso, vindo lá de cima, aterrissou na careca de um espectador, ocasionando um tumulto sem precedentes. Com a gritaria e os protestos, a sessão foi


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interrompida, as luzes acenderam-se, policiais, funcionários e “perus” subiram ao terceiro piso em busca do perturbador da ordem. Mas o responsável pelo atentado aos “bons costumes” (como um fugitivo Fantasma da Ópera) jamais foi encontrado. Em 1953, o Odeon foi desativado, por ocasião da reforma do teatro (a primeira, entre muitas outras que se seguiriam pelos anos afora) e nunca mais voltou à ação, permanecendo apenas na lembrança dos seus frequentadores mais fiéis. Os cines Roxy — este instalado num salão pertencente à Catedral Metropolitana, na rua Padre Miguelinho — e o Imperial, na rua João Pinto, eram os “poeiras”. Isto é: só apresentavam filmes “B”, de curta duração, em programas duplos, ou triplos, acrescidos, nos fins de semana, de seriados da Republic Pictures. Aos domingos, os espectadores-mirins entravam às duas da tarde e saíam às oito da noite — com os traseiros adormecidos —, depois de assistir a uma comédia, dois faroestes e um capítulo de seriado, que continuaria “na próxima semana.” Os grandes heróis dessas barulhentas “matinés” eram Bill Elliot, Allan “Rock” Lane e o cantor-mocinho Roy Rogers (sempre vaiado, quando trocava o revólver pela guitarra e começava a cantar o seu country adocicado). Às saídas havia a troca ou compra e venda de gibis. O Imperial, anos depois, foi reformado e passou a ser o Cine Coral, destinado a uma assistência mais seleta. O primeiro cinema luxuoso da cidade foi o São José. Inaugurado em 1954, quase em frente ao Roxy, ostentando uma decoração um tanto quanto rebuscada, foi o primeiro a oferecer, ao público da Capital, poltronas estofadas (com uma inusitada cor verde), música ambiente antes do início das sessões e salas de espera atapetadas e confortáveis. Possuía uma enorme tela panorâmica (ainda não era Cinemascope, que só seria introduzido no ano seguinte) e um ótimo sistema de som. Mas todo esse luxo tinha também as suas exigências: os cavalheiros, acima de 14 anos, só podiam entrar de terno e gravata, o que no verão virou um suplício. Tão drástica determinação, no entanto, não demoraria muito tempo para ser revogada. Da mesma forma que o Ritz, o Cine São José pertencia à família Daux e os grandes lançamentos cinematográficos transferiram-se de local. Mas, com o passar do tempo, os principais astros e estrelas de Hollywood já tinham outros rostos. Pertenciam agora a Marlon Brando, Rock Hudson, Tony Curtis, James Dean e Paul Newman, entre eles, e Ava Gardner, Elisabeth Taylor, Marilyn Monroe, Grace Kelly e Audrey Hepburn, entre as esplendorosas mulheres que representaram a beleza feminina daquele período. Difícil encontrar na geração atual de atrizes quem as supere. Naquele mesmo período, foi inaugurado o Cine Glória no Estreito, também para uma plateia selecionada, enquanto o Império, o “poeira” daquelas


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redondezas, continuava em atividade. Em 1970, o Império foi remodelado e transformou-se em Cine Jalisco, em homenagem à seleção brasileira de futebol, que venceu a Copa do Mundo no México. *** Com o avanço cada vez maior da televisão (leia-se TV Globo) no gosto do público, a partir do final da década de 1960 e início dos 70, o cinema foi perdendo espaço e as salas de projeção entraram em irremediável declínio e, pouco a pouco, foram fechando as suas portas. A arte cinematográfica só recuperou o seu prestígio com a entrada em cena dos shoppings centers, que introduziram cinemas em suas dependências. Mas a magia já não era mais a mesma.

Raul Caldas Filho É jornalista, cronista e ficcionista.


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quatro poemas Leatrice Moellmann

MINHA PAIXÃO Quero te dar um beijo apaixonado já que enlouqueço só de te olhar. És um homem charmoso, requintado, de imediato sabes agradar. Vem, meu amor, te entrega aos meus beijos eu quisera saber te conquistar. Vem, por favor, sacia os meus desejos pra gente nunca mais se separar. Em honra da tua música tão linda, que me faz te amar muito mais ainda, te ofereço, querido, estes versos. Neles vai meu coração repleto de emoção e gratidão, por toda a minha alma assim dispersos.


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Na história da minha vida De quem seria essa mão que a minha toma e acaricia? que com respeito e ternura me extasia? Em que momento senti a tua mão na minha que não sei precisar não consigo lembrar? E quem és tu qual dos homens que amei qual dos homens que me amaram? Pesquiso na minha memória a ver se posso encontrar essa mão misteriosa que me veio acariciar assim tão de repente assim tão simplesmente... Fico perplexa e perdida na história da minha vida...


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Picaresco Abriu-se vaga na academia É a mais antiga e a mais catarinense Que fazer para entrar na confraria? Assédio a quem a ela já pertence. Mostrar prestígio e sabedoria Às vezes até prática forense... Casa de Letras, letras pediria O mais matreiro há de ser quem vence. Mulher não entra na maçonaria Mulher tem que ser sempre minoria Até para votar tem que aturar: Bajulação, mentira, insistência Obstinação, abuso, impertinência. E sair rindo para não chorar.


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Florianópolis, Eu te amo! Vou colocar no meu carro O alarde do meu amor, Quero espalhar esse sarro Por toda parte onde for. Amor atávico, antigo, Ancestral, trans-secular, Imenso, tão grande que, Quando saio, quero voltar, Quando estou, quero ficar. Amor de pátria, amor de família, Amor de universo, amor de ilha, Amor de raiz, único, entranhado Nas ruas, nas árvores, nos portais Dos casarios, nos muros dos quintais. As pedras têm significado, As esquinas, recordações, os objetos, conotações.


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Cada pedra é um caminho, Cada telhado é um ninho E os sonhos se fazem e desfazem Nas asas dos passarinhos. No céu as constelações Suscitam indagações Sobre os mistérios da vida, Saudosos banhos de mar Na nossa praia querida, Antiga Praia de Fora Transformada em avenida. Meiembipe, Desterro ou Exiliópolis, Aqui nasci e me criei, Na catedral fui batizada, Nestes caminhos andei, Noutra igreja fui casada, Entre verdejantes montes No jazigo da família No cemitério das Três Pontes Um dia sou esperada. Florianópolis, eu te amo! Tua beleza me deslumbra Tua aura me embriaga Dias de sol ou penumbra, Hora feliz, hora aziaga, Pra sempre vou te cantar És um pedaço de mim Ou de ti sou um pedaço Hei de um dia descansar Acolhida em teu regaço.

Leatrice Moellmann Ocupa a Cadeira n.o 7 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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DUAS VIRGENS PARA O VIDENTE MANOEL Edson Ubaldo

Após o combate do Irani, a 22 de outubro de 1912, os sobreviventes voltaram para suas antigas moradas nos arredores de Taquaruçu, mas a mensagem de José Maria, morto na luta, de que ressuscitaria ao cabo de um ano, latejava forte no coração dos crentes. O velho fazendeiro Euzébio Ferreira dos Santos, pai de numerosa família, não tinha dúvidas a respeito. Na hora das refeições comentava o assunto com filhos e netos, incutindo-lhes certeza e fé na volta do santo monge. O aniversário da morte de José Maria se aproximava. Certa tarde a menina Teodora, de 11 anos, neta de Euzébio, vai ao riacho de lavar roupas, situado nos fundos da casa e sombreado por frondosa caneleira, e de lá retorna excitada, afirmando ter visto e ouvido José Maria no alto da árvore, montado em seu cavalo branco. Todos acorreram ao local e viram uma nuvem brilhante subindo ao céu, dentro da qual o monge galopava. Sim, todos viram, mas só Teodora podia falar com ele. Nos dias seguintes José Maria continuou a aparecer-lhe e a transmitir-lhe mensagens. A notícia se espalhou e de todos os lados acorriam caboclos com suas famílias, embevecidos pela boa nova. Manoel, filho de Euzébio, nunca vira tantas meninas bonitas a se movimentarem todos os dias pra lá e pra cá. Aos 18 anos, forte e musculoso, a pele morena queimada de sol, ainda não conhecia mulher. A exemplo de seus primos e amigos, desafogava os desejos da carne barranqueando éguas, mulas e ovelhas. Estas, porém, não falavam, não sorriam, não gemiam, sequer sussurravam. Ele queria uma mulher, uma fêmea de verdade, uma daquelas caboclinhas com seios arrebitados, as curvas estourando as dobras dos coloridos vestidinhos de chita! Há poucos meses fora a Curitibanos com um cargueiro de mercadorias crioulas para vender: duas arrobas de queijo, três rolos de fumo e mantas de


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charque aerado. Na venda do Cel. Albuquerque, a pau e corda conseguira três mil réis, sendo a metade a troco de sal, açúcar e querosene. Tanto trabalho por tão pouco. Que fazer, se inexistia alternativa? Arranjou lugar no galpão de um conhecido para pernoitar sobre os pelegos. Ouvira falar de uma casa nos arredores da vila, conhecida por “zona”, em que mulheres se deitavam com homens por dinheiro. Com mil e quinhentos réis no bolso, decidiu ir até lá. Descalço, camisa rota e calça puída à meia-canela, foi barrado por um mulato mal-encarado e armado: “fora, seu molambento, aqui só entra os rico e as otoridade”. Enquanto era desacatado e descartado pelo leão-de-chácara, a porta entreaberta deixou-o ver algumas mulheres de pernas de fora, alegres e sorridentes, bebendo cerveja ao lado de elegantes senhores de fraque e cartola. Reconheceu o Intendente, o Delegado e o Escrivão, dentre outros empertigados. Cabisbaixo, voltou ao galpão e arriou o corpo cansado sobre a lã quente e macia dos pelegos. Sonhou com aquelas mulheres lindas, parecidas com as princesas salvas dos mouros pelos Doze Pares de França, conforme narrava José Maria. Sonhou também com o próprio monge, que lhe dava ordens para assumir o comando do reduto e prometia recompensá-lo com as mais belas virgens do Taquaruçu. No caminho de volta, Manoel montou seu plano para desbancar a sobrinha Teodora. Entrou no reduto ao final da tarde, na hora da forma. Sem saudar a ninguém, desmontou no centro do “quadro santo”, descarregou a garrucha para o alto e bradou: — Recebi ordens de São José Maria, em nome de São João Maria e São Sebastião, pra assumir o comando desta cidade santa. De agora em diante as mulheres devem ficar recolhidas e só sair nas horas das formas. São José Maria não vai mais falar com Teodora. Quer suas ordens transmitidas por boca de homem, pela minha boca. Aí eu passo a conversa pro meu avô Euzébio, pra minha avó Querubina, pra Seu Elias de Moraes, Seu Chico Ventura, Seu Venuto Baiano e os Doze Pares de França. Depois eu dou anúncio nas formas e quem desobedecer leva surra de vara de marmelo. Os chefes sentiram-se prestigiados e lhe deram apoio, pois não gostavam de obedecer àquela meninota. Dona Querubina, que idolatrava o filho caçula, rompeu em vivas e puxou as rezas. Teodora foi confinada numa choça, vigiada por duas tias. Todas as tardes Manoel se retirava para o mato a fim de dialogar com São José Maria e trazer suas ordens, que depois de discutidas pelo Conselho eram por ele anunciadas durante a forma. Seus alcaguetes denunciavam os incréus, vigorosamente açoitados no quadro santo. Por ordem do monge mandou que as “virgens”, moçoilas de 12 a 18 anos, formassem um grupo especial durante as rezas, bem à sua frente. Ali as observava com olhos concupiscentes, desnudando-as na imaginação. Duas delas, filhas de Leocádio


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Siqueira e de Joaquim Bernardo, chamavam-lhe especial atenção: pele cor de bronze, olhos negros e brejeiros, ancas bem torneadas, cabelos pela cintura, peitinhos firmes a saltar contra o vestido de chita florida. Dias depois, ao voltar do mato, declarou ao Conselho que São José Maria lhe ordenara dormir com duas virgens numa cabana especial, para que elas purificassem com suas orações os pecados daqueles que não tinham fé. Dona Querubina aprovou a ideia com entusiasmo, mas a maioria dos conselheiros engoliu em seco. Na hora da forma foi a avó quem fez o anúncio e escolheu os homens que deveriam construir a cabana, com um largo catre a ser forrado com lençóis brancos. As virgens escolhidas foram justamente as filhas de Leocádio e Joaquim, ambos Pares de França. À noite, nos ranchos, o assunto mereceu todo tipo de comentários: os mais crentes a favor, os mais desconfiados frontalmente contra. Joaquim Bernardo, fanático incondicional, sentiu-se honrado com a escolha da filha, mas Leocádio, caboclo de rígida moral, farejou safadeza e não se conformou. Foi ter com Elias de Moraes e Chico Ventura, à revelia de Euzébio: — Compadres, esse caboclo tá de má tenção com as meninas. São José Maria não ia dar ordens pra fazer pecado desse tamanho. O Manoel quer se aproveitar delas e eu não vou deixar minha filha se perder com esse entojado! Elias e Ventura chuparam os palheiros, olharam o céu e deram razão a Leocádio. Joaquim Bernardo, ingênuo e crédulo, mostrou medo de desagradar ao monge, mas acabou convencido. Contudo, era preciso ludibriar os avós do vidente. Euzébio não oferecia maior dificuldade, mas Querubina era esperta e mandona. Um plano precisou ser discutido e aprovado em segredo. Três dias depois a cabana estava pronta e Manoel anunciou a noite das orações: todos deviam recolher-se e rezar. As virgens seriam conduzidas pelos Doze Pares, que montariam guarda até a hora da primeira forma do dia seguinte, quando o vidente anunciaria as profecias de José Maria, obtidas durante a tríplice vigília. A avó Querubina desejava uma noite inesquecível para seu amado neto. Foi ao rancho de cada uma das virgens, ordenou que se lavassem, se vestissem de branco, aspergissem água de cheiro nos cabelos, cobrissem a cabeça com véu e aguardassem o aviso para serem conduzidas ao local. E que obedecessem sem hesitação a tudo o que Manoel determinasse, sob pena de sofrerem os mais duros castigos de São José Maria. As meninas obedeceram e aguardaram. Por volta das oito da noite o vidente deu três tiros para o ar — esse era o sinal — e todos se recolheram para rezar em seus casebres. Muitos, porém, não resistiram: a fofoca comeu solta e pelas frestas das paredes de taquara buscavam ver as virgens rumo ao encontro. Dona Querubina postou-se no esconderijo que preparara nos fundos da cabana do neto, tanto por curiosidade quanto para intervir em caso de algo sair errado.


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Dos casebres das escolhidas, sob a pálida luz da lua cheia, saíram a passos lentos aquelas figuras diáfanas, vestidos e véus esvoaçantes, escoltadas pelos Pares, rumo à cabana de Manoel, o representante de São José Maria nesta terra, que as recebeu com mal-disfarçado sorriso de felicidade e volúpia. Enfim, chegara sua hora de vitória e vingança contra o mulato que o humilhara na porta da zona de Curitibanos. Agora, sem nada pagar, dispunha das duas mais lindas caboclinhas do reduto, pelo tempo que quisesse. Como fora bom fazer sestas no mato, conceber planos e depois anunciá-los como ordens do monge, nas quais aquela pobre gente acreditava sem pestanejar! Excitado, tirou o véu do primeiro vulto, mas ao invés da virgem ali estava Leocádio. Antes de refazer-se da dolorosa surpresa já estava dominado e amarrado pelos pais das moças, que lhe exibiram um feixe de varas de marmelo: — Quer virgem, seu “fêlho-da-pôta” sem-vergonha? — berrou o vozeirão de Leocádio —, pois aqui tem meia-dúzia de varas novinhas pra tu se divertir com elas! — Vancêis tão enganado, foi São José Maria quem mandou elas virem pra rezar comigo —, balbuciou Manoel. — Não fale no santo, que é pecado, sua cria do coisa-ruim —, emendou Joaquim. E então as varas vibraram no ar, cortando as costas de Manoel, jogado ao chão com as mãos amarradas. Os Pares de França ouviram os berros do vidente e acorreram para participar da surra. Vó Querubina rapidamente avaliou a situação, deu-se conta do tamanho da encrenca e voltou quieta pro rancho. A notícia da surra correu pelos casebres como rastilho aceso, mas os Pares percorreram as ruelas mandando que todos permanecessem recolhidos. Na manhã seguinte as buzinas de chifre anunciaram a forma e todos se dirigiram ao quadro santo, menos Manoel, que não conseguiu levantar-se, tão quebrado e cortado estava. Elias de Moraes e Chico Ventura declararam à multidão que Manoel abusara dos poderes dados por São José Maria e por isso “perdera o aço”, ou seja, a capacidade de comunicar-se com o além. Estava destituído da chefia e ficaria um mês isolado na cabana, à qual ninguém deveria dirigir-se. Querubina, que de fato comandava o reduto através do filho, passara o resto da noite engendrando planos para manter o poder. Logo após a fala de Elias, ela irrompeu da forma, postou-se no centro do quadro santo e discursou com segurança: — Irmãos, quando o santo voltou, apareceu na nossa casa, minha e do Euzébio. Foi com nossa neta Teodora que ele primeiro falou. Depois, sempre dentro da família, passou os poderes pro nosso filho Manoel, que já cumpriu seu tempo. Agora São José Maria quer uma pessoa nova, inocente, sem pecado, que vai representar o próprio Deus Nosso Senhor! Esta noite ele me


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apareceu e me mandou comunicar aos irmãos que escolheu meu neto Joaquim, esse menino puro de onze anos, para receber os poderes e as ordens da nossa santa religião! Puxou a criança franzina pela mão, ergueu-a nos braços e exclamou: — Aqui está o Menino-Deus, que nos levará à vitória contra a lei do diabo! Viva São José Maria, viva São Sebastião, viva a Monarquia, viva o Menino-Deus! A multidão fez coro aos vivas, prostrou-se e rezou. A seguir todos beijaram as mãos e os pés do pequeno Joaquim, que não entendeu muito bem o que acontecia, mas gostou de ver-se o centro das atenções. Vovó Querubina, sem perder a compostura, regozijava-se no íntimo: mais uma vez os poderes de São José Maria continuavam nas mãos da família, ainda que o pobre Manoel tivesse de voltar a barranquear éguas e mulas!

Edson Nelson Ubaldo Ocupa a Cadeira n.o 12 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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69 artigo

Consolidar Boas Práticas Márcio Godoy

Entenda o critério: — consolidar boas práticas Conceito, significado, projeto em estado de arte, entre clientes e fornecedores aplicando a sustentabilidade, aplicar critérios e rotinas visando agregar valor institucional a marca e ser uma excelente ferramenta de estratégia para ganhos mercadológicos com boas práticas. O paulistano, Márcio Godoy, filho de José de Godoy e Odila Biancho de Godoy, começou a trabalhar e conviver com leis de incentivos fiscais próximo dos seus 14 anos, início da década de 1980. A política econômica brasileira estava a cargo do professor Delfin Neto, atualmente professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV ). As músicas tocadas nas rádios eram os hits de John Travolta, muita brilhantina, calças com barras cocotas — os tênis Kichute e Bamba já começavam a perder para a chegada do All Star —, calça Lee e calça Levis 500 também começavam a chegar forte no mercado, ao longo destes anos, algumas pessoas foram mais marcantes, mais importantes, como o professor Silvio Coelho dos Santos (in memória). O livro Santa Catarina no século XX foi idealizado e custeado com verba incentivada, eu tive a honra de participar desta obra literária e mais quatro obras literárias subsequentes. Ato, consequência e ônus, para quem tem bom senso, senso de oportunidade e diplomacia, a leitura é fundamental, pesquisar é necessário, mas o mais importante é ter coragem de implantar seus projetos ou ideias e superar os desafios! Ser líder é um dom divino. Líder é aquele que sabe orientar a equipe para seguir a direção correta, aquele que sabe motivar as pessoas para alcançar o objetivo com planejamento,


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organização, disciplina e criatividade. Para ser um líder precisamos transformar conhecimento em ação. O verdadeiro líder não é alguém que nasce para ser líder, mas aquele que trabalha para que todos sejam líderes.

Para colocar um projeto em prática é preciso se envolver e estar comprometido com a causa, a falta de recursos financeiros não será impedimento, existem hoje no Brasil leis de incentivos fiscais que somam a quantia de 65 bilhões de reais ao ano, fonte Tribunal de Contas da União — Folha de S.Paulo novembro de 2011: “... Atualmente, há centenas de mecanismos de incentivos fiscais associados aos impostos federais, estaduais e municipais. Estima-se que existam mais de 1.100 fontes de captação de recursos nacionais e aproximadamente 15.000 fontes de recursos internacionais. Diante de tanta oferta, observa-se que o desconhecimento sobre as leis de incentivos fiscais, as exigências na forma de apresentação dos projetos e os caminhos para viabilizá-los são os maiores obstáculos no pleito por verbas, fazendo com que muitos abandonem suas ideias pelo caminho, é neste momento que você irá entrar na história, boa leitura!” Entretanto, poucas são as pessoas ou as empresas brasileiras que conhecem o seu funcionamento e a sua devida utilização. Para desenvolver um planejamento estratégico de um projeto, bem como seus respectivos orçamentos, metas, objetivos, pontos fracos e fortes, rentabilidade, processos, contratações, cursos e viagens, em que momento o retorno dos investimentos é factível? Em resumo, a sugestão é fazer um plano de negócio nos conceitos da cartilha do Sebrae, conhecer as fontes de recursos nacionais e internacionais e as leis de incentivos fiscais que permitem compensar os inevitáveis cortes orçamentários, contribuindo muito para o cumprimento das metas. O Estado já está fazendo a sua parte, aprovando as leis de incentivos fiscais e fundos de investimentos setoriais. Neste momento, entra a sociedade civil, desenvolvendo mecanismos de gestão e transparência. A economia vem obrigando as empresas a desenvolverem atividades extras ao seu core buzines. A lei da logística reversa irá transformar o mercado do segundo setor. As indústrias, em resumo, precisam recolher suas embalagens ou produzir invólucros biodegradáveis; distribuidores também são coautores dessa ação em prol do meio ambiente. Cada vez mais, os consumidores, antes de comprar qualquer produto, lerão o rótulo, indicações técnicas e processos fabris, privilegiando a produção ecologicamente correta e socialmente justa. Boas práticas, em todo e qualquer projeto é necessário aplicar as boas práticas da sustentabilidade. Alguém aqui lembra quando houve um jogo da Copa do Mundo no Brasil e uma torcida, após o término da partida, recolheu o seu lixo no entorno da sua cadeira? Isso aconteceu no Brasil, em 2014, e


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a torcida foi a do Japão. O que isso? Cultura de cidadania, coloque em prática no seu projeto eficiência energética, responsabilidade social e ambiental, conceito de aplicabilidade do projeto em qualquer parte do planeta, com isso estará alinhado com os diversos critérios de seleção para receber recursos financeiros.

Márcio Godoy É agitador cultural e especialista em viabilizar projetos valendo-se das leis de incentivo.


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73 poesia

NANO POEMAS À META POESIA Pinheiro Neto

UM Poemar hoje transformou ato em mentira. Falsos poetas estupram a língua difamam a gramática ao som de trombetas sem nexo. E, ao invés de sexo, masturbam o verbo planigrafam o verso e comprovam de novo ausência de plexo.


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DOIS De poeta todos temos algo [ou álcool] — de louco também. O domínio do verbo a novidade no verso — livre ou preso em livro — raridade constatada: poucos somos.


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TRÊS A [in] certeza certifica a dúvida a carência o medo. A [im] prudência ignora a vontade a certeza o futuro do poema.


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QUATRO O som do verbo teima legislar sobre o verso em prosa. Mensagem inรณcua.


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CINCO A muleta do falso poeta deforma o verso. O senso comum inunda o cotidiano corrompe a poesia.

Pinheiro Neto Ocupa a Cadeira n.o 24 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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TOMA LÁ... DÁ CÁ Júlio de Queiroz

O garotinho franzino, tímido, quase feioso, no dia de passeio obrigatório da turma conseguiu escapar de seu grupo de colegas, no momento em que o bedel estava prestando atenção ao que lhe mostrava outro aluno. Quando, a caminho do parque público, viu a caixa do correio do lado de fora do Banco do Estado, em dois pulos enfiou a cartinha que havia escrito debaixo das cobertas de sua cama no dormitório coletivo. Sabia de cor o que tinha escrito: “Mamãe, Tire-me daqui. A comida é horrível. Os professores zombam de mim o tempo todo. Os alunos me perseguem. Fazem de mim o palhaço da escola. Por favor, mamãe. Seu filho que a adora. Juninho. Agosto, 1940.” Dias depois, o chefe de disciplina o chamou à sala do diretor e lhe entregou um envelope aberto. Tirou de dentro do envelope a folha de papel. Leu: “Setembro, 1940 Juno, Conversei muito com seu pai depois de ter recebido sua carta. Seu colégio é de primeira e elogiado por todos. Os professores estão fazendo o possível para lhe ajudar a sair dessa mania de perseguição. Cultive a amizade dos colegas. Você já é um rapazinho. Aguente firme. Carinho da mamãe.” ***


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Num domingo, a caminho da igreja, a velhinha, altiva e voluntariosa, enfiou na caixa de correio ao lado da porta do Banco do Estado a carta que havia escrito na privada de onde agora morava, cujas palavras sabia de cor: “Julho, 2010 Juninho, Tire-me daqui. Este casa para idosos é uma arapuca. A comida é insuportável. As enfermeiras são despreparadas e grosseiras. As outras hóspedes estão decrépitas, quando não já dementes. Venha buscar-me. Sua mãe.” Na hora do almoço, duas semanas depois, a encarregada da limpeza lhe entregou um envelope fechado. Abriu-o, o coração palpitante. Leu: “10 de agosto de 2010 Mamãe, Estou viajando outra vez para a Europa a serviço da empresa. A senhora está em uma das melhores casas para idosos do Estado. O pessoal de enfermagem é de primeira qualidade e o atendimento médico é reconhecidamente superior. A senhora está muito bem tratada, como verifiquei por terceiros. Procure ser mais compreensiva com as outras hóspedes. Aceite as condições de sua idade. Seu filho Juno.”

Júlio de Queiroz Ocupa a Cadeira n.o 10 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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ACÓRDÃO ACORDÃO ACÓRDÃO ACORDÃO


83 artigo

POR UM ACORDÃO QUE SEJA ACÓRDÃO DO ACORDO ORTOGRÁFICO Deonísio da Silva

O Acordo Ortográfico é um acordão de três ministérios: da Educação (MEC), da Cultura (Minc) e das Relações Exteriores (Minre). Os três, em conjunto com a Academia Brasileira de Letras e as entidades equivalentes nos outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, elaboraram um vocabulário comum para as oito nações lusófonas. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa começou a fazer água, depois seus condutores começaram a encontrar pedras no meio do caminho e, em vez de ampliar a consultar aos profissionais das áreas de saber, restringiram ainda mais o número dos responsáveis, conferindo a muito poucas pessoas o peso de uma responsabilidade gigantesca, qual seja a de fixar o consenso entre as ortografias da mesma língua em tantos países, com tão complexas sutilezas em sua aplicação. No Brasil, reza a lenda que em muitos assuntos a confusão é geral. O Acordo vai ser um Acordo entre nações amigas, um Acordão, semelhante a tantos que são feitos em nossas casas parlamentares, frequentemente maculadas por conluios espúrios, ou um Acórdão, segundo conceitua a linguagem jurídica? Agora sem acento, acórdão pode ser pronunciado como no Direito, «acórdão», ou como na Política, «acordão». O dicionário Aulete, um dos mais consultados do país, do qual sou consultor e cujo editor me deu a honra de prefaciar uma das edições impressas, ainda dá as duas formas e seus diferentes significados: com acento e sem acento. Mas, no caso de acordão, temos assentos em vez de acentos, pois quem vota tem assento, e não acento, embora certos assentos tenham acento autoritário. Na edição do jornal O Globo (05.01.2009, págs. 12 e 13), Sérgio Nogueira Duarte da Silva, um professor do Brasil meridional que é referência no


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ensino do Português, apresentou um trabalho que merece ser afixado diante de todas as mesas de quem escreve. Intitula-se «Reforma Ortográfica: o que muda e o que não muda com a nova ortografia». A língua portuguesa, como tantas outras línguas, está cheia de arbitrariedades que se impõem na escrita por consenso de grupos influentes junto aos centros e sedes de poder, ou por força, como no caso das ditaduras. Convém lembrar, por exemplo, que o MEC também não é mais MEC. Somente o é porque não mudou a sigla, de MEC para ME, quando deixou de ser Ministério da Educação e Cultura, transformando-se em Ministério da Educação. Isso aconteceu em 15 de março de 1985 (Decreto 91.144, governo José Sarney), quando foi criado o Ministério da Cultura (Minc). A práxis política tinha outras urgências e a luta prioritária foi outra: restaurar o status que o Ministério da Cultura perdera, pois tinha sido transformado em secretaria (Lei 8.028, de 15.04.1990, governo Fernando Collor), situação revertida (Lei 8.490, de 19.11.1992, governo Itamar Franco) quando voltou a ser ministério. Mas, vejam vocês, os EUA, que dão nome de secretarias a seus ministérios, não têm uma secretaria da cultura. Fazem cultura com as empresas, que espalham pelo mundo inteiro, aptas a produzir ou a apoiar filmes, livros, obras de arte etc., funcionando, em resumo, como ministérios da cultura com sucursais no mundo inteiro... O governo Fernando Henrique Cardoso voltou a mexer na estrutura do Ministério da Cultura com a Medida Provisória 813, de 01.01.1995, transformada na Lei 9.649, de 27.05.1998. O presidente Lula (Decreto 4.805, de 12.08.2003) reestruturou de novo o Minc. Trago essas mudanças à baila para destacar certas sutis complexidades de nossas reformas. Se nos dois ministérios deram-se tantas mudanças em tão pouco tempo, não nos admiremos se o Acordo Ortográfico sofrer outras reformas. No Brasil, pirraças e picuinhas de pequenos grupos, ou às vezes circunscritas até a duas pessoas apenas, conseguem o inusitado: prejudicar a todos. O acordo, que é bom, tem falhas que poderiam ter sido evitadas. Predominaram instâncias de poder sobre instâncias de saber. Assim, o acordo, no mesmo dia em que foi assinado, estava precisando de reforma. Os defensores radicais do acordo dizem que ele vai alterar 0,5% das palavras no Brasil e 1,6% nas outras nações lusófonas. É um argumento complicado. Seja qual for o percentual, o prejudicado ou o beneficiado pode ser você. O acordo poderia ter sido muito mais eficaz se as consultas tivessem sido ampliadas. É verdade que o MEC abriu consulta pública, esclarecendo: «A atual ortografia conviverá com aquela prevista no acordo por três anos — de 2009 a 2012. Nesse período, as duas normas serão aceitas em concursos públicos e vestibulares.»


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Em artigos, entrevistas e palestras que tenho dado sobre o tema do Acordo ou seus assuntos de domínio conexo, tenho ilustrado com exemplos concretos o quanto perderíamos se adotássemos uma escrita fonética, defendida no Senado por um professor convidado a desenvolver ali a sua inusitada proposta, de resto impossível de ser sequer formulada, quanto mais aplicada. Copo é copo, e leite é leite, mas “copo de leite” designa um copo com leite, porém “copo-de-leite” [com hífens] designa a açucena, uma planta ornamental. “Copo” e “leite” vieram ambos do latim, respectivamente de “cuppa” e de “lacte”; açucena veio do árabe “as-susana”, designando o que o grego conhecia por “leírion”, que deu “lilium” em latim e “lírio” em português. Essas questões etimológicas são essenciais à ortografia, tanto quanto o são para a designação de fármacos, por exemplo, em que a mudança de uma letra, não apenas da dosagem, pode designar remédio ou veneno. Além do mais, há variações regionais. Em Santa Catarina, leite é pronunciado “leite” de um modo diferente do que ouvi por longos anos no Rio Grande do Sul, no Paraná e em São Paulo, estados onde morei por vários anos. E no Rio, onde vivo há 11 anos, a pronúncia tem outras variações. Reitero, pois, minha principal crítica foi esta: o Acordo ouviu muito pouca gente! Não me refiro a plebiscito ou referendos, mas acredito que profissionais da língua, como aqueles que, como eu, a estudam e a explicam a alunos ou a leitores, devam ser ouvidos. Defendo que, pelo menos, às universidades, às academias, às escolas e a referências da mídia sejam feitos convites para indicar profissionais a serem ouvidos pelos responsáveis pelo Acordo. Depois disso, teremos um consenso que nos permitirá levar uma proposta a nossos irmãos lusófonos e com eles debatermos os ajustes finais. PS.: Algumas das ideias aqui defendidas têm sido apresentadas em artigos, entrevistas e intervenções em congressos. Intentei fazer um resumo para situar meus eventuais leitores e interlocutores.

Deonísio da Silva É membro da Academia Brasileira de Filologia, é escritor e professor, doutor em Letras pela USP e autor de

34 livros, alguns traduzidos e premiados pela Biblioteca Nacional e pela Casa de las Américas. Apresenta colunas de etimologia Bandnews e na revista Caras.

na Rádio


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87 resenha

O ESCRITOR E HISTORIADOR MOSIMANN João Alfredo Medeiros Vieira

Logo após entregar ao público sua mais recente obra Os aviadores franceses — a América do Sul e o Campeche, na qual aborda a passagem do escritor-aviador Antoine de Saint Exupéry pelas redondezas do Campeche em janeiro de 1925, o historiador João Carlos Mosimann assinou, na edição do dia 1o do agosto iniciante, do jornal Notícias do Dia, crônica muito bem lavrada sobre a Editora da UFSC e seu recém nomeado diretor. Conquanto veemente e polêmico nas assertivas, reproduz palavras do mencionado diretor, suas opiniões, posições e quejandos... Não acha que ele seja the right man in the right place — o homem certo no lugar certo. Entretanto, não é respeitante a isso que me abalanço a escrever estas linhas. É apenas no que concerne à figura de escritor do velho amigo brusquense, cujo livro Tragédia e Mistério na Vila Renaux apresenta valor histórico semelhante ao da obra que acaba de lançar. Mesmo não sendo historiador, apraz-me demais compulsar e consultar obras desse naipe. Desde os tempos de vida do nosso saudoso conterrâneo, amigo, quase vizinho e Confrade Acadêmico Oswaldo Rodrigues Cabral, o primus inter pares. Com efeito, creio que Mosimann não se apequena diante da figura e até mesmo da obra do mestre da rua Esteves Júnior. Sabe redigir em português escorreito, fluente e, por vezes, brilhante. Lê-se, na orelha final, resumo da figura e da obra do autor. Não fora síntese biobibliográfica de contracapa, poder-se-ia acrescentar muito mais e lhe encomiar, também, os méritos literários, o modus faciendi e o modus concludendi. “Engenheiro, pesquisador e escritor, nascido em Brusque (SC), o autor tem dedicado seu tempo à pesquisa da história de Santa Catarina, sobre a qual publicou inúmeros trabalhos em jornais e revistas especializados. É autor do livro Porto dos Patos (2002 e 2004) sobre a história da Ilha de Santa


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Catarina no século 16 e da obra A invasão espanhola (2003), que procura desvendar os segredos dos espanhóis invasores e dos portugueses defensores da edênica ilha naquele 1777. Catarinenses — Gênese e História, editado no final de 2010, foi agraciado com o Prêmio Elisabete Anderle da Fundação Catarinense de Cultura e propiciou ao escritor o Prêmio Paschoal Apóstolo Pítsica da Academia Catarinense de Letras e Artes e o Diploma de Mérito (Categoria História) da Academia Catarinense de Letras de 2010.” Assim, pois, agora só está faltando a esse historiador sentar-se, também, numa Cadeira do nosso “Petit-Trianon”, a Academia Catarinense de Letras.

João Alfredo Medeiros Vieira Ocupa a Cadeira n.o 4 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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91 poesia

GUANTÁNAMO Emanuel Medeiros Vieira

Guantánamo não é um retrato na parede Guantánamo fede Guantánamo não acaba E ninguém mais se lembra de Guantánamo As pessoas foram torturadas, morrem esquecidas. Os “outros” são sempre os perversos. E Guantánamo sobrevive. Sim, não é um retrato na parede. A “América profunda” não quer que a prisão acabe. As pessoas mofam e morrem sem julgamento ou processo. Não, não falo em impunidade — falo em justiça E justiça não é vingança. Mas Guantánamo não morre Mas cheira mal, mesmo no esquecimento Guantánamo é “aqui” também: Na indiferença, no “não tenho nada a ver com isso”. E Guantánamo vive, E só me restam palavras, lugares-comuns (e a contemplação do mar) Ah, Guantánamo (Salvador, setembro de 2014)

Emanuel Medeiros Vieira É escritor e contista catarinense, atualmente residindo na Bahia.


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93 conto

MEIO INVISÍVEL Péricles Prade

São inumeráveis os descrentes, achando que a invisibilidade é impossível. Já discuti, várias vezes, com os ignorantes dessa realidade científica, e não quero mais repetir os argumentos. Digo, por experiência própria, que essa extraordinária mudança é possível, muito embora reconheça ter passado por uma esquisita situação. Explico: Construí um laboratório sofisticado no espaço menos acessível aos curiosos, blindando-o com vidros negros colocados por especialistas do ramo. Trancava-me nesse ambiente ideal dezoito horas por dia, comia pouco (no meio da tarde), tanto que convidados e amigos íntimos confundiam-me com esqueleto coberto de pele quase transparente. Fui ridicularizado durante anos a fio. Não ligava a mínima. No fundo, tinha pena dessa gente. Acontece que, num sábado, pela manhã, realizei o sonho de todo cientista: descobri a lei da invisibilidade. Guardei a fórmula na mala de cobre, presenteada pela mamãe no dia do meu quinquagésimo aniversário. Apliquei-a em três porquinhos-da-índia, dois ratos de esgoto (americanos) e cinco abelhas africanas. Todos desapareceram no instante em que joguei o líquido (cujos componentes, lamento, recuso-me a compartilhar) sobre os seus corpos. Quando o despejei sobre mim, percebi que algo deu errado. Corri ao centro da sala, onde há enorme espelho. Fiquei transtornado ao verificar que não me tornei invisível por inteiro. Imagino ter esquecido, na hora de prepará-lo, de incluir um ingrediente fundamental. Pensei, repensei e até hoje desconheço o motivo do desastre.


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O problema é que pareço legítimo queijo suíço, com buracos de tamanhos diversos, localizados na cabeça, tórax, pernas e principalmente no abdômen (o maior deles). Alguém, atento, poderia questionar: — Ora, se tens a fórmula, basta renovar o líquido e jogá-lo sobre as partes visíveis. Responderia: — Não é bem assim. Não se pode jogar duas vezes o líquido sobre o corpo. Caso se jogue, a invisibilidade será eterna. Jamais pretendi a eternidade. Quero apenas ser invisível para sentir a sensação de estar em vários lugares, sem que minha presença seja notada. Afirmo isso com segurança, pois agi desse modo com os porquinhos-da-índia, e os bichos, coitados, tornaram-se irreversivelmente invisíveis. Presumo que devem ter morrido de fome. Sobraram-me duas alternativas: permanecer como estou, esburacado, ou, então, ficar invisível para o resto da vida. Combinando lógica e desejo, optei pela primeira possibilidade. Nos primeiros quinze meses foram incontáveis as dificuldades de locomoção. Se ventasse, era projetado de um local a outro. A muito custo consegui contorná-las, abraçado numa árvore até a ventania passar. Noutra ocasião, por pouco não fui atropelado. Salvou-me uma anciã que me puxou com o cabo do guarda-chuva. Os adultos assustados corriam, quando me viam. As crianças eram sensatas. No máximo, riam, virando-se para trás. Demorei para superar os constrangimentos diários. Alguns idiotas tinham a mania — postura comum nas filas do metrô, cinema, teatro e campos de futebol — de enfiar o braço, ou mesmo a cabeça, em geral pela frente, no buraco de minha barriga. Os mais afoitos chegavam a tocar com os dedos a área exposta do cérebro. Outros metiam a mão no órgão genital (lembro-me das gêmeas ruivas), apalpando um testículo à mostra. Com o tempo tudo se acalmou. Mesmo tendo virado atração pública, ninguém mais se espanta. A intolerância e os gracejos diminuíram, deixando o povo de me considerar leproso da era moderna. Os ânimos da comunidade se arrefeceram no domingo em que fui à missa, em companhia da beata e bela penitente Raffaella, ex-secretária municipal, que, por ter perdido o noivo numa viagem de trem (ele fugiu com a filha do condutor), abdicou os prazeres da carne. Hoje, querido por todos, sou o mais alegre dos mortais. Além de satisfeito pelo erro cometido, tenho o privilégio de ser o primeiro homem meio-invisível do planeta. Péricles Prade Ocupa a Cadeira n.o 28 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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97 crônica

três textos Urda Alice Klueger

SERRA CATARINENSE/FOGUEIRA Para Eduardo Venera dos Santos Filho

(...) você anunciou que iríamos fugir. Deslizamos rapidamente para o quarto. Você procurou um agasalho para mim e perguntou se eu tinha a chave para voltar, e um instante depois pulávamos a janela e fugíamos correndo até seu carro. Lembra-se como a vida era linda? Lembra-se o quanto nós nos amávamos? Lembra-se de como ficamos rodando sem destino por algum tempo, até que você me perguntou se eu tinha algum plano, alguma ideia do que faríamos a seguir? Pensei um pouco e disse-lhe que poderíamos fazer uma fogueira. A ideia parecia um pouco estranha, mas era lindo pensar num grande monte de fogo subindo por dentro da noite fria e escura, e você perguntou-me aonde é que faríamos a fogueira. Disse-lhe que poderíamos procurar algum lugar, e no instante seguinte você pisava forte no acelerador e seguia para fora da cidade. Rodamos devagar pela rodovia, observando atentamente ambas as margens, tentando idealizar uma fogueira em algum dos lugares que víamos. Havia um local em que a estrada rasgara a encosta de uma coxilha suave, uma coxilha onde havia um capão de mato: pinheiros altos sombreando raquíticas árvores que mais se assemelhavam a arbustos. Resolvemos tentar aquela: sob pinheiros, sempre há galhos caídos, e se lá não houvesse madeira, tínhamos tempo para procurar outro lugar. Você se lembra? Do pequeno barranco, da cerca de arame que delimitava a rodovia, da árvore que fora quebrada ou derrubada recentemente, entrevista


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na claridade da lua que se filtrava entre os pinheiros? E de como procuramos erva seca, agulhas de pinheiro e pequenos galhos para começarmos o nosso fogo? E de como tudo estava tão molhado de orvalho que gastamos uma caixa de fósforos inteira sem conseguirmos sequer uma chama? E de como você se feriu nas farpas do arame da cerca, quando foi até o carro buscar outra caixa de fósforos? E você se lembra como a noite era mágica e linda, como a noite era cheia de ternura e poesia, e de como a vida era bela? Afinal, conseguimos a primeira chama, frágil, vacilante, e cuidamos dela como se fosse um amor perfeito assustado, com medo de desabrochar. Talvez tivéssemos tanto amor que transmitíssemos coragem ao amor perfeito amedrontado — a chama se ergueu, orgulhosa, desdobrou-se em outras, exigiu alimento, e corremos a lhe oferecer cada vez galhos mais grossos, quebramos pedaços da árvore derrubada, até que a fogueira se tornou plena e lhe demos a árvore inteira de presente. O fogo, afinal, crepitou e subiu pela noite como uma coluna sagrada, e a fascinação que sentíamos por ele provavelmente era igual à fascinação dos primeiros homens das cavernas diante do primeiro fogo que existiu. Ele já não precisava de nós, mas nós precisávamos dele, e nos sentamos, um em cada lado da fogueira, a olhar para as chamas enormes, exigentes, bailarinas, coloridas, devorando um pedaço da noite como uma criança faminta devora um pedaço de torta, soltando milhões de fagulhas efêmeras pelo ar, fazendo sombra para a lua que se tornou pálida e distante. Tínhamos uma fogueira inteira para nós; tínhamos pedras para nos sentarmos; tínhamos o céu como nosso teto — o que mais a vida poderia nos oferecer? Eu olhava para você sentado lá do outro lado, absorto na contemplação do fogo, com as chamas criando sombras dançantes sobre a perfeição das linhas do seu rosto, com as chamas esculpindo em suas faces uma estátua que parecia pétrea e encantada, e comparava-o a Winnetou sentado ao lado de alguma fogueira de lenda, no meio do descampado desolado de uma campina de Karl May. (1973)


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ÁRVORE DE AMORAS Para Luiz Ramil

Lembro-me de quando estavas aqui, em agosto, e a árvore de amoras ensaiava a primavera, neste ano em que o inverno foi tão brando! A cada manhã parávamos sob ela e víamos as pequenas amoras verdes crescendo, e eu comentava contigo da abundância que haveria em breve, da refeição de amoras que eu faria ali, a cada manhã, coisa encantada, que me ligava à natureza, ao passado e ao presente de fartura, tanta comida, hoje, neste país, que as crianças já não sabem mais comer fruta no pé! Então tu te foste antes que a primeira amora amadurecesse, e eu continuei ali, espreitando aquela árvore que em poucos dias cobriu-se de amoras pretas, doces e suculentas, e nas manhãs de andanças com meu cachorro eu já não comia mais em casa, tamanha era a fartura que havia sob aquela árvore, fartura daquela fruta que me deixava a boca, o rosto e as mãos cheias do roxo do seu sumo, fartura das lembranças de ter estado ali contigo. Eram tantas as amoras que eu podia comer até a saciedade, e elas se desprendiam dos ramos da árvore ao primeiro toque e me enchiam as mãos, e a cada uma que eu botava na boca eu me lembrava de ti, e aquela rua que me trazia diversas magias agora ficara mais encantada ainda, e cada manhã era uma manhã de festa porque havia as amoras e a tua lembrança de ali, sob a árvore — mais de uma vez eu te escrevi sobre aquelas amoras maduras, mas penso que não sabes, até agora, como aquele amadurecimento está, agora, ligado à tua lembrança.


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Houve dias que como que me sentia intoxicada de tanta vitamina C, tamanha a abundância sob aquela árvore, e é tão mágica e magnífica, aquela árvore, que tanto eu, quanto as crianças da escola, quanto outros passantes, todos paravam ali para colherem suas frutinhas negras, e lá vinham mulheres com panelas para a colheita com a qual fariam doces, ou homens com potes de plástico para colher amoras para as suas crianças, e todos nos fartávamos e colhíamos o que estava à mão, na parte mais baixa da árvore, pois lá em cima, quem dominava eram as aves. Todo o tipo de aves e avezinhas fazia sua barulheira primaveril nos altos da árvore, sem nenhum medo, pois agora as crianças também já não sabem mais perseguir passarinhos, e houve uma manhã, mesmo, que havia tal bando de aracuãs se alimentando lá no andar de cima, que quando fazia uma revoada, era quase que com se houvesse um escurecimento do dia. As aracuãs estavam tão felizes e repletas de amora que, imagino, naquele dia aproveitaram para perpetuar sua espécie. E eu comi, e depois fui andando, e depois voltei — tu conheces o meu itinerário — e sempre as aracuãs continuavam ali a festejar a vida, e como eu sentia que não estivesses ali para compartilhar aquela exuberância toda! A festa daquela árvore continuou por uns quarenta dias — nunca fizera as contas de quanto tempo uma árvore de amoras permanece frutificando, mas neste ano eu lembrava de ti e de quanto tempo fazia que te foras, e sabia do tempo. E continuava, a cada amora, a me lembrar de ti. Hoje foi a primeira manhã em que já não havia amoras, e vim para casa com fome. Há que esperar muito tempo para que aquela árvore volte a frutificar, o que não quer dizer que ela não continue a frutificar lembranças, pois me mantive sob ela, olhando seus ramos sem amoras, mas pejados de recordações. Quanto tempo irá passar, agora, até que possamos estar de novo sob uma árvore assim, armazenando novamente as lembranças que ficarão para a vida? Senti muito, muito, a tua falta. (Blumenau, 4 de outubro de 2014)


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MINHA FADA Para D. Lydia Scheffler dos Santos

Então, como num sonho, ontem eu estive de verdade no teu jardim. Não faz tanto tempo assim que o deixaste; aquelas roseiras, com certeza, ainda foram plantadas pelas tuas mãos. Estão lá, um pouco órfãs, porque faz tempo que não apareces, e criam rosas e rosas como quem prepara uma festa, assim na expectativa de que irás voltar — como que milagrosamente, eu recebi nas mãos e no coração o presente de algumas daquelas flores, duas rosas amarelinho-claras, um ramalhete de rosinhas que não são nem vermelhas e nem laranja — e de lá saí levitando com a leveza daquele tesouro jamais imaginado, o de ver, o de estar e o de ganhar aquelas flores que provêm de ti! Não via a hora de chegar em casa para poder beijar aquelas rosas com o respeito que elas requerem, com a leveza que elas precisam, com o amor que elas suscitam. Beijei-as ontem, beijei-as hoje, fotografei-as, amei-as, estou a amá-las neste instante, aqui perto de mim, na calidez de quase primavera da minha varanda — penso que por toda a vida estarei a amá-las, mesmo quando o tempo passar e delas só restarem as pétalas secas e as fotografias. Uma vez, faz muito tempo, foi teu aniversário e eu ganhei um botão vermelho do teu buquê — era um dia de sol e de movimento e a vida era de tal intensidade que era difícil de suportar — passou-se todo este tempo, aquele botão vermelho ficou negro, secou, mas para mim ele continua igual, fresco e colorido, e jamais me abandonou.


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Uma vez, também, um pouco de ti misturou-se comigo de uma forma impossível de desfazer e criou este elo que é para sempre, não importa se neste planeta ou em outras dimensões. Contigo aprendi que se pode ter mais de uma mãe porque tu és uma delas, e é assim que te chamo dentro do meu peito, mãezinha querida, pois não há como chamar-te de outro jeito, pois é assim que eu te sinto, pois é assim que tu és, tanto para mim quanto para estas rosas que se embalançam na brisa tépida da minha varanda nesta quase primavera, assim como és mãe para tantas pessoas e também para aquelas plantas que estão lá te esperando — ah! minha fada, quanta magia esparges com a tua varinha de condão, com tua ternura sem fim, com tua infinita habilidade de amar! E lá no teu jardim as tuas roseiras te esperam, mas sei que ao menos por hoje elas continuarão tecendo novos botões para te esperar, pois hoje, nesta noite de quase primavera, sei que estás aqui na minha varanda, e que posso tocar tuas mãos de seda, acariciar-te os cabelos de delicado cristal, e receber aquele teu abraço que foi o primeiro que aprendi na minha vida, visto que a doçura dos abraços demorou a chegar até mim. Minha fada, minha princesa, minha querida, inesquecível esta noite aqui na minha varanda com as rosas das tuas roseiras! (Blumenau, 13 de setembro de 2014)

Urda Alice Klueger Ocupa a Cadeira n.o 2 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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105 arquivo pessoal

entrevista com paulo francis Moacir Pereira

No início da década de 1980, realizei uma viagem de grande enriquecimento pessoal e profissional. Conquistando uma bolsa de estudos do Consulado Americano em Porto Alegre, cumpri um roteiro de 31 dias nos Estados Unidos, de costa a costa, visitando os principais jornais e as maiores redes nacionais de televisão. De Washington a Los Angeles, passando por Montana e encerrando em Nova Iorque. Em visita à Casa Branca, obtive uma exclusiva com o Secretário de Imprensa. Na capital federal, testemunhei o início da revolução na era dos computadores. Enquanto no Brasil e no resto do mundo as máquinas de escrever eram ouvidas pelos repórteres e colunistas como verdadeiras sinfonias da comunicação, na redação do Washington Post, uma enorme sala, silenciosa, exibia pesados monitores e teclados grandes, anunciando uma nova fase na moderna comunicação digital. Na última etapa da viagem, em Nova Iorque, procurei contato com dois catarinenses que ali faziam sucesso: Laurita Mourão, filha do general Mourão Filho e descendente da família Linhares, de Florianópolis; e o jornalista Beto Stodieck, colega da Faculdade de Direito e companheiro de jornadas profissionais. Paulo Francis era o jornalista brasileiro de maior sucesso em Nova Iorque. Entrevistá-lo era meu sonho para coroar uma série de entrevista com personalidades jornalísticas americanas e brasileiras de diferentes segmentos da comunicação social. Achava quase impossível. Mas não desisti da ideia. A ajuda dos dois catarinenses foi decisiva. Fui recebido no apartamento com surpreendente cortesia. Francis foi generoso com o jovem repórter catarinense. As instalações eram padrão classe média, sem luxo, mas bem espaçosas e confortáveis. Música ambiente de Richard Wagner, a fixação de Francis. Preferência, aliás, que não entendia, eis


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que, a exceção da maravilha de As Walquírias — que degusto sempre com prazer imenso e espanto pela genialidade da junção entre instrumentos de corda e metais, em viradas sensacionais — acho Wagner pesado, estridente, profundo demais para minha sensibilidade de árias leves e mais populares. A sala em que o respeitado colunista nos recebeu tinha as paredes literalmente cobertas de livros e obras de arte. O lindo gato de estimação circulava à vontade com espantosa docilidade entre os visitantes, sem incomodá-los. Obedecia aos mínimos sinais do carinhoso dono, que o abraçava como uma menina que acaricia a boneca que acaba de receber de presente, lembrando a famosa cena de Marlon Brando em O Poderoso Chefão. Uma conversa informal marcou a prévia da entrevista, publicada no Jornal de Santa Catarina na edição de 24 de agosto de 1980 e depois incorporada numa série de entrevistas em “A Imprensa em Debate”. Paulo Francis faleceu no dia 4 de fevereiro de 1997, vítima de infarto, segundo o laudo médico. Lesão cardíaca causada por ação milionária de indenização impetrada pelo então presidente da Petrobrás, Joel Renó. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo e em O Globo, o jornalista Élio Gaspari cravou em título: “Doutor Renó, o senhor ganhou”, logo após o falecimento de Francis.

A ENTREVISTA

Lançou com grande O afeto que se encerra. 1

sucesso

No dia 1o de agosto de 1980, a Folha de S.Paulo publicava: “Prezado leitor, a menos que você me conheça pessoalmente, peço-lhe a fineza de não me telefonar quando estiver aqui. Não quero ser indelicado com ninguém. Mas é que produzo média de 700 artigos ao ano para este jornal. Preciso falar horas ao telefone diariamente com políticos e diplomatas, ler dezenas de publicações e o teletipo. Muito prazer antecipadamente em conhecê-lo. Não sou guia de Nova lorque (...) Não leve a mal. I Love you. À distância”. Era o trecho final de um artigo assinado pelo jornalista Paulo Francis, num enfático recado para se ver livre dos brasileiros que chegam em Nova Iorque. Considerado irreverente pelos políticos, pedante por alguns jornalistas, pernóstico em determinados meios intelectuais, Paulo Francis procura realizar seu trabalho em Nova lorque, livre dos turistas chatos e dos brasileiros à procura de um guia de compras. É correspondente em tempo integral da Folha de S.Paulo, função que assumiu depois de deixar o Brasil, revoltado com quatro prisões ilegais e censura prévia nos jornais. Tem dois livros publicados (Cabeça de Papel e Cabeça de Negro), sucesso de vendas e boa receptividade entre os críticos. Está terminando um livro de memórias e termina o terceiro “Cabeça” da série.1


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No pequeno escritório, instalado no sexto andar do edifício 301, na rua 47, Paulo Francis escreve seus comentários, já perfurando direto a fita do telex. Mora no mesmo prédio, o que facilita os contatos e seu trabalho. Foi neste local de trabalho que falou sobre política e jornalismo, sem preconceitos, irreverências ou atitudes pernósticas. Declara-se um “esnobe”, porque não aceita que “um bando de idiotas fiquem dizendo besteiras”. Aos 50 anos, lê três livros por semana, sete jornais por dia e o resumo diário da UPI. É casado com Sônia Nolasco Ferreira, correspondente de O Globo, em Nova Iorque. Moacir Pereira | A visita do Papa João Paulo II ao Brasil e as repercussões inéditas na imprensa americana podem influir na política brasileira? Paulo Francis | Em primeiro lugar é preciso acabar com esta história de ficar esperando soluções de fora para as crises internas. É necessário, também, ter um enfoque à luz da História. A Igreja Católica sempre foi transnacional. Nunca acreditou em Nação e achava que estas coisas são subordinadas à ação mediadora da Igreja, em face de Deus. A interpretação de que a Igreja é a favor do capitalismo se deve a duas coisas: uma, a de que estamos tão viciados no debate entre capitalismo e comunismo, que não nos passa pela cabeça que existam outras escolas de pensamento. E também se deve ao fato de que a Igreja, desde 1870, quando perdeu o controle da Itália para as forças insurgentes de Garibaldi, entrou num período de grande retraimento, fechando-se em certos dogmas. Isto prevaleceu até depois da Segunda Guerra Mundial, quando voltou a atuar. Taticamente, naquela ocasião, em face da atuação da União Soviética, que ocupou e colonizou o Leste Europeu, e de outras revoluções que ocorreram na China e em Cuba, a Igreja formou muito ao lado dos Estados Unidos, por ser a maior nação capitalista do mundo. Esta foi uma posição tática, em decorrência do avanço do comunismo. Nunca, porém, a Igreja foi favorável ao capitalismo. Assim, a mensagem de João Paulo II não me causa maior surpresa. Ela sofreu uma revisão grande no Concílio Vaticano. A posição da Igreja, em favor da Justiça Social, não é nem comunista, nem capitalista. Agora, conhecendo melhor o mundo e vendo que em muitos países a situação é bem pior do que na Polônia, o Papa está abrindo a Igreja. Pereira | Ocorre que antes a hierarquia da Igreja estava ao lado do poder, dos regimes ditatoriais e hoje coloca-se ao lado dos marginalizados. Francis | É claro que existem no episcopado brasileiro bispos conservadores e progressistas. Mas, os mais conservadores tomam esta posição, não porque favoreçam o capitalismo, mas porque têm medo do comunismo. Eles consideram o comunismo um inimigo muito mais sério. A Igreja, como instituição, nunca disse que o capitalismo é a ordem natural, a ordem mais desejada. Por


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ser uma instituição colossal, ela tem divergências. A Igreja, como instituição, nunca tomou partido. Ela é contra o comunismo, porque uma das premissas do comunismo é o ateísmo. Ela não pode apoiar uma ideologia que negue um fundamento no qual a Igreja se alicerça. Pereira | E a repercussão extraordinária na imprensa americana? Francis | É a resultante de uma série de fatores. É preciso reconhecer que o Papa é uma estrela, qualquer que seja a opinião político-ideológica. Tem um carisma pessoal, um charme, que fazem acontecer. Não é como Paulo VI, um homem doente, taciturno. Ele é um camponês alegre, saudável, atlético. Eu teria morrido se fizesse a viagem que ele realizou no Brasil. O homem rezava missa de cinco horas. Ele tem personalidade e dá segurança às pessoas inseguras, intranquilas, com a complexidade tecnológica e política da sociedade moderna. Por isso, ele fez sucesso também aqui nos Estados Unidos, onde os católicos são minoria. E há um fator político muito importante. A América Latina, nas análises do Departamento de Estado, está explodindo. A América Central está em guerra civil. Caiu Somoza, Granada é socialista, Santa Lúcia é socialista, Cuba é socialista. Há guerra civil na Guatemala, em El Salvador. O Departamento de Estado já percebeu que, ou há reformas que interessam diretamente à segurança do sistema interamericano, ou vai haver guerras civis. Daí o interesse incomum da imprensa americana com a visita papal, refletindo uma preocupação do pensamento político do Governo e da elite dos Estados Unidos, em relação ao estado crítico da América Latina. Pereira | A imprensa americana, então, não é totalmente livre e independente? Francis | Independência existe, porque você não pode censurar nada na imprensa americana. O Congresso é proibido de fazer leis sobre censura prévia. A independência da imprensa em abstrato é uma fantasia. A imprensa reflete as opiniões dominantes dentro do país. Por isso, existe a imprensa de esquerda, de direita, de centro, liberal, conservadora. No caso americano, há o interesse do governo. A América Latina é a retaguarda estratégica dos Estados Unidos. Em toda parte, há movimentos insurrecionais contra ditaduras. O governo americano está procurando um caminho alternativo. Ele sabe que o futuro da América Latina não está com Pinochet, Videla, Stroessner, gostaria de uma democracia cristã. A própria política de direitos humanos de Jimmy Carter, apesar de tão avacalhada na execução, reflete essa preocupação. Antigamente, eles davam um cheque em branco a qualquer ditador, assassino de direita, desde que fosse anticomunista. Hoje, isso não existe mais.


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Pereira | Qual seria a grande preocupação do governo dos Estados Unidos em relação ao Brasil e América Latina? Francis | A emergência de regimes radicais antiamericanos. Os Estados Unidos não podem, estrategicamente, tolerar um Brasil antiamericano. É um país imenso, que precisa ser aliado dos americanos. Se o Brasil amanhã fosse aliado da União Soviética para conseguir seu desenvolvimento acabaria provocando uma guerra mundial. Pereira | Do ponto de vista econômico e político, não seria melhor para o Brasil adotar uma posição de mais neutralidade? Francis | É, e o próprio governo brasileiro está procurando quebrar a dependência excessiva dos Estados Unidos, saindo para outras opções. O problema é que o Brasil está enfrentando uma crise econômica e vai ser difícil encontrar uma saída que não crie sérios problemas políticos. Temos a maior dívida externa do mundo — 60 bilhões de dólares. Este ano, o Brasil terá que pagar, entre amortizações e juros, 14 bilhões de dólares, que não tem de onde tirar. Pereira | Esta dívida não preocupa os banqueiros americanos? Francis | Preocupa muitíssimo. Se o Brasil falisse, haveria um crack no sistema financeiro mundial. Os banqueiros americanos têm 20 bilhões de dólares emprestados ao Brasil, o que representa mais do que o capital. Eles excederam à lei.

“A Igreja nunca foi favorável ao capitalismo.” Aqui, a tendência cautelosamente sugerida — eles têm um certo medo — é de que o Brasil entre num sistema de refinanciamento dessa dívida. É um esquema do Banco Mundial, em conjunção com o Fundo Monetário Internacional. O problema é que isso tem implicações políticas muito sérias, porque exigiria um brutal apertamento de cinto no Brasil. Pereira | Tutela do Fundo Monetário Internacional? Francis | Exatamente. Há vários países nessa posição. São dotações para socorrer os maiores devedores. O problema é que o atual regime não subsiste, se isto for imposto. A classe média — pessoas que ganham entre 20 a 30 mil cruzeiros por mês — não resistiria a este apertar de cinto. E estou falando do Brasil, quando se sabe que este é um salário alto, em relação à maioria


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do povo. Para que o Brasil continue a ter crédito, as instituições bancárias internacionais exigem uma inflação inferior, no mínimo, a 50%. E a inflação brasileira já ultrapassou os 100%. Eles não emprestarão mais nesse buraco sem fundo. Em termos populares seria o esquema de papagaio. Você está sem dinheiro, vai ao banco fazer um empréstimo de 10 mil cruzeiros. Vencido o título, você pede mais 15 mil, paga os 10 mil; quando venceu os 15, você toma os 20 mil, paga o anterior, e o resto vai de juros. O Brasil está fazendo isso há anos. Os credores, agora, se indagam: “Quando é que isso será pago?” Até o momento não protestaram porque o Brasil tem pago os juros. Nesse ritmo vai chegar um momento em que a dívida é de tal ordem que o cancelamento da dívida derruba a rede bancária americana. Pior: leva com ela a rede bancária europeia. Pereira | A dívida externa tem esta importância mundial? Francis | É claro, meu velho. Banco não tem dinheiro. Banco empresta dinheiro dos depositantes. O City Bank empresta ao Brasil dinheiro de seus depositantes, aos quais ele paga dividendos. Se ele tiver que repor 10 bilhões de dólares, simplesmente não tem como fazê-lo. Ele pode tomar emprestado e alguém vai pagar os 10 bilhões. Pereira | E como ficamos? Dívida externa aumentando, déficit comercial, inflação acima de 100%, banqueiros preocupados, crise econômica afetando o social? Qual a saída? Francis | Isto tudo se deve a erros crassos do governo. É possível começar a reforma retirando os privilégios indescritíveis de uma minoria no Brasil. Há pouco tempo, o governo baixou uma taxa de 10% sobre os lucros de capital. Quem tem mais de 4 milhões de renda pagaria 10%. O mundo veio abaixo. Chamaram Figueiredo de comunista, o Delfim de agente de Moscou, o diabo. Nos Estados Unidos, com todos os macetes, as empresas pagam entre 40 e 50% de imposto sobre lucros de capital. O pior é que o governo recuou. Segundo o sr. Delfim Neto, apenas 38 mil pessoas têm dinheiro mesmo no Brasil, um país com 200 milhões de habitantes. Eu conheço gente que ganha 200 milhões de cruzeiros por mês jogando no open. Essa gente tem que ser taxada. E isto não é o mais importante. Não é preciso o Papa ir ao Brasil para dizer quais são os problemas. Qualquer pessoa já sabe quais os problemas, desde que queira apurar.

“O Departamento de Estado sabe que a América Latina está explodindo.”


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Pereira | Mas os brasileiros ficam aguardando soluções do exterior. Francis | É uma distorção histórica. No século passado eram os ingleses, depois foram os americanos, e agora ameaçam ser os alemães ocidentais. Amanhã vão ser os japoneses e um dia podem ser os russos ou chineses. Pereira | E o que o Brasil precisa? Francis | Precisa, em primeiro lugar, de uma reforma agrária. Joaquim Nabuco dizia que no Brasil 1% da população era proprietária de 50% das terras. Em 1980, não mudou absolutamente nada. Você precisa explorar racionalmente a agricultura brasileira. Criar os meios internos de subsistência ao povo brasileiro, com seus próprios recursos. Quando o sr. Karlos Rischbieter (desses tecnocratas, o mais humano e o mais honesto) era presidente do Banco do Brasil, deu entrevista ao The Economist, dizendo que o governo brasileiro estava aplicando 18 bilhões de dólares por ano, em colheitas que rendem divisas — café, cacau, soja etc. e duvidava que metade desse dinheiro fosse aplicado. A outra metade era para especulação. O Brasil não tem falta de dinheiro. Pereira | Ele é mal aplicado? Francis | Não. Ele é aplicado em especulação. Se ele fosse desviado para a agricultura, ou uma indústria em consonância com as possibilidades brasileiras, o país poderia sair do buraco em que está. É acabar com fantasias de Transamazônica, siderúrgicas maravilhosas, prédios suntuosos, tudo concepção de tecnocratas. Pereira | E como fazer a autocrítica? Francis | Começando pela análise histórica. Nós tivemos até o azar de sermos colonizados por Portugal, um dos países da contra reforma. Espanha e Portugal eram os principais da contra reforma católica, com posição anticapitalista e antinacionalista. Repare que todas as nações protestantes se tornaram grandes potências. A Espanha, que era o maior império do mundo no século XVII, passava à condição de país de quinta categoria no século XVIII, quando a Inglaterra protestante explodiu. O único país católico da contra reforma que prosseguiu foi a França. E isso não foi por causa da Igreja; foi em função da Revolução Francesa de 1789, que arrebentou com tudo, libertando-se da mentalidade feudal. Portugal virou colônia da Inglaterra. Foi a Inglaterra que decidiu sobre a independência no Brasil. Nós passamos o século XIX sem nada, tudo por culpa deste bestalhão do Pedro II — um dos maiores bestas que a história já produziu. O mundo inteiro no maior desenvolvimento capitalista e o Brasil deixando passar. Nem cortaram o país de estradas de ferro, que era coisa elementar.


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Pereira | Mas até hoje no Brasil não se fala em transporte ferroviário. Francis | Eles querem é avião a jato, vida mansa. Pereira | A crise do petróleo é de 1973 e até agora nada. Francis | É o que eu digo. Eles abrem um “Regine’s” na Bahia, onde tem Alagados. É essa mordomia de “Meridien”, “Regine’s”, estes hotéis chiques do Rio. Isso é o Brasil. O governo concedeu 10 anos de isenção total de impostos, em nome do turismo, mas não é capaz de gastar um bilhão de cruzeiros por ano para urbanizar as favelas do Rio. O favelado trabalha, é mão de obra indispensável no Brasil. Por que não colocar luz elétrica, água e dotar as favelas de condições sanitárias? Esse negócio de malandro, favelado, é conversa, é uma minoria.

“Se o Brasil falisse, haveria um crack no sistema financeiro mundial.”

Há aumento de crime porque não existe emprego. O país está numa recessão desgraçada. Quando fui ao Brasil, estive num almoço com três engenheiros desempregados. Sou muito pessimista. Vamos dizer que dois são incompetentes. Mas, e o terceiro? Quando eu era mais novo, o diploma de engenheiro era um passaporte de emprego garantido para o resto da vida. São pessoas altamente qualificadas sem emprego. Pereira | Você falou das favelas. Por que o governo americano não resolve o problema das favelas aqui em Nova Iorque, no Harlem? Francis | Aqui é completamente diferente. Na favela americana, a comida custa um quinto do preço normal, o aluguel custa 25%, tem assistência médica gratuita, tem escola garantida. O favelado aqui ganha 10 mil dólares por ano. O que há aqui é racismo. O favelado nos Estados Unidos é preto, portorriquenho, mulato ou hispânico escuro. Não dá para comparar. A classe média americana é uma realidade. Pereira | Os jornais têm candidatos ou apoiam programas nas campanhas eleitorais? Francis | Nenhum jornal importante apoia ninguém. Eles procuram cobrir a campanha ao máximo. O noticiário, contudo, tem uma diretriz. Eles fizeram, por exemplo, uma campanha de difamação contra o senador Kennedy sem


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precedentes. E por quê? Eles temem que o Kennedy mexa na estrutura corpo racional americana, ou que seja reformista demais.

“Quando o político é candidato, vê-se na cara o número da conta na Suíça.” A meu ver, eles agora vão iniciar uma campanha violenta contra o Reagan. No fundo, os jornais preferem um presidente banana, manipulável como Carter é, do que os chamados homens de personalidade. Kennedy e Reagan têm personalidade. Eles preferem um idiota como o Carter. Pereira | Qual a tendência majoritária do eleitorado? Francis | É centrista progressista. O problema é que o povo está enfrentando uma inflação sem precedentes, queda do nível de vida, queda de produção, humilhado no Irã. As pessoas estão assustadas. E quando elas estão assustadas, a tendência é votar no primeiro demagogo que aparece e oferece soluções fáceis — no caso Ronald Reagan. Pereira | E como um ex-ator de cinema chega lá? A estrutura partidária está falhando? Francis | Está caindo aos pedaços. As pessoas votam em quem bem entendem. O Reagan domina a máquina do Partido Republicano. Ele é incompetente em política externa, mas é preparado em política interna. Foi governador da Califórnia durante oito anos. O Produto Nacional Bruto da Califórnia é maior que o do Brasil. Pereira | Passando a outro campo, o povo americano lê mais os grandes jornais, os jornais locais ou vê televisão? Francis | A elite americana lê o New York Times e o Washington Post. A maioria do povo se informa pela televisão. Imprensa nacional aqui é New York Times, Washington Post, UPI, Associated Press, Times, Newsweek e as redes ABC, NBC e CBS. O Times e a CBS são os mais importantes na opinião pública.


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“Os Estados Unidos não podem, estrategicamente, tolerar um Brasil antiamericano.” Pereira | E você como trabalha? Em quem confia? Francis | Meu trabalho é simples. Acordo cedo, leio o teletipo da UPI para me situar no resumo. Se é algo que conheço, escrevo os artigos. Se não sei, faço os contatos com a rede de informantes no governo. Leio os jornais e revistas para ver se há algo de novo a saber para que lado os ventos estão soprando. A base é o meu conhecimento da cena americana e os meus informantes. Pereira | Você usa muito o telefone? Francis | O telefone aqui funciona. Você liga para Washington em três segundos. Pereira | Paulo Francis quer falar com um secretário de Estado e fala na hora? Francis | Com secretário de Estado eu não falo, nem me interessa porque ele iria dizer besteira. Secretário de Estado não pode falar. Político não fala. Você se informa com assessores, banqueiros etc. Aqui há uma regra, que é jogada muito a sério. Desde que você não atribua a informação à pessoa, a fonte dá a informação. Pereira | E os desmentidos? Francis | Já ocorreram. Em fevereiro, mandei uma matéria para a Folha de S.Paulo sobre a proposta de tutela do Brasil pelo FMI, quando da visita do Delfim. A notícia foi negada na hora por deus e todo o mundo. Agora, está sendo discutida no Brasil. A informação foi transmitida por um banqueiro americano. Ele liberou, desde que não citasse o seu nome. Pereira | Dá para sentir em Nova Iorque a brisa da abertura? Francis | Acho que houve abertura, comparando com o que era. Acontece que abertura não é só jornal sem censura, abertura é liberdade sindical, para mudar esta estrutura econômica. Pereira | Abertura é eleição direta? Francis | Nem é eleição. O povo brasileiro não acredita muito em político. Aliás, povo mais nenhum crê em político. Se houver eleições, este pessoal


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que tem o dinheiro “compra” um número considerável de candidatos. Todo mundo sabe que a candidatura Jânio Quadros é uma tentativa do Golbery de impedir a eleição de Franco Montoro em São Paulo. Os políticos representam grupos econômicos. Acham que vão defender os homens da favela? O negócio é o sr. Antônio Gallotti, que vende a Light por 390 milhões de dólares e solta um chequezinho para um político. O episcopado brasileiro tem crédito hoje, porque todo mundo sabe que não são políticos. D. Paulo Evaristo Arns não quer uma boca na Assembleia. É uma posição moral que ele assume. É mais fácil levar padre a sério do que políticos e o sr. Jânio Quadros. Padre não quer ser governador, nem dar ordens no país. Ele quer é justiça. Ele não tem interesse pessoal nenhum. Ele só ganha insultos, perseguições, torturas, espancamentos, calúnias. Quando o político é candidato, você vê na cara o número da conta na Suíça, que vai abrir para depositar as comissões.

“No contexto da ditadura, este governo fez uma abertura gigantesca.”

Pereira | Qual seu conceito sobre a imprensa brasileira hoje, sem censura prévia, mas dependente da censura econômica? Francis | Eu desejo felicidades à imprensa brasileira. Estou escrevendo um livro, que desejo lançar em outubro, contendo as minhas memórias. Vai se chamar O afeto que se encerra e ali vou dar todas as opiniões sobre a imprensa brasileira. Pereira | Por que Paulo Francis? Francis | Meu nome é Frankz Paul Tranan Heilborn. O Paulo Francis me foi dado pelo Pascoal Carlos Magno, quando eu era do Teatro de Estudante. Queria escrever teatro, dirigir teatro e acabei virando crítico de teatro. Foi meu primeiro emprego fixo na imprensa. Pereira | Por que os jornalistas políticos não suportam a política? Francis | Porque eles sabem de tudo o que acontece. Para ser político tem que ser deficiente mental e moral. Jean Paul Sartre disse: “É preciso botar a mão na m...”. Eu tenho verdadeiro pavor da política. É uma atividade marginal. O drama deles, do governo, é que eu nunca me meti em política.


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Pereira | E o que eles tinham contra você? Francis | Nada. Diziam que eu era subversivo. Subversivo, por quê? Eu escrevo, digo o que penso, comento, e tudo através do jornal. Eu era preso, mas não era processado. Pereira | Foi a razão de sua vinda para Nova Iorque? Francis | Exatamente. Eu era especializado em política estrangeira. Prenderam-me quatro vezes, sem motivo. Eu decidi: preso e censurado, não dá. Vou ser correspondente estrangeiro. Pereira | Foi uma boa? Francis | Foi uma experiência inestimável. Pereira | Planos para retomar ao Brasil? Francis | Algum dia eu chego lá, mas não vamos marcar prazos. Estou comprando um apartamento no Rio de Janeiro para morar no Brasil.

“Reagan tem chances, porque Carter é um imbecil.” Pereira | Projetos pessoais? Francis | Eu levo muito a sério o trabalho jornalístico. Devo dizer a você que o meu coração está nos romances que escrevi e nos livros que vou publicar. Pereira | O Cabeça de Papel e o Cabeça de Negro tiveram boas referências. E o terceiro “Cabeça” da série? Francis | Está só na “cabeça”. Já me sugeriam Cabeça do Cacete. A ideia é boa, mas infelizmente impraticável do ponto de vista editorial. O “Cabeça” vai sair o ano que vem. Pereira | O Adido Cultural do Brasil em Montevidéu está malhando teus livros, por quê? Francis | É que eu dei uma esculhambação nele monumental. Eu escrevi um artigo violentíssimo contra o Eduardo Portela, que eu acho um canalha, e o José Guilherme entrou no meio do artigo. Ele é um sub-Portela, um canalhinha menor. Ele é um estica-lençóis dos embaixadores. Estica-lençóis para mulheres e assim faz carreira no Itamaraty. Ele é Adido Cultural do Brasil no Uruguai, onde demonstra os métodos de tortura do Brasil aos uruguaios.


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“Conheço gente que ganha 200 milhões por mês aplicando no open.” Pereira | Ele é torturador? Francis | Não. Ele não tem nem coragem de ser isso. É um pobre diabo. Fui eu que lancei este desgraçado. É um embusteiro, um copiador de orelha de livro, esticador de lençóis, picareta. Tudo verdade. Ele responde dizendo que eu sou um pseudo-intelectual, que não entro em debate. Pereira | Por que você é tão violento com o ministro Portela, considerado o menos duro do governo? Francis | Esse negócio de menos duro não me convence. Este governo não é duro. É uma esculhambação. É um governo tipicamente brasileiro, de bagunça total. Ninguém sabe para onde vai. É até original, bem populista, não tem diretriz, não sabe para onde vai e cada dia muda de opinião. Pereira | Como é que repercutiu aqui a novembrada do calçadão, que mudou os rumos do populismo de Figueiredo? Francis | Eu acho que os estudantes não deviam ter atacado o presidente. É preciso salientar que, no contexto da ditadura, este governo fez uma abertura gigantesca. Não é a abertura ideal, nem a abertura principal, mas é uma abertura considerada. Quem disser que não se surpreendeu, não está sendo honesto. No fundo, anistiaram todo mundo. Foi maior do que a anistia concedida pelo Carter àqueles que foram contra a guerra do Vietnam. E, no entanto, todo mundo diz que aqui é uma democracia e lá no Brasil não é. Carter reconhece que a guerra do Vietnam foi uma guerra criminosa e racista, enquanto o Figueiredo nunca renegou 1964. Lá estão gritando o Brizola, o Prestes. Eu acho que Figueiredo merece uma oposição respeitosa. Pereira | Qual a sua opinião sobre a sumária demissão do Alberto Dines da Folha de S.Paulo?

“A imprensa é sempre o reflexo das forças dominantes.”


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Francis | Eu acho que o Alberto Dines escolheu um caminho de crítica radical, que não tem lugar num jornal liberal, como a Folha. Existem níveis de oposição e níveis de combate. O Dines acha que o ataque cerrado e radical é o correto. Sou amigo pessoal dele e respeito a posição, mas entendo que ele cometeu um erro. A Folha de S.Paulo dava a ele uma importante tribuna. Se ele usasse uma linguagem mais ponderada, mais adequada, continuaria na Folha. O Le Monde não insulta ninguém, mas realiza um jornalismo forte. O problema todo é de tom. Pereira | Não é estranho que um grande jornalista não tenha jornal? Francis | Ele é um dos maiores jornalistas brasileiros, mas o tipo de linguagem é inadequado para a grande imprensa. Não vai crítica, mas uma constatação. Você não vai querer que o New York Times adote a mesma linguagem do Hélio Fernandes. O público é outro, que não aprecia a linguagem radical. Pode ouvir as coisas mais sérias e duras, mas dentro de outro tom jornalístico. Pereira | Existe imprensa de oposição no Brasil? Francis | A imprensa é sempre o reflexo das opiniões dominantes no país. Em alguns episódios históricos, a imprensa assumiu uma vanguarda de reforma. Um bom exemplo é o Correio da Manhã, que praticamente impôs a eleição de Juscelino Kubistchek, que ia sofrer um golpe de Estado. Pereira | Jornal tipo Hora do Povo presta serviço ou desserviço à imprensa? Francis | Não tem a menor importância. É um tipo de jornal feito para um grupo de pessoas identificadas com o que o jornal diz e o que elas pensam. É o pessoal da ultraesquerda que agora tem um jornal para escrever. Pereira | A liberdade de imprensa é ou não um fato nas sociedades capitalistas abertas? Francis | Não há dúvida que na imprensa burguesa a liberdade é condicionada pelos grupos de opinião dominantes, ou seja, grupos econômicos. Mas ele permite certos respiradouros, ao passo que numa ditadura, de direita ou esquerda, não há respiradouros. Dos males, o menor. Eu prefiro a imprensa burguesa, do que viver sob uma ditadura. A imprensa na ditadura expressa a opinião do Estado. Se não estiver de acordo com a opinião do Estado, você não escreve. Em alguns países, ou vai para a cadeia, ou é fuzilado. Desde os oito anos de idade que eu não acredito em felicidade. É uma fantasia da revista Cláudia. Ou em mundo perfeito. Vivemos num mundo imperfeito, somos imperfeitos, e devemos fazer o melhor para aperfeiçoamento das instituições e pôr um fim nas injustiças. Mas é preciso ter um senso de


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realidade. O mundo não gira em tomo de você, como não girou em torno de Stalin, de Roosevelt. Stalin disse: “Eu mexo o dedo mindinho e o Tito cai”. O Tito morreu 30 anos depois de Stalin. Todo mundo tem empecilhos. O governo americano teve que engolir esta lagoa de sapos no Irã. É a maior potência do mundo, pode destruir o mundo 44 vezes, mas está paralisado. Esperar que o dono do jornal brasileiro vá ser um novo Robespierre, é uma profunda ingenuidade. Pereira | Por que, nos artigos, você deixa a impressão de ser um cara esnobe ou pernóstico? Francis | Porque eu sou, no plano intelectual. Acho um desaforo um bando de idiotas dizendo besteira, assumindo posições políticas. É, também, um pouco de charlatanismo. Eu me divirto irritando as pessoas.

Moacir Pereira Ocupa a Cadeira n.o 3 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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121 artigo

DEMOCRACIA E DIREITO: as tentações para a politização do Judiciário e do Ministério Público Márcia Aguiar Arend

A sociedade democrática repousa sobre uma secreta renúncia à unidade, sobre uma surda legitimação do confronto entre seus membros, sobre um abandono tácito da esperança pela unanimidade política. O sistema totalitário caracteriza-se, ao contrário, pelo repúdio a essa divisão originária e pela afirmação da unidade social, da supressão de classes, da identidade do Estado e do povo. Se o totalitarismo se alimenta do fantasma de uma possível reabsorvição da divisão, a sociedade democrática, por outro lado, assume até o fim este “dilaceramento interno”.1

Consta das escrituras que o Rei Salomão, considerado um sábio, não se cansava de pedir ao Criador um coração compreensivo que o tornasse dotado de sabedoria para discernir todos os conflitos que a ele eram apresentados pelos súditos, diuturnamente. Passados mais de 20 séculos, há que se clamar pela descida da luz para que o coração e a mente se unam em busca da sabedoria. Especialmente nestes tempos sombrios em que, por equívocos históricos e déficit de civilidade, honradez e decência, vivemos submetidos a esse gigantesco “mal estar”, essa sensação de que tudo está errado e que, por isso mesmo, há que existir a solução pela judicialização da política, nem que seja por meio da politização do Judiciário, aí incluída, também, a politização do Ministério Público. Essa busca desesperada pela ampliação da influência do direito no mundo contemporâneo sobre todas as dimensões da vida social constitui um inquietante e provocador fenômeno que se vem impondo à observação de

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GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: O Guardião das Promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. RJ: Revan, 1999, 2.a ed. maio de 2001.


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analistas de diferentes formações, já abordado em expressiva bibliografia, que reúne não só a Filosofia Política, mas também o Direito, enquanto disciplinas, implicando instigante reflexão sobre os processos de fragmentação do tecido da sociabilidade. Para além das óbvias conexões existentes entre as esferas do público e do privado, acelera-se a colonização do mundo pelo Direito, evidenciando-se o sintoma de esvaziamento dos ideais e das práticas republicanas e democráticas. Os indivíduos de hoje, cada vez mais atomizados em seus desejos e angústias, estão a procurar no Judiciário um último refúgio, talvez diante da abundância de partidos sem liame identitário com o eleitor, talvez em face da precária e fugaz vida familiar e associativa, instituições que inúmeros estudos reconhecem como erodidas em face dos processos próprios do que chamamos de modernidade e seus efeitos: individualismo, consumismo e hedonismo. O estatuto do jurídico nas sociedades democráticas deixou de ser convocado para pacificar as relações sociais, proteger os costumes e servir como correia de transmissão do Estado. Hoje se expande a ideia de que dele se pode demandar, inclusive, a missão de organizar a desorganização do mundo, importando, evidentemente, graves ameaças à democracia e à soberania popular. A reversão desse quadro sombrio dependeria de uma ciência política, tal como preconizava Tocqueville, que pudesse fazer florescer e fecundar as virtudes cívicas, a cooperação social, tudo na desafiadora obstinação de fazer real a República. Nesta senda, a presença do Direito nas sociedades atuais não pode ser interpretada como substituta da República, e sim como um lugar inscrito nos caminhos da democracia da deliberação — a controvérsia própria à cena judiciária seria um paradigma disso —, caso seus personagens se orientem, como preconiza Garapon, pela motivação de exercer uma pedagogia em favor de uma cidadania ativa e de renascimento do ethos republicano. A interferência do sistema de justiça nas relações sociais já ultrapassou a etapa de fenômeno corriqueiro. Tem sido tão intensa a intervenção do Direito que a sociedade quer tanto do magistrado como do membro do Ministério Público, muito além do papel de árbitro ou de jurista. Anseia pela presença de ambos não só como conciliadores, aptos a estabelecer a pretendida e nunca conquistada pacificação social, como os entende detentores, até mesmo, da capacidade decisória e preparados, com os aportes do Direito, a definirem não só políticas públicas como a determinarem o perfil da gestão pública. Aos juízes e aos promotores de Justiça estão sendo creditadas, especialmente no Brasil, as respostas contra o desencanto dessa nossa sociedade dita democrática, e que não consegue administrar de outra maneira a complexidade, a diversificação e a apatia por ela mesma geradas.


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Vive-se, então, essa perigosa ânsia de transformação da Democracia pelo Direito como caminho para salvar as virtudes cívicas perdidas no espaço perverso, e mesmo criminoso, da negociocracia alimentadora do patrimonialismo privado, que se perpetua na política adotada pelos políticos brasileiros de todos os partidos e rincões. É desconcertante, mas o individualismo vem corroendo a vida política e mesmo a política e, em consequência, as coisas do Estado e da vida pública não mais inspiram o espírito público. Interesses privados preponderam e fazem crescer a suspeição de honestidade e ética, incrementando, por isso mesmo, a pretensão de que seja exercitado o controle por meio da judicialização da política. Por outro lado, e não se pode esquecer, o próprio Direito vem, simultânea e paulatinamente, ampliando seu conceito, relegando ao passado sua identidade de um conjunto de regras para incorporar, em sua concepção, um conjunto de princípios. Garapon, citando Cayla, adverte: O juiz atualiza a obra do constituinte e torna-se um colegislador permanente. “O juiz receptor e o constituinte emissor formam por isso um tandem de pares inseparáveis, cuja aglutinação é necessária à eclosão da soberania constituinte.”

E o mesmo autor incita a refletir que o juiz “é chamado a socorrer uma democracia na qual ‘um legislativo e um executivo enfraquecidos, obcecados por fracassos eleitorais contínuos, ocupados apenas com questões de curto prazo, reféns do receio e seduzidos pela mídia, esforçam-se em governar, no dia a dia, cidadãos indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas particulares, mas esperando do político aquilo que ele não sabe dar: uma moral, um grande projeto’”.

Diante desse perigoso processo perde a sociedade democrática de se espelhar ou perseguir uma unidade da nação e da “polis” para ver-se mergulhada na cizânia e na divisão que são próprias do ambiente das lides jurídicas. Ao invés de serem vitalizados os consensos resultantes do agir democrático e honesto, que pacifica os dissensos, propaga-se o sentimento de que será possível restabelecer a ordem a partir de um conflito político judicializado. A justiça, embora discursivamente advogue tal atributo, não constitui um caminho de paz e tampouco inspirador do ideal de uma ordem harmoniosa. Sua identidade é mesmo conflituosa, das esquinas dialéticas, da disputa e da discórdia, reunindo condições, é claro, em face da sentença judicial, de fazer


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a travessia dessa cisão para uma desejada harmonia, mas que será resultado da força decisória da sentença e não da convergência efetiva de entendimentos. Há que se considerar, ainda, que a judicialização da política satisfaz, por vezes, a viscosa vontade de poder que agrada instituições em busca de mais poder. Daí as muitas postulações de membros do Ministério Público, acolhidas pelo Poder Judiciário, tudo integrando essa perigosa engenharia de mostrar eficiência perante as reiteradas investidas da mídia, que também concorre para essa constante dúvida sobre a força do ideal democrático, embora ela própria, a mídia, clame por democracia quando corre risco de ser controlada pelo poder. É ainda Garapon que conclui: O juiz torna-se o novo anjo da democracia e reclama um status privilegiado, o mesmo do qual ele expulsou os políticos. Investe-se de uma missão salvadora em relação à democracia, coloca-se em posição de domínio, inacessível à crítica popular. Alimenta-se do descrédito do Estado, da decepção quanto ao político. A justiça completará, assim, o processo de despolitização da democracia...

Espera-se do promotor de justiça e, de igual modo, do juiz, colocar-se no lugar de quem faltou com o exercício de autoridade, não só nos conflitos familiares e das relações humanas em geral, mas até mesmo no espaço da administração pública, daí o incremento da solicitação de intervenção judicial, tendo-a como medida para a solução de todas as questões conflituosas e ou omissivas dos poderes e das instituições políticas, de assistência social, de saúde, agrárias, consumeiristas, de educação, de trânsito educacionais. Enfim, quer-se um conflito judicial para dar fim aos outros conflitos não resolvidos pelas demais agências do Estado. Consequentemente, assiste-se à explosão de judicialização pois o que antes se entendia possível solucionar por meio de costumes ou de práticas morais, agora se imagina exclusividade da fala formal/processual da jurisdição. Não resta a menor dúvida de que a chamada transposição dos problemas humanos e sociais para o ambiente jurídico compromete, cada vez mais intensamente, os vínculos sociais, já que todas as relações estão envoltas pela suspeição, autorizando, então, a pretensão de uma intervenção ministerial para, na sequência, ser produzida a sentença. E mesmo que já se esteja para além do meio do caminho no processo de fragilização das instituições jurídicas, tecido irresponsavelmente pelas mídias, comprometidas com a espetacularização de fatos e julgamentos para atingimento de seus planos de existência e sobrevivência financeira, segue-se uma crescente provocação do Ministério Público para que atue perante o Poder Judiciário de molde a resgatar valores vilipendiados pelo mundo da política.


125

Paradoxalmente, ao tempo em que tudo se espera dos promotores de justiça e dos juízes, também contra eles e suas formas de intervenção na vida política, têm recaído as mais graves contestações, pois não sendo conhecedores de todas as multi e micro complexidades das estruturas do poder e das relações sociais, são chamados a fazer prevalecer a jurisdição em detrimento, muitas vezes, da vitalidade da experiência democrática, tudo em meio à máxima da não subtração dos conflitos levados à apreciação judicial. Com essa (ir)racionalidade vemos o agigantamento da sociedade de litigantes que busca satisfazer, no excesso de judicialização, todos os déficit de direito que a Democracia e a República prometem na lei, mas não realizam no dia a dia das pessoas. Mais uma vez, Antoine Garapon é a referência argumentativa quando elucida: Recorre-se à justiça para que tome o lugar do fator político exatamente porque ela não pode deixar de decidir, correndo inclusive o risco de se expor à condenação da comunidade científica ou da opinião pública. Quando a comunidade científica tem que se pronunciar sobre uma questão, ela se dá o tempo necessário e, às vezes, conclui sobre a impossibilidade de se pronunciar... A justiça, entretanto, deve dar uma decisão. A justiça deve julgar com as informações de que dispõe.2

É incontroverso que a democracia necessita da figura, ao menos simbólica, da autoridade. E em meio à ausência de autoridade ou ao abuso de autoridade, que pode ocorrer até mesmo mediante omissão, avulta a autoridade do promotor de justiça e do juiz, para os quais são conferidos os atributos da autoridade perdida. A dignidade na política3 só pode emergir da constante tensão entre participação política e representação política. Oportunas, aqui, as lições de André Duarte, fundadas nas reflexões de Hannah Arendt4: Estamos tão acostumados a pensar as relações políticas em termos da política de partidos que corremos o risco de esquecer que esta forma de organização da coisa pública surgiu em contraste com as alternativas revolucionárias que contemplavam a participação popular ativa. O sistema representativo traz consigo as ideias de que é possível prescindir da participação política popular e de que os cidadãos não são capazes de gerir a coisa pública, que deve ser confiada a especialistas. Nesse contexto, a atividade política tende a se reduzir à administração de interesses privados, desaparecendo

2

Ibid., p. 161.

3

A Dignidade da Política é também título de uma

Hannah Arendt, 1993 pela Editora Relume Dumará. obra de

publicada em

4

DUARTE, André e outros. Transpondo o Abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a política. Coordenador Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.


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o próprio espaço público em seu caráter plural e comum. Além disso espraiam-se a apatia e a impotência políticas, pois a imensa maioria da população vê-se privada da possibilidade de exercer qualquer influência política consistente.

5

O vocábulo taquização, um neologismo aqui introduzido para nominar a ação que se segue por meio do termo de ajustamento de conduta cuja sigla é

TAC.

Ora, mais nem a apatia da população e tampouco a perda da autoridade política podem fazer crer ser possível que a gestão do administrador público seja conduzida pela “taquização”5 comandada pelo Ministério Público, ou pelas sentenças dos magistrados do Poder Judiciário, como vem sendo pretendido por parcela crescente da sociedade. Há que se relembrar, nesse passo, não só as balizas constitucionais sobre as quais se escora o modelo de Estado Republicano Democrático de Direito, como a teoria da separação de poderes que estrutura os poderes do Estado. A gênese da teoria da separação dos poderes encontra-se em Aristóteles (382-322 a.C.). Na sua obra, A Política, o filósofo isolou três tipos distintos de atos estatais, quais sejam: o ato deliberativo, o Executivo e os atos judiciais. Naqueles idos, sequer trilhou por questionamentos a respeito da separação desses poderes em estruturas do Estado. Foram necessários muitos séculos, muito sangue, muita guerra, muita dor, muito comércio, muita luta de interesses e de classes e, ainda, muita imaginação, para que se chegasse ao cenário gerador de um tipo de sistematização do poder. Em tal cenário Maquiavel entendeu propício estabelecer as diretrizes para a manutenção e ampliação dos poderes de um monarca. Assim, na sua mais importante obra, O Príncipe, descreveu como estruturar o poder e advogou a necessidade de um parlamento como um Poder Legislativo, dividindo poderes com o rei (Poder Executivo) e um Poder Judiciário independente. Ainda assim, a experiência do poder foi seguindo a senda da concentração nas mãos do monarca que só foi experimentar limitações quando da efervescência dos conflitos sociais que deram origem à reviravolta filosófica do Iluminismo, no século XVII. Foi o movimento dos iluministas, no século XVII, que primeiro defendeu a organização de um Estado Constitucional, com uma autoridade dotada de poderes bem definidos. Importa lembrar, aqui, os ideais de John Locke, inglês nascido em 1632 e que se opôs ao regime absolutista. Ele antevia um governo limitado, a ser exercido mediante um contrato entre a sociedade e o governante, evitando-se o caos e possibilitando a emergência do governo constitucional. A constituição seria o contrato estabelecido entre o governante e o povo para que ele pudesse governar. Atribui-se a Locke os primeiros delineamentos da teoria da separação dos poderes e exalta-se a sua reflexão de que o detentor do poder poderia ser destituído, a qualquer tempo, pelo povo, tudo em decorrência do repúdio à


127

concentração de poder nas mãos do rei e a defesa do Legislativo como força preponderante. As formulações de Locke deram os elementos de reflexão para Charles de Montesquieu, a quem se pode atribuir os contornos mais precisos da teoria e que, desde 1748, tornou-se o seu divulgador6, acrescentando mais detalhes ao poder judicial, firme na premissa de que: estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.7 Há que se lembrar, também, que Montesquieu desenvolveu os parâmetros do constitucionalismo, concebendo o conjunto de leis necessárias à composição de uma constituição, sendo até hoje o tipo de regência mais comum em quase todos os tipos de governos e que buscam, de maneira democrática, designar as autoridades competentes a cada âmbito da sociedade, tudo amalgamado à ideia germinal de negação aos autoritarismos, às arbitrariedades e às violências do poder, tão comuns na maioria das monarquias absolutistas da época, quando reis e tiranos sustentavam suas próprias concepções do que achavam que era justo ou verdadeiro a partir de conceitos puramente religiosos e/ou impositores. Atualmente, ao menos no plano deontológico da Constituição Federal, os poderes são independentes, posto não se submeterem entre si, não se curvando, assim, às vontades um do outro e são harmônicos, pois têm de verificar as “normas de cortesia e trato recíproco”8 Em suma, além de exercerem as funções que lhes são precípuas, como, sinteticamente, ao Executivo é governar; ao Legislativo legislar e ao Judiciário julgar, têm eles, também, funções atípicas, que correspondem à execução de funções inerentes à organização interna. Mas não se pode perder de vista as advertências feitas por Montesquieu: todo homem que tem poder é levado a abusar dele. Vai até onde encontrar limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do poder, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.9

Embora se tenha esse norte teórico inserido na Carta Constitucional sentese, a todo tempo, a prevalência Poder Executivo sobre os demais poderes, a uma pela prerrogativa de também legislar, e o que tem feito de molde a ultrapassar o excepcional para se constituir em rotina na edição das Medidas Provisórias, a duas pela dominação ideológica que tem prevalecido nas escolhas para a composição do Supremo Tribunal Federal. Não remanesce nenhuma dúvida de ser esse o ambiente fomentador e propício à corrupção dos interesses públicos e à exaltação dos interesses privados.10 A conjugação entre os abusos dos poderes e a multiplicação da corrupção na vida pública do Brasil, vêm corroendo as bases da própria aspiração

6

T AVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 859.

7

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das leis. Tradução Pedro Vieira Mota. São Paulo: Ediouro, 1987, p 165. Pode-se mesmo afirmar que nenhuma obra anterior a de

Mostesquieu foi tão coerente e detalhada na estruturação de um estado regido sob os três poderes. 8

J ose Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 110.

9

MONTESQUIEU, 1987, p. 136.

10

Vale referir à reflexão feita pelo Professor

Hirosch Harada, quando lembra que são de fato milhares de brasileiros que preenchem os requisitos exigidos pela

Constituição para

integrarem o colegiado do Supremo Tribunal Federal. E ressalta que a escolha dos ministros do Supremo é diferente da escolha dos ministros de Estado, pois estes últimos, necessariamente, têm que corroborar com os planos de governo.

“Há o perigo de transformar o Supremo

Tribunal Federal, que é um tribunal político,

[...], em um tribunal de políticos [...]” (HARADA, 2006, p. 28).


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11

LUFT, Lia. Pensar é Transgredir, Rio/São Paulo, Record, 2004.

democrática, dando viço aos anseios de controle, especialmente dirigidos ao Ministério Público, tudo para fazer cessar a frequente violação da separação dos poderes. Entretanto, a tarefa de fazer os poderes funcionarem consoante determinado no ordenamento legal, ou seja, o Executivo cumprir as leis, o Legislativo produzir leis e o Judiciário julgar o descumprimento das leis, não pode ser atribuída ao Ministério Público, como muitos pensam possível, até mesmo pela evidência de que os poderes conferidos ao Ministério Público dimanam, sobretudo, de sua capacidade postulatória perante o Poder Judiciário. Não se pode esperar da parte do Ministério Público ato ou procedimento para submeter o Legislativo ao ato de legislar. Tal atributo é ínsito ao Poder Legislativo e usurpá-lo implicaria, para além de intromissão indevida, perigosa abertura para exercícios de supressão da vontade popular, o que de modo algum a instituição do Ministério Público pode sequer consentir. Para finalizar e sair da argumentação jurídica, há que se abrir a mente e coração para admitir a pertinência da reflexão feita por Lia Luft11, quando assevera que a vida não é para ser consumida, mas para ser construída. O homem não é refém da vida: ele deve conduzi-la a um endereço e, então, pagar o preço da escolha do caminho e da destinação. É claro que o rumo e o valor de uma vida são de responsabilidade pessoal, mas os rumos da polis são de responsabilidade de cada um e de todos por meio da participação popular. Tanto quanto o ser humano, que não nasce feito e perfeito, as cidades e as instituições por ele criadas padecem da mesma incompletude. Tudo que é produto do labor humano, conforme seus desejos, convicções e esforços, pode e terá imperfeições. Daí o desafio da inescapável reinvenção. E para esse enfrentamento o pensamento é indispensável para constituir o indivíduo virtuosamente devotado à democracia e jamais às tiranias. Podemos mesmo afirmar que a descoberta da racionalidade tornou o homem responsável pela história, completamente diferente do pensamento mítico que atribuía aos deuses todas as iniciativas. Pensar é um ato deliberado de quem está diante de uma dificuldade. É verdade que só pensamos quando queremos, quando decidimos pensar para, por meio da contemplação de um objeto ou fato, encontrarmos os caminhos para a criação do novo conceito, do novo paradigma, enfim, da mudança. Quem pensa transgride fronteiras e, por isso mesmo, precisa, também, educar-se. A melhoria dos poderes do Estado constitui, certamente, o grande desafio das democracias atuais.

Márcia Aguiar Arend É promotora de Justiça. Mestre e doutora em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.


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131 conto

ZÉ DA UNHA E A MÚSICA CAIPIRA José Curi

Zé da Unha é um caboclo que reencontrei na margem fétida de um riacho, esgoto de uma feia favela, que corre a céu aberto pela capital de Cassoga, pátria da feliz Sociedade Glutonérica Filopança. Equilibrado macacamente no metatarso, a intervalos batia o isqueiro e tirava longas e interrogativas baforadas do cachimbo. Não me reconheceu. Espantei-me ao vê-lo. A velhice precoce caiara-lhe os cabelos e alguns fiapos da barba rala; arregaçara-lhe exageradamente a testa; chupara-lhe as bochechas; arrancara-lhe muitos dentes, deixando-lhe na boca uns toquinhos cariados. Tive a impressão que a fome enferrujara-lhe o facão, e imaginei-o na reserva florestal de Cassoga a bambolear-se sobre raízes desnudas procurando cipó para os balaios que ele confeccionava magistralmente, e cair em sonoros placs sob as vaias das borboletas que se espantam e desfolham no ar uma rosa. Tropeça, pobre Zé, sob os apupos da moleza, e as trepadeiras acariciam-lhe os cabelos com linguetas de leite, e as orquídeas debocham-no entre cores berrantes. Uma mulher magra, de olhos escaveirados, rodeada de alguns filhinhos barrigudos e pálidos, me espia pela porta semiaberta do casebre. Um cão, sanatório de bernes, carrapatos e pulgas, cata, entre uivos dolentes, mastigando os dentes, às escondidas, sevandijas, deitado à sombra de uma palmeira. As palmeiras abundam em Cassoga, onde, de quando em vez, se ouve um que outro melro cantando. É que os sabiás, os da antiga “minha Terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, outrora abundantes em Cassoga, foram comidos pelos melros-imigrantes. Dois porquinhos pretos fossam e refossam nos alicerces do rancho-de-sapé. Numa hortazinha, algumas línguas verdes de milho estão a morrer pelo sufoco das tiriricas. A miséria visitou Zé da Unha. Sobre o armário da cozinha uma garrafa de pinga semivazia.


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— Que me diz da dupla caipira Cana e Caiena, meu Zé? — Pois entom! *** Quando décadas atrás cheguei a Cassoga, Zé da Unha era um caboclo forte como o piquiá; ágil como uma potranca do Cântico dos Cânticos; robusto como um touro de Minos. Garrucha enfiada entre a calça e a cueca, chapéu de palha, facão à cinta, calças arregaçadas, olhos de fogo e mente feliz, compunha na viola belíssimas canções telúricas, e trabalhava na fazenda dos Oliveiras, os grandes fornecedores de carne para as churrascadas de Cassoga. Juca, o administrador da fazenda, era cabo eleitoral do senador Aloísio das Oliveiras, e pastor prepotente de uma nova igreja que ele e a mulher, ex-dançarina, fundaram: a Igreja Evangélica do Arco da Velha Aliança. Zé da Unha tinha e tem ainda uma unha enorme no minguinho da mão direita que ele afia num pedaço de rebolo. A unha não é só fruto de vaidade, pois ela tira-lhe a caspa, limpa-lhe os ouvidos, abre-lhe as ventas, desentoca-lhe os fiapos de carne dos dentes e, sobretudo, serviu-lhe de madrinha quando Juca no córrego, outrora límpido e cantante, o rebatizou na língua universal da nova seita, Nail’s Joseph, e em língua vulgar e desprezível para os pastores: Zé da Unha. Zé da Unha estava em cismas. Percebia-se que sofria. De seus olhos de sofrimento coagulado percebia-se um desejo botão que quer estourar e abrir-se em flor. Que este caboclo depauperado tenha reaberto a alma às promessas de um amor? Queira soltar uma alma servil qual gôndola no mar da esperança? Que desgraça o teria desgraçado? — S’acomodi, Dotô. Zé da Unha sorria entre lágrimas. Fixou seu olhar da cor da paz, do amor e da vida num canto do rancho-de-sapé. Levantou-se. Afastou a mulher, abriu caminho entre os filhinhos choramingas, caiu de joelhos com o rosto afundado num travesseiro de palha-de-milho. O choro fungativo das crianças; o grunhido longo e compassado de um porquinho; o uivo esticado do cão, intercalavam-se ao fungar estrepitoso da mulher. O sol, talvez de vergonha, ia se escondendo num arquipélago de nuvens. Zé da Unha levanta a cabeça. Enxuga o rosto salgado com a manga da camisa, e tira de debaixo da cama uma viola. Sopra-lhe o pó. Encosta-a ao peito como a uma namorada e com mão nervosa, quase feminina, tira do seu bojo um pouco da alma cassoguense, feita de flor e lodo. Arranca-lhe das cordas a saudade reencarnada em lirismo. Escancela os olhos e pousa-os na mulher. Sorriem os dois o pálido riso dos inditosos.


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— É música caipira de Cassoga, seu Zé. É sua? — É, sim sinhô! A dupla Cana e Caiena é os ladrão de minha música, hoje tão rico, e nóis fiquemos na pió! — Tô numa desgraceira, Dotô! — E o Juca não te deu uma mão? — Não, Dotô, tá fugido com a muié. Dexô os crente na pió. Arrancô delis inté o Borsa Famia pra levantá o Arco-da-Veia. Cruiz credo, Dotô! Pra nóis só sobrô fazê balaio pra não morrê di fome e podê compra uma pinguinha. — E os Oliveiras, donos da fazenda? — As hipoteca estorô e elis se mandarom pra capitá. — E o senador Aloísio? — Arranjô muié nova e se mandou pro xteriô. É, meu caro Zé, estamos numa sociedade doente que furta e gasta sem critérios enquanto há pobres morrendo de fome; que legitima a roubalheira, a mentira e o engano; que abusa da ingenuidade do povo brasileiro com seitas mercantilistas, mandando-o para o céu pelo caminho da fé que bem lhe convier; que debocha da humanidade normal e sadia que não banaliza o ser homem e o ser mulher; que força tornar normal o que é visceralmente anormal, e joga para o lixo, achando a vida descartável, todos os Zés da Unha.

José Curi Ocupa a Cadeira n.o 18 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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135 crônica

Othon D’Eça e Vitorino Nemésio

A prosa bordada à beira de Ilhas e almas açorianas Sérgio da Costa Ramos

O escrever e os falares se subordinam aos humores da geografia, à avareza ou à generosidade dos solos e dos mares, ao clima e às suas bonanças ou inclemências. Mudam os usos e costumes, mudam as semânticas, alteram-se as prosódias. Os esquimós de Jack London falavam os dialetos dos ursos polares — em que palavras se assemelham a grunhidos, pois o frio não estimula a boca aberta, nem incentiva o tagarelar. Um vivente tropical é certamente muito mais dado à loquacidade, à palavra constante e ao vagar do seu ritmo, à fronde das bananeiras e ao espreguiçar dos coqueirais. Os regionalismos e as culturas locais fazem o sal, a graça e a diferença do mundo, a partir da atmosfera em que vive o ator — se no planalto ou na planície, na serra ou no litoral — e sabemos não serem gêmeos os “contares” de um serrano e a prosa de um litorâneo — o pescador como personagem,a pele curtida do sol, mãos dispostas ao tear das redes e ao lidar no mar. Um conto do serrano Guido Wilmar Sassi, jamais guardará semelhanças temáticas ou formais com um conto ou uma novela de Othon D’Eça. Mas não é improvável que a viva prosa da Ilha, essa renda de magnífico crivo literário, se aparente com a transbordante açorianidade que emerge dessas ilhas atlânticas, a de Santa Catarina e as dos Açores, numa consanguinidade de usos e costumes, que perpassa a obra de Vitorino Nemésio e de Othon Gama D’Eça. Talvez porque tenham sido ambos, Othon e Vitorino, abençoados pela oceânica curiosidade de apurar o ouvido e as antenas para o falar dos seus povos, imprimindo a esse hábito a salutar serventia que lhe atribuía o grande Eça de Queirós: “A curiosidade é uma das boas virtudes humanas, porque, se por um lado faz espiar pelos buracos das fechaduras, por outro, leva a descobrir a América.” Ambos foram entes da classe média alta, mestres do magistério e da academia. Mas ambos demonstraram aguda preocupação social com as necessi-


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dades do povo do mar. Em Homens e Algas, Othon Gama D’Eça manifesta a sua angústia por descobrir “uma chaga oculta sob roupagens magníficas”, ao recolher a matéria prima para seus contos. — Eu constatei, dentro daquelas molduras de sonho e de deslumbramento, os quadros de miséria e de dor que a vida ia manchando, a largas pinceladas, por essas praias a dois passos da civilização, do conforto e da fraternidade social de Florianópolis. (Othon D’Eça) — Já no fulcro de sua ficção e nas crônicas de fundo açoriano, Vitorino Nemésio aparece dominado pelas classes alta e média das vilas e das cidades, mas também, profundamente, “pela colorida gente do mar”. — Enquanto a sua forte intuição mitificadora imortalizou os épicos baleeiros do Pico em “Mau Tempo no Canal”, o seu talento pitoresco fixou traços, falas, atitudes, alegrias e tragédias que compunham o corpo, a alma e a vida dos pescadores da Praia da Vitória em Corsário das Ilhas e Negócio de Pomba — na visão do crítico Heraldo Gregório da Silva.

UNIDOS PELOS POVOS DO MAR ATLÂNTICO Ambos traziam no peito o ardor e a curiosidade marinheira, razão pela qual Othon D”Eça e Vitorino Nemésio foram gênios da açorianidade, lá e aqui. E tendo sido habitantes e intérpretes literários das margens dessas terras ligadas pelo mesmo mar-oceano, descobrimos nestas duas prosas, tangências formais e estilísticas que podem nos levar ao pasmo mais superlativo e à admiração mais veemente. Cada qual na sua margem, Othon D’Eça, com esse sobrenome tão literariamente luso e ilustre, compõe com seu parceiro de além-mar um dueto que opera em diferentes valores psicológicos e ambientais, mas de extraordinária afinação semiótica quanto ao estilo e a temática. O mesmo mar lambeu-lhes os pés descalços, na paisagem insular de lavas e campos verdes, ou no clima suave e temperado de Vila da Praia da Vitória, em sua amada “Pátria Terceira”, quando nos referimos ao “homem do lado de lá da margem”, o múltiplo Vitorino Nemésio — poeta, crítico, biógrafo, historiador, mas, sobretudo, o extraordinário ficcionista e cronista. Na margem de cá, na ilha de verdes exuberantes e plástica tropical, neste éden meridional de 42 praias de areia fina e duas voluptuosas lagoas, pulsava também uma açorianidade, de ritmo talvez menos intenso e menos “flamboyant”, mas de um telurismo igualmente profundo — como um talho na veia: Othon D’Eça, com sua prosa igualmente poderosa, terna ou dramática, marcada por forte originalidade estilística, tapeçaria linguística francamente preciosa, mas extraordinariamente simples — porque essa é a grande virtude do escritor.


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Othon D’Eça alcançou esta alquimia: escolhia um adjetivo com o cuidado de quem colhe um fruto, mas a espécie ali colhida tinha o sabor da clareza e da cristalinidade. Becas, latins e gongorismos eles deixavam para as suas cátedras de Literatura Românica na Universidade de Lisboa um, e de Direito Romano e Canônico, na Faculdade de Direito de Santa Catarina, o outro. Nas margens, entre um e outro, a açorianidade. Eles nunca souberam disso, mas se as distâncias transcontinentais os separavam, o mar os unia. A semelhança na escolha temática, debruçada sobre o mar e seus povos, a estrutura social fortemente centrada no patriarcalismo e nos seus códigos de honra, o que aparece tanto no romance da saga baleeira dos Açores e de certa sociedade rica e decadente, em Mau Tempo no Canal, um clássico de Nemésio, como na novela de Othon D’Eça, Vindita Braba, a mesma e patriarcal estratificação numa pobre comunidade rural do interior da Ilha de Santa Catarina. Aí, são notáveis a utilização pelos dois autores da carpintaria linguística açoriana, em que se sucedem as elipses silábicas, as contrações de vogais, os metaplasmas de supressão e uma dança fonética que se vale de uma típica semiótica, compondo o “açorianês”, derramado como lava na conversação dos nativos do arquipélago, e, na margem de cá, tagarelado pelos nossos manezinhos do Ribeirão da Ilha, de Santo Antônio de Lisboa, do Canto da Lagoa da Conceição.

MANÉS DAQUI E DE LÁ Calham aqui dois exemplos da prosa de um e de outro: Miguelinho, o vilão do lugarejo em Vindita, difamador da donzela Constança, acaba justiçado pelo pai da moça falada, em nome da honra. A descoberta do defunto convoca a curiosidade dos locais. Escreve Othon D’Eça: “E já os dois filhos de Manoel Balbino pegavam no defunto, quando o coronel, que vinha do grupo adonde o Alvico da Gertrudes arresmungava por mode o descaso da velha, falou que não fizessem aquilo, que deixassem o homem pra Polícia bulir, pois era proibido cutucar defuntos antes do delegado. Mas o tempo ia passando, apressurado, na garupa do sol como se fosse tirar o pai da forca. Uma a uma as mulheres bateram pras suas casas, a perparar o comer, que as famílias, coitadinhas, já deviam estar com as tripas numa ronqueira de gastura. O sol queimava. Por mode disso, entonces, o povo se abrigou à sombra dos cafezeiros, a pitar na folga das conversas. “E foi o Zé Cardoso, pessoa de boa cabeça, que memorou a desgraceira do boi-na-vara, carregada por muita gente a escuidos do defunto Antonio Juca, mas que ele, Zé Cardoso, atentava as maldades do Miguelinho:


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— Pois agora, (no sentido de ‘nada disso’), compadre! — Cant’eu estou que sim! (‘Quanto a mim’, ‘Segundo eu penso’) — arengava o outro. — Aquilo era criatura de ruindades, pois não foi pra boa coisa que Deus Nosso Senhor o marcou naqueles jeitos.” Em Mau Tempo no Canal, romance de grande sucesso de Vitorino Nemésio, o escritor elege no velho arpoador de baleias, Tio Amaro da Mirateca, o tipo heróico-popular da Ilha do Pico. Reunidos numa taberna, os baleeiros de Campo Raso pretendem insurgir-se contra uma ordem de arresto dos botes, forjada por um certo Januário Garcia. Perante a revolta dos demais, ele se mantém resoluto como um patriarca, bloqueando a inssurreição: Escreve Nemésio: “... o velho, sem pau, nem pedra, tomava de braços abertos a porta principal do botequim. A luz do reflector do candeeiro de parede dava-lhe na barba alva de neve; e o seu vulto seco, marcado por aquele brinco de mulher que um nariz bem riscado desmentia, parecia Abraão apontando o caminho da honra a uma Israel tresmalhada.” “Apesar de conter a exaltação dos baleeiros, tio Amaro declarou a sua honra ultrajada (...). Ameaçou então desistir do seu posto de arpoador: — Djá-hoje em diante já não sou trancador...esta canalha do mar fez-me um grande escândalo. Borraram-me as barbas, diante de mulheres e crianças! A mim, q’andei um ano no Ariôche, três no Oeste e dois nos Japanis... Sou homem honrado! Sou de orelha furada!”

LANTERNA SOBRE OS SIMPLES No conto e na novela de Othon D’Eça; no ensaio, na crônica e na ficção de Nemésio, acende-se uma lanterna sobre os simples, os pescadores, o viver entre a honradez dos puros e a amargura dos miseráveis. Impressiona o uso de expressões populares numa e noutra prosa (“c’anteu” (“quanto a mim”), “Djá hoje” (“agorinha”) e “Pois agora” (para expressar dúvida, “nada disso”). E nesse universo, tanto na temática quanto na forma, encontraram um ritmo de pensamento humano que criou um estilo, fazendo brotar nas margens do oceano, ao Norte e ao Sul, uma linguística da açorianeidade, que não se limita a transcrever com rigor a composição da fala açoriana, mas que a recria e a reinventa, sem deformá-la. A açorianeidade navegou para muito além da dor, descendo na forma, prosa (“Bojador, e está espelhada no céu desta Ilha de “Homens e Algas”). Sérgio da Costa Ramos Ocupa a Cadeira n.o 19 da Academia Catarinense de Letras (ACL).


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Foto Márcio Martins

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Placa da Academia Catarinense de Letras, na Casa José Boiteux


143 Patronos da ACL

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Álvaro de Carvalho (1829-1865) Antero dos Reis Dutra (1835-1911) Carlos de Faria (1865-1890) Cláudio Luís da Costa (1789-1869) Crispim Mira (1880-1927) Duarte Mendes de Sampaio (1762-1846) Duarte Paranhos Schutel (1837-1901) Eduardo Duarte Silva (1852-1924) Feliciano Nunes Pires (1785-1840) Antônio Francisco Castorino de Faria (1839-1913) Francisco Carlos da Luz (1830-1906) Francisco Pedro da Cunha Bittencourt (1832-1889) Francisco Tolentino de Souza (1845-1904) Gustavo de Lacerda (1853-1909) João da Cruz e Sousa (1861-1898) João Justino de Proença (1844-1916) Jerônimo Francisco Coelho (1806-1860) João Silveira de Souza (1824-1906) Joaquim Antônio de São Thiago (1856-1916) Joaquim Augusto do Livramento (1821-1883) Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva (1821-1869) Jonas de Oliveira Ramos (1895-1923) José Cândido de Lacerda Coutinho (1841-1900) José Johanny (1872-1915) Juvêncio Martins Costa (1857-1882) Lauro Severiano Müller (1863-1926) Luís Delfino dos Santos (1834-1910) Lídio Martinho Barbosa (1864-1913) Liberato Bittencourt (1869-1948) Manoel Joaquim de Almeida Coelho (1792-1871) Manoel José de Souza França (1780-1856) Manoel dos Santos Lostada (1860-1923) Manoel da Silva Mafra (1831-1907) Marcelino Antônio Dutra (1809-1869) Martinho José Callado da Silva (1862-1914) Oscar Rosas Ribeiro de Almeida (1864-1925) Polidoro Olavo de São Thiago (1852-1916) Roberto Trompowsky Leitão de Almeida (1853-1926) Sebastião Catão Calado (1851-1914) Virgílio dos Reis Várzea (1863-1941)


Foto Márcio Martins

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Busto de José Boiteux


145 Fundadores e Titulares falecidos

Clementino Fausto Barcelos de Brito1 (1879-1953) Arnaldo Silveira Brandão (1922-1976) Cadeira 1

Laércio Caldeira de Andrada1 (1890-1971) Norberto Cândido Silveira Júnior (1917-1990) Cadeira 2

Alfredo Felipe da Luz1 (1888-1944) Paulo Fernando de Araújo Lago (1931-2002) Cadeira 3

Luiz Antônio Ferreira Gualberto3 (1857-1931) Carlos da Costa Pereira (1890-1967) José Ferreira da Silva (1897-1973) Cadeira 4

Leopoldo de Diniz Martins Júnior3 (1887-1967) Theobaldo Costa Jamundá (1914-2004) Francisco José Pereira (1933-2012) Cadeira 5

João Nepomuceno Manfredo Leite3 (1876-1969) Paulo Gonçalves Weber Vieira da Rosa (1898-1988) Cadeira 6

Juvêncio de Araújo Figueredo3 (1864-1927) Francisco de Oliveira e Silva (1897-1989) Raulino Reitz (1919-1990) Cadeira 7

Victor Konder3 (1886-1941) Marcos Konder (1882-1962) Carlos Gomes de Oliveira (1894-1997) Polidoro Ernani de São Thiago (1909-1999) Sílvio Coelho dos Santos (1938-2008) Mário Antônio da Silva Pereira (1943-2014) Cadeira 8

Anfilóquio de Carvalho Gonçalves3 (1862-1937) Ivens Bastos de Araújo (1903-1967) Martinho José Callado Júnior (1900-1979) Cadeira 9

Delminda Silveira de Souza3 (1854-1932) Castorina Lobo São Thiago (1884-1947)

Cadeira 10


146 Edmundo da Luz Pinto3 (1898-1963) Henrique Stodieck (1912-1973) Glauco Rodrigues Corrêa (1929-1992) Hoyêdo de Gouvêa Lins (1929-2010)

Cadeira 11

Heitor Pinto da Luz e Silva2 (1879-1949) Holdemar Oliveira de Menezes (1921-1997)

Cadeira 12

Tito de Carvalho2 (1896-1965) Osmar Silva (1922-1975)

Cadeira 13

Cadeira 14

Carlos Alberto Silveira Lenzi4 (1935-2014)

Cadeira 15

Othon da Gama Lobo D’Eça (1892-1965)

Horácio Serapião de Carvalho2 (1872-1935) Alcides Abreu (1926-2015)

Cadeira 16

José Arthur Boiteux1 (1865-1934) Osvaldo Rodrigues Cabral (1903-1978) Carlos Humberto Pederneiras Corrêa (1941-2010)

Cadeira 17

Cadeira 18

Henrique da Silva Fontes1 (1885-1966)

Arnaldo Claro de São Thiago3 (1886-1979) Arthur Pereira e Oliveira (1909-2000)

Cadeira 19

Fúlvio Coriolano Aducci1 (1884-1955) Custódio Francisco de Campos (1885-1969) Victor Antônio Peluso Júnior (1909-1994) Osvaldo Ferreira de Melo (1929-2011)

Cadeira 20

Joe José Luiz de Martins Collaço3 (1889-1951) Evaldo Pauli (1925-2014)

Cadeira 21

Nereu de Oliveira Ramos2 (1888-1958) Joaquim Domingues de Oliveira (1878-1967) Luiz Gallotti (1904-1984)

Cadeira 22

Cadeira 23

Altino Corsino da Silva Flores1 (1892-1983)

Francisco Gonçalves da Silva Barreiros Filho3 (1891-1977)

Cadeira 24


147 Antônio Mâncio Costa2 (1835-1971) Amaro Seixas Ribeiro Neto (1924-1984) Paschoal Apóstolo Pítsica (1938-2003) Jair Francisco Hamms (1935-2012) Cadeira 25

Adolfo Konder3 (1887-1966) Sylvia Amélia Carneiro da Cunha (1914-2012)

Cadeira 26

Cadeira 27

João Batista Crespo3 (1887-1966)

Cadeira 28

Luiz Osvaldo Ferreira de Mello2 (1893-1970)

Cadeira 29

Edmundo Accácio Soares Moreira3 (1899-1986)

Lucas Alexandre Boiteux2 (1880-1966) Jaldyr Bhering Faustino da Silva (1914-1994)

Cadeira 30

Cadeira 31

Henrique Boiteux3 (1862-1945)

Gustavo Neves2 (1899-1980) Lauro Junkes (1942-2010)

Cadeira 32

Gil Costa1 (1887-1943) Renato de Medeiros Barbosa (1902-1988)

Cadeira 33

Ogê Mannebach2 (1885-1942) José Borges Cordeiro da Silva (1897-1982)

Cadeira 34

Haroldo Genésio Callado1 (1892-1932) Lydio Martinho Callado (1919-2001)

Cadeira 35

José dos Santos de Diniz Martins3 (1896-1962) Iaponan Soares de Araújo (1936-2012)

Cadeira 36

Ivo D’Aquino Fonseca1 (1896-1974) Licurgo Ramos da Costa (1904-2002)

Cadeira 37

Cadeira 38

Maura de Senna Pereira3 (1904-1992)

Carlos José da Motta A zevedo Corrêa3 (1885-1947) Almiro Caldeira de Andrada (1921-2007)

Cadeira 39

Nereu Corrêa de Souza (1914-1992) Norberto Ungaretti (1936-2014)

Cadeira 40

Notas: 1 Refere-se aos participantes da reunião de fundação da

Sociedade Catarinense 30 de outubro de 1920. 2 Refere-se aos que foram admitidos na Sociedade em 1921. 3 Ingressaram mais tarde na ACL. 4 Cadeira ainda ocupada de Letras, em

pelo fundador e primeiro titular.


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07.07.2014

Pal avr a s do acadêmico Salomão ribas junior ao a ssumir a presidência da academia catarinense de letr a s


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É muito bom poder compartilhar este momento com tantas pessoas que nos honram, a nós, os acadêmicos, e a Academia Catarinense de Letras (ACL), com suas presenças. No mundo virtual em que vivemos, quando as comunicações, as relações de trabalho e mesmo as confraternizações cada vez mais se dão pela internet, são raras as reuniões ditas presenciais como a de hoje. Esta casa, a de José Boiteux, tem um profundo significado histórico — aqui nasceram os cursos de nível superior de Santa Catarina — e hoje abriga as duas mais antigas instituições culturais dos catarinenses — a Academia Catarinense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC). Para mim significa ainda, nesta posse, um retorno. Há meio século frequentei as bancas escolares da Academia de Comércio de Santa Catarina que aqui funcionou por longos anos até a sua desativação. Retorno, mas não venho só. Chego na companhia dos ilustres Acadêmicos Pinheiro Neto, Lélia Nunes e Amilcar Neves, que hoje também assumem os honrosos cargos de vice-presidente, secretária-geral e tesoureiro-geral da ACL. Conosco também passam a dividir as responsabilidades de direção de nossa instituição os confrades Celestino Sachet, Moacir Pereira e José Besen, membros do Conselho Fiscal. Essa direção colegiada vai propor, em breve, aos acadêmicos, as propostas de trabalho para o próximo biênio. A primeira lista já mostra 21 pontos a serem enfrentados internamente e 11 externamente. No momento, quero em meu nome e no dos novos dirigentes, apresentar ao ilustre Acadêmico Péricles Prade e aos seus companheiros de diretoria — Mário Pereira, Julio Queiroz e Carlos Alberto Silveira Lenzi — os nossos cumprimentos pelo trabalho que desenvolveram. O exemplo de dedicação e


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entusiasmo na busca dos ideais acadêmicos haverá de nos servir de inspiração nos próximos anos. Santa Catarina fica a lhes dever pelo fizeram e planejaram fazer pela cultura, pelas artes e, sobretudo, pela preservação do vernáculo e da literatura brasileira e catarinense. As sugestões de atividades que já recebemos, e outras vão surgir, irão compor um plano estratégico — com metas a curto, médio e longo prazos — a ser submetido a apreciação de todos os membros da Academia. Hoje, devo apenas adiantar que faremos algumas coisas no plano interno, prosseguindo nas tarefas históricas da ACL: a construção da revista, os concursos literários, a coleção ACL e os prêmios anuais para ensaio, história, romance, conto e crônica. A mesma preocupação na linha do estimulo à defesa das letras catarinenses na concessão do Prêmio Othon Gama D’Eça e Medalha Academia Catarinense de Letras. A nossa biblioteca deverá merecer as atenções devidas para ser um centro de referência e endereço certo de pesquisa sobre a literatura brasileira e, em especial, catarinense. Afinal, o que nos diferencia do barro é a capacidade de escrever e de ler e de pensar. No plano externo vamos partir de uma premissa: as leis nacionais de estimulo à leitura são muitas, as estaduais também. O que precisamos é fazer com que essas leis sejam aplicadas. Essas leis elegem dias, semanas e meses de celebração do livro e da leitura. Mais do que isso, estabelecem obrigações ao poder público. Não é preciso mais. Vamos buscar a sua aplicação. Para tanto, buscaremos cooperação com o poder público, em todos os níveis, e com as iniciativas privadas. O que, em parte, já vem sendo feito com a participação de acadêmicos no Fórum Catarinense de Leitura. O mesmo em outras atividades da Fundação Catarinense de Cultura. A nossa cooperação com o Conselho Estadual de Cultura também não deve se circunscrever a uma representação, embora valiosa. Precisamos de projetos e atividades em comum. Temos muitas expectativas nessa cooperação. Em termos práticos, vamos insistir na aquisição e na distribuição de livros de autores catarinenses a todas as bibliotecas públicas e escolares. A nossa proposta será “nenhuma escola sem biblioteca”, “nenhum município sem biblioteca e sem autores catarinenses”. A Academia haverá de ser, se de acordo os nossos pares, um espaço público não estatal capaz de: a) preservar a memória dos escritores e literatos; b) defender a língua portuguesa; c) difundir e estimular a literatura catarinense; d) preservar os nossos valores culturais; e) defender a liberdade de expressão, do pensamento, de opinião e a livre circulação de ideias;


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f ) lutar pela criação literária protegida de qualquer censura; g) cooperar com as demais academias, a Brasileira, a de outros Estados as Municipais e outras que existem em nosso Estado; h) estreitar os laços de cooperação com o IHGSC na preservação de nossa memória histórica e literária. Para tanto, com base nas leis já aprovadas, vamos lutar pelas metas do Proler: I) promover o interesse pelo hábito da leitura; II) cuidar de projetos capazes de consolidar em caráter permanente práticas leitoras, e III) contribuir para que se criem condições de acesso ao livro. Com essa disposição é que imaginamos manter os ideais da Sociedade Catarinense de Letras de 1920 e da Academia, que a sucedeu em 1924, sob a liderança de José Boiteux e Othon Gama Lobo D’Eça. Naqueles tempos tínhamos apenas os impressos: livros, jornais, revistas. Hoje os meios mudaram muito, mas ainda assim relembro Umberto Ecco em seu clássico “Não contem com o fim do livro”. Impresso ou em outro formato como e-book, o livro terá as qualidades registradas por Borges: “Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é extensão de sua voz; em seguida temos o arado e a espada, extensões do seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é extensão da memória e da imaginação.” E para finalizar, lembremos de Cervantes colocando na boca de D. Quixote que “não há livro tão mau que não tenha algo de bom.” Antes de concluir quero agradecer a presença do Coral Helio Teixeira da Rosa e a ajuda do cerimonial e dos meus antigos colegas de gabinete do Tribunal de Contas. Sem eles, essa cerimônia não teria sido possível como queríamos para recebê-los condignamente na Casa José Boiteux. Mais uma vez, muito obrigado pela presença de todos.


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12.04.2012

Saudação do Acadêmico João Nicolau Carvalho, recepcionando o escritor A milcar Neves na academia catarinense de letr a s


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Escritor Amilcar Neves O vosso ingresso na Academia Catarinense de Letras, fruto de uma belíssima votação de mais de uma vintena de votos, tem, para mim, um significado muito especial, pois que me permite singrar o passado, nossa juventude em Tubarão, lideranças estudantis, a folhear mentalmente nossas andanças literárias e jornalísticas, os sinos da Catedral mesclando-se com as vozes juvenis, Debate, Debate, compre Debate. O tic-tac da máquina de escrever da União Estudantil Tubaronense produzindo manifestos para melhorar a educação, e carteirinhas para os estudantes usufruírem de descontos no cinema, e depois, algumas páginas, depois, o vosso artigo Até Breve, linguagem forte, bravura melancólica de uma despedida de Tubarão para um retorno sem retorno. O Senhor Acadêmico Amilcar Neves atravessando a ponte Nereu Ramos para as magias da Capital, eu, um tempo depois, para as lonjuras cosmopolitas do Rio de Janeiro. Nas páginas de Debate, órgão da então União Estudantil Tubaronense (UET), entidade que presidistes caríssimo Confrade, e posteriormente por mim dirigida, estão publicados os traços criativos iniciais de um cronista consciente de sua missão social, e de um futuro ficcionista de largas paragens e heurísticas pinceladas literárias. Nascestes em Tubarão, Cidade Azul, em 24 de abril de 1947. Filho de Maria Celeste Carvalho Neves e de Ataliba Cabral Neves, ela professora, ele promotor público e educador, membro e notável líder da congregação mantenedora da Escola Técnica de Comércio de Tubarão. Ambos de tradicional família desterrense, de certa forma, ao estudares na Capital do Estado, retornas às origens familiares, a integrar-se fisicamente


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à história dos Neves e dos Livramento Carvalho: com avô materno, deputado e prefeito da Capital. Escritor Amilcar Neves: no campo literário, dás, de certa forma, continuidade à vocação familiar pelas artes e segredos da literatura; seu tio paterno, Archibaldo Cabral Neves, escritor e crítico de cinema, foi um dos fundadores do Grupo Sul. Mas, Senhor Amilcar Neves, embora, sob os auspícios da UET, e incentivo do presidente do Fórum de Tubarão, tenhais participado, com brilhante eloquência, de vários júris simulados, não seguistes a profissão de vosso pai. A opção foi pela engenharia mecânica na Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de Segundo Grau na área das ciências exatas. Pósgraduado em Fabricação, também pela UFSC, fostes também professor da própria universidade. Currículo incomum, envolvendo direção de artes, assessorias e consultorias em diversas empresas, a grupos multinacionais. Em 1970, casa-se com Maria Vitória, também do Sul do Estado, e deste casamento nasceram Amilcar Filho, Maria Alice e Lúcia Helena. Hoje, sois avô. Diretor de Artes da Fundação Catarinense de Cultura, presidente da Associação Catarinense de Escritores nos idos de 80, fostes conselheiro do Conselho Estadual de Cultura, vice-presidente da União Brasileira de Escritores, seção de Santa Catarina, e mais, muito mais vincula o vosso nome, a gestão e gerenciamento do mundo das artes e da cultura. Ciência exata e ciências humanas, vosso caminho é interdisciplinar, multidisciplinar. Como escreveu um jornalista do “chão de fábricas ao computador, Amilcar Neves nunca deixou de escrever suas histórias cínicas, moralistas, eróticas, amorosas, humoradas, poéticas, ternas, sarcásticas, apaixonadas”. Vossa primeira obra publicada o foi pela Udesc Editora. O conselho editorial, que tinha entre seus membros os escritores e hoje acadêmicos Celestino Sachet, Pinheiro Neto, João Paulo Silveira de Souza, avalizou a qualidade literária do jovem autor. O insidioso fato — algumas historinhas cínicas e moralistas, obra lançada em 1979, está a merecer uma nova edição, pois ali Amilcar Neves já demonstrava no texto toda a sua capacidade de urdir com desenvoltura, com criatividade, forma e conteúdo; frases lapidadas com esmero, enredo conectado com a ação e o verbo. Um livro de visualidades sóbrias, que prenunciava o grande escritor que a Udesc Editora tinha o privilégio de atestar o nascimento. Para mim, então reitor, a sensação de engrandecimento de uma gestão e de uma jovem universidade. Dança de fanstamas (contos de amor), menção honrosa no Prêmio Fernando Chinaglia, e vencedor do Concurso Virgílio Várzea da Fundação


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Catarinense de Cultura, é publicado em 1984, numa coedição da FCC Edições com L&PM Editores; é vossa segunda obra que entrega ao público. E novamente o senhor trabalha temáticas que, de certa forma, dão continuidade e transcendência à obra anterior. Novamente a capacidade de expressão, de urdidora, espanta e hipnotiza o leitor. Em a novela Movimentos Automáticos, uma das finalistas do Prêmio Status, e que integrou a coletânea 4 novelas eróticas, vem agora confirmar sua importância literária em edição da Massao Ono de São Paulo, em 1984. Sobre ela o Acadêmico Flávio Cardoso afirma enfaticamente: “Penso não estar cometendo nenhum equívoco ao afirmar que Amilcar Neves é a melhor revelação de ficcionista havida em Santa Catarina nos últimos dez anos”. De 1976, ano de algumas das ‘historinhas críticas e moralistas’ que compõe o insidioso fato aos dias que correm, ele realiza um trabalho que se vem impondo pela qualidade e — importantíssimo — pela constância e ambição”. A narrativa de Amilcar Neves — destaca com muita propriedade o escritor Flávio Cardoso — já se consolidou, criou personalidade. “Estruturalmente moderna, ela é desenvolta e envolvente, e impregna-se de um humor feito para dar realce a um tema dominante: o patético da inveterada pequenez do relacionamento humano.” Em 1984, a Editora Estação Liberdade de São Paulo vem lançar um novo livro: Relatos de Sonhos de Lutas. Nessa nova obra com oito contos “vigorosos e bem elaborados”, o Senhor navega com fluidez entre a realidade e o sonho. A crítica afirma que com esta obra o escritor Amilcar Neves amadurece sua textualidade e recompõe a literatura com um espesso mosaico que funde o onírico e o real, os espaços do aqui com o do acolá, os tempos imprecisos do antes, do durante e do vindouro. “Não é difícil reconhecer as técnicas da fotografia, da cinematografia e da televisão por conta de cenas ora em close ora panorâmicas.” É notável a clipagem face aos cortes entre o sonho e a realidade, mais a fragmentação de gestos, personagens e mesmo do tempo. E tudo conduzido por um narrador e leitor de si mesmo a monitorar o zap. “A prosa de Amilcar é meio perversa e bela, talvez a mais rica e densa da literatura catarinense contemporânea. São relatos diversificados nos temas, cujos tratamentos diferenciados oferecem aos leitores uma distração, uma emoção, uma inquietação a substituir qualquer outro motivo: seu livro instiga, satisfaz. “Amilcar consegue fisgar o leitor, mesmo deixá-lo estonteado com muitos desfechos desses seus contos que resultam por vezes em autênticos revertérios à mente do leitor.”


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O escritor Ignácio de Loyola Brandão ao prefaciar essa obra comenta: “... Delírios, imaginação, sonhos. Realidade ou imaginação? O que idealizamos e desejamos e tornamos concreto em nossa mente, e que apenas nós vemos e sentimos isto não é o real? O real não é aquilo que é tão verdadeiro que nos emociona e nos transforma que nos faz amar e odiar, desejar e ter orgasmos? Se não é isso, então o que é o real? Na verdade, ninguém sabe o que é. E então, o jeito é viver, é flutuar entre o quotidiano e o onírico, misturar os dois para poder suportar a vida e, sobretudo as lembranças. Assim é Relatos de Sonhos e de Lutas. Onde se vê o que a gente quer ver, onde se lê o que a gente quer ler. Contos de detalhes, às vezes sutis, onde a narrativa flui na intensidade e velocidade que só a mente agitada provoca, com uma cronologia própria, particular.”

Em Relatos de Sonhos e de Lutas, com diversas reedições agora com o selo do maior grupo editorial do país, a Editora Record, o senhor, confrade Amilcar Neves, não só brinca com a palavra, sova a palavra, as frases, naquela bela artesania de nossas avós de sovar a massa, compor novas texturas, aqui o pão literário ressignificando conceitos, definições, gerando deleites e temores, de queimar o leitor ao saborear o texto, rico, obra aberta — que impõe mesmo ao leitor especializado, como o autor de Não verás país nenhum, e de dezenas de romances, contos — a refletir, teorizar, tentar explicar, racionalizar: “Acima de tudo, Amilcar Neves dá uma lição simples do que é o conto: é tudo o que está aqui, coisas diferentes umas das outras, livres descontraídas, curtas e longas, feitas com rigor e na medida certa, no timing certo.”

Amilcar Neves continua fiel à Desterro de seus antepassados, mas em Relatos de Sonhos e de Lutas, passeia pelo universo da língua portuguesa, num ludismo, consciente ou inconsciente, com significados e significantes, presenteando o leitor estonteado com novas maneiras de ver, ouvir e sentir o contar. “Pai sem Computador”, obra esgotada, novela juvenil, com meia dezena de edições, em que Amilcar Neves nos apresenta André, um ilhéu de 14 anos, com suas aventuras e desventuras entre o campeonato de futebol, o medo de uma reprovação, o primeiro amor, e mistério, mistérios do mistério impregnando a casa, os prazeres e a angústia


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do crescimento, mistérios desvelados que semeiam novos mistérios: o engenheiro Amilcar Neves, professor de ciências exatas, induz o jovem, nos entremeios do texto, a refletir sobre o trabalho, desemprego, crise econômica, a informática envolvendo o mundo.”

O editor informa que é um livro para as 6.a e 7.a séries, mas como quase tudo em Amilcar é uma obra para muitas outras idades presentes e futuras.

Da Importância de Criar Mancuspias O Mancuspia é um animal imaginário, criado no latifúndio literário de Julio Cortázar. Alguns afirmam que são animais quadrúpedes e mamíferos. Sabese que são pratos deliciosos para raposas e linces. Um amigo de Tubarão, que coleciona ou colecionava o autor argentino em português, espanhol, francês e aramaico me escrevera um tratado sobre esses animaizinhos. Mas a enchente de Tubarão tragou as páginas entre um redemoinho e outro. Atualmente, a principal missão desse meu amigo não é escrever, mas reerguer, com produtos homeopáticos, o Esporte Clube Ferroviário para jogar com o Avaí. Confesso, escritor Amilcar Neves, que contribuo com um décimo de um dízimo para alimentar o sonho, de um dia, qual Fênix, o meu time ressurgir das poeiras períticas que sufocam Tubarão, e aventurando-se pela BR-101, embrenhando-se pelo trecho Capivari–Km 60, atravessando a nado o canal de Laranjeiras — para não ferir o imaginário burocrático do Ibama brasiliense —, adentre Desterro e se reinaugure o Ferroviário peleando com o time de vosso coração. Desculpem-me. Estou divagando. Não é fácil falar sobre Mancuspias. As Mancuspias geradas no invejável criatório do senhor Amilcar Neves, no Córrego Grande, são de 56 espécies, cada uma descrita em 56 crônicas, de uma seleta de 400 estampadas pela imprensa. Com a palavra o próprio criador: “Dois textos têm a autoria de terceiros, mas foram provocados por ações e manifestações minhas: são assinados pelos senhores João Goulart e Juscelino Kubitschek. Há quem ainda se lembre deles. Na verdade, estas Mancuspias têm muito a ver com coisas como poder, opressão e transformações, com preocupações sociais, políticas e culturais, com inconformismo e indignação. Em algumas crônicas talvez se vislumbrem indícios de tratamento literário.” O livro recebeu o Diploma de Mérito 2005/2006 (melhor livro de crônicas) da Academia Catarinense de Letras.


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Se te castigo é só porque eu te amo (tragédia urbana), teatro, edição das Letras Contemporâneas, daqui da Ilha. O autor garante, segundo a imprensa, que a obra não reflete as manias transcendentais cometidas pelo seu Avaí nos últimos segundos, minutos, dias e horas. De qualquer forma há que se informar, pois imagino que esta fala irá para os anais históricos deste Sodalício, que coletei a informação no blog Memória Avaiana, a página num colorido meio que azul e branco, a foto do ilustre autor de Se te castigo... rodeada de livros, todos com as capas de uma cor azulada, milagre, imagino, do fotógrafo Amilcar Neves, e essa informação jamais foi dada a lume. Que um dia Amilcar Neves fotografou nos céus, não sei se de Desterro ou de Tubarão, um disco voador espionando os terráqueos. Ilusão ótica, perguntava-se o engenheiro. Não sei se o ilustre recipiendário ainda possui os originais desse seu lado icônico de filho adotado pela ilha dos casos raros. Estou novamente transfigurando a minha saudação. Futebol, de um lado, e castigo como descrito nessa bela peça teatral do confrade Amilcar Neves vitaminam nosso imaginário. Se te castigo... transformou-se em nome de página do facebook, está em blogs com fotos do autor, tudo isso e muito mais para um texto, belíssimo texto, em que vós descreveis sobre uma família de personagens assolados pela repressão, rigidez de princípios morais. Uma família de três filhas e filho conduzidos pela santa taumaturgia, permitam-me o pleonasmo luso-greco, do dramaturgo Amilcar Neves. A vossa peça, caríssimo confrade, premiada, comentada, transfigurada nos meios eletrônicos e na civilização do papel, está a merecer a vivenciar o palco pelas mãos hábeis de algum diretor de teatro. Escritor Amilcar Neves, vós sois contista, cronista, novelista, dramaturgo — e ensaísta. Proibido aos nossos olhos, mas ensaísta, num belamente insólito compadrio com o também Acadêmico Francisco José Pereira. Duas gerações, algo como pater et filius. Um ensaio e, ao mesmo tempo, uma peça para o teatro. Personagem real, mago do pincel, esquecido, tragicamente folclorizado e mazelado pela tradição oral, Eduardo Dias, em O Tempo de Eduardo Dias — tragédia em quatro tempos, está proibido para a atual geração. Proibido de circular: sub judice. Aspas sem o rico fermento da literatura “Mérito, Livro sobre a vida do pintor florianopolitano Eduardo Dias, enredo passado na primeira metade do século XX. Intenção de relatar suposto descrédito conferido pela sociedade ilhoa”... e por aí vai. O orador e toda a sociedade brasileira não podem se manifestar sobre a obra, depende de autorização judicial para conhecê-la. O livro foi censurado.


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Os autores estão sendo processados. E nós, possíveis leitores, impedidos de refletir sobre a vida, quem sabe a transfiguração e a reflexão sobre a vida de Eduardo Dias e a sociedade ilhoa de então. Por enquanto, o silêncio... Amilcar Neves, quando encaminhou seus originais à Udesc Editora para análise e eventual publicação de seu O insidioso fato, recebeu sugestões de membros do Conselho Editorial para mudar alguns dos contos, não sei se para dar maior unidade temática ou estilística. Soube, ilustre confrade, através da imprensa, que vós recebestes as sugestões com certo desconforto; tive sensação idêntica quando recebi sugestões de mudanças nos originais de Rasga-Mortalha pelo saudoso editor Odilon Lunardelli. Com relação ao fato, faço minhas as vossas palavras, estampadas em “Reconhecimentos” de vosso livro Se te castigo é só porque eu te amo: (leio): ... um editor de verdade, sugerindo cortes, ampliações e alterações, tarefas que poucos editores se dão o trabalho de executar: o que não ficou bom etc.” (fecho aspas). A nossa experiência na relação autor/editor, acumulada no tempo, nos tranquiliza, a vós e a mim, com o registro acima, mas nos intranquiliza quando, não o editor, mas a instituição jurídica, como um Grande Irmão, proíbe, In limine, a circulação de uma obra aprovada pela editora e publicada. Aí, sim, comete-se um ato de censura. Senhor presidente, senhores confrades, meus senhores e minhas senhoras: A vida literária de Amilcar Neves ultrapassa em muitos os limites de uma oração de recepção. Sete livros inéditos, contos, um romance, novelas, uma juvenil, e outra de maus costumes, aguardam publicação. Amilcar Neves, que tem obras relacionadas tanto no vestibular da Udesc quanto da UFSC, participa de inúmeras antologias, tem textos traduzidos para o inglês e o espanhol. Um conto foi transportado para o cinema. Sua obra foi premiada dezenas, vintena de vezes, melhor, o autor, entre concursos literários e menções honrosas, foi premiado em 43 ocasiões. Senhor Amilcar Neves: no Líder, jornal estudantil, e no órgão da UET, Debate, registrastes as primeiras crônicas, praticastes jornalismo, a ensaística, e desde então continuas a trilhar as veredas dos contos, das novelas, do romance, do teatro, e da arte dificílima da crônica no jornal, e na internet. Debate, da qual fostes o primeiro redator, com suas páginas recheadas de poesia, noveletas, ensaios e do jornalismo histórico, como a criação do Ensino Superior em Tubarão, Debate, aliás, senhor Amilcar Neves, foi, de certa forma, o portal inicial para futuros membros deste sodalício: Salomão Ribas Junior, João Nicolau Carvalho, e Amilcar Neves foram seus colaboradores.


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De certa forma, os deuses da literatura, das artes, urdiam que aquele semanário, vendido às portas das igrejas e dos cinemas, pelos próprios estudantes, jornal que se imaginava sério, e o era, tramavam que suas páginas, hoje amarelas pelo tempo, seriam a fonte primeva de novas figuras da sociedade catarinense: magistrados e magistradas, engenheiros, advogados, economistas, empresários — e três membros desta augusta Casa praticaram a arte de escrever em suas páginas. Relato isso, pois quando nos idos de 1982, então candidato a esta augusta Casa, pleiteando o voto e o apoio do saudoso Acadêmico Nereu Corrêa, tubaronense como vós, presenteei-o o com fotocópias do Debate. Folheando atentamente os exemplares, lendo um poema em voz alta, lembrando fatos e eventos de vossa cidade disse, meio que brincando, meio que sério, e todos continuam escrevendo? Isso aqui parece um manancial de futuros escritores, quem sabe de futuros acadêmicos. Senhor presidente, senhores confrades, Permitam-me encerrar esta saudação ao querido Confrade, amigo de longas, longas datas, com trechos da oração do ensaísta Nereu Corrêa, pronunciada em Tubarão, por ocasião de minha posse nesta Academia: as academias, conquanto mantenham as suas portas abertas a todos os valores, se situam acima dos conventilhos e das escolas literárias, imunes a todo e qualquer sectarismo filosófico ou estético. E não exercem nenhuma tutela de natureza axiológica no processo de desenvolvimento cultural do país. Qual seria, então, a missão das academias? Pareceme que não é outra senão a de guardiães do patrimônio cultural da nação, sem parti pris na velha e sempre reiterada querela entre antigos e modernos, renovando-se, como queria o autor de Canaan, mas procurando preservar os valores que transcendem o calendário e que já se incorporaram às nossas tradições culturais, como uma conquista permanente do espírito.

E mais adiante: Dizia eu, há pouco, que a maioria dos que batem à porta da Academia são jovens escritores e poetas. Isso é um bom sinal. Um sinal de que a Academia Catarinense de Letras está forjando um elo entre as antigas e as novas gerações. Creio ser esta a mais bela missão das academias. É nos novos ramos que os velhos troncos reverdecem e se cobrem de flores. E é nos velhos troncos que eles vão buscar as seivas para a renovação dos ciclos vegetais que, por sua vez, irrompem


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em fecundas e soberbas florações. Esses ciclos, no plano da cultura, nem sempre se repetem harmonicamente... Os atritos e os choques entre a geração que cumpriu o seu ciclo e aquela que lhe assume o lugar, obedecem geralmente ao tríptico hegeliano da tese, antítese e síntese. A harmonia só ocorre no terceiro estágio, quando os valores em conflito se unem num patamar superior da cultura. Temos então a síntese unificadora dos contrários gerando novas ideias, como o fruto que ao nascer já traz no seu ser a semente que eclodirá em novas e promissoras semeaduras. Já dizia Machado de Assis “que nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e de outros é que se enriquece o pecúlio comum”.

Escritor Amilcar Neves, bem-vindo à Casa José Boiteaux. Com esta saudação de boas-vindas eu encerraria minha oração. Disse: encerraria. Mas aconteceu algo, diria, poético, que me obriga a improvisar os rumos finais de meu discurso: Imaginava que viria diretamente para esta Casa, para a Solenidade de recepção, quando me vi, literalmente me vi, estacionando o automóvel na garagem do edifício onde se localiza meu escritório, ali, na avenida Rio Branco. Na secretária eletrônica, caríssimo confrade e amigo Amilcar Neves, uma voz feminina muito agradável, que se identificou, mas não consegui perceber totalmente o nome, deixava registrado que foi neste prédio, neste prédio onde hoje a Academia Catarinense de Letras tem a honra de recebê-lo na Cadeira 32, antes ocupada pelo saudoso Acadêmico Lauro Junkes — que foi neste prédio, durante a realização de um concurso público, que Maria Celeste e Ataliba, vossos pais, se conheceram. Bem-vindo à vossa Casa, escritor Amilcar Neves, bem-vindo à Casa José Boiteaux.


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12.04.2012

pal avr a s do acadĂŞmico A milcar Neves ao a ssumir a Cadeir a n. o 32 da Academia Catarinense de Letr a s


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Senhoras e Senhores, Preciso pedir-vos desculpas antes mesmo de proferir as primeiras e pobres palavras que tenho para vos dirigir. Desculpai-me pela data escolhida para esta solenidade, especialmente se ela vos comprometeu outros melhores afazeres: não tenho tanta culpa assim que este evento ocorra no dia de hoje. O presidente Péricles Prade reuniu a diretoria desta Casa José Boiteux e o escritor e Acadêmico Mário Pereira ficou encarregado de me telefonar, dizendo que a Academia sugeria o dia 12 de abril de 2012 para que novo inquilino tomasse posse da Cadeira de Santos Lostada, a Cadeira 32. A mim me cabia apenas concordar com a sugestão feita ou propor outra ocasião, e eu aceitei este 12 de abril. Ninguém sabe disto, mas exultei com a data escolhida. Conto-vos agora, contista que me considero ser, em primeiríssima mão, o motivo desta minha estranha satisfação. Houve outro 12 de abril em minha vida, há precisos 25 anos. Há exatamente um quarto de século eu me encontrava na cidade de Acapulco, estado de Guerrero, na costa do México, às margens do Pacífico. Participava da convenção latinoamericana da empresa para a qual então trabalhava, uma grande multinacional da área de informática; na verdade, a maior empresa do mundo nesse segmento da tecnologia que tanto crescia e tão mais cresceu de lá para cá. Naquele dia, em 1987, faltavam 12 dias para que eu completasse meus 40 anos de vida. Era um domingo, a tarde iniciara-se belíssima, ensolarada, com um ar temperado e muito agradável para sair meio ao acaso. Pela manhã, houvera a última sessão de trabalho da convenção e, à noite, teríamos a cena de clausura, que é como os espanhóis confinantes e os espanhóis distantes chamam o nosso jantar de encerramento. No dia seguinte, bem cedo, um pequeno grupo daqueles que ali se encontravam, mais precisamente 12 analistas de sistemas, entre os quais contava este que vos


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fala, partiria para um périplo de 10 dias por fábricas e laboratórios da empresa ao longo da costa Oeste dos Estados Unidos, em Vancouver, no Canadá, terminando o circuito tecnológico no estado de Nova Iorque, com ponto final da viagem programado para Manhattan. A tarde dominical ficou reservada para o lazer. Muitos preferiram, como sempre preferiam nessas ocasiões, beber à beira da piscina do hotel 6 estrelas — tratava-se do Acapulco Princess — em que nos puseram hospedados, um conjunto que efetivamente se proclamava, à época, detentor daquela avaliação raríssima, a máxima possível. Eu, porém, não sairia do meu cultivado canto ilhéu para deixar-me quedar por horas a tomar aperitivos hexaestrelados à beira de uma enorme piscina, protegido por toda a segurança possível e inimaginável contra o mexicano suspeito. Pois mexicano pobre é mexicano suspeito. E o mexicano asteca, para complicar mais ainda sua situação, nem branco é. Portanto, a segurança se fazia imprescindível para resguardar centenas de cabeças privilegiadas e premiadas, posto que alcançar o direito de ir a uma convenção era, antes de tudo, um prêmio cobiçadíssimo e muito valorizado por toda a linha gerencial da empresa de origem estadunidense. Não, recuseime a ficar na piscina, mesmo porque não foi necessária nenhuma atitude heroica, de supremas coragem e ousadia, para exercer tal recusa: bastou-me escolher outra opção de programa das muitas oferecidas pela organização. Outros colegas das Américas preferiram passar a tarde na praia, programa que nada sensibilizava alguém que mora o ano todo em uma ilha atlântica. Terceiros resolveram ir para o apartamento, ligar a televisão — vício indomável para muita gente — a esperar o sono e dormir, ocupando assim o enorme tempo ocioso que lhes destinaram. Houve também naquele domingo, como de hábito, um bocado de conversa ao pé do ouvido que definiu, ou alterou, transferências, promoções, chefias e cotas de venda, essas coisas capitalistas. Transbordantes de civismo, grupos de quatro ou cinco convencionais se deslocavam já em direção à área de esportes do hotel a fim de, em defesa das cores pátrias, ainda mais sagradas e saudosas quando se está no exterior, incentivar os atletas ou participar da indefectível partida de futebol entre Brasil e Argentina, com camisas oficiais e tudo o mais. Tampouco me seduziria essa pequena guerra contra los hermanos. Ou deles contra los macaquitos brasileños. Não; o cardápio de opções oficiais de lazer oferecia mais. Oferecia uma frota de ônibus saindo a intervalos regulares do hotel e parando em pontos predeterminados ao longo das franjas da belíssima Baía de Acapulco, pelas quais se espalha a região mais charmosa e turística da cidade, até o lado oposto, em frente ao porto, onde se situa o Fuerte de San Diego. Em tais pontos, os convencionais, identificados, podiam descer do ônibus e visitar as atrações das redondezas, geralmente com guias à disposição, enquanto o ônibus continuaria circulando. Ou abordar o veículo, embarcar e seguir


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até a parada adiante que lhes interessasse conhecer. Pensando nos fortes portugueses da Ilha de Santa Catarina, obviamente optei pelo forte espanhol, que espreita o mar sobre a avenida Costera Miguel Alemán. Perdoai-me, distintas sSenhoras, desculpai-me, nobres Senhores, já chego lá: é que sempre gostei muito de viajar. Por isso me apanho quase viajando de novo ao falar de viagens. Eu já estivera em Acapulco no ano anterior. Nunca planejei ir àquela cidade criada a propósito para atrair estadunidenses ricos — e, no entanto, voltava ali um ano depois. Em 1986, foi a Literatura que me levou até ela. Era o ano da segunda Copa do Mundo de Futebol a se realizar no México e o selecionado brasileiro, sem dúvida alguma, seria outra vez campeão mundial. Num concurso literário promovido pela finada Rede Manchete de Televisão e patrocinado por uma grande multinacional do tabaco, entre doze mil concorrentes de todo o Brasil, um texto meu, um pequeno conto de 20 linhas ou menos (essa era a condição imposta pelos organizadores: somente seriam aceitos contos com o mínimo de dez e o máximo de vinte linhas), um conto de título Galera oito foi o quinto colocado, o que me valeu um aparelho de televisão. Entretanto, o meu Galera sete ficou em primeiro lugar nesse mesmo concurso, dando-me como prêmio a viagem ao México para assistir, à minha escolha, fosse em Guadalajara ou na Ciudad de México, jogos das semifinais e finais da Copa do Mundo: um carro me apanhava no mesmo Acapulco Princess do ano seguinte, me levava ao aeroporto, eu voava até o destino escolhido, onde outro carro já me aguardava com o ingresso na mão, deixava-me no estádio e, terminada a partida, repetia-se o trajeto, agora invertido, para me deixar em casa, digamos assim. Para as despesas fora do hotel, a multinacional do cigarro deu-me, livre de prestação de contas, isenta de recibo e em dinheiro vivo, a quantia de 500 dólares dos Estados Unidos. Preciso fazer as contas para descobrir quanto me rendeu cada linha daquele conto. Esses meus dois contos, aos quais juntei as demais Galeras de um até onze (um time de futebol) e o Camisa doze (a torcida), estão publicados no livro Relatos de Sonhos e de Lutas. Permiti-me, suplico-vos, duas anotações mais, rápidas, sobre a primeira viagem a Acapulco. Uma façanha que logrei foi ter encontrado — e comprado — na Sanborns, uma pequena loja da avenida Costera que também vendia alguns livros, uma bela edición íntegra, encadernada em vermelho e baratinha, de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, ilustrada con grabados de Gustavo Doré. Aposto que não existe muita gente que tenha algum livro comprado em Acapulco. Ninguém compra livros em Acapulco. Aliás, até me parece que ninguém lê livros em Acapulco. Talvez em outros lugares esse fastio também aconteça, não sei.


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Acabo de descobrir, desolado, que menti. Sem querer fazê-lo, porém o fiz: menti. Fui conferir, neste 10 de abril de 2012, o nome da delegacia na documentação que guardo dos fatos e fiquei chocado: o relógio marcava

4 horas e 11

minutos. Portanto, o dia dos acontecimentos foi

11 de abril de 1987,

um sábado (se bem que só voltei para o hotel no início da madrugada, já dia 12, portanto). No entretanto, a mentira agora já foi longe demais, todo o discurso foi estruturado em torno dela e não vejo como zerar tudo e começar por outro caminho. Afinal, este estava bem interessante, não?

(N. do A.)

A segunda anotação: à época eu fumava. Fui um bom fumante, ocupação que me dava enorme prazer, especialmente quando me punha a escrever e mantinha uma dose de uísque à mão. Hoje continuo com o uísque no gelo e a escritura, muitas vezes manuscrita, o que igualmente me dá profunda satisfação. Pois então eu fumava, à época, e faz-se escusado dizer que não gastei, em toda a viagem, um centavo sequer de cruzado, um cent que fosse de dólar, com a compra de cigarros. Comecei a fumar Camel brasileiro já em São Paulo, antes da partida, depois Camel americano na escala em Miami, Camel mexicano no país da Copa e até Camel da Alemanha, pois havia em paralelo, no Princess, uma convenção da filial alemã do fabricante — e, subitamente, esses dias agora, me dei conta de que aquela marca de cigarros pagou a minha viagem de 1986 por causa de um texto literário e, hoje, vejo-me, aqui, prestes a sentar-me à Cadeira 32 deste elevado sodalício, desta ilustre sociedade de homens e mulheres de letras — e o 32, no jogo do bicho, é precisamente um dos quatro números do camelo... Avancemos um ano, ou pouco menos do que isso, para retornarmos ao 12 de abril de 1987. Era domingo, fazia sol, o clima punha-se ameno e eu estava a ponto de desembarcar em frente ao Fuerte de San Diego. Aquela viagem começava com a convenção no México, passaria pelos Estados Unidos e Canadá e, de Nova Iorque, concluída a fase profissional da turnê, precisamente chamada pela empresa de Tour Tecnológico, já tudo planejado, eu viajaria até Miami, onde encontraria Maria Vitória, que chegava da Ilha de Santa Catarina. Naquele momento, eu entraria em férias por um mês, gastando-o todo em um circuito a dois que seguia direto para os meus 40 anos na cidade do México e prosseguia depois pela costa oeste dos Estados Unidos (Los Angeles e San Francisco), cruzando para Leste até a província de Québec, no Canadá (Montréal e dali, por carro, até a Ville de Québec, ida e volta), para terminar outra vez em Nova Iorque. Ainda em casa, nesta Ilha que tantas ideias interessantes nos sugere a todo instante, decidi que 40 dias de viagem, 5 semanas fora do País, mereciam que eu finalmente fizesse o que sempre pensara fazer e nunca tinha efetivamente realizado: escrever toda santa noite, onde quer que estivesse e à hora que fosse, ao menos dez linhas sobre os acontecimentos, sensações e observações do dia — o que me rendeu, eu vos confesso, mais de cento e setenta laudas de texto bruto que guardo comigo, escondido dos olhos do mundo (assim como outros trabalhos literários mais), com zelo e orgulho — orgulho por ter cumprido à risca o compromisso solene que assumira comigo mesmo, inclusive naquele dia 12 de abril, quando cheguei ao meu quarto de hotel, devido às circunstâncias, apenas às 4 horas da madrugada (para viajar às 8 horas com um braço imobilizado). Subi os degraus da escadaria de granito que leva da avenida até o pórtico de entrada do forte e, mais tarde, na delegacia do Distrito Judicial de Tabares1,


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afirmei, com toda a segurança e convicção, que os fatos se deram precisamente às 4 horas e 12 minutos, conforme mostrava o meu relógio digital que travara com aqueles números estáticos no visor de cristal líquido.2 Em verdade, por virtude de uma pancada recebida, o relógio passara do modo relógio para o modo calendário, este no formato inglês, e aí “congelara”, ao mesmo tempo em que todos os seus botõezinhos de controle ficaram presos e inoperantes: as 4 horas e 12 eram, de fato, abril, dia 12. O pórtico de entrada do San Diego é como se fosse um pequeno túnel de pedra medindo cerca de oito a dez metros de comprimento e largo bastante para grupos de pessoas entrarem e saírem com folga. Ao chegar à metade da travessia, ouvi às minhas costas passos de gente correndo; instintiva, porém despreocupadamente, olhei e vi dois garotos, de 15 e 18 anos presumíveis, aproximando-se de mim, ambos com longos e grossos porretes de madeira erguidos nas mãos. O mais velho trazia um segundo cacete em cuja ponta encrustava-se, de alguma maneira, uma baioneta. E chegaram batendo para valer, sem ameaças nem intimações. Bailamos um longo tempo, ou durante o que me pareceu ser, na hora, quase uma eternidade. Eles batiam e eu me protegia com o antebraço esquerdo dobrado em frente ao rosto, preocupado em não ser golpeado na cabeça; a baioneta estocava insistente e cruzava-me à frente, procurando a macieza do abdômen para mais facilmente me abater. Eu me esquivava e dançávamos, os três, uma dança de morte. Uma estocada melhor aplicada varou minhas defesas, chegou-me à camisa, pressionou-me a pele da barriga — mas não conseguiu perfurá-la, deixando-me de lembrança apenas uma pequena equimose arredondada. Antes ou depois desta investida (cuja impressão epidérmica só fui perceber mais tarde), a baioneta zuniu de novo à minha frente, eu pulei para trás — havia também a preocupação máxima de não me deixar cair; no chão, eu seria vítima por demais fácil para os adolescentes —, pulei para trás mas não o suficiente: a ponta de metal da arma branca alcançou a camisa, cortou o tecido na horizontal e atingiu a pele na altura do estômago; atingiu a pele, produziu nela um pequeno risco que fez aflorar alguma gordura superficial ou um soro transparente — e foi embora. Certamente que, por uma questão de frações de milímetro, não cheguei a sangrar. Os dois adolescentes me deixaram, talvez um pouco assustados pela demora da ação, assim que um deles conseguiu arrancar-me do ombro a máquina fotográfica com um filme inteiro quase completamente batido, a partir de uma escuna, na véspera, dos saltos para mergulho em La Quebrada, por parte de garotos pobres mexicanos ou de rapazes exibicionistas, entre as rochas íngremes e sobre o pedregal do fundo assim que o mar preenche a falésia. Tive as mãos muito inchadas, especialmente a esquerda, e o antebraço engessado num hospital depois, de limpas do sangue coagulado todas as áreas

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Acabo de receber, após as 22 horas, mensagem eletrônica do Pinheiro Neto comunicando o falecimento, hoje, 10.04.12, da acadêmica Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, Secretária Perpétua da Academia. O sepultamento se dará amanhã, às 11 horas, no Cemitério do Itacorubi. Em resposta, pergunto-lhe: a sessão solene de posse, festiva, fica confirmada para o dia seguinte ao sepultamento?

Colocada a questão para o Mário Pereira na manhã de 11 de abril, por telefone, ele consultou o presidente

Péricles Prade que manteve a cerimônia de posse para a data marcada: não haveria mais tempo para mudanças.

(N. do A.)


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atingidas pelos golpes. Nem um só dos meus ossos se partiu. Às 4 horas, não direi morto de cansado, mas vivo e cansado, eu cumpria responsavelmente a minha obrigação das dez linhas. Depois dos 40 dias, já no Brasil, em casa, recuperei em detalhes os acontecimentos daquele 12 de abril, colocando-o em palavras escritas. É incrível como, muito perto da morte, sai-se de um episódio assim com lembranças tão persistentemente vivas e minuciosamente detalhadas. Mais tarde, arrisquei muito ao pegar esse acontecimento real, vivido por mim, para tentar, com ele, fazer ficção — expediente que, no geral, não funciona bem: um excelente, ou interessante, ou engraçado, ou dramático, ou assustador fato real de hábito dá péssima literatura. Ainda assim, mesmo receoso, fui em frente e escrevi um conto. Mais tarde ainda, mandei esse conto, inédito, para um concurso literário. Algumas semanas depois, recebo, junto com um cheque de 350 dólares, a notícia de que o conto foi premiado em primeiro lugar e, traduzido, saiu em edição bilíngue português e espanhol na revista Plural — uma maravilhosa publicação cultural mensal do Excelsior, o maior jornal exatamente do... México. Fascínio, o conto em questão, também está em Relatos de Sonhos e de Lutas, possivelmente o mais mexicano dos livros que escrevi até agora... Senhoras e senhores, Devo dizer-vos que os riscos que assumi na vida não pararam por aí. O mais recente deles aconteceu há umas poucas semanas, quando solicitei ao escritor e presidente Péricles Prade, dirigente maior desta mui respeitável Academia Catarinense de Letras, que designasse o escritor e Acadêmico João Nicolau Carvalho para me receber nesta Casa. Vós vistes o resultado da minha imprudência... O risco, a exposição a que me submeti agora, decorre do fato de que o João Nicolau é meu amigo de uma época na vida em que não se esconde nada de ninguém, menos ainda dos amigos do peito. E assim fomos nós na Tubarão da década de 1960 do século passado — o que explica, também, os exageros engrandecedores que ele me atribuiu. De tudo o que ele disse de mim, para o bem e para o mal, tiremos 90% antes de tirarmos conclusões. Algumas das melhores experimentações a que frequentemente nos dedicávamos lá, naquela época, foram discutir literatura, escrever literatura (o João bem mais do que eu, já com um romance na gaveta só para me causar inveja) e escrever sobre literatura. Onze anos depois desses dias na terra que Virgílio Várzea batizou de Cidade Azul, e após passar dez anos sem escrever uma só linha de texto literário, após fazer um curso de Engenharia Mecânica, após concluir uma pós-graduação em Fabricação, após iniciar-me profissionalmente nos mistérios e entranhas da informática, após morar um ano em Curitiba e quatro em Londrina, e após retornar a Santa Catarina em meados de 1975, indo morar em São José porque a Ilha não tinha espaço


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disponível para abrigar uma família de casal e dois filhos, decidi investir algum tempo, esforço e dedicação no velho sonho de escrever contos e, com eles escritos, tentar a publicação de um livro, um apenas, para atender a uma aspiração secreta de juventude. Publicar um livro me deixaria realizado como escritor — eu assim pensava, de verdade. Autodidata, comecei a escrever do jeito que eu achava que deveria ser um conto, da maneira como eu gostaria de ler um texto de ficção. Guieime pelas leituras que, essas, não cheguei jamais a interromper. Lembrome muito bem, por exemplo, da profunda impressão que me causaram no espírito os contos de Rubem Fonseca: O Homem de Fevereiro ou Março, O Cobrador e, especialmente, Feliz Ano Novo. Eram horizontes que se rasgavam, possibilidades infindas que se abriam, ideias audaciosas postas a borbulhar. Assim, de 1975 a 1978 produzi um punhado de contos, desses meus contos autodidatas, mas não tinha ideia do que fazer com eles — mais ainda, não sabia que valor teriam aqueles textos, se é que eles tinham algum valor. Precisava desesperadamente de um escritor (de um crítico, na verdade, de um Lauro Junkes) que me avaliasse o material, que me indicasse como proceder, que me apontasse quais caminhos trilhar, mas eu não conhecia nenhum espécime dessa gente. Só o João. Mas, para mim, o João, antes de ser escritor, era amigo. Mas era o único escritor que eu conhecia pessoalmente, com livro publicado e tudo. E era reitor da Udesc e havia criado a Udesc Editora, mas isso não significava objetivamente nada. Pedi-lhe o obséquio de ler aquelas páginas e dar-me uma opinião, tão dura e sincera quanto precisasse ser. Ele leu e deu sua opinião. — Manda para a editora da universidade, ele falou, acho que o teu trabalho tem algum mérito e, quem sabe, até pode ser publicado. Lá temos um conselho editorial que dará um parecer. Vamos ver o que eles acham. Eles acharam horrível e mandaram jogar tudo fora. Na realidade, foi, coincidentemente, um acadêmico desta Confraria, já falecido, que não gostou do tom ideológico do conjunto e dos aspectos eróticos de uns tantos contos: “Despropósitos que a editora de uma universidade oficial jamais poderá publicar!”, ele decretou. Estávamos ainda sob a ditadura, lembremo-nos disto. Mas havia também um fado padrinho, a versão masculina da fada madrinha. Ele também atendia pelo nome de batismo de João, João Paulo Silveira de Souza, o grande escritor brasileiro, um dos maiores dos nossos ficcionistas de todos os tempos, e, por acaso, igualmente acadêmico desta Casa. O Silveira, de quem (suponho eu) mais tarde virei amigo, pediu vistas do projeto de livro e deu um parecer que, em votação, acabou prevalecendo, frontalmente contrário ao anterior. Por culpa exclusiva dele, pois, acabou saindo, em 1979 (33 anos passados, já!), o meu primeiro livro, com o inspirado título de O Insidioso Fato — algumas historinhas cínicas e moralistas.


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De acordo com minhas mais caras ambições juvenis, esse era para ser o único e bastante, mas até o momento são oito os livros de ficção que publiquei, supondo que o meu amigo, escritor e Acadêmico Francisco José Pereira me empreste, apenas para efeitos estatísticos, sua coautoria no livro O Tempo de Eduardo Dias — Tragédia em 4 tempos, uma peça de teatro que escrevemos sobre a vida do grande pintor catarinense. Este livro nos rende três processos judiciais, com pedidos de sua virtual retirada de circulação e de indenização por danos morais, nenhum deles da parte de familiares do artista, que eventualmente poderiam julgar-se ofendidos pela aparente realidade retratada — escrever biografias hoje, no Brasil, mesmo que ficcionais, é garantia de aborrecimentos profundos. A menos, naturalmente, que se tratem dessas obras laudatórias tão em voga, em regra encomendadas, as quais versam sobre personagens impolutos, nobres e desprendidos, mesmo quando o biografado é um político, ou um empresário, ou um ser humano. Dos processos a que eu, o Francisco e sua Editora Garapuvu respondemos, dois já foram arquivados com decisões a nosso favor. Pelo terceiro deles, entretanto, penamos as possibilidades da condenação ao pagamento de pesada indenização por conta de uns fatos marginais relatados na obra, plenamente verídicos e totalmente documentados, narrados em forma de conversa de bar entre personagens secundários da peça. No entanto — pasmai, senhores!, enrubescei, senhoras! —, fatos tais ocorridos nesta cidade no ano da graça de 1919! Um ano antes, pois, da fundação desta excelsa Casa de Cultura! Estamos a pique de sermos penalizados porque um juiz decretou que, “ainda que verdadeiros os fatos, ainda que documentados os acontecimentos, a família do ofendido sofre demais ao ver assim tratado um seu antepassado”. Senhoras e senhores, caso o Francisco me conceda esse favor estatístico, serão oito os livros que terei publicado até aqui, até o momento da minha surpreendente aceitação por esta magna Sociedade — e oito, não nos esqueçamos, dizem, posto que nada conheço do assunto nem o utilizo, é o grupo do camelo no jogo do bicho, bicho que simboliza a Cadeira de Manoel dos Santos Lostada, a qual teve o fecundo jornalista Gustavo Neves como fundador e o admirável professor e incomparável ser humano Lauro Junkes como antecessor deste que vos fala (já há tanto tempo, há tempo demais, é verdade). Não é nada fácil desmembrar didaticamente a Cadeira 32, tamanho o entrelaçamento existente, e muito forte, entre seus vários ocupantes. Gustavo Neves, por exemplo, era genro adotivo de Santos Lostada, posto que casou com Benta dos Santos, filha adotiva do patrono. Como fruto das suas minuciosas pesquisas, Lauro nos ensina que Gustavo viveu na casa de Santos Lostada desde 1914, ou seja, a partir dos 15 anos de idade — quase um irmão, pois, de Benta, com quem veio a casar e ter filhos. Por outro lado, Lauro não nos informa os nomes dos pais de Gustavo Neves, situação similar à que ocorre com os pais de Ataliba Gonçalves das Neves, que vem a ser o avô paterno deste


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Amilcar, também Neves, que ora vos fala: ninguém me disse até agora quem são os meus bisavós Neves, nem de onde eles teriam vindo. E há ainda os números e as datas que envolvem toda essa gente. Algumas curiosas constatações: o patrono Manoel dos Santos Lostada nasceu em 8 de março (de 1860), enquanto Lauro Junkes, o terceiro na linha de sucessão, digamos assim, nasceu a 9 de março (de 1942). Ambos, porém, morreram em um 20 de outubro: Lostada em 1923, Lauro em 2010 — aliás, Lauro teve o capricho de escolher uma data de morte absolutamente redonda: 20 de 10 de 20.10, ou de 2010. Já os dois Neves da 32 nasceram em meses de abril: Gustavo em 10 de abril de 1899 (há 113 anos, pois, anteontem completados) e Amilcar a 24 de abril de 1947. Como os outros dois morreram no mesmo 20 de outubro e Gustavo se foi desta para melhor em 1.o de abril de 1980, existe uma substancial possibilidade de que Amilcar venha a morrer também num primeiro de abril; estatisticamente, tal probabilidade é de 0,3%, só que o problema não é, claramente, de fundo estatístico, mas factual. Assim, caso isto se confirme, sinto-me aliviado pelo fato de acabar de superar mais um 1.o de abril — o que, aqui entre nós, considerando o calendário gregoriano, me dá um bom fôlego, pelo menos até o finalzinho de março próximo. Santos Lostada foi um nome que, do interior da minha ignorância, sempre me soou agradável e instigante pelo seu timbre espanholado, mas fazia-se difícil, para mim, à distância no tempo, conhecer algo da sua produção literária, a qual nem foi tão extensa. No seu discurso de posse nesta Academia, em 23 de junho de 1983, Lauro assumiu o compromisso: “Como está dispersa e quase inacessível para o leitor, proponho-me ao compromisso de, como homenagem a meu patrono, reunir futuramente o que for possível de sua obra e dar-lhe publicação em alguma forma de livro.” Homem de palavra e homem de pesquisa minuciosa, nosso notável Lauro, a quem muito deve a cultura literária deste Estado, resgatou em 2008 o solene compromisso publicamente assumido um quarto de século antes. E o fez através do volume 35 da Coleção ACL (coleção que, de forma magistral, ele tanto impulsionou, especialmente através do seu laborioso trabalho de resgate das raízes da nossa Literatura, compilando e nos trazendo obras quase esquecidas dos fundadores das letras catarinenses). Ao livro de Manoel dos Santos Lostada, Lauro Junkes deu o título de Minutos de Mar, uma referência direta à coluna de mesmo nome que nosso Patrono comum assinou no jornal Folha do Commercio pelo menos entre 1909 e 1910. E, desse livro, ressaltam as qualidades embrionárias do contista, com três obras promissoras de um gênero que lamentavelmente ele não desenvolveu mais, e, em especial, destacam-se as virtudes do cronista — no caso, obviamente, crônicas publicadas às quartas-feiras, como hoje o imita este também cronista semanal no Diário Catarinense. Agrada-me sobremaneira a abertura da crônica Os crótons, publicada há 112 anos completados quatro dias atrás (A Página, Florianópolis, 08.04.1900):


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“Madalena, a esfíngica Magdá dos íntimos, profunda, austera, de ironias lacônicas e olhos em cismas, teve o extraordinário capricho de estar alegre. Recebeu-me em risos, de coração aberto. […] Jamais a vira assim, tão palavrosa e gárrula. Toda de branco, no festival do jardim, suavizava-lhe o rosto o cabelo abundante e negro, solto pelas espáduas.” Erotismo, parece-me. Magdá, Lostada... Ele foi grande amigo, íntimo, de João da Cruz e Sousa e de Virgílio dos Reis Várzea. Juntos, os então três jovens poetas publicaram, em 1883, o livreto dedicado “à Julieta dos Santos”, uma atrizinha de nove anos que passou pela Ilha derrubando corações. Cruz é o nome maior do simbolismo brasileiro, nosso negro sublime, o marco da poesia barriga-verde. Várzea, na prática, deu formas ao conto catarinense, além de ser considerado um marinhista de escol, voltado ao culto das coisas do mar, mar ao qual nossa Capital sempre foi, estranhamente, por estar numa ilha, tão avessa. E o Manoel, Manoel dos Santos Lostada? Será que não seria o caso de pensarmos nele como o Patrono, não só daquela Cadeira 32, que daqui vislumbro, como da crônica catarinense? Senhoras e senhores, entrego a palavra àqueles que detiverem a necessária autoridade para dirimir a questão — deixando claro que a melhor pessoa a fazê-lo teria sido o nosso inesquecível Lauro Junkes. Este Lauro, que sempre foi tão gentil comigo — mas que o era com todos os que o procurassem; este Lauro, que está aqui muito perto de todos nós que o conhecemos tão bem e que dele tanto admiramos a sagaz inteligência; este Lauro, que nos deixou esparsa em jornais, revistas e livros alheios uma obra com o registro fundamental da produção literária catarinense; este Lauro, que tantas pessoas, tantos intelectuais, tantos escritores melhor do que eu teriam a necessária competência para sucedê-lo na Cadeira 32; este Lauro, de quem não fui aluno formal, nem colega de magistério, nem comandado na Academia, mas que mesmo assim vez ou outra me chamou cá para dentro desta augusta Casa para ouvir e, até, suprema audácia!, para falar; este Lauro que tanto respeitamos e que tanto valorizou a Literatura feita em Santa Catarina, por insignificante que ela fosse — por insignificante que ela seja —, porque acreditava que não seria na Universidade do Acre que as nossas letras seriam estudadas academicamente, mas apenas aqui, no seu espaço nativo, nas faculdades e universidades locais é que ela encontraria espaço, um espaço que ele tão soberanamente valorizou e pelo qual tanto brigou, nem sempre com o merecido êxito; este Lauro Junkes olhou para mim um dia e disse, em palavras candentes que me marcam até hoje e que me marcarão até um primeiro de abril desses aí: — Tudo bem que escrever crônicas e publicá-las em jornal é interessante, divulga o teu nome, torna-te conhecido onde o jornal for lido. Entretanto,


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isso, a crônica, é passageiro, tão passageiro como o jornal que a veicula. Se queres algo das Letras, se desejas a tua obra inserida na Literatura, concentrate no conto, na novela e no romance. Isto é o que permanece um pouco mais, isto é o que poderá trazer algum respeito pelo teu trabalho literário. Ele me falava de imortalidade, a pequena imortalidade que buscamos todos os que escrevemos com seriedade, sem concessões, fiéis a nós mesmos, aos nossos princípios, às nossas ideologias. Preciso ouvir o mestre — ouvir no sentido de seguir suas palavras. Senhoras e senhores, acreditai em mim, rogo-vos: eliminei mais de 80, talvez 90% do que, ingenuamente, planejara dizer-vos. Talvez um livro dê conta da tarefa — um livro que, como costumeiro, poucos lerão (mas, ainda assim, teimamos em escrever livros). Quero aqui, agora, agradecer, e agradecer de coração: agradecer aos acadêmicos que, sei lá por quais motivos, escolheram votar no meu nome para ocupar esta prestigiosa Cadeira 32; agradecer, com igual ênfase e reconhecimento, a todos aqueles que preferiram outros nomes para sufragar: uma unanimidade, se ocorresse, deixar-me-ia muito mal: só é unânime quem nada diz, quem nunca se posiciona, quem espera o vento soprar para escolher o lado para o qual pular; agradecer aos eventuais leitores que me prestigiam no jornal, no livro e na sala de aula: o que eles verdadeiramente prestigiam é a obra, não o autor, que pouco importa frente ao trabalho que este possa ou consiga desenvolver; agradecer a vós todos aqui presentes, e a muitos outros daqui ausentes pelos mais sérios e justos motivos, que poderiam destinar este tempo todo a tarefas bem mais gratificantes e prazerosas; agradecer aos amigos, parentes, conhecidos e seres humanos que a gente encontra e desencontra pelas esquinas da vida, pelos cantos do mundo; agradecer à Maria Vitória, um enigma: começamos a namorar no mesmo ano em que comecei a escrever, e agora já não sei mais se escrevo porque a amo ou se a amo porque escrevo, e assim não posso, sob pena de grave risco, prescindir, bígamo, nem dela nem da Literatura; agradecer a paciência e compreensão, ainda que forçadas, dos filhos Amilcar, Maria Alice e Lúcia Helena, dos netos Caio e Gabriel, do genro Nathan e da nora Mônica: esse povo todo sofre, sofreu, uns mais e outros menos, por causa dessa circunstância que faz os escritores necessariamente alhearem-se um tanto do mundo para criarem um outro mundo, fictício e mais real, de que outras pessoas, absolutamente estranhas e desconhecidas, é que eventualmente irão desfrutar; agradecer, por fim, a todos aqueles que aqui não citei por absoluta desmemória, inaceitável, da minha parte. Senhoras e senhores, assumo todas as responsabilidades desta honrosa investidura e coloco-me desde agora ao serviço das Letras, da Cultura e desta Academia de Santa Catarina. Obrigado.


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26.04.2012

Saudação do Acadêmico RODR IGO DE H ARO, recepcionando o escritor GILBERTO GER L ACH na academia catarinense de letr a s


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Convidado para fazer a apresentação de Gilberto Gerlach nesta egrégia Casa, o faço com o maior prazer. Pois creio ser, dentre seus amigos, o mais capaz para tal incumbência. Conheço Gilberto desde o início da década dos anos de 1960. Minha primeira impressão foi comunicada através da fotografia, pois ele fizera uma exposição no hall do Teatro Álvaro de Carvalho e aquela qualidade expressionista me chamara a atenção. Procurei conhecê-lo, e um dia ele apareceu na rua Altamiro Guimarães, 25, onde morava com meus pais. Começava ali uma amizade que perdura até os dias de hoje. Testemunha e advinho. Eis a dupla irradiação da arte de von Gerlach. Operador rigoroso do essencial, inimigo jurado da banalidade. Na lente deste senhor de comportamento hierático, as coisas do cotidiano adquirem vibrações de espanto, de recolhimento paradisíaco. Compartilhamos sempre a mesma aventura espiritual, o mesmo trajeto: Caravaggio por encontrar Rudolf Steiner no caminho da Pedra Branca e pisar o tombadilho da Nau Fantasma ou nas escadas do Elevador. Atravessamos períodos muito fortes da história próxima. Vimos muitos filmes, bebemos vinho. Muitas imagens correram no projetor veterano. Houve o Hamlet, houve o Café Social e os dias luminosos no sobrado. Houve o Adolpho Mello, o York, o CIC... Como eventual objeto de algumas fotos na casa da Altamiro Guimarães (uma luz que não sofreu o menor desbotamento), fico atônito e comovido, ao descobrir a unidade do drama. A unidade do filme contido neste mergulho de memória compartilhada. A intensidade vital de algumas figuras e o lirismo do olhar que modelou estes objetos.


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Olhar supostamente distanciado. Olhar visceralmente comprometido, projeto da escotilha. Olhar de adivinho, aberto para o futuro. Sempre procurando trazer para o presente aquela civilização que já não existe: São José da Terra Firme, Desterro. Eis, pois, o que posso dizer, em poucas palavras, sobre nosso confrade, que entra nesta noite no rol dos imortais.


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26.04.2012

pal avr a s do acadĂŞmico GILBERTO GER L ACH ao a ssumir a Cadeir a n. o 17 da Academia Catarinense de Letr a s


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Prezados senhores e senhoras, caros amigos e amigas! Sinto-me imensamente honrado em poder pertencer a esta casa fundada por José Boiteaux! Mais ainda por ocupar esta Cadeira 17, que tem por patrono Jerônimo Francisco Coelho (1806-1860) e ocupantes José Arthur Boiteux (1865-1934), Oswaldo Rodrigues Cabral (1903-1978) e Carlos Humberto Pederneiras Corrêa (1941-2010). Minha candidatura, no entanto, só aconteceu ao ser estimulado por amigos: Professor Ungaretti, Salim Miguel, Flávio José Cardozo, Mário Pereira, Silveira Lenzi. Permito-me fazer um breve histórico de minha vida. Nasci na vizinha São José da Terra Firme num domingo à tarde, 16 horas, em dia de festa na Praça da Igreja, no sobrado vizinho. Criança de domingo, segundo Bergman, pode desenvolver alguma coisa interessante no decorrer de sua vida... Tive como colega de primário o amigo de sempre — Osni Antonio Machado, vizinho até hoje. Muitas figurinhas trocamos, cenas de filmes, fotografias antigas da cidade, gibis, hoje DVDs e sempre a história terral. Cursei o ginasial no internato do Colégio Santo Antônio, em Blumenau. Ali, a descoberta do cineclube: por quatro anos assisti, duas vezes por semana, os mais variados filmes da América do Norte e da Europa. Inesquecível meu encontro com a obra de Rossellini sobre São Francisco, o Arauto de Deus. Os clássicos do cinema francês: Renoir, Carné, Vigo, Autant-Lara, Gremillon, Gance, Duvivier. Mas também o outro lado: Ford, Hawks, Wellman, King, Hathaway — faroestes e filmes de aventura, Gray Cooper na emocionante fuga dos índios por canoa. Orson Welles me foi apresentado por O Quarto Mandamento, a história dos magníficos Ambersons.


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Concluído o ginásio, fui para Porto Alegre fazer um cursinho para tentar entrar na Academia Militar das Agulhas Negras: era o desejo de meus pais que eu fosse militar. Lá descobri o cineclube do P.F. Gastal e assim continuei meus estudos sobre cinema. Cursei o científico no Colégio Catarinense; felizmente não passara no exame para militar. Ali o encontro com padre Décio (que não era ainda padre), que agitava um cineclube para os alunos: devo-lhe o conhecimento, num sábado à tarde, da obra de Resnais — Van Gogh. Saindo dos franciscanos e entrando nos jesuítas, constatei a mesma excentricidade em ambas as ordens através de seus mestres. Em Blumenau, tinha o padre aviador que leciona latim; o erudito e humanista frei Odorico, o espírito avançado de frei Fulgêncio. Entre os jesuítas, Jeremia, o “pomboca” e Armandinho, que gostava de distribuir zero ao cubo aos alunos. Ainda o espirituoso padre Benno, físico e autor de um órgão de bambu-açu. Na parte civil lecionavam o terrível Busch e o simpático Aníbal, a matemática. Com Aníbal aprendi a filosofia desta matéria e também a oportunidade de ler sua coleção de suplementos literários. Ainda no Catarinense, lecionava francês e espanhol um jovem professor que a partir desta noite passa a ser meu Confrade nesta Academia: Celestino Sachet. Lembro-me de suas aulas práticas de francês através de toca-discos, recitando poesias de Lamartine... Mas também de Celestino tive uma reprimenda por estar lendo, no recreio, a obra de Stendhal — O Vermelho e o Negro —, então constante do índex da Igreja como obra proibida. No momento de me decidir por qual curso seguir, optei pelas ciências exatas e acabei entrando no curso da engenharia civil da UFSC. Antes disso, por três anos, prestei meu serviço militar cursando o Núcleo Preparatório de Oficial do Exército. Ali conheci, entre outros amigos, a Antonio Pereira Oliveira, João Carlos Mosimann e Marcondes Marchetti. Foi nos meados dos anos de 1960 que vim a conhecer a família de Haro. Sua casa era um oásis, a caminho do deserto, na Trindade, para estudar engenharia. Meu curso de engenheiro, fiz em onze anos; paralelamente estudei fotografia e cinema. Quando instalei um cineclube na engenharia, o Professor Stemmer um dia me perguntou no corredor se eu estava ali para fazer engenharia ou cinema. Respondi-lhe: Os dois! Sua esposa, a querida Professora Helena, também gostava de cinema e assim o cineclube prosseguiu. Uma semana levava A Besta Humana, de Renoir, na outra um faroeste de John Ford. Esse movimento cineclubista criado em 1968 evoluiu de tal forma que viria a existir ativamente por mais de 40 anos. Em 1979, começou minha aventura de montar livros. Atendendo a um pedido de Marcondes Marchetti e Martim Afonso de Haro, vim a participar da


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montagem do livro Viajantes Estrangeiros em Santa Catarina, séculos XVIII e XIX. O assunto me entusiasmou de tal forma que a partir de então, por mais 30 anos, passei a pesquisar mais intensamente este tema dos viajantes estrangeiros que passaram por nossa Ilha. Este trabalho resultou no livroálbum Desterro, em dois tornos, cerca de 800 páginas, lançado em setembro de 2010. Paralelamente, com Osni Antônio Machado, lançamos São José da Terra Firme, com sua história compreendida entre 1750-1950. E, no momento, dedico-me a dois projetos: a continuação do Desterro até meados dos anos 1930 (que será lançado em março de 2015) e Blumenau Colônia, para o ano de 2016. Muito obrigado pela atenção. Uma boa noite a todos!


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15.07.2013

Saudação do Acadêmico PINHEIRO NETO, recepcionando o escritor MIRO MOR AIS na academia catarinense de letr a s


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Miro Morais no reino da Academia Fiquei extremamente lisonjeado com o convite do escritor Miro Morais para recepcioná-lo na noite de seu ingresso oficial nesta Academia. Miro foi eleito para ocupar a Cadeira 20, na vaga deixada pelo saudoso Osvaldo Ferreira de Melo, membro atuante desta Casa, com quem tive o privilégio de conviver desde minha posse ocorrida no dia 18 de outubro de 1983. Conheci Altamiro de Moraes Matos como professor de Sociologia no ano de 1968, quando frequentei o curso Clássico no Instituto Estadual de Educação. Sempre elegante, polido, pontual, atencioso e com um domínio do conteúdo impressionante que prendia totalmente a atenção do grupo, demonstrava já sua inquietação constante, sua visão de mundo, seu olhar sobre o comportamento humano. Lembro bem que eram raros os casos de alunos faltosos ou gazeteiros naquela disciplina. O trabalho realizado pelo professor Altamiro no curso Clássico permitiu que muitas questões sociais da época fossem debatidas e elucidadas para proveito de todos os seus alunos. Vivíamos ainda sob o regime estratocrático onde tabus e medos sobrevoavam nosso cotidiano, embotando desejos de liberdade e vontades. Com as aulas ministradas por ele, o ritual de passagem necessário à formação minha e de meus colegas de Grêmio Estudantil, filiado à União Catarinense de Estudantes pôde ser amenizado e transposto com tranquilidade. Nessa época, minhas leituras estavam circunscritas à necessidade de conclusão do curso, preparação para o vestibular e textos específicos para debates com o grupo da união estudantil. Como estudava à noite, pois tinha que trabalhar durante todo o dia e ainda escrever meus artigos e poemas, tempo algum sobrava para outras leituras. Credito a isso o fato de até aquele


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momento desconhecer o lado literato daquele mestre que, um ano antes, publicara seu primeiro romance. Voltei a encontrá-lo em 1971. Tive que ir ao Palácio do Governo a serviço — na ocasião trabalhava na Assembleia Legislativa —, falar com o assessor de imprensa do governador Ivo Silveira, e lá estava ele, Altamiro, meu ex-professor. Era justo ele a pessoa com quem eu precisava contatar. Conversamos, relembramos o período em que eu fui seu aluno, e ele então, me presenteou com um exemplar de seu romance A coroa no reino das possibilidades, devidamente autografado. De lá para cá, estamos sempre próximos, inclusive em residência: ele na Lagoa da Conceição e eu na Barra da Lagoa. Com frequência nos encontramos para um café. Senhoras e senhores, caros colegas acadêmicos, Altamiro de Moraes Matos nasceu na cidade de Gravatal, neste Estado, em 1937. Teve um início de vida humilde, gostava de trabalhar na agricultura, domar cavalos, embrenhar-se nas matas. Seu pai era comerciante e sua mãe professora. Com ela pôde conviver com os livros desde cedo e através dela viu despertar seu encantamento por esses objetos preciosos, tanto que, à noite, muitas vezes, ficava lendo até mais tarde com a ajuda de uma vela acesa embaixo do lençol. Algo perigoso, mas que fazia com o consentimento materno, embora com leve advertência na manhã seguinte. Garoto ainda, veio morar na Capital, onde estudou artes gráficas na Escola Técnica Federal de Santa Catarina, hoje Instituto Federal. Trabalhou no jornal O Estado, onde foi repórter e publicou suas primeiras crônicas. Foi professor nas universidades Federal e Estadual, superintendente da Fundação Catarinense de Cultura. É administrador de empresa, sociólogo e pós-graduado em História da Educação pela Universidade de Madrid. Escritor e ficcionista, publicou poemas, contos e romances. Em 1982, foi vencedor do Prêmio Cruz e Sousa, na categoria romance de autor catarinense. Miro Morais foi colaborador assíduo de suplementos literários de Santa Catarina e de outros centros culturais e publicou, além de trabalhos científicos, os seguintes romances: A coroa no reino das possibilidades (1967), pela Editora Leitura, do Rio de Janeiro; Cândido assassino (1982), pela Fundação Catarinense de Cultura e O reino dos esquecidos (2013), pela editora Insular. Participa também de várias coletâneas e antologias, com destaque para Antologia de autores catarinenses, editada em 1969, pela Laudes, do Rio de Janeiro. Senhor presidente, colegas acadêmicos, senhoras e senhores, Miro Morais é, antes de mais nada, um romancista; um dos mais significativos e, quiçá, o mais denso dentre os que vivem e escrevem em Santa Catarina. Ele pertence ao grupo de escritores que não se preocupa em publicar um livro por ano e ostentar quantidade. A lenta e segura maturação de uma


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nova obra representa para ele muito mais. Seu compromisso assumido é com a boa literatura. Tem sustentado que a boa literatura não está simplesmente na interioridade daquele que a cria; ela está em todo universo criado pelos bons autores. E o tempo de publicação entre uma obra e outra se deve ao paradoxo da própria existência humana, pois você tem motivações e não atos, tem atos e não tem motivações. Esse paradoxo permeia a vida de quem reflete com consciência o mundo e a sua sociedade. E ele argumenta: “Feliz, ou infelizmente, possuo consciência crítica. Admiro os autores que produzem em quantidade, mas na verdade, para mim, se Cervantes tivesse apenas Dom Quixote, se Gabriel Garcia Márquez tivesse escrito apenas Cem anos de solidão, e se Joyce apenas Ulisses, eles já teriam se justificado; consequentemente os autores não se consagram pela grande quantidade, e sim por uma obra. Machado de Assis, por exemplo, se realiza plenamente em Dom Casmurro, e escreveu mais de trinta livros, dos quais muitos são frágeis.” Assim, é com base nessa argumentação que considero imprescindível a partir de agora tecer algumas considerações sobre cada um dos romances de nosso novel acadêmico. Para tanto, quero tomar como base análises e considerações gestadas por intelectuais que pertencem aos quadros desta Casa, a Casa José Boiteux: Sobre A coroa no reino das possibilidades Para o colega Acadêmico Celestino Sachet, em seu livro A literatura de Santa Catarina (1979), páginas 174 e 175, trata-se de um dos grandes livros de ficção catarinense da década de 1960. Seu autor, mesmo formado em Filosofia e com uma grande experiência no campo educacional e empresarial, conseguiu levar para dentro da literatura os grandes e angustiantes dramas do homem moderno que, pensando — e necessitando desesperadamente — fugir da civilização, vai se esconder na vida simples e ordenada dos pescadores de beira-praia. Para Sachet, A coroa no reino das possibilidades está montada sobre uma tríplice filosofia justificada através da própria construção do texto. São elas: “um homem tem que acreditar no outro, senão vai à breca” (p.161); “a crise de loucura foi, na verdade, seu maior instrumento de lucidez” (p. 178) e “se a gente ligar pra morte, a vida vira uma porcaria” (p.199). Como o Herói do romance — isto é, nós, os homens da cidade — como o Herói não acredita no Outro, como não tem crise de loucura e como ele vive por demais ligado com a Morte, fácil é de se perceber o grande e angustiado trabalho que Miro Morais acabou deixando para a literatura de Santa Catarina. Um pouco mais tarde, em entrevista cedida ao jornal A Notícia do dia 18 de outubro de 2005, Miro desvenda como surgiu A coroa no reino das possibilidades, ao afirmar que ele foi escrito como uma abordagem sociológica


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dos resíduos culturais dos açorianos na Ilha de Santa Catarina. Que naquele momento estava convicto de que isso interessaria apenas no máximo a dez pessoas, pois o universo da pesquisa era circunscrito. E que, em apenas 45 dias, escreveu todos os capítulos do que acabou se transformando num romance. Para ele, o autor, esse livro, produzido de uma forma tão torrencial, mudou de uma metodologia para outra: da técnica, da pesquisa científica, para a abordagem eminentemente ficcional. Sobre Cândido assassino Vou valer-me de outro Acadêmico, nosso eminente e saudoso ex-presidente Lauro Junkes para falar sobre esse romance. Segundo Lauro, trata-se de uma narrativa desconcertante. Construída sobre avassalante fluxo de consciência, desrespeita todos os padrões narrativos tradicionais: não apresenta praticamente enredo lógico e ordenado; a temporalidade está sujeita aos movimentos da consciência, ao refazer matéria de memória; o caráter dissertativo, que ultrapassa a simples ação factual, é permanente; a constante perquirição do eu profundo, da angustiante introspecção desestrutura toda sequência narrativa da ação externa. Afinal, é tão mínima essa ação exterior que pouquíssimas páginas a resumem. Lembrando a estrutura do Ulysses de Joyce, que abrange o período de 24 horas na vida de suas personagens, diz Junkes, a narrativa de Cândido assassino destila da mente do narrador protagonista, no espaço de uma noite. Após cumprir 20 anos de pena em presídio, o assassino reflete durante uma noite sobre todas as circunstâncias aparentes que o levaram ao ato de matar um homem, o qual teve como consequência a prisão, o julgamento e a condenação, ou seja, proporcionaram condições para ele passar o resto da vida desdobrando os mistérios da própria mente. Ao dar vazão, neste romance, aos seus fantasmas íntimos, em meio à lucidez absurda das reflexões do assassino-narrador, Miro Morais aprofunda sua face de filósofo e sociólogo. Para Junkes, este é um romance desaconselhado para pessoas avessas ao pensamento profundo e, por certo, não lhe ultrapassarão a epiderme e bocejarão na sua mediocridade. Sobre O reino dos esquecidos Terceiro romance de Miro Morais, é uma obra destinada a incluir-se entre os grandes romances clássicos. O mundo imaginário — maravilhoso e inacreditavelmente real — as múltiplas histórias articuladas com o enredo central, os personagens, tudo envolve e fascina a cada página, a cada parágrafo, a cada frase, em que as palavras são precisas. Um raro livro, em qualquer tempo, sem gratuidades dentro da literatura. Uma obra ao mesmo tempo lúdica e capaz de provocar uma maior visão sobre o mundo humano e sobre cada leitor.


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Trata-se da história de dom Manuel Manso, um fidalgo muito próximo ao imperador, que por razões misteriosas abandona a Corte no Rio de Janeiro e se lança à aventura de criar, no Sul do Brasil, um povoado onde as pessoas possam ser felizes. Para realizar o seu sonho não lhe basta dominar a natureza hostil e fascinante e aprender a conviver com ela. O seu projeto entra em conflito com as crenças e as regras, a ordem e a desordem e o Poder que reina sobre tudo e todos. E isso se transforma em mais uma ameaça para o seu plano e a sua vida. Mas a determinação de Manoel Manso não tem fronteiras para criar o seu mundo imaginário, que se superpõe ao real. Aos poucos ele atrai para a sua ideia, vista como visionária, sobretudo, os que nada tinham. Nem bens materiais nem esperanças. E, logo, também os ambiciosos de riqueza e poder. E tudo vai se transformando em um universo com alma própria. Bravatá, o novo povoado, surge dentro da selva, habitado por pessoas vindas de todas as partes, falando línguas diferentes, comungando a vida sem apegos às múltiplas diferenças e se torna o centro do universo onde tudo acontece. O seu fundador perde o controle sobre cada um dos moradores e sobre o seu mundo. Um mundo de beleza e contradições. Habitado por pessoas em busca de um destino melhor. Um mundo onde o amor que mata e a violência que salva são partes complementares do que vivem. Pequenos e grandes heróis expõem suas paixões, seus ódios, seus amores, a traição e a solidão, suas esperanças, tristezas e alegrias. As suas múltiplas histórias se entrelaçam — em capítulos que se autojustificam — dentro de um enredo maior onde convivem os aventureiros e os acomodados; os santos e assassinos. Às vezes em uma só pessoa. Diante de tudo o que acontece, o fundador não perde a sua crença no ser humano. Nem mesmo quando ele próprio, amado e odiado, caminho de uns e obstáculo de outros, está frente a frente com o seu matador. Para dom Manoel Manso, o ser humano é o seu santo e o seu demônio. E, dentro dele, perde o que ele conseguir mais fragilizar. E é esse desafio da liberdade que ele próprio, cada um dos moradores do lugar que fundou e o país se deparam todos os dias, todos os momentos, que o desencanta e o fascina. Um romance que entrelaça vidas e ficção para envolver o leitor em cada história e a cada página. Sem a veleidade de ter conseguido com esta pequena reflexão apresentar uma síntese completa sobre os três magníficos romances de nosso empossando, quero compartilhar com vocês, esta noite, minha convicção de que há um fio condutor que perpassa todos e cada um deles (e acredito, estará presente no próximo romance que ele prepara para nos brindar até o final do ano). E qual será esse fio condutor, essa linha que costura as relações íntimas e sociais de suas personagens? Eu respondo: a inquietação! É ela que imprime


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à obra de Miro Morais a marca que transporta o leitor para o mágico, para o suprarreal, a cada investida, a cada recuo. A marca indelével de um realismo fantástico. É prudente ter certo cuidado com tal afirmativa, entretanto. Aqui não quero definir “fantástico” como comumente é relacionado, isto é: “como violação das leis naturais, como o aparecimento do impossível.” O fantástico a que me refiro é justamente o resultado de “uma manifestação das leis naturais, um efeito do contato com a realidade quando esta é percebida diretamente e não filtrada pelo véu do sono intelectual, pelos hábitos, pelos preconceitos, pelos conformismos,” tese comprovada por Louis Pauwels e Jacques Bergier. Senhor presidente, colegas acadêmicos, senhoras e senhores, Sem sombra de dúvida o escritor Miro Morais preenche os requisitos que considero essenciais a todo aquele que pretende ingressar nesta Academia e dela tornar-se membro: primeiro, deve conhecer o que diz o Estatuto desta Casa, principalmente seu artigo primeiro, isto é, “... cultivar a Língua Vernácula e defender os valores da cultura nacional e estadual, especialmente no campo literário...”; segundo, deve ter a consciência de que para tanto é preciso antes de qualquer coisa ser escritor (escrever literatura — romance, novela, conto, crônica, poesia; produzir pesquisas, ensaios, estudos, críticas sobre artes plásticas, literatura, folclore, cinema, história, cotidiano, cultura, enfim); terceiro, após o ingresso, precisa manter o compromisso com a instituição participando cotidianamente de suas atividades, inclusive as burocráticas, inteirando-se de seus problemas “mundanos” e colaborando com a diretoria no sentido de buscar resolvê-los. Necessita também ter clareza de que é prudente menos empáfia e mais humildade e companheirismo; que não basta apenas ostentar o título e a medalha e marcar presença nos eventos mais solenes e “pomposos”, deixando nos ombros de poucos a responsabilidade de resolver sozinhos os demais problemas e, por fim, que é preciso ter consciência da imortalidade acadêmica, não esquecendo em nenhum momento a mortalidade do acadêmico. Finalmente, caríssimo escritor e amigo, Miro Morais, cumprimentando seus familiares e amigos, quero dizer em alto e bom tom, seja bem-vindo a este templo das Belas Letras, da Literatura, da Cultura e do Saber que é a Academia Catarinense de Letras. Sua presença, suas ideias e seu trabalho em muito contribuirão, tenho certeza, para o engrandecimento da Casa José Boiteux. Muito obrigado!


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15.07.2013

pal avr a s do acadĂŞmico MIRO MOR AIS ao a ssumir a Cadeir a n. o 20 da Academia Catarinense de Letr a s


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Excelentíssimo Acadêmico Péricles Prade, presidente da Academia Catarinense de Letras, Excelentíssimo Acadêmico Pinheiro Neto que me saudou de forma tão generosa — o meu ex-aluno continua gentil e brilhante. Excelentíssimos acadêmicos que me consagram a honra de compartilhar com suas inteligências e cultura; Doutora Andréa da Silva Duarte, brilhante promotora dejustiça do Estado de Santa Catarina e demais autoridades, Colegas escritores e escritoras, demais criadores de arte, colegas jornalistas, Familiares do saudoso imortal Oswaldo Ferreira de Melo, Meus queridos amigos e amigas, Meus amados familiares: filhos, filhas, genro, noras, netos, netas, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, meu irmão Sebastião e meu irmão Itamar Sebastião — o Tio Preto. Quero falar ao coração de cada um de nós. Das nossas conquistas e esperanças; das contradições e da beleza da vida; das nossas alegrias e desenganos; dos desafios que é viver neste mundo, sem desmoronar, sem perder as esperanças e sem deixar de sonhar. Enfim, da tramoia que é nosso destino humano. E de como tudo isso envolve um escritor e cada um de nós. Sendo assim, fujo de uma abordagem culturalista. Mas, por favor, não entendam como arrogância. É que, quando não puder falar com a razão e o coração, eu me calarei. E tão pouco escreverei. Inicio por reverenciar a memória do Patrono desta Cadeira 20 — Joaquim Augusto do Livramento — grande intelectual falecido em 1883, depois de ter ocupado entre muitas funções, por duas vezes, o governo deste Estado. Igualmente as memórias dos seus sucessores: Fúlvio Coriolano Aducci, Custódio Francisco Campos e Victor Antonio Peluso Junior. E de modo ainda


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mais especial, a memória de Oswaldo Ferreira de Melo que me antecedeu nesta Cadeira. Para registrar sua grandeza nas artes e no magistério acadêmico bastaria lembrar o discurso do imortal Almiro Caldeira de Andrada, ao recepcioná-lo neste Sodalício, em 13 de abril de 1995: Oswaldo Ferreira de Melo exercita ciência e arte, poesia e ensaio, teoriza e executa, fere com maestria temas filosóficos intrincados e as dóceis cordas de um violão.

Que mais se poderia acrescentar à história de um homem voltado ao saber e à criação? A sua obra é grande e significativa no campo jurídico, na abordagem acadêmica, na música, nos ensaios, na poesia e no teatro. Com ele tive o prazer de longa convivência no Conselho Estadual de Cultura, na vida das academias como colegas. E em tudo se destacava a sua solidariedade. Em seu discurso de posse nesta Academia — disse ele que aquela solenidade poderia ser intrigante para outras pessoas, que se perguntariam: Por que em um tempo onde o banquete sensorial, a busca de prazeres imediatos, o consumismo como razão de vida, e as ilusões do poder compulsivo, alguns homens e mulheres reúnem-se para festejar solenemente a arte, a beleza e a vida? Digo eu: Então, e como nós aqui e agora. E não por amor a um escritor isoladamente, mas à humanidade que está dentro dele e dentro de cada um de nós. Acolho com prazer toda literatura: dos clássicos à beleza criativa do cordel. Percebo em toda ela a revelação íntima do autor. Neste sentido, creio, não existe má literatura. E, sim, tão só literatura. Mas tenho convicções pessoais sobre o escritor e seu ofício. E delas quero lhes falar. Penso que o escritor deve ser uma revelação sem reserva do que ele é, do que gostaria de ser ou não ser, do que ele pensa e sente, do que ele aprova e do que recusa. Para ele e o ser humano. Claro, cada um com sua identidade pessoal, com a formatação que o meio, a cultura, a sua carga social, o seu acervo emocional e espiritual e suas aceitações e recusas dos seus demônios e dos seus anjos o envolvem. Como, enfim, todos nós somos. Escrevo aceitando-me assim. Procurando nada julgar e melhor entender. Sem receituário do bem e do mal. Por crer que a liberdade de escolha está condicionada à nossa herança e vivência. Aos nossos universos interno e externo. E em como podemos superar ou não esses limites. E alimentar os nossos sonhos. Que são os alicerces das nossas vidas e os eternos fundamentos da literatura.


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Mas há horas, na vida real, em que precisamos romper as barreiras internas e externas para abrir novas portas. Conto-lhes um episódio pessoal que, por natureza, se repete muitas vezes em cada um de nós. Quando, aos treze anos, eu me deparei com os degraus de cimento à minha frente e o casarão das freiras, amigas de minha mãe, lá no alto, eu olhei para as duas malas e quis ficar ao rés da calçada. E voltar. Pensei: O amor e o carinho que eu tinha em casa não seriam os mesmos que o mundo iria me dar. E um passo a mais seria a ruptura. O rito de passagem de um mundo para outro, em um único passo. Sufoquei o medo. Dei o passo. O passo que muitas vezes cada um de nós tem que dar para não ser vencido pela nossa fragilidade. Dei aquele passo e estamos aqui, sendo honrados por este Sodalício e pela presença de cada um de vocês. Construímos uma nova história. Tentando não perder as raízes. Sempre com o emocional e o racional disputando espaço na vida e no que escrevo. A um só tempo combatente, às vezes desconsiderando códigos canhestros, e ainda assim, procurando ser fiel às origens. Ainda vivas. Enraizadas no primeiro afago e na primeira repreensão. Na primeira desilusão e no primeiro prêmio. Ainda que tenha buscado me embriagar do saber e do conhecimento, a âncora do mar em que navego é a boa herança da infância. Lembro o dia em que ofereci um pedaço do pão do meu lanche a um colega negro que o comia com os olhos. Lembro-me bem. A mudança da luz de seus olhos diante de um simples gesto ainda me acompanha. A felicidade dele não foi maior do que a minha. Sou de um tempo em que o dar e o receber tinham a mesma equivalência de felicidade. Depois foi espalhar tentáculos pelo mundo e o mundo plantar seus tentáculos dentro de mim. Como acontece com todos nós. E hoje vivo o tempo da apatia ao sofrimento humano. Da indiferença à alegria e à dor do outro. E tudo isso, de certa forma, fundamenta a minha escritura. A leitura sempre foi e é meu bom abrigo. E, confesso: nada me encantou mais do que a Carta de Pero Vaz de Caminha. Muito mais do que as Mil e Uma Noites; do que Ali Baba e seus 40 Ladrões; do que o Tesouro da Juventude, lido na infância. A descrição de Caminha do encontro do desconhecido novo mundo, com o desconhecido velho mundo, ele, sem tirar os pés da praia, fazendo daquele cenário uma realidade de grandes riquezas, está acima do imaginário de qualquer escritor. E dentro da sua descrição fantástica, creio que ali ele antecipava o real Brasil de ontem e de hoje. Hospitaleiro. Grande e rico. Abundante e nu. Como os índios de então. Na eterna luta entre dominantes e dominados. E vejam mais: Caminha, narrando o maior evento da história do mundo ocidental de então, não perdeu a oportunidade de pedir ao rei a liberdade


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de seu genro desterrado. Ali nascia, entendo eu, a nossa literatura e grande parte da nossa herança de relação com o Poder. O Poder que nos dita normas, distribui fortunas aos seus próximos e migalhas aos desterrados. O que mais pode querer um escritor como matéria prima? Tendo dentro do seu quintal as contradições, o drama e a comédia de toda a humanidade? Isso remete a outra pergunta. Em que ponto o escritor, como Pero Vaz de Caminha em seu ofício, cria, reconstrói e antecipa a realidade? E qual a distância entre um escritor e o universo dos seus personagens? Já que ele os cria e ao mesmo tempo é cada um deles? O que separa o seu mundo real do seu imaginário? Entendo que, de certo modo, o escritor transforma a ficção em realidade e a realidade em ficção. Ele é o transformista da história, dos amores que se transformam em feridas e das feridas que conquistam o amor. Tal como os enganos e as verdades desta civilização do faz de conta onde vivemos empanturrados de informações e famintos de sabedoria. Onde mais de 80 países praticam graves e sistemáticas violações dos diretos humanos básicos. Onde um bilhão de pessoas amanhece e vai dormir sem nada comer. Onde milhões engolem terra todos os dias fingindo que é pão e perpetuam a miséria e garantem fortunas. E os outros sete bilhões, bem alimentados, sentem a fome de um sentido maior da vida. Este mundo onde a violência é uma trivialidade e a justiça um descrédito. Um mundo em que achamos justo quem não as têm querer terra para plantar e não podemos dispensar a produção dos latifúndios que abastecem os grandes mercados. Onde o controle do Poder é mais devastador do que a Inquisição, porque é invisível e, logo, mais abrangente. E ainda assim, por maior contradição, nós acreditamos viver a melhor era da história humana. É dentro deste, do passado e do futuro mundo, que vejo o escritor colhendo as sementes da sua ficção. Capaz de ser ele próprio e toda a humanidade. Em um só parágrafo. E penso: O escritor que não escrever com os pés na terra, a alma na essência humana e um sonho no coração, está repintando as desbotadas cores do cinza. Todos nós, os que sonhamos, sonhamos com o tempo em que todos os homens e mulheres tenham uma vida e uma morte mais dignas. Mas o fato é que, cada um de nós, escritores ou não, esperamos um mundo melhor, quando, na verdade, a humanidade espera o melhor de cada um de nós. Esquecemo-nos de que não é o oceano que faz existir a gota d’água, é a gota d’água que faz existir o oceano. O tempo de menos injustiças, antevisto em uma luz difusa, nos parágrafos de tantos livros, para muitos é utopia. Não o é. Não no clássico entender a utopia como a busca da realidade impossível. O impossível não existe, nós


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é que nos distanciamos do possível. Há pouco tempo o homem fazia banquete do seu semelhante para sobreviver. E hoje estamos aqui, comemorando a vitória do espírito criador das artes. Neste banquete de amor às ideias, à criação, aos que insistem em sonhar com um mundo menos injusto. Menos desagradável. Neste momento estamos aqui festejando a fé do melhor que em nós existe. Assim é a vida e o mundo que construímos, sem disso termos muita consciência. O nosso mundo e o mundo em que o escritor tem que garimpar a sua obra. E nela se desvendar. Construindo sonhos enquanto dorme sobre pedras. Obrigado a esta Academia Catarinense de Letras que me imortaliza em seus anais. Obrigado a cada um de vocês. Para mim, a vida deve ser sempre compartilhada. No amor, como agora, e na dor que não desejamos, mas que um dia pode acontecer. E hoje, graças à historia que construí, ao que modestamente escrevi e à generosidade deste Sodalício, a vida, mais uma vez, é festiva. E a alegria de viver se renova. Obrigado a vocês por participarem desta festa. E, certamente diriam meus pais se aqui eles estivessem fisicamente: — Apesar de tudo a vida é muito bonita, Altamiro. E eu lhes diria: — E é por isso que dá pena de deixar este mundo. Sem ver que ele virá a ser bem melhor.


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25.07.2013

Saudação do Acadêmico Mário pereira, recepcionando o escritor c. ronald na academia catarinense de letr a s


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Exmo. presidente da Academia Catarinense de Letras, Acadêmico Péricles Luiz Medeiros Prade, Autoridades aqui presentes ou representadas, Familiares de Carlos Ronald, Senhores acadêmicos, Senhoras e senhores, A poesia de Carlos Ronald é feita de material permanente que o poetapensador extrai de suas percepções e vivências para construir seu mundo surpreendente e inquietante. Sua obra está endereçada a leitores especiais e destinada à permanência porque anda na frente do tempo comum. Complexa, de uma racionalidade tão aguda que atropela a lógica formal e passa ao largo de tudo o que é circunstancial, a obra do poeta que hoje acolhemos nesta Casa exige entrega se quisermos desfrutá-la em toda a sua rica complexidade e sofisticada arquitetura. Sobre Carlos Ronald escrevi, certa vez, que sua obra admirável não decorre apenas do talento e da sensibilidade. É produto, também, do conhecimento da melhor tradição poética universal porque não se constrói o novo sem esta base sólida. “Este é um poeta em cuja obra não se consegue identificar influências marcantes. Influências existem por certo. E emanam de uma longa linhagem. Mas de tal maneira parecem ter sido assimiladas e decantadas que constituem um todo, um novo corpus, sob o signo da originalidade.” A extensa obra poética de Ronald, de uniforme qualidade, foi iniciada em 1971 com a publicação de A Formação do Ausente, pela qual recebeu o Prêmio Nacional de Poesia da Fundação Cultural de Brasília. As Origens, Ânua, Gemônia, Como Pesa!, A Cadeira de Édipo são alguns outros títulos. A obra mais recente data de setembro do ano passado: Bichos procuram buracos em paredes brancas. O lançamento ocorreu no Museu de Artes de


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Santa Catarina, onde, na mesma noite, era inaugurada uma exposição de pinturas e esculturas do nosso novo acadêmico. O poeta, o pintor, o escultor, que feliz combinação! Considero ser a poesia a arquitetura do abstrato. As colunas do Parthenon, cujas ruínas monumentais pairam sobre Atenas como perene cântico ao ideal de civilização, encantam por sua harmonia e pelas proporções perfeitas. Os dois arquitetos chamados por Fídias para planejar o templo dedicado à deusa da Sabedoria e guardiã da cidade, Ictino e Calícrates, passaram onze anos aperfeiçoando a construção. As colunas foram erguidas pela justaposição de cilindros de mármores, sem o uso de qualquer emenda, mas ajustados tamanha precisão que transmitem aquela aparência de inteireza. Este recurso exige raciocínio matemático e apurado senso estético dos arquitetos, além de uma enorme habilidade dos trabalhadores que deram forma aos cilindros. Roman Jakobson escreveu que a poesia é dar forma à palavra com valor autônomo, assim como a música é dar forma ao material sonoro com valor autônomo. Armindo Trevisan, no livro Uma iniciação à leitura poética, relata histórias de diversos poetas que se encantaram com certas palavras, e as guardaram na memória para usá-las na sua arte. Caso Bandeira, em uma das suas leituras de adolescente, não descobrisse a palavra “passárgada”, ficaríamos privados dos versos famosos, que quase todos sabemos de cor. Vinícius considerava mogno uma palavra “feiticeira”, e com ela compôs o sensual verso “em teus seios de mogno e teus lábios de écran...” George Steiner, um dos mais proeminentes ensaístas e críticos literários contemporâneos, no livro Nenhuma paixão desperdiçada, lembra-nos que a vida do leitor mede-se em horas, a do livro, em milênios. E aduz a revelação proclamada por Píndaro na Antiguidade Clássica: “Quando a cidade que eu canto já não mais existir, quando os homens para quem canto já houverem desaparecido no esquecimento, minhas palavras ainda perdurarão.” Carlos Ronald, colecionador de palavras, arquiteto do abstrato, nosso poeta maior. Honrado e emocionado, agradeço seu convite para saudá-lo nesta noite de investidura na Academia, onde assume a Cadeira 25, nela sucedendo ao saudoso cronista Jair Francisco Hamms. Seja bem-vindo a esta Casa, poeta. Sua presença e atuante participação engrandecerão esta instituição, que é uma trincheira da cultura catarinense há quase cem anos. Nós o acolhemos de coração e braços abertos. Ocupe o lugar que é seu, e honre-nos com sua presença e sua arte, Acadêmico Carlos Ronald Schmidt. Obrigado.


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25.07.2013

pal avr a s do acadĂŞmico c. ronald ao a ssumir a Cadeir a n. o 25 da Academia Catarinense de Letr a s


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Senhor presidente da egrégia Academia Catarinense de Letras, Senhores acadêmicos, Senhora Ana Bessa, Autoridades presentes, Dignas senhoras e senhores que aqui se encontram a me prestigiar — fato que agradeço alargando a minha certeza na cordialidade humana. Após a apresentação que saudou a minha posse para ocupar a Cadeira 25 deste importante sodalício, feita por uma das maiores criaturas que conheci, além de ser um intelectual sem qualquer quebra nos desvãos da nossa sensibilidade — o Acadêmico Mário Pereira, jornalista, advogado, escritor que sempre intuiu a grandeza com seus textos perfeitos e invejáveis — agora, sem querer, pisou distraído num degrau ao convidar-me a ingressar nesta solene Casa que tem nome de antepassado da minha enorme descendência paterna. Eu já havia recebido desde moço convite para participar da intelectualidade da minha terra. Jamais acedi aos convites devido a um orgulho bobo de poeta imaturo, justamente na adolescência, embora só convivesse com professores e acadêmicos que pela idade foram morrendo e me deixaram sozinho. Mais tarde, jovens como eu (na época) também insistiram no meu ingresso. O primeiro foi o Paschoal Apóstolo Pítsica que foi o irmão que não tive e, praticamente, me fez conhecido, pois criamos com sua capacidade e força o suplemento cultural do jornal O Estado e depois o Grupo Litoral com a assistência de outro magnífico riograndense-do-sul, cuja lembrança sempre me emociona: o escritor Manoelito de Ornellas. Foi inspiração dele a nossa revista que acolheu muitos escritores de outros estados que são até hoje reconhecidos. Eu mesmo, um simples escrevinhador, acolhi muitos jovens escrevinhadores vindos do interior do Estado. Acho que o atual senhor presidente da Academia,


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não me deixará mentir. Agradeço ao grande Acadêmico Mário Pereira por tudo de bom que me proporcionou até a presente data.

O PATRONO JUVÊNCIO MARTINS COSTA, nascido em 06.07.1850 e falecido em 07.10.1882. Era um dândi e amicíssimo de Cruz e Sousa. Este, apesar de negro, também se vestia muito bem. Um e outro se equilibravam na poesia. Um, no entanto, já estava fadado a ser gênio. Não usava vocábulos de mau gosto que a nossa própria língua acabou. Não fosse este pecado, Juvêncio teria sido um grande poeta. Quando faleceu, Cruz e Sousa lhe dedicou um poema que foi a coisa mais horrorosa que alguém poderia ter escrito. O paranaense Nestor Vitor, grande assumidor da coisa poética, logo notou a besteira do Cruz e não a colocou na coletânea cruziana. Também outros não colocaram. Negrinho criado e paparicado por brancos importantes na época, achava-se o tal até que se viu desprotegido. O Juvêncio, já morto, esquecido — porque o catarinense não gosta do intelectual, só gosta do político e da burrice que o cerca — Juvêncio, se não houvesse aqueles vocábulos terríveis que aplicou, vez por outra, em seus poemas, seria um grande poeta. Morreu cedo e seu livro editado postumamente com o título Flores sem perfume está esquecido. Está porque foi ingênuo ao querer usar vocábulos desintegrados da nossa linguagem. Não fosse por isto, creio que nem o Cruz seria melhor que ele. Cruz foi nefelibata e foi um artista sem sentido nele e na Gavita que tanto amou. E amava os brancos. Juvêncio, o branco, amigo do Cruz que amava, foi-se primeiro pela tuberculose, depois pela própria moléstia que causou em seus versos. Poderia ser grande, mas acabou pequeno por achar que aqueles vocábulos o tornariam maior no sentido do ser, o que ele queria. Morreu moço e ninguém sabe o que ele foi. Eu sei: foi um poeta, mas para ser poeta mesmo, basta ser quando poeta.

O FUNDADOR Fiquei amigo do Mâncio Costa na ocasião em que estava editando meu livro (por mim repudiado) Cantos de Ariel na tipografia do irmão do Doralécio Soares e nossa amizade continuou no consultório do querido amigo Ilmar Corrêa que me encomendou o primeiro painel abstracionista na reforma de seu consultório médico. Depois um elefante feito num único traço. Mâncio adorou. A amizade se fortaleceu. Quando fui pela primeira vez em sua casa, notei a simplicidade da mesma e a grandeza espiritual do seu escritório. Aqui, Ronald, ao lado da


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escrivaninha fica a artilharia. Então eu olhava e via vários volumes encadernados e volumosos que me davam inveja. Faço, hoje, o mesmo. Eu adorava o Mâncio. O Amaro Seixas Neto, nascido aos 2 de novembro de 1924, em Florianópolis, discípulo e amigo do Professor Mâncio, trabalhou comigo no Banco Catarinense dos irmãos Fiuza Lima e de Leoberto Leal. Logo fizemos amizade por ele ter um coração enorme. Meteorologista, eu vivia brincando com ele e ele ria. Quando noticiava no jornal que ia chover, eu deixava em casa o guarda-chuva. Que pessoa boa, que grande amigo. E chovia mesmo e eu ia molhado. Paschoal Apóstolo Pítsica, amigo de quem sinto falta até hoje (e tanto queria meu ingresso na ACL). Nascido aos 26 de novembro de 1938 e falecido no maldito dia 11 de maio de 2003, hospitalizado que estava e sem que nenhum membro da família me avisasse da ocorrência. Bem antes, quando se queixava de problemas na perna eu lhe perguntava o que estava ocorrendo, respondiame que era devido ao diabetes. Ora, sou diabético e ficava assustado. Eu não sabia porque ria depois de me responder. Mais tarde, foi pelo jornal que vim a tomar conhecimento que havia falecido. Logo escrevi um artigo publicado (se não erro) no Diário Catarinense. Fui o único (creio) a escrever sobre a saudade que ele deixava. Estou falando sobre um dos maiores presidentes que a Academia Catarinense de Letras já teve. Jair Francisco Hamms, advogado, jornalista, publicitário e secretário da Reitoria da UFSC, a quem substituo, nasceu em 1935, falecendo no ano de 2012. Foi meu amigo desde jovem, ele e seu irmão Betinho. Junto como Murilo Pirajá, João Paulo Silveira de Souza e outros formávamos uma turma que se reunia à noite em bares e depois da cervejada escolhia local bucólico como o trapiche do mercado para falar sobre literatura. E não dava outra: O Jair com empolgação começava o monólogo de As mãos de Euridice, naquele seu jeito peculiar de falar. Ríamos e rí amos porque já era praxe ele começar nossas reuniões com aquelas “mãos”. Devido à profissão que eu exercia no Rio de Janeiro e depois no interior do nosso Estado, fiquei afastado do Jair e de toda a turma. Quando vim novamente a me encontrar com ele foi no apartamento do Olsen da Maria Odete, na Trindade para um jantar. Outros convidados também foram. Jair, como sempre, renovou a admiração que mantinha pela minha obra. Aceitei outra vez o elogio, cônscio da sua sinceridade. Jair não era pessoa de fazer fala de sacanagem com ninguém. Por me encontrar fora de Floripa, e ele sem saber meu endereço, jamais me mandou seus livros. Agora sei o quanto escreveu, mas a obra que até hoje continua na estima intelectual de todos os catarinas é o Detetive de Florianópolis, mas eu gosto do Samba no céu. É o que ele agora deve estar fazendo. Amanhã, talvez, serei eu a estar dizendo ao Criador coisas que me façam um anjo bom como ele. Obrigado senhoras e senhores e familiares daqueles que tiveram fé em si mesmos como escritores.


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26.08.2013

Saudação do Acadêmico Sérgio da costa ramos, recepcionando a escritor a lélia nunes na academia catarinense de letr a s


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Uma Academia como esta, senhor presidente, que nos dá tão bom abrigo — e que Vossa Excelência tão magnanimamente preside — talvez devesse inaugurar novas cortinas nesta noite em que aqui festejamos a solar admissão de alguém habituada ao zelo tão feminino de bem cuidar de uma casa. Durante muito tempo não tivemos uma casa das letras catarinenses para bem chamá-la de nossa. Mas nos dias de hoje podemos nos orgulhar de, tão bom foi o destino, homiziarmo-nos e conspirarmos aqui, sob esses telhados que viram trabalhar o próprio fundador da Sociedade Catarinense de Letras, José Boiteux. Aqui ele instalou esta casa da Educação, de cuja argamassa sempre foi e será o mestre pedreiro da história da Educação e das Letras de Santa Catarina. A partir desta noite, com a alegria de quem acende as luzes da nova Casa para quem chega, feérica em seu estilo neoclássico — como o que reluz no painel bem aqui à nossa frente — atrevo-me a dizer que a Casa José Boiteux nunca estará tão bem cuidada, com as suas imaginárias cortinas engomadas, a prataria brilhante, a biblioteca universal. Nada mal, senhor presidente, para uma Academia que cumpria uma saga de sem teto, e parecia condenada ao relento do Jardim de Academus, o bosque de Atenas onde se reuniam os primeiros homens das belas letras. Próprio para aqueles tempos, impróprio para os dias de hoje, em que até nossas praças são vítimas dos filisteus da contra-cultura, que atacaram e sequestraram o busto de nosso patrono da Praça XV, de onde evanesceram-se quatro cabeças ilustres. Que bom que esta Casa, em cujas cadeiras de balanço um dia teceram honesta lã literária as imortais poetas Delminda Silveira e Maura de Senna Pereira, receba, depois de muito tempo, outra Penélope capaz de dar bom rumo aos novelos da literatura. E se a Academia é de letras, que boa ventura a de recepcionar Lélia, provada na crônica, na memória, no ensaio e na crítica literária. Aqui, já na


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boa companhia de Urda Alice, romancista, e Leatrice, poeta, sucede Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, doce poeta que na Academia honrou a linhagem de Delminda e de Maura. Urda Alice, Leatrice, Lélia, Letras. Tudo a ver — e bem no ano em que o Nobel de Literatura foi para a canadense Alice Munro, mulher que tece contos curtos com a maestria de uma rendeira, e que — ó destino — não desconhece, como Lélia tão bem conhece, as culturas, os modelos de vida e os mares que abraçam as nove ilhas dos Açores. Vivemos, senhor presidente, um saudável matriarcado nas letras e no mundo. A primeira mulher na Academia Brasileira, depois de longa polêmica, foi Rachel de Queiroz, em 1977. Depois vieram Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Ana Maria Machado, as duas últimas na cadeira de espaldar alto da presidência. É este o natural porvir acadêmico que nos espera, senhor presidente, uma José Boiteux mulher, cuja sabedoria não deixará de realçar o grande mérito de Vossa Excelência. Tem razão o ilustre romancista catarinense, que o Brasil e outras latitudes aplaudem, aqui e acima do Equador, Deonísio da Silva. Homenageando a cronista Marina Colasanti, o também cronista de A Placenta e o Caixão, escreveu: — Faz dois séculos que a mulher deixou de ser apenas descrita por homens e passou a autora, mas no Brasil a consolidação dessa passagem tem apenas algumas décadas. O que faríamos sem as mulheres na literatura brasileira? Primeiramente como personagem, ela foi e é indispensável. Todo bom romance tem uma grande personagem feminina. E de uns tempos para cá nenhum gênero literário será examinado com isenção se descartarmos a presença da mulher autora. “Como é maravilhoso ser mulher e escritora no final do século XX”, celebrou, em tempos recentes, a professora iraniana de literatura Azar Nafisi, que cultivou uma oficina literária na garagem da própria casa e pagou muito caro por isso: foi expulsa de Teerã por se recusar a usar o véu, mas desvendou a liberdade para si e para suas alunas, que tinham por hábito a leitura de títulos que figuravam no “index” do fundamentalismo intolerante. Lélia, hoje, bem que poderia dizer: “Como foi bom ser mulher e escritora no jornalzinho Aurora, em meados do século XX no Colégio São José das Irmãs da Divina Providência, em Tubarão, Santa Catarina. Como foi bom preferir Jorge de Lima e Manuel Bandeira, sem desprezar os tão recomendados Olavo Bilac e Casimiro de Abreu, aquele, dos Meus Oito Anos.” A precoce escritora e oradora se concedia arroubos de pura iconoclastia, como criticar no Aurora a criação do Dia das Mães, por seu excessivo apelo comercial — o que há de ter feito de cada irmãzinha da Divina Providência uma ocasional Aiatolá em turbante tubaronense.


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Lélia sabia cultivar as boas companhias. Não só a dos poetas modernistas, mas a dos seus colegas de saudável rebeldia no Colégio São José. Os hoje escritores e acadêmicos Flávio José Cardozo, Amilcar Neves e João Nicolau de Carvalho. Com Amilcar, dividiu as colunas do Aurora e foram parceiros no programa A Voz do Estudante, na Rádio Tubá. Aos sábados à tarde, frequentaram o Centro Cultural João Teixeira Nunes em tertúlias em que não eram incomuns nomes como os de Flávio José Cardozo, Deonísio da Silva e Wilson Volpato, ex-quase presbíteros que o Papa Francisco perdeu para a Santa Madre, mas que a literatura e a advocacia ganharam para o Brasil. Esta Casa, senhor presidente, é o avatar que representa todas as casas da vida de Lélia, nascida na colina da rua Coronel Colaço, a rua da Igreja, em Tubarão, endereço de grande simbolismo, por onde passam obrigatoriamente os vivos e os mortos, pois é o caminho do cemitério, mas em suas calçadas brincam as vidas novas de todas as crianças. Foram duas casas no mesmo sítio. A antiga, centenária, portas pesadas e janelas de guilhotinas. A nova, erguida no mesmo local, com o andar de cima alugado a uma Escola Profissional — costuras, bordados e pinturas. E o térreo, residencial e comercial, com o estúdio do pai fotógrafo e a loja de equipamentos fotográficos. Impressionavam à pequena Lélia alguns vizinhos desse microcosmo tubaronense: como a ótica e o “atelier” de maravilhas do pintor Willy Zumbick, de cujas vitrinas não descolava o olho e o nariz, fascinada pela arte ali florescente. As casas da infância e da adolescência, no outeiro da rua Coronel Colaço, refletiram-se no espelho de sua vida. Mas se o espelho já tinha importância na vida da adolescente, Lélia usava-o com o duplo sentido de Bernard Shaw, o satírico irlandês: “Espelhos são usados para ver o rosto; a arte e a literatura, para ver a alma.” Havia mais uma casa além da cortina, só para confirmar aquele verso de Fernando Pessoa: “Além da cortina é o lar; Além da janela, o sonho.”

No outro lado da rua, na casa do “seu” Joaquim Faraco e de dona Robélia de Sá Faraco, professora de português do Grupo Escolar Hercílio Luz, abria-se um novo mundo. Uma casa com sete filhos e milhares de livros. A mestra mantinha um crivo, mas facultava à pré-adolescente todos os livros que julgava moralmente legíveis, a começar pelos edulcorados romances de M. Delly, pseudônimo dos irmãos franceses Fréderic e Jeanne de la Rosière, editados no Brasil como


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uma “coleção para a Biblioteca das Moças”. Preferiu, é claro, uma escritora mais polêmica, com pseudônimo de homem, George Sand, ou Amandine Aurore Dupin, autora de romances tórridos, e ela mesma proprietária de paixões febris, mulher de muitos amantes, entre eles Fréderic Chopin. Autora de livros como Valentine e, grande coincidência,... — Lélia — romance que trazia na capa o próprio nome da jovem leitora. Como haveria de resistir? Ali conheceu os clássicos portugueses e brasileiros. Eça, Almeida Garret e, na poesia, Fernando Pessoa. Mais Machado de Assis, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo e a sua Moreninha. Das prateleiras de dona Robélia a pertinaz leitora ganhou as esquinas do mundo literário. Uma pequena escada de madeira rolava de uma estante para outra, de um universo a outro. Do Tesouro da Juventude ao Livro dos Porquês, de Monteiro Lobato a Cervantes, de Camões e Vitor Hugo ao Albert Camus de A Peste e ao Jean-Paul Sartre de O Ser e o Nada, bíblias do existencialismo. Para palmilhar o caminho que a trouxe a esta nova Casa de sua vida, a filha de D. Zuzu — mulher muito religiosa, e do “seu” Joaquim, homem simples e metódico, que fez da educação dos filhos uma missão de vida — Lélia navegou mares de livros e oceanos de formação acadêmica, pós-graduando-se em Sociologia e Administração Pública, exercendo o magistério superior e, com todos esses meios, fazendo coisas que os administradores não faziam, por falta de cultura. Ou que os intelectuais não sabiam, por desconhecer os segredos da boa gestão. Secretária de Cultura do município, deu vida e meios criativos à Fundação Franklin Cascaes, um daqueles institutos que os políticos costumam delegar a nomes culturalmente acreditados para deles haurir idealismo e dinamismo, enquanto o confinam a uma dieta de fibras e a um cercadinho financeiramente hipocalórico. Não houve desafio que Lélia não vencesse, a todo tipo de custo, para firmar-se como uma das maiores animadoras culturais do Estado e um reconhecido dínamo das causas da Cultura catarinense. Suas velas não se contentaram com os mares da ilha mais bela do Atlântico Sul. Vizinha do exemplo de Anita, foi ser heroína das letras em outros mundos e em outros meridianos. Muito subiu e desceu o Bojador, transpondo todas as dores, sabendo que valia a pena, por sua alma não ser pequena. Fez o trajeto inverso ao dos navegadores do “Mar Salgado” e foi adoçar o mar português, em homenagem aos versos do poeta, mas com o decidido espírito de uma missionária cultural. Inaugurou novas correntezas culturais entre nossa ilha Catarinauta e suas matrizes do oceano alto, as nove do arquipélago dos Açores. Uniu-as com o “fio do sentimento” e a “manta da nostalgia”, cativando os ilhéus dos dois hemisférios, fazendo com que o ilhéu daqui cultivasse a curiosidade de um dia estar lá e o de lá, aqui, para que descobrissem identidades e simetrias, no apostolado e no lado oposto.


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Organizou simpósios, colóquios, apresentou escritores e artistas plásticos, os daqui aos de lá, e vice-versa. Tanto subiu e desceu esse mar de afetos, que construiu um novo arquipélago, incansável “demiurga” — perdoada aqui esta fabricação de gênero em tempos de “Presidenta Dilma”... uma demiurga a unir ilhas distantes, fazendo da Ilha de Santa Catarina a décima dos Açores e, milagreira, trazendo as nove do arquipélago do Norte aqui para o Atlântico Sul. Seu Na Esquina das Ilhas, caleidoscópio de gêneros, enfeixa crônica, memória, ensaio e crítica literária, aproxima culturas, anima tertúlias e debates, entusiasma expoentes da Literatura açoriana, como o contista Daniel de Sá, que escreveu lá de São Miguel: — Lélia (...), que ciranda de uma ilha para outra como uma andorinha-do-mar (...), a certa altura nos apresenta Franklin Cascaes. Topa-se Na Esquina das Ilhas com esse cultor de lendas e de palavras, que em muitos casos continuam a ser açorianas. Homem de uma ternura imensa, que aprendeu a ser povo sendo povo, a única maneira de sê-lo de verdade. Por aqui, o seu simétrico será o Eduíno de Jesus, que aparece na segunda parte do livro. Um e outro, cada um na sua margem do Atlântico, sempre souberam que é a memória popular que guarda os tesouros das tradições e das palavras, que não surgem nos roteiros culturais ou não gozam de assento nos dicionários. E Lélia foi semeando afetos e colhendo simétricos, lá e aqui: Zumblick e Antonio Dacosta, Vera Sabino e Tomás Vieira, Daniel de Sá e Flávio José Cardozo — além de eméritos ficcionistas da estatura de Vitorino Nemésio e Othon Gama D’Eça, um de lá, outro daqui, mestres de contos dominados “pela gente colorida do mar”. Essa sua obra de geografia cultural teve um começo, mas não terá um fim. E a nova caravela de velas pandas, pronta para zarpar deste trapiche, senhor presidente, é esta Casa, digno estaleiro para a arca literária de Lélia. Certa vez, a imortal Lygia Fagundes Telles, da Academia Brasileira de Letras, romancista de obras-primas, como As Meninas, estava à porta do Petit-Trianon, quando foi abordada por uma pedinte que trazia um menino pela mão. Encantada com a casa, a mulher humilde ficou curiosa — e perguntou: — Que casa tão bonita... De quem é? — De Machado de Assis — sorriu a escritora com naturalidade, fazendo festa na cabeça da criança. E a mulher: — E o patrão, não está? — Está sim, mas não pode atender. Depois de gratificar a mulher e o menino com um dinheirinho para o ônibus e o chocolate, Lygia passou pela estátua do patriarca e desculpou-se: — Mestre, desculpe-me se não fiz bem as honras da casa...


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Machado de Assis agradeceu, pois sempre soube, na eternidade em que vive, que não haveria melhor anfitriã à porta do Petit Trianon, fosse para pobres ou para ricos. José Boiteux, cuja cabeça felizmente permanece íntegra na entrada desta Casa, sentir-se-ia igualmente seguro, senhor presidente, se a hoje aqui recepcionada recebesse alguém do povo ou da nobreza na porta aberta desta que é a sua nova Casa — das muitas casas que amou na vida. José Boiteux sabe, lá de cima, que Lygia, Lélia e Letras são chaves afins, que abrem a mesma porta. Cercada pelo amor, pelo orgulho de sua família e pela admiração de seus pares, Seja bem-vinda a esta Casa, Lélia Pereira da Silva Nunes. Muito obrigado.


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26.08.2013

pal avr a s dA acadĂŞmicA lĂŠlia nunes ao a ssumir a Cadeir a n. o 26 da Academia Catarinense de Letr a s


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Ilustríssimo Acadêmico Péricles Luiz Medeiros Prade, digno presidente da Academia Catarinense de Letras; ilustre Acadêmico Sérgio da Costa Ramos, amigo, e agora também Confrade, que me dá as boas vindas — saudando-me com pródiga generosidade. Brinda-nos com sua prosa brilhante, culta, elegante, lavada de boniteza, um virtuoso da palavra que me honra com sua recepção nesta solene sessão. Ilustríssimos senhores Acadêmicos, agradeço a todas as autoridades presentes, as quais, a par de honrarem minha posse, prestigiam a Academia e a Cultura de Santa Catarina. De maneira especial, saúdo a presença do Exmo. Senhor Humberto Brighenti, Prefeito Municipal de São Joaquim. Familiares da saudosa e querida Acadêmica Sylvia Amélia Carneiro da Cunha. Domingo, três de novembro de 2013. Da minha janela contemplo a ilha que silenciosa desperta cheia de preguiça sob um céu carregado de nuvens de chuva e um vento sul que varre todos os cantos e recantos. Não nasci na Ilha de Santa Catarina. Tenho afirmado e repetido com frequência que a ela estou ligada por todos os laços de afetos inimagináveis e por muitas lembranças da infância e da adolescência, por muitas férias passadas na casa da dinda Josefina Salém, minha madrinha de batismo e antiga fotógrafa da rua Conselheiro Mafra, e na casa da querida tia Volga Machado Peluso, costureira de mão cheia, ali da rua Hermann Blumenau. De certo modo, sinto-me abençoada por esta ilha Catarina, a santa de Alexandria. Pois, com um ano de idade, fui banhada nas águas de Itaguaçu, tendo por testemunhas as pedras-bruxas. Uma união de amor confirmada e fortalecida no tempo com a chegada dos nossos filhos Clarisse, Murilo, Caroline e da neta Larissa. Gosto de me saber presa à Ilha, a Florianópolis, por laços de amor, de me sentir sua filha adotiva há quarenta e três anos — filha do coração. Uma deliciosa sensação de bem-querer, de bem com a vida, foi tomando conta do meu ser, numa explosão de emoções, da alegria incontida às lágri-


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mas lavando a face. A razão de tudo isso e que, agora, lhes confesso está aqui, nesta cerimônia acadêmica. Sinto-me profundamente emocionada, e pequena ante a magnitude deste momento em que me apresento para receber as insígnias acadêmicas e assumir, humildemente, a Cadeira 26, que Adolfo Konder criou, Sylvia Amélia Carneiro da Cunha com maestria ilustrou, e que tem como patrono Lauro Severiano Müller. Comecei a escrever o discurso de posse na manhã de domingo. O título em epígrafe diz tudo: “Discurso de Posse na Academia Catarinense de Letras, Cadeira 26.” Logo me dei conta que este não era um domingo qualquer e que também ele seria inesquecível como esta tradicional solenidade. Mais um motivo juntou-se aos já nomeados. Por mera coincidência, ou não, aquele dia assinalava o aniversário da poeta Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, que por quarenta e quatro anos foi a titular da Cadeira 26, e, se viva fosse, teríamos comemorado a data natalícia com significativa homenagem e tertúlias literárias em celebração aos seus 99 anos, reverenciando largamente a figura ímpar dessa dama da cultura catarinense. Estou muito feliz por fazer parte da seleta confraria da Academia Catarinense de Letras, e tomar acento ao lado de homens e mulheres que há noventa e três anos dignificam a história cultural de Santa Catarina. Por ver realizado o sonho urdido no meu caminhar sem pressa, bordado no rendado do mar, escrito na areia da praia, sussurrado ao vento que não esquece e aqui deposito como os sonhos de que a vida se tece, tomando de empréstimo a expressão poética cunhada pelo escritor açoriano da ilha do Pico, Urbano Bettencourt. Vim por causa de um sonho. Por isso, peço licença para atravessar os umbrais e, com o pé direito, entrar nesta Casa para a qual fui convidada e eleita por seus ilustres moradores. Peço vossa licença, senhores Acadêmicos, para entrar devagarzinho, suavemente, sem alarde. Não chego como a porta-bandeira da minha Protegidos da Princesa, em volteios elegantes que misturam os delicados passos do minueto europeu com os movimentos ritmados do samba, da dança livre da senzala. Muito menos tenho nas mãos a bandeira do Divino Espírito Santo, toda vermelha com flores e fitas esvoaçantes, perenizada pelo pincel de Willy Zumblick, no contínuo ato de registrar a memória coletiva do povo catarinense. Peço licença, respeitosamente, para comungar de vossa mesa, degustar de cada palavra como um vinho, néctar dos deuses, precioso, envelhecido em sólido barril de carvalho, partilhar desse universo mágico onde artífices com sua pena-cinzel dão forma sensível à palavra. Constituindo-se em uma verdadeira obra de arte inscrita na poesia, na prosa, na ficção, na crônica, na memória, no ensaio e por veredas da crítica literária. Busco a palavra prima, a escrita e a do coração. A palavra precisa, forte, a pedra de toque, a palavra viva, epifania, tal qual cantou o poeta Lindolf Bell


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(1938-1998) “Procuro a palavra palavra / Esta que me antecede / e se antecede na aurora / e na origem do homem”(in: Código das Águas,1984). Já segredava Carlos Drummond de Andrade que “elas não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, que se dissolvem / no céu livre (...)”. Certo está o poeta chileno Pablo Neruda ao escrever que tudo está na palavra: “uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu...” Bendita dádiva da palavra! Quero-a bem perto de mim. Quero macerar, burilar, desvendar o seu sentido. Para, afinal, encontrá-la vibrante, brava, suave, a transbordar sentimentos, pulsar vida e esbanjar humanismo em cada página escrita. É no vosso fraterno convívio, senhores Acadêmicos, neste endereço do saber, que muito aprenderei. Tudo farei para merecer a distinção que me concedeis por reconhecerdes o meu trabalho literário. Tudo farei para sempre poder vos dirigir a palavra prima que agora brota no meu coração. Senhoras e senhores, nesta memorável noite, quero fazer das minhas palavras vestibulandas uma saudação eloquente de respeito e de admiração à escritora Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, nascida em 3 de novembro de 1914, no Rio de Janeiro. Mulher de grande sensibilidade estética, fruto de longa vivência com as deusas da poesia. Lembrar com orgulho, a mulher de propósitos transparentes e dedicação sem limite às instituições culturais a que pertenceu e onde a sua participação efetiva e contribuições inequívocas estão guardadas na memória de seus confrades da Casa José Boiteux. Resta-nos a Saudade! Gosto amargo de infelizes, / Delicioso pungir de acerbo espinho, (...), como no verso de Almeida Garret no poema Camões (1825). Maio de 1990. Lembro como se fora hoje. Acabara de ingressar no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, quando Vitor Antonio Peluso Junior, então presidente da entidade, apresentou-me à Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, tesoureira da instituição desde 1977. Função que exerceu por mais de 20 anos, até assumir a presidência do conselho fiscal, personificando com tanta fidelidade o paradigma de exemplar, contribuindo com a sua sabedoria e descortino de pareceres irretocáveis, técnicos ou jurídicos. Grata evocar a prazerosa convivência no IHGSC, onde senti o influxo de seu coração tão ilhéu, mesmo não tendo aqui nascido. Chamava a atenção a elegância discreta e impecável. Mulher pequena, sorriso franco, suave. Era pródiga nos afetos, na simpatia, na gentileza, na delicadeza de atitudes. No brilho do olhar, a perspicácia e grande determinação. Muito logo percebi que de pequena ela não tinha nada. Era gigante no saber e no caráter firme. Sim, Sylvia Amélia era uma mulher de atitudes. (Impressões que registrei na crônica Sylvia Amélia, uma mulher de atitudes, publicada na coluna Opinião, do jornal Notícias do Dia, edição de 2 de setembro de 2013).


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Sempre que fazia uso da palavra, era conhecida e admirada por sua vigorosa defesa dos valores e princípios norteadores deste sodalício e pelo brilho iniludível do espírito acadêmico que habitava sua alma. Palavras professorais, ditas com elegância, mas que não deixavam dúvidas quanto ao seu destino: ressaltar a missão da “nossa Academia” no cultivo da língua vernácula e promover a defesa e o desenvolvimento dos valores culturais. Exemplifico com os discursos proferidos na recepção do saudoso Acadêmico Paschoal Apóstolo Pítsica, na Cadeira 25, e na recepção da querida poeta Acadêmica Leatrice Moellmann Pagani, na Cadeira 7 ou, ainda, as palavras ditas no lançamento de seu livro Poemas do Meu Caminho, em 20 de abril de 1993: Quero deixar bem claro que a Academia nada me deve por haver dividido com ela, nesses 25 anos, preocupações, trabalhos e alegrias. Ao tomar posse da Cadeira 26, prestei solene compromisso de servi-la e engrandecê-la para que cumpra a sua nobre fidelidade de estudar a literatura e promover o desenvolvimento das letras do Estado de Santa Catarina.

Graças à generosidade dos membros desta Confraria de Letras, honra-me suceder, nesta Cadeira 26, Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, Secretária Perpétua da Academia Catarinense de Letras por relevantes serviços prestados à Instituição, conforme expresso no art. 47 do seu estatuto. Advogada, professora, jornalista, poeta, distinta personalidade que, sobremaneira, enaltece as letras da nossa terra barriga-verde. Assumo o idêntico compromisso de servir, de engrandecer a Academia Catarinense de Letras para cumprir a nobre missão em prol do desenvolvimento educacional e cultural do nosso Estado. Acima de tudo, quero ser voz forte, vigilante, na defesa dos valores culturais, contribuindo para o livre acesso às diferentes formas de expressões artísticas e literárias, da criação à difusão dos elementos componentes do patrimônio cultural dos catarinenses, bem como a sua preservação. Pelo estabelecimento de uma política cultural de Estado democrática, que atenda aos anseios da sociedade catarinense, e pela livre manifestação do pensamento sob e em qualquer circunstância. Cabe reverenciar, como manda a vetusta tradição, o patrono da Cadeira 26, Lauro Severiano Müller e seu fundador Adolfo Konder, da qual passo a ser titular no dia de hoje até quando Deus assim o permitir. Consciente de que aqui permanecerei ad immortalitatem, porque o espírito permanece, vivifica. Assim como permanece imutável o espírito embrião da Academia, gerado no Jardim de Academo, perto de Atenas, onde Platão, pelo ano de 387 a.C., fundou a primeira escola de Filosofia.


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Lauro Severiano Müller, patrono da Cadeira 26, nasceu em Itajaí aos 8 de março de 1864. Portanto, em 2014, celebraremos o sesquicentenário do seu nascimento. Faleceu no Rio de Janeiro a 30 de julho de 1926. Os primeiros estudos foram feitos na terra natal. Família humilde, seus pais eram imigrantes alemães. Menino pobre, um dia partiu para a cidade do Rio de Janeiro. Trabalhou no comércio, seguiu carreira militar. Foi diplomata, jornalista, líder político e estadista de mérito. Venceu, projetando o nome da terra catarinense nos anais da história do Brasil. Deve-se a Lauro S. Müller a inclusão, na Constituição Federal de 1891, da mudança da capital do Brasil para o Planalto Central. Fato lembrado pelo presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, durante sua visita a Florianópolis em 1960, quando da criação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), causando grande surpresa aos ilustres acadêmicos e historiadores Henrique da Silva Fontes e Osvaldo Rodrigues Cabral que desconheciam este feito. Homem de grande cultura, orador admirável e muito popular por suas sátiras e casos pitorescos, contados com refinado humor: “quando falava conquistava a todos, era conhecido como desmanchador de velórios” registra o Acadêmico Arthur Pereira e Oliveira (1909-2000) nos anais desta Casa. Da sua produção literária sabe-se a publicação de alguns poemas, o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras e o livreto Os ideais Republicanos, com a sua conferência na liga de Defesa Nacional, proferida em homenagem ao mal. Hermes da Fonseca, presidente da República, a 15 de novembro de 1914. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 14 de setembro de 1912, como sucessor do Barão de Rio Branco na Cadeira 34. Foi recebido pelo Acadêmico Afonso Celso em 16 de agosto de 1917. Sobre sua passagem pela Academia Brasileira de Letras, assim se manifestou o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, atual titular da Cadeira 34, no discurso de sua posse em 8 de junho de 1994: O sucessor do Barão foi um general, o General Lauro Severiano Müller, catarinense que, ainda com seus 25 anos, em 1889, foi nomeado governador de seu Estado. Escreveu pouco — coleções de discursos e alguns poemas. No entanto, sua eminência na Primeira República é inegável, pelo dinamismo refletido em realizações de grande envergadura e essenciais à nação, levadas a cabo em tempo curtíssimo (...). Constituinte, deputado até 1899, duas vezes governador de seu Estado (além da ocasião em que foi eleito para um terceiro mandato e renunciou para voltar ao Senado), senador, ministro da Viação, ministro das Relações Exteriores, poucos homens terão sido tão importantes no início de nossa vida republicana.


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Lauro Severiano Müller, por indicação de Clementino Brito e Henrique Fontes, teve seu nome aprovado para ingressar na Academia Catarinense de Letras. No entanto, jamais figurou na lista dos titulares, sendo elevado à categoria de Patrono da Cadeira 26, após seu falecimento, por Adolfo Konder. Numa última homenagem, as palavras de Almiro Caldeira de Andrada, presidente da Academia Catarinense de Letras, quando da inauguração do monumento de Lauro Müller, na praça São Luiz, pelo governador Ivo Silveira, em 30 de julho de 1969: Lauro Müller não foi um fenômeno, foi um silogismo resultado lógico da proposição do vigor intelectual subordinada à premissa do ânimo inquebrantável.

O fundador da Cadeira e seu primeiro ocupante foi Adolfo Konder, eleito em 27 de agosto de 1927. Nasceu na cidade de Itajaí, no dia 16 de fevereiro de 1884, filho de abastada família alemã. Seu pai, Marcos Konder, nasceu na Alemanha. A mãe, Adelaide Flores, era de ascendência açoriana, da ilha de São Jorge. (Descende da família de Antonio Breves e Maria Fernandes, imigrantes no Rio de Janeiro, em meados do século XVIII.) Concluiu seus estudos fundamentais em Blumenau e em São Leopoldo (RS) e o superior em São Paulo, na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Bacharel em Direito, jornalista, diplomata e político. Foi redator-proprietário do semanário Novidades, editado em Itajaí. Conterrâneo e amigo do ministro Lauro Müller. Exerceu cargo de secretário da Fazenda no governo de Hercílio Luz. Foi deputado federal e 11.o governador do Estado de Santa Catarina (1926-1930). Com o movimento revolucionário de 1930, liderado por Getúlio Vargas, caiu em desgraça política e foi exilado. Aliás, quando governador, doou um terreno próximo do então Campo do Manejo (hoje, Instituto Estadual de Educação, IEE) para ali sediar o IHGSC e a Academia Catarinense de Letras. A doação foi anulada pelos vitoriosos da Revolução de 30. Enquanto governador, sancionou a Lei n.o 1684, de 29.10.1929, declarando de utilidade pública a Academia Catarinense de Letras e o IHGSC. Como governador, percorreu todo o Estado em uma histórica viagem, uma verdadeira epopeia desde Florianópolis até a divisa de Santa Catarina com a Argentina, entre abril e maio de 1929, idêntico roteiro seguido pela Coluna Prestes, num percurso de 3.000 km. Não é sem razão que o irretocável cronista Tito Carvalho, autor de Bullha d’Arroio (1939), nominou-o “Bandeirante da Brasilidade” em crônica publicada no jornal A República. Adolfo Konder deu vida à Região Oeste — integrando o extremo leste ao extremo oeste, enfatiza José Boiteux, orador oficial da expedição. Da célebre viagem, tem-se a obra de Othon D’Eça Aos Espanhóis Confinantes — Notas de um


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Discurso, em que descreve a expedição, povoados, paisagens e o povo em uma grandiosa interpretação literária. Bom orador, deixou vários discursos impressos, como O Sentido da América, de 1928. Seu governo também é lembrado pela gestão moderna e a preocupação pelo meio ambiente, tomando medidas de proteção das matas, nascentes e conservação dos cursos de água. Adolfo Konder faleceu no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1956. Neste passeio alargado e reminiscente à Cadeira 26, quero retornar ao seu passado recente e falar um pouco mais da minha querida antecessora Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, para ir atrás da mulher escritora, que traz a alma no olhar e que me enterneceu com sua poesia como o afago lânguido do vento sul, que chega sibilante pelos mares da Ilha que ela tanto amou. Sylvia Amélia nasceu a 3 de novembro de 1914, no Rio de Janeiro. Veio para Florianópolis com um ano de idade. Seus primeiros estudos fez no tradicional Colégio Coração de Jesus. Destaco, especialmente, sua formação técnica e superior em Letras Neolatinas, Jornalismo, Técnica de Administração e Direito. Reverencio o valioso percurso e a expressiva produção literária. Autora de quase uma dezena de obras, bem como de ensaios, artigos, reportagens, comentários políticos, discursos, crônicas e poemas publicados na imprensa, suplementos literários e antologias de circulação nacional saídas de sua competente lavra. Sua obra é extensa e grandiosa. Pressiono, ainda, a tecla da memória e recordo a sua passagem no jornal A Gazeta de Florianópolis onde assinava as colunas Notícias Culturais e Um por Semana e da sua atuação singular como presidente do Conselho Estadual de Cultura nos anos oitenta. Por último, seu ingresso na Cadeira 26 da Academia Catarinense de Letras, no dia 18 de abril de 1968. No discurso de recepção, disse o Acadêmico Almiro Caldeira de Andrada: Na poética de Sylvia sobressai a forma... Sylvia, a escultora de sentimentos em jade de lirismo, o pintor que coloriza instantes de vida em imagens trovadorescas. Se na sua poesia desvenda-se o bailado lírico de sua alma, na crônica deixa a sua sensibilidade falar sobre um passado de Florianópolis, guardado na memória de sua gente, no olhar marcado pelo viver insular. Um jeito de escrever que traz a marca inconfundível, o sinal identitário de sua paixão pelas palavras e do seu disciplinado labor poético — tudo na conta certa. Vem mesmo a propósito o e-mail enviado, tempos atrás, pelo grande mestre e poeta Eduíno de Jesus, açoriano da ilha de São Miguel, radicado há muitos anos em Lisboa, e uma das vozes mais contundentes na defesa da língua e da cultura portuguesa. Do alto dos seus 85 anos, Eduíno ensina-me: Lélia, sabes como é um fato comprido nas mangas ou nas calças, largo na cintura, nos ombros? Em poesia é a mesma


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coisa. Um poema deve ter a extensão exata do tamanho do tema, senão fica a chocalhar no oco das palavras ou então transborda. Em ambos os casos há desperdício, e numa obra de arte tudo deve estar na conta certa.

Então, o milagre está mesmo na forma... e sempre soube a nossa Sylvia Amélia em sua arte de poetar segura, anímica, prenhe de sentimentos, de humanização. Poemas que falam de encontros, de partidas, do mar e de cenários telúricos de sua Florianópolis cantada em Despedida. No seu O último Canto encontrei o adeus da mulher Sylvia Amélia e cito: Não lamento o que não consegui ser / Neste longo tempo vivido. / Não reclamo do que não pude ter / nem de promessas não cumpridas. / Venho sim, / nesta sobra de vida, / relembrar sonhos, / esperanças / e a fé que nunca me abandonou.[…]. Estremeço na imensa responsabilidade de suceder, neste silogeu, a uma mulher de fibra, intelectual brilhante, admirada e respeitada por tantos quantos tiveram o privilégio de partilhar de sua sabedoria. Uma distinção que me engrandece e me enche de orgulho. Um sonho que se realiza. Curvo-me reverente em sua memória e de meus antecessores na Cadeira 26. Queridos Acadêmicos, amigos, familiares, caminho por este tempo como se eu pudesse retê-lo só mais um pouquinho, ciente de que o meu dia fica mais curto, sinto o instante do destino, a chegada da minha noite, completando o ciclo das gerações como está inscrito no sapiencial Eclesiastes (cap. I, v. 4-6): uma geração vai e outra geração vem; a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol. E volta ao seu lugar donde nasceu. O tempo nunca fica parado. Parece o vento. Vai pro sul e lá no frio, fica ainda mais frio. Depois gira, gira, gira no rumo do norte. E volta sobre si mesmo em longo circuitos. Sabemos que o tempo não para, não é dominado e nem inventariado. Vai passando e nós vamos vivendo dia após dia ancorando memórias e planejando o futuro em espaços talhados de janeiro a dezembro, anotados em agendas coloridas ou armazenadas no mundo virtual, numa nuvem qualquer... São as nossas lembranças afáveis que a memória deixa fluir na vida em visões do tempo. Viajo no tempo e corro descalça no pátio do meu passado para um breve deambular... Sou tubaronense. Nasci na madrugada de 18 de setembro de 1946. Primavera, estação da inquietude, tal qual a estação, fui menina inquieta, muito levada. Sou uma mulher inquieta, sempre na busca do mais saber e mais fazer. Nasci há sessenta e sete anos, quando a Assembleia Constituinte aprovava a nova Carta Constitucional e o país celebrava a restauração da democracia no Brasil, o avanço das liberdades individuais. Eu chegava neste mundo — mulher, brasileira e cidadã com todos os direitos e deveres que aquela Lei Maior recém-nascida me outorgava. Passei de feto à filha da Pátria.


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O nome “Lélia” de Laelia purpurata, espécie de orquídea que por sua grande incidência no litoral catarinense é a flor símbolo do Estado e de Florianópolis, devo ao cientista catarinense Cônego Doutor Raulino Reitz, membro dessa egrégia Casa, ocupante da Cadeira 7. Padre Raulino sugeriu ao meu pai, durante a Campanha da Malária, quando fotografaram as incontáveis espécies das Bromeláceas que foram estudadas, catalogadas e publicadas em livros, numa relevante contribuição à botânica brasileira e tropical. Vivi a meninice e adolescência em Tubarão. Estudei no Colégio São José desde o Jardim da Infância até me formar no Curso Normal. Sempre muito ativa, desde pequena declamava, cantava, participava em novelas da Rádio Tubá, das peças de teatro do São José e discursava nas datas cívicas. Em tempo de Festa do Espírito Santo, corria atrás da Lira Tubaronense e da Bandeira do Divino, para aflição da minha irmã Célia, que muito jovem assumiu o papel de mãe, cuidando de mim e de meu irmão Mário César, enquanto nossa mãe, acometida de tuberculose, encontrava-se no Hospital Nereu Ramos, aqui em Florianópolis. Minha mãe, dona Zuzu, foi professora e deixou o magistério para trabalhar ao lado do meu pai no comércio. Mulher dinâmica, inteligente e culta. A Zuzu estava além do seu tempo, acompanhando as mudanças e as novidades do mundo moderno. Foi radioamador Classe A. Comunicava-se com o mundo, primeiro teclando o código morse e, depois, navegando na Internet e trocando e-mails aos 94 anos, quando faleceu. Meu pai, Joaquim Pereira da Silva, partiu muito cedo, aos 65 anos. Era fotógrafo com estabelecimento na rua Coronel Colaço 200 — o conhecido Foto Pereira. Viajava muito, fotografando e, anos depois, vendendo material fotográfico e radiográfico como representante da Kodak Brasileira e proprietário da firma Cifrasul. Homem simples, trabalhador, comunicativo. Pertencia à Maçonaria, onde ingressou em 1956, na Fraternidade Tubaronense. Viveu e morreu sob a égide do avental do construtor, do pedreiro-livre seguidor fiel dos princípios norteadores da fraternidade universal, da igualdade e da liberdade absoluta. Tão travessa, sapeca, irrequieta, quem diria que encontraria nos livros o meu caminho. Um despertar alimentado pelos livros de Monteiro Lobato, presentes de meus pais e da dinda Josefina; a rica biblioteca da vizinha, dona Robélia de Sá Faraco, as bibliotecas do Colégio São José e o gosto pela leitura de meus pais, da revista O Cruzeiro aos livros de história e de filosofia maçônica. Da juventude pelos pátios do tempo, chegam as recordações do Colégio São José, do Grêmio Literário Mont’Alverne e do jornalzinho Aurora, que publicou o meu primeiro artigo Dias das Mães, quando estudava na quarta série primária. Ainda do passado chegam as vozes dos escritores da minha terra que fazem parte da memória indelével da Casa José Boiteux: Casthorina Lobo de São Thiago (1884-1975) e o contista Nereu Corrêa (1914-1992).


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No presente, fazem parte desta afetuosa reminiscência que o tempo tratou de estreitar os laços de amizade, os acadêmicos João Nicolau de Carvalho, Amilcar Neves, Flávio José Cardozo e Miro Morais. Muitas histórias e vivências desde a rua da Igreja onde vivi até os 18 anos. O resto é consequência da curiosidade insaciável no mundo pequeno da minha Tubarão, cortada e serpenteada pelo temperamental rio Tubarão a correr para o Atlântico, como eu também corri, e fiz os caminhos do mar. Foi aí que comecei a viajar nas asas do imaginário e por ali fui abraçando o mundo. Nos duros anos da ditadura militar, instaurada em 31 de março de 1964, estudei Sociologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Época que marcaria a minha geração por sua capacidade de contestar e não se vergar jamais. Sou casada há quarenta e três anos com Sebastião Ivan Nunes, engenheiro mecânico, nascido em São Joaquim. É um grande companheiro e paciente amigo. Meu crítico e primeiro leitor. Meu amor. Temos três filhos, Clarisse, mãe da nossa neta Larissa, Murilo e a Caroline. Há quarenta e três anos vivemos em Florianópolis, na Ilha de Santa Catarina, onde construímos nossa família e eu realizei a minha vida acadêmica como professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina e, mais tarde, como Superintendente da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, órgão municipal de Cultura (1997-2004). Atualmente, como membro titular do Conselho Estadual de Cultura integrando as Câmaras de Letras e Patrimônio Cultural e como sócia emérita do IHGSC, trabalho na defesa e na promoção dos valores culturais da minha terra, Santa Catarina. O tempo, como uma onda gigantesca impelida pelo nosso vento sul, levou-me por muitos caminhos do mar e, em barco alado do imaginário, desaguou-me numa outra ilha ou me regressou às ilhas açorianas dos meus ancestrais. Desde 1987, tenho me dedicado ao estudo e investigação das festas do Espírito Santo no Estado de Santa Catarina e nos Açores, como uma via de conhecimento para o roteiro migratório dos portugueses açorianos — povo errante que disperso pelo mundo leva as ilhas dentro de si. Na vida real e no mundo virtual, tenho insistido e muito no debate plural sobre as vivências e experiências de todos nós. Há um desfile sem fim de nomes da literatura dos catarinenses e da literatura dos açorianos. Vozes de diferentes histórias, pensamentos e gerações que se aproximam “na esquina das Ilhas” e dialogam sobre as questões culturais e literárias que interessam as nossas comunidades nas duas margens atlânticas, no Norte e Sul do Equador.


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Já chego ao final deste discurso de posse na Academia Catarinense de Letras, antes, porém, peço-lhes, mais uma vez, licença para agradecer. Ao Sérgio da Costa Ramos, a generosidade da sua palavra. Expresso minha gratidão a todos os membros da Academia Catarinense, por me receberem com tamanha fidalguia e me acolherem no seio desta solarenga Casa. Uma das nossas missões é preservar a memória do passado e do presente da Academia, pois segundo o escritor William Faulkner, prêmio Nobel de Literatura de 1949: “o passado não está morto, ele nem sequer deixou de ser presente...”. Assim, desse modo, é à lembrança do presente que homenageio os Acadêmicos ausentes por sua idade avançada ou por seu estado de saúde debilitado, que os mantém fisicamente afastados das lidas acadêmicas — Alcides Abreu, Antônio Carlos Konder Reis, Evaldo Pauli, Walter Fernando Piazza, Norberto Ungaretti e João Paulo Silveira de Sousa. Agradeço a presença de todos os queridos amigos e familiares, muitos dos quais vindos de tão longe para trazerem o calor do seu abraço. Acadêmicos, os senhores fazem a diferença na Cultura de Santa Catarina, no percurso da literatura dos catarinenses ao longo das gerações como escritores na prosa e na poesia. Fazem a diferença pelo que protagonizam nesta Casa José Boiteux e pelo que significam para a sociedade barriga-verde. Eu também quero fazer a diferença! Há vinte e dois anos uma mulher não era recepcionada na Academia Catarinense de Letras. Sou a sétima mulher depois de Maura de Senna Pereira, Delminda Silveira, Casthorina Lobo de São Thiago, Sylvia Amélia Carneiro da Cunha, Leatrice Moellmann e Urda Alice Klueger. Segundo a tradição dos ilhéus, a sétima filha mulher da casa é bruxa. Serei eu a bruxa atrevida? O tempo dirá... Hoje, entro nesta Casa cheia de esperança e pronta para assumir missões, arregaçar as mangas e tocar em frente segura do meu destino. Muito obrigada.


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pal avr a s do acadêmico José Artulino Besen sobre o Centenário da posse de Dom Joaquim Domingues de Oliveira na diocese de Florianópolis

30.09.2014

Centenário de na scimento de Dom Afonso Niehues (1914-2014)


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Sessão Solene da Academia Catarinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Faculdade Católica de Santa Catarina.

MEMÓRIA Por que estamos aqui? O que nos fez reunir nesta noite? Essa pergunta os filhos faziam aos pais judeus na celebração da Páscoa, e recebiam a resposta: “É o sacrifício da Páscoa do Senhor, que passou ao lado das casas dos israelitas no Egito, quando feriu os egípcios e salvou nossas casas” (cf. Exodo 12,15-28); e, a cada ano, na festa das primícias, se renovava a profissão de fé: “Nosso pai era um arameu que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro”. E segue, narrando a escravização do povo, o pedido de socorro e a descida do Senhor que o libertou. É a profissão de fé em Deus a partir da narração da história (Dt 26, 1-11), até hoje renovada e que faz “memória” da identidade da fé e do povo. A memória impede a deturpação da vida religiosa, pois seu fundamento é a ação de Deus e não a discussão sobre Deus. Jesus de Nazaré, nascido e crescido no ambiente judeu, fez da narração dessa memória sua vivência na Galileia: suas palavras e gestos foram narração do Pai, ele é o cronista de Deus. Anos depois, na Judeia, após a crucifixão, morte e sepultura, um acontecimento único fez dele o objeto da memória dos discípulos: ressuscitou ao terceiro dia. Após esse fato, há divisão religiosa: os judeus prosseguem na celebração da libertação a cada Páscoa, consumindo em família o cordeiro pascal, e os cristãos, a cada ano e a cada eucaristia, renovam a memória da última Ceia e da ressurreição celebrando a Páscoa cristã.


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Quando, em 24 de fevereiro de 1582, o Papa Gregório XIII promulgou o novo calendário, que recebeu o nome de “gregoriano”, sua preocupação não era mostrar poder, e sim, era preocupação litúrgica: queria que a data da Páscoa fosse sempre celebrada no dia correto. Desapareciam 10 dias entre 5 e 14 de outubro e assim, após o dia 4, seguia o dia 15. A Páscoa judaica é memória da libertação do Egito, e a Páscoa cristã, da libertação do pecado e da morte por obra de Jesus Cristo. Paulo narra as duas memórias da Ceia e da Ressurreição sem invenções ou emoções: “De fato, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti” (1Cor 11, 23-25; 1Cor 15, 3-9). O grande Paulo, fundador da teologia cristã, não se dá o direito de inventar ou confabular: ele faz memória do que recebeu e que deve transmitir como aprendeu, o conteúdo da Tradição da fé. Após os quatro Evangelhos, a Tradição continua no primeiro livro de história da Igreja: os Atos dos Apóstolos, a memória da ação apostólica. A memória é também súplica: os judeus invocam continuamente a vinda de um Messias, e os cristãos pedem pela segunda vinda do Senhor em cada eucaristia: Maran athá, vem, Senhor Jesus. E assim o tempo da história é o tempo da esperança. O judaísmo, além da Lei e os Profetas — Torah, através de seus rabinos explicita a memória de seu povo, o significado concreto do texto bíblico transmitido pela Mishná e pelo Talmud para que não ocorra o perigo da infidelidade e, também, para que se saiba que a Palavra é sagrada, tão profunda que a história humana será breve para conhecê-la e vivê-la. A identidade do povo do primeiro Testamento está na memória de Javé e do seu povo. Aquele que se empenha no conhecimento do povo do segundo Testamento, os cristãos, busca a Palavra vivida ou traída ou redescoberta, pode ir ao Vaticano e nele se defrontará com uma imensa memória que abarca doze séculos de história, 600 fundos arquivísticos e 85 quilômetros de estantes contendo documentos: é o nada secreto Arquivo Secreto do Vaticano. Nada secreto porque desde 1881 está aberto aos pesquisadores, estando disponível à medida de sua catalogação sistemática, atualmente 1939. Os dois Testamentos estão misteriosamente escondidos nesses milhões de manuscritos e documentos porque o Arquivo é a descrição humilde da fidelidade e da infidelidade cristãs. Ali se encontra a vivência do Evangelho e o testemunho da não vivência. Não se faz seleção de documentos laudatórios e destruição dos incriminatórios. Os documentos são guardados, e essa é a razão de um arquivo. Religiões da memória e da história, Judaísmo e Cristianismo expõem suas virtudes e pecados nos dois Testamentos: os 73 livros da Bíblia são inspirados por Deus, é verdade, e são inspirados para serem verdadeiros na memória de Deus e dos homens. Nada escondem das aventuras humanas, revelando a


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grandeza de Jacó, mas também sua esperteza ao enganar o pai Isaac, trocando a bênção do irmão Esaú por um prato de lentilhas; revelam a amizade de Deus com Moisés, mas fazem questão de escrever que ele teve dúvidas de fé e por isso não entrou na terra prometida; revelam o lamuriento e santo Jeremias, o generoso e revoltado Jonas, o pornográfico comportamento das filhas de Lot, cunhado de Abraão, mas, não escondem a bondade e a misericórdia de Deus, paciente com um povo que Moisés chama de cabeçudo. O Testamento cristão é humilde na narração do Filho de Deus que se encarna e nasce pobrezinho em Belém, cuja vida pública nada tem de importante: uma sucessão de pobres, doentes, prostitutas, deficientes, doidos que o rodeiam continuamente, e de fariseus e doutores a criticá-lo até conduzi-lo ao humilhante fim no monte Calvário. Os evangelistas bem que poderiam dar uma maneirada, mas não escondem a origem dos apóstolos, nem seu covarde abandono do Mestre na hora da dor, nem Simão Pedro que pega no sono enquanto Jesus sua sangue na agonia. Podia ocultar, mas não: contam que Pedro traiu o Senhor três vezes, grande velhacaria. É fascinante uma História que não tem medo da confissão dos pecados, e mais fascinante ainda, a história do Mestre e Senhor que escolhe e continua a escolher a escória do mundo para revelar seu poder. Ab Bakr Muhammad ibn ‘Al ibn ‘Arabi (1165-1240), místico muçulmano sufi, filósofo e teólogo nascido na espanhola Andaluzia e morto em Damasco, afirmou a uma consulta que lhe tinha sido feita a respeito de converter cristãos para o islamismo. Para ele, era trabalho perdido: “Os que sofrem da doença chamada Jesus nunca se recuperarão”. Seguir a Jesus é uma doença incurável. Não há remédio ou terapia que restabeleça a “saúde” dos seguidores de Jesus. O judeu Franz Kafka, mestre na descrição de nosso mundo fragmentado, respondeu a um amigo que lhe perguntava sobre Jesus: “não é bom se aprofundar muito nele porque é um abismo de luz onde podemos nos precipitar”. É fascinante esse homem que assim convida para fundar seu Reino: vai, introduz os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos. O Arquivo do Vaticano expõe a miséria, não dos pequenos, mas dos grandes, não do povo humilde e fiel, mas de alguns papas e altas autoridades, de dirigentes políticos e hierarcas. Foi nele que Ludwig von Pastor encontrou a documentação para compor sua História dos Papas desde 1305, com 16 volumes em 40 tomos, publicados de 1886 a 1933. Seguiu a ordem de Leão XIII: nenhuma mal seja escondido, nenhuma luz deixe de brilhar. E assim, põe diante de nossos olhos pontífices santos, heroicos, corajosos, mas também os papas renascentistas, patrocinadores das artes, um corrupto Alexandre VI (1492-1503), ou Papa Paulo II (1464-1471) que, pelo apego a joias, vestes e paramentos, era ridicularizado com o epíteto de “nossa senhora da alegria”. Os arquivos vaticanos não escondem os processos da Inquisição, os acordos políticos, os combates às liberdades da Idade Moderna, as guerras


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religiosas, a escravidão, o colonialismo, o antissemitismo, e também não escondem o esplendor do trabalho missionário, os mártires e confessores, os Concílios Ecumênicos, a caridade papal, a preocupação com a paz no mundo, a defesa da verdade revelada. É atualizado a cada dia, porque a memória cristã perpassa todo o processo histórico. Ali estão os frutos da diplomacia vaticana desde Carlos Magno, seguindo com os relatórios quase diários dos 179 países com que estabeleceu relações diplomáticas. A cada ano, todas as dioceses do mundo apresentam à Santa Sé seus relatórios estatísticos. E tudo isso sem contar os arquivos da Cúria Romana, das dioceses espalhadas pelo mundo, das paróquias. Além disso, as catedrais com seus vitrais, os afrescos, imagens sacras e ícones, a música e toda a arte também fazem memória do caminho cristão. Fazer memória da história é fundamental para não transformar a fé cristã em ética, a teologia em filosofia religiosa. Cada vez que movimentos cristãos quiseram invocar para si o título de “puros”, sem a penitência pelo passado pecador, nasceu uma heresia ou uma seita. Se o saber ocupa o lugar do amar, se a sutileza teológica se mistura a raciocínios metafísicos ou holísticos, a fé bíblica perde a razão de ser, porque só germina no ambiente da vida, da memória. O grande adversário interno do cristianismo não é o pecador, mas o gnóstico, aquele que faz de Jesus um Mestre de sabedoria, renegando a encarnação. *** Interrompo aqui essas digressões para retomar a pergunta inicial: Por que estamos aqui? O que nos faz reunir nesta noite de dois centenários? Aqui estamos para fazer memória, para falar da história de dois homens que viveram entre nós: Dom Joaquim Domingues de Oliveira, Bispo-Arcebispo de Florianópolis de 1914-1967 e Dom Afonso Niehues, nascido em 1914, e Arcebispo de 1967 a 1991. Dom Joaquim veio de Vila Nova de Gaia, Portugal, e Dom Afonso, de São Ludgero. Dom Joaquim chegou aqui através de São Paulo, e Dom Afonso através de Lages. O primeiro, fez do “presidir com solicitude” o seu lema, e o segundo, “ide para a vinha”. Buscaram e assumiram o trabalho evangelizador junto ao povo que a Igreja lhes confiou, em nenhum momento procurando a glória pessoal, o conforto do prestígio. De sua residência à rua Esteves Júnior, Dom Joaquim era o vigilante solícito da reta vida cristã e da unidade eclesial. Do mesmo endereço, Dom Afonso unia as forças vivas da Igreja, convidava a todos para irem trabalhar na Vinha do Senhor. Não trabalhavam para si: o outro era o coração de suas existências. O que encontraram em Santa Catarina? Não encontraram o que buscaram, pois outra realidade não buscaram do que aquela que encontraram: o povo catarinense.


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Dom Joaquim assumiu a diocese de Florianópolis, cujos limites acompanhavam os do Estado catarinense e Dom Afonso, a arquidiocese no Estado já dividido em cinco circunscrições eclesiásticas, hoje dez. Ambos passaram pelo tempero da formação romana e eram teólogos e canonistas: formação que os fez homens de Igreja, unidos ao Papa, determinados a cumprir e fazer cumprir a lei. Em 1914, Dom Joaquim deparou-se com o Estado catarinense multifacetado pela imigração indígena, portuguesa e açoriana, pela imigração compulsória do negro escravizado, e pelos movimentos imigratórios que da Alemanha, Itália, Polônia, Ucrânia, Grécia aqui chegaram a partir de 1829: eram pobres em busca de vida melhor, eram católicos, luteranos, ortodoxos gregos e católicos ucranianos. E, depois, pelas colônias que foram se formando no Oeste, envolvendo levas de gaúchos, também alemães e italianos, que se somaram aos índios e caboclos. Em toda essa ocupação do espaço houve conflitos, porque a terra não estava vazia, mas com gente considerada nãogente. O novo bispo, aqui da Ilha de Santa Catarina, escutava as notícias que, vindas do Planalto, ecoavam a terrível Guerra do Contestado iniciada dois anos antes e concluída dois anos depois com violento deslocamento de pobres, índios e caboclos, e um saldo de quase 10 mil mortos. Já Dom Afonso, em 1965 como arcebispo coadjutor e em 1967 como arcebispo, assumiu a Igreja de Florianópolis bastante transformada: rica de cultura, com universidades e faculdades, escolas e colégios, a presença enriquecedora dos funcionários públicos, o turismo incipiente, a modernidade secularizada ou secularista, a religiosidade dividida entre católicos, protestantes e pentecostais, os cultos afro-brasileiros, diminuindo significativamente a hegemonia católica. A partir da ilha ele contempla a formação de periferias urbanas, na maioria frutos do êxodo rural, e percebe a necessidade da criação de pastorais diversificadas, de novas paróquias. O catolicismo popular tinha raízes leigas porque a fé foi sustentada pelas devoções, festas e irmandades, devido à presença numericamente pequena de sacerdotes. Não havia seminários para formar padres. As vocações que surgiam eram encaminhadas para São Leopoldo, RS, e Dom Joaquim buscou padres europeus que, atendendo os imigrantes, estendiam sua ação para todo o povo. Vieram os sacerdotes diocesanos, os religiosos franciscanos, jesuítas, dehonianos, lazaristas, basilianos e salesianos. E dezenas e dezenas de mulheres consagradas que instituíram escolas, colégios e hospitais. Ao aportarem neste território tinham consciência de que dificilmente retornariam à pátria. Era uma doação do tamanho da vida. Nesse meio complexo e necessitado de padres que Dom Joaquim conheceu nas longas visitas pastorais, percebeu-se a necessidade do seminário que, fruto da coragem dos homens de fé, surgiu em Azambuja em 1927, tendo


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como reitor Pe. Jaime de Barros Câmara, 19 anos depois Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Nesse pequeno grupo de seminaristas fundadores de Azambuja, que tinha de adormecer ouvindo os gemidos dos doentes, pois o seminário era um andar do Hospital, escutando os gritos no vizinho Hospital de Alienados, incluía-se um menino de São Ludgero, filho de agricultores e pequenos comerciantes: Afonso Niehues. Ordenado bispo coadjutor de Lages em 1959, sucedeu a Dom Joaquim em 1967. Dom Afonso fez a experiência de como iniciar um seminário e depois, na sua vida sacerdotal, foi reitor de São Ludgero e Azambuja. Dom Joaquim e ele nutriram o sonho de um seminário maior para catarinenses em Santa Catarina, devendo chegar ao fim a peregrinação dos seminaristas pelo Rio Grande e pelo Paraná. Fruto de longa perseverança, em 1973 é fundado em Florianópolis o Instituto Teológico de Santa Catarina e, em 1978, o Seminário Filosófico de Santa Catarina, em Brusque. Um solitário Dom Joaquim fundou Azambuja, e Dom Afonso esteve acompanhado pelos bispos de Lages, Joinville, Chapecó, Tubarão, Rio do Sul e Caçador. São hoje 10 bispos diocesanos no território que Dom Joaquim assumiu em 1914 por mandato do Papa São Pio X e donde partiu Dom Afonso no final da jornada, em 1991, por mandato de outro santo, São João Paulo II. Em 7 de setembro de 1914, o segundo bispo de Florianópolis — porque o primeiro foi Dom João Becker, em 1908 — foi recebido no cais do porto pelo governador e autoridades civis e religiosas. Outro governador, Celso Ramos, foi recepcionar Dom Afonso em Biguaçu. Completados 24 anos da separação entre a Igreja e o Estado no Brasil, em 1914 estava enfraquecido o azedume republicano-positivista contra o catolicismo, julgado como uma das causas do atraso econômico e cultural brasileiro. A outra causa seria a miscigenação com o negro e o índio, o mestiço, frutificando num povo fraco e indolente. Acontece que a influência moral sobre um povo não é fruto de decretos, mas de história e, pouco a pouco, as autoridades republicanas sentiram necessidade do apoio eclesiástico, no que foram retribuídos, porque bispos são cidadãos e patriotas. Dom Joaquim nasceu em 4 de dezembro de 1878, foi imigrante português que chegou ao Brasil no Império, e foi nomeado bispo na República. Em Florianópolis pôde sentir a crise social e econômica da nação, o estrago da Guerra Mundial que se alastrava pela Europa e que provocou conflitos entre as diferentes etnias em Santa Catarina, os conflitos de poder na República Velha. Bispo de uma humilde diocese, detinha sólida formação humanística e sabia discernir entre modas e valores nas situações que se apresentavam. Não se impressionava com crises, porque sabia como retomar o caminho. Chegando à Capital catarinense, foi recebido por um jovem advogado com quem estreitou fraterna amizade: Dr. Nereu de Oliveira Ramos. Foi sua bússola


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política até 1958, ano da morte em acidente aéreo. Dizia-se que eram do Partido Liberal, porém, Dom Joaquim sabia distinguir entre a política apenas liberal e a política liberal que levava em conta os valores cristãos. “Nereu ia a Dom Joaquim, Dom Joaquim ia a Nereu”, queixavam-se amargurados os conservadores ligados aos Konder, e que colhiam muitos frutos nas colônias alemãs e italianas, entre frades e padres. Era um tempo em que se pôde assistir a brigas entre liberais e conservadores, depois entre udenistas e pessedistas, depois entre arenistas e emebistas e depois, sobrou o grande circo de 38 partidos, porque muitos o velho Noé tinha esquecido de deixar fora de sua Arca. Nereu Ramos inspirou e foi inspirado, principalmente nas Constituintes (1934, 1937, 1946), de que participou e onde fazia-se portador das teses cristãs que Dom Joaquim lhe passava e pelas quais vigilava. Foram amigos sempre. Dom Afonso Niehues, nascido em São Ludgero, em 23 de agosto de 1914, assumiu o ministério arquiepiscopal numa realidade politicamente diversa, três anos após a instauração do regime militar de 64. Era o ocaso de um período social e moral marcado pelo humanismo cristão e pela liberdade de expressão que fez surgirem muitas lideranças no painel socialista. Pairava sobre a pátria o cansaço de uma realidade política dependente, a insatisfação pela multiplicação de pobres, o enjoo frente a elites coronelistas. A liberdade que o hino da República pedia que “abre as asas sobre nós, das lutas na tempestade dá que ouçamos tua voz” era mais a liberdade de ser manipulado e distraído pela comédia eleitoral. E, assim, a liberdade abriu as asas e voou, com medo da tempestade e a velha liberdade fechou as asas e chocou-se contra o povo. A Igreja, aliada tradicional da ordem pública, foi despertada pela voz de homens como Alceu Amoroso Lima, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, pelo sofrimento dos índios, camponeses e operários, homens e mulheres, pelo sofrimento nas prisões que escondiam as vozes dissidentes. Um novo sujeito ingressa na ação pastoral: o pobre e os Direitos Humanos. Homem da unidade, da paciência e da fidelidade, Dom Afonso fez-se solidário com os bispos brasileiros, alimentando a ação eclesial com o impulso pela justiça e pelo retorno à democracia. De temperamento reservado, empenhouse pela libertação de presos políticos, pela ação junto às periferias rurais e urbanas, buscou a formação de padres comprometidos com a vida do povo, cujo grito é a mesma voz de Deus que milênios antes falara a Moisés, no deserto: “Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi o grito de aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-los” (cf. Êxodo 3, 7-10). Tudo isso, a mudança no enfoque da pastoral que, nas palavras do Papa Francisco, deixa de ser autorreferencial para ir ao encontro do pobre, foi


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consequência de um acontecimento fundamental: o Concílio Ecumênico do Vaticano II, inaugurado por João XXIII, em 1962, e continuado por Paulo VI, de 1963 a 1965. Na basílica de São Pedro estava Dom Joaquim Domingues de Oliveira, ocupando o 4.o lugar de precedência, pois era esse seu lugar pelo tempo de episcopado. Nosso arcebispo ficou até escandalizado quando se discutiam novas disciplinas, reformas naquilo que para ele era imutável, o sofrimento de ver questionado na Liturgia o uso de seu precioso latim. Não conseguia entender como os leigos deveriam discutir o que fazer se bastava perguntar a ele, o arcebispo. E sofreu muito quando os padres deixaram de vestir a batina, para ele o sinal externo glorioso da condição sacerdotal. Lá estava também um jovem bispo, Dom Afonso Niehues, despindo-se das seguranças relativas do cargo e do clericalismo. Afirmou ter ido participar do Concílio como bispo da cristandade e retornava como bom pastor, cuja segurança é o cajado que lhe foi entregue por Cristo para defender as ovelhas, começando pelas mais fracas. Dom Joaquim entregou a Dom Afonso uma Igreja ancorada na tradição, e Dom Afonso assumiu-a na mesma fidelidade, mas aberto aos sinais dos tempos que eram diferentes daqueles que Dom Joaquim contemplara em 1914, ao iniciar o ministério episcopal presidindo com solicitude e que ele, em 1967, inicia convidando a todos a irem para a Vinha. Os dois arcebispos, em sua perseverante ação, fizeram a memória do novo povo de Deus, a perseverança na grande Tradição. O arquivo histórico eclesiástico de Santa Catarina conserva o fio dessa memória. Gostaria de testemunhar, como encerramento destas palavras, a respeito de três palavras que uniram e unem Dom Joaquim Domingues de Oliveira e Dom Afonso Niehues: cultura, misericórdia, pobreza. Foram homens cultos, de excelente formação, amigos de biblioteca, amigos de arquivo. Amaram e respeitaram o lugar próprio de sua palavra: o púlpito, a pregação, a homilia. Guardada em arquivos, parcialmente publicada, testemunha a seriedade com que trataram a Palavra divina e a palavra humana. Os sermões e discursos eram preparados com diligência, pesquisa histórica e teológica, no cuidado de cada frase. Dom Joaquim bebeu nas fontes da oratória sacra francesa de Bossuet, Fenélon, Massillon e Bourdaloue, esse último conhecido como o rei dos pregadores e o pregador dos reis. Possuía, no original francês, os numerosos volumes de suas obras completas, cujas anotações comprovam a leitura; nas fontes portuguesas buscava Vieira e Bernardes. E, principalmente, o estudo das Sagradas Escrituras e dos Santos Padres. Para guardar pura a memória, a cada dia decorava uma estrofe de algum poema francês. O primeiro Dom Afonso amava Vieira e os clássicos brasileiros. O segundo, como arcebispo, era estudioso dos documentos do Concílio, dos papas, bispos, dos teólogos, pastoralistas e humanistas. Ambos


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integraram o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, e Dom Joaquim, também a Academia Catarinense de Letras, na Cadeira que foi de Nereu Ramos. Os dois arcebispos foram pastores de misericórdia, ouvindo para decidir, preferindo tomar decisões na esperança de recuperação dos que caíam ao longo do caminho. Sábios pelo conhecimento da história, eles próprios vítimas de intrigas, tinham clara a consciência de que um gesto de confiança tem mais poder regenerador do que a segurança barulhenta da punição. Dom Joaquim e Dom Afonso foram homens pobres, viveram pobres, morreram pobres. Os títulos e vestes litúrgicas ocultavam dois homens piedosos, de vida pessoal humilde, sem pretensões do que servir ao Senhor e a seu povo. Em seus Testamentos, ambos puderam declarar: não tenho bens de valor. E encerram, Dom Joaquim: “humilde e confiantemente repetimos: In te, Domine, speravi, non confundar in æternum!”, e Dom Afonso: Jesus, Maria e José, expire minha alma, entre vós, em paz! Dom Joaquim Domingues de Oliveira morreu em 18 de maio de 1967, e Dom Afonso Niehues, em 30 de setembro de 1993. Seus restos mortais repousam na capela Nossa Senhora das Dores, da Catedral Nossa Senhora do Desterro. Como gratidão pelo que realizaram entre nós, quis hoje fazer a memória de suas vidas e apresentá-las a cada um que bondosamente se fez presente nesta solene Sessão.


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26.03.2012

pal avr a s do Acadêmico Edy Leopoldo Tremel na Sessão da Saudade em homenagem ao Acadêmico Osvaldo Ferreira de Melo


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Ah, foi Osvaldo um poeta da vida! Soube ele, com seu estro poético, perceber a beleza existente no ser humano e nas coisas que o rodeavam e envolviam. Percebeu que no folclore, nas tradições centenárias dos povos, na simplicidade das manifestações populares, havia muitas verdades. Desde cedo interessou-se pela manifestação popular, e pôde perceber a pureza das festividades populares, buscando inspiração no Boi de Mamão, no Pau de Fita, para dali, extrair todo o sentimento de alegria de uma inocente manifestação do gosto estético de inocente pureza. Porém, seus horizontes eram bem mais amplos, não satisfeito com o que já se consolidara como o tradicional folclore, por morar em uma ilha, a bela Ilha de Santa Catarina, a mais bela pérola do Atlântico Sul, mercê de sua sensibilidade, adicionou e presenteou o folclore existente e o povo ilhéu com as mais belas canções praieiras. Pôde ele, assim, não só enaltecer o folclore existente, mas, também, contribuir com louvável participação para a cultura popular. Por isso, com convicção, podemos dizer que Osvaldo foi um poeta da vida! A sensibilidade, essa preciosidade com que Deus agraciou o ser humano, fez morada em seu coração, e nosso Confrade, assim inspirado, soube bem aproveitar essa graça da sensível percepção do belo e, como poeta, colher ao som de um sonoro violão, as mais belas pérolas de melodias praianas, acrescentando e contribuindo consideravelmente com o tradicional folclore estabelecido desde as origens açorianas. Por isso, repito, foi Osvaldo um poeta da vida! Um Confrade e amigo que alcançou consolidar o ideal do ser humano, pois, assim como na arte, na sua vida profissional sempre se distinguiu pela agudeza da inteligência,


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liderança, e, sobretudo, adicionado a integridade de caráter, pelo que era soberanamente respeitado. O que seria da humanidade se Deus não houvesse, ao criar o ser humano, colocado em seu coração, sentimento e sensibilidade para que, em percebendo toda a opulência da criação, manifestá-la eivada de poesia? Pois, o nosso pranteado confrade, Osvaldo Ferreira de Melo, soube bem perceber essa dádiva colocada no seu coração e, não só conservá-la como sua, mas, manifestando-a com arte e beleza, e demonstrando que além dos sentidos, o ser humano tem um pouco mais, ser um poeta da vida, como o foi nosso saudoso Osvaldo ao agraciar-nos com suas composições plenas de leveza e doce encanto ao deixar brotar de dentro de si, as canções que, com tanta inspiração, soube nos dadivar. Sim, deixou ele brotar de seu mágico violão, as mais belas canções praianas, com que nos presenteou e as vozes que passaram a fazer parte do folclore catarinense. A homenagem que hoje, na Sessão da Saudade, lhe prestamos, é a mais justa consideração com um acadêmico que sempre soube honrar e enaltecer a Academia Catarinense de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e a Academia Catarinense de Filosofia, dentre mais de uma dezena de instituições culturais, filantrópicas, com invulgar brilhantismo. Sendo de tradicional família espírita, como foram seus pais, irmão e familiares, tinha como doutrina o princípio da reencarnação. Osvaldo, existe um ponto, desse imenso universo, onde o mistério da vida se revela e, estamos certos de que, na doutrina que abraçaste e depositaste tua fé, acontecimentos espirituais bem revelaram que a vida não termina com o desaparecimento do corpo, mas que a alma permanece para sempre. Viveste na imortalidade da Academia, vives, agora, na imortalidade da alma, a verdadeira vida, a vida espiritual em que sempre acreditaste.


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09.05.2013

Pal avr a s do Acadêmico amilcar neves na Sessão da Saudade em homenagem ao Acadêmico Francisco José Pereira


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Senhoras e senhores, A família queria porque queria. Mas a moça se recusava. — Por que não, meu Deus? — insistia a família, unânime. — Um partido tão bom assim. Ele era Tenente da Marinha. Filho de Almirante. A pressão da família crescia, desagradável e já insuportável. A moça cedeu, afinal. E só não foi mais infeliz, porque teve 18 amantes.

Senhoras e senhores, este é o texto completo do conto Um bom partido, um dos trinta e cinco contos conhecidos que o nosso Francisco José Pereira escreveu em sua carreira de ficcionista. Os poetas sempre desfrutaram de uma enorme vantagem, em relação aos prosadores, quando se trata de homenageálos com a leitura de uma obra de sua autoria, pois sempre haverá um poema curto para ser declamado. Já a declamação de novelas é impraticável, enquanto a leitura de contos exige, naturalmente, uma pequena obra que consiga realizar-se em sua plenitude com poucas palavras. Nem todo conto curto é literatura. Mas um bom partido é uma pequena obra-prima porque evoca um tempo e um universo social abrangente. Há uma pergunta, no entanto, que se impõe desde logo: afinal, é o homem ou a obra que deve prevalecer? Para os familiares e os amigos, o homem se sobrepõe, e deste homem que se foi restam as lembranças que cada qual carrega consigo, uma forma sutil que encontramos nós, mortais, de buscar reviver momentos idos, de valorizar as experiências e a sabedoria que o homem deixou conosco para que as guardássemos com carinho e as distribuíssemos e multiplicássemos prodigamente. No caso do Francisco, foi uma vida de jogador de futebol:


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a juventude nesta Ilha de Santa Catarina que ele tanto amou, as passagens como profissional do Direito Trabalhista por Criciúma e Blumenau, a prisão em 1.o de abril de 1964, o cárcere no quartel da PM de Santa Catarina e na Penitenciária Estadual, ambos em Florianópolis, e no quartel da PM do Paraná, em Curitiba, de onde logrou fugir de forma audaciosa, e, depois, numa sucessão quase estonteante, países como Bolívia, Chile, Bélgica, República Dominicana, Honduras, Equador, México, Paraguai, Moçambique até a permissão de retorno ao Brasil, em 1980, sob o amparo da Lei da Anistia. De volta ao país, como conta o filho Rodrigo Dias Pereira, Francisco ainda “participou, no exterior, de algumas missões de organismos da ONU, aos quais esteve ligado durante o exílio, em projetos de desenvolvimento de curta duração; evitava convites para permanências mais longas, pois não queria ficar longe do Brasil”. Em seguida, precisou passar por São Paulo, Brasília e Porto Alegre antes de conseguir fixar-se de novo em Florianópolis, já em 1988, e, coincidentemente ou não, retomar sua atividade literária. Quanta coisa para contar! No entanto, às academias e aos leitores importa em primeiro lugar a obra. A obra é que concede ao escritor a sua efêmera imortalidade. O legado cultural que Francisco transfere aos nossos cuidados também pode ser considerado quase estonteante: vai de uma forte militância jornalística, que inicia aos 19 anos de idade — aos 21 anos, em 1954, recebia da Delegacia Regional do Trabalho o registro número 187 de jornalista profissional em Santa Catarina — até a fundação da Editora Garapuvu, em 1996, da qual se fez editor. De permeio, são dezessete livros de sua autoria e a participação em, no mínimo, sete coletâneas que contemplam desde trabalhos literários a obras de reflexão sobre a realidade dos povos e países em desenvolvimento, com foco muito nítido na América Latina e na África pós-colonial e, portanto, na África conturbada, irmã mais nova que revive nossas atribulações de latino-americanos. Dependência e Militarismo no Brasil, de 1971, é editado em francês na Bélgica como fruto da sua tese de Mestrado em Ciências Políticas, defendida com sucesso na Universidade Católica de Louvain — mesma universidade belga, aliás, que lhe concede o Diploma Especial em Sociologia do Desenvolvimento em curso de pós-graduação pelo Instituto de Estudos de Países em Vias de Desenvolvimento. Aqui — vê-se com meridiana clareza —, em meio à obra insinua-se o homem: ciências políticas, dependência, militarismo, sociologia, estudos, “países em via de desenvolvimento” e, especialmente, Brasil, são palavras e expressões que o homem Francisco, que as preocupações intelectuais de Francisco e que a vida de Francisco levam para a obra do escritor Francisco Pereira. Quanta coisa para ler! O inventário não é pequeno, mas é superado, porém, pela importância dos seus textos. No ano de 1974 surge, em Tegucigalpa, capital de Honduras,


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um estudo sobre As Três Revoluções Agrárias na América Latina, a saber, a do México, em 1910, a da Bolívia, em 1952 e a de Cuba, em 1959. Na mesma cidade hondurenha já surgira, no ano anterior, um cidadão de nome André Dias Pereira, seu terceiro filho. Rodrigo, o segundo, nascera em 1966 durante o exílio chileno, enquanto o primogênito, Francisco José Pereira Filho, é ilhéu de janeiro de 1964, ano crucial para o nosso ilustre e saudoso homenageado desta noite e para todos os brasileiros — inclusive para aqueles que só vieram a nascer muitos anos depois. Como percebem os prezados senhores, as amáveis Senhoras, encontro imensas dificuldades para separar o homem da obra, e vice-versa. Tentarei ser objetivo para não levar esta noite até a madrugada, apesar dos merecimentos para tanto que acumulou o nosso Francisco. Voltemos, pois, a Tegucigalpa e a 1974, quando a Revista da Universidade de Honduras publica um ensaio do catarinense Francisco José Pereira sobre os Aspectos Políticos do Desenvolvimento Econômico na América Latina. Em 1976, no Equador, sai seu estudo que aborda Noções Elementares sobre Métodos e Técnicas de Investigação Social. Já As Organizações Camponesas no México, em publicação da agência da ONU para a alimentação e a agricultura, a FAO, sai em 1978, no próprio México. Cinco Modelos Teóricos de Reforma Agrária, em coautoria com o jornalista baiano Clodomir Santos de Morais, parceria que Francisco tinha em altíssima conta, aparece na Nicarágua em 1981. Já em terras brasileiras, durante sua gestão na Superintendência da Sudesul, em Porto Alegre, vem à luz, em 1987, o estudo em que Francisco discute A Questão Regional. Há, ainda, a participação do nosso homem em uma coletânea de ensaios, publicada em 1989, pela Editora da UFSC e Sudesul, de título A Questão Agrária e o Desenvolvimento Nacional. O destaque nítido para ele, o seu maior orgulho nessa área de não-ficção, é o livro Apartheid — O Horror Branco na África do Sul, ensaio que saiu em 1985 pela importante Editora Brasiliense, de São Paulo, como o volume número 102 de sua prestigiosa coleção Tudo é História. Esse livro do Francisco chegava em 1994 à sua 6.a edição. Como se percebe, efetivamente uma vida de jogador de futebol que relacionasse os títulos conquistados nos clubes pelos quais passou... Senhoras e senhores, há em Francisco Pereira o literato que desde a “tenra juventude”, como se dizia, buscava exprimir os seus anseios e o seu idealismo através da ficção. Nascido nesta Florianópolis em 3 de abril de 1933, ele estreia aos 21 anos com um conto que não veio a publicar novamente, de título Dilema, que saiu na Revista Bússola, em 1954. Depois, entre 1955 e 1959, justamente em paralelo ao curso que completou na Faculdade de Direito de Santa Catarina, foram contos nas revistas Sul e Litoral, no jornal Roteiro, no suplemento Letras e Artes, do jornal O Estado, todos daqui, e no jornal O Semanário, do Rio de Janeiro.


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Depois, foi a atividade profissional incipiente, como já se disse aqui, em Criciúma, como advogado do Sindicato dos Mineiros, e em Blumenau, com banca própria, porém sempre voltado aos pleitos dos operários das indústrias do Vale do Itajaí, que tivessem reclamações contra os patrões — Francisco jamais patrocinou causas dos empresários, o que lhe valeu boa dose de má vontade e até ameaças veladas à sua integridade física. A seguir, 1964 abateu-se sobre ele e sobre todos nós. Sem jamais haver pegado em armas, sem jamais haver violado a Lei, sem jamais haver sido desonesto, Francisco José Pereira foi preso no dia 1.o de abril, às vésperas de completar 31 anos e com um filho de três meses de idade no colo da adorada esposa Natália, com quem estava casado desde 15 de dezembro de 1962, apenas, e a quem deixou viúva em 2 de julho de 2012. Seu crime horrendo foi acreditar na possibilidade de uma sociedade mais igualitária e justa, foi dedicar sua atividade profissional à correção das injustiças contra os desprovidos da sorte, foi abraçar o comunismo como ideal de vida. O comunismo foi a resposta prática que Francisco encontrou para atender as suas convicções humanitárias, as suas leituras juvenis e os seus ideais de justiça e fraternidade. Ao contrário da maioria dos políticos que hoje conhecemos, Francisco jamais abandou suas crenças ideológicas, jamais mudou de rumo em nome de interesses pessoais, tanto que, de 1994 a 1996, tornava-se presidente estadual do PPS, o Partido Popular Socialista, que veio a suceder ao PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Sua adesão ao partidão se deu no primeiro ano da faculdade, em 1955. O que já era uma inclinação íntima, consolidou-se com a leitura de alguns livros que lhe foram facilitados por amigos militantes. Findas as leituras, decidiu-se pela filiação e comunicou formalmente sua adesão ao partido, que foi aceita. E isto, essa aceitação assim pura e simples, foi grande frustração para Francisco. — Então estou aceito no partido? — perguntou. — Sim, estás. A partir de agora, és comunista — responderam-lhe. Francisco não se conformava: — Eu quero assinar a ficha, quero a minha carteirinha do partido! Tiveram que convencê-lo de que bastava a palavra, e que tinha de ser assim porque pensar tanto à esquerda era coisa para ser mantida em segredo, posto que o PCB estava na ilegalidade. Senhoras e senhores, o ficcionista voltou com a volta do autor à Ilha. Como se a compensar tanto tempo longe das letras literárias, Francisco não descansou mais. O romance histórico As Duas Mortes de Crispim Mira sai em 1992. Crispim Mira é o nome da rua da sua infância e adolescência em Florianópolis. Crispim Mira é o Patrono da Cadeira 5 desta Academia, assento que Francisco passa a ocupar em 30 de junho de 2005.


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Desterro de Meus Amores é livro de contos que aparece em 1993. Um Ônibus e Quatro Destinos, de 1994, é uma experiência de romance escrito a seis mãos, com o concurso de outros dois nomes exponenciais da ficção catarinense: Holdemar Menezes e João Paulo Silveira de Souza. Outro romance histórico vem a ser Voo da Morte, publicado em 1995. Em 1996, Francisco nos entrega três obras: sua participação na coletânea de contos Este Amor Catarina (Editora da UFSC), a fundação da Editora Garapuvu e a organização da coletânea Os Dez Mandamentos, com contos de escritores catarinenses, pela Garapuvu e com sua participação. Também pela Garapuvu, ele organiza as coletâneas Contos de Carnaval (1997), Sete Estações da Loucura (1998 e da qual não participa como contista), Círculo de Mistérios — O Conto Policial Catarinense (2000), Nossos Melhores Contos (2003, para a qual escolhe um texto de ficção pelo qual ele sempre demonstrou uma profunda simpatia e que, verdade seja dita, muito bem representa sua eminente arte literária e resume sua concepção de vida, baseada nos valores sagrados da amizade e da compreensão entre os homens, que levam o protagonista a abdicar de vantagens pessoais em nome da lealdade; trata-se do magnífico conto Tesourinha não perdia pênalti) e, sua contribuição derradeira como cidadão, como editor e como escritor, o volume Nem Sempre Foi Assim — Contos dos Anos de Chumbo, em 2007, quase como uma obrigação que Francisco se impunha de dar um testemunho, juntamente com outros autores que comungavam de semelhante visão histórica, deste nosso país. Como obras suas, Francisco ainda nos dá, pela Garapuvu, os contos de O Pardieiro, em 1999, obra premiada por esta Casa como Melhor Livro de Contos daquele ano, Destinos Sem Repouso, contos, em 2001, Havia Estrelas no Céu (e outros contos selecionados), de 2003, e O Tempo de Eduardo Dias — Tragédia em 4 tempos, de 2005, uma dramaturgia histórica que exigiu dois anos de trabalho intenso para ficar pronta, consumiu quase vinte horas de entrevistas gravadas e partiu de mais de duas mil fotografias de revistas, livros e jornais antigos, escrita em parceria com este que tem a honra de vos falar, e que levou míseros quarenta minutos para ser destruída por três processos judiciais, um dos quais se arrasta até os dias de hoje. Como coroamento de uma vida literária, Francisco publicou, sempre pela Garapuvu, seus Contos Completos, em 2006, em bela edição de capa dura, abrigando, porém, apenas trinta e um dos seus contos: da obra ficaram de fora, por motivos que não são conhecidos, três textos, inclusive Dilema, o conto da sua estreia em 1954, além de O Velho Realejo, escrito especialmente para a coletânea Nem Sempre Foi Assim, posterior a esta reunião de contos completos. Senhoras e senhores, estimada Natália, filhos, netos e noras do nosso grande Francisco José Pereira,


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Vejo que, por alongar-me demais, a madrugada já se aproxima. Desculpemme pelas falhas destas pobres palavras com que procurei dar conta da missão que a Academia Catarinense de Letras me incumbiu de levar a cabo. Queria dizer-lhes, muito rapidamente, não mais do que duas coisas. Existem ainda dois outros Franciscos: o da família, que fica por conta do filho André nos revelar, e o amigo com quem convivi, em maior ou menor grau, desde 19 de novembro de 1992, no lançamento de As Duas Mortes de Crispim Mira — este fica guardado no meu coração e no coração da minha família, tanto cafezinho tomamos lá em casa nas tardes em que revirávamos a vida do pintor Eduardo Dias, ocasiões em que ele sempre aproveitava para rever o seu amigão de três anos de idade, o meu neto Caio. Por fim, a segunda coisa: escritor é mesmo um perigo, sempre dá um jeito de se vingar. Ele era tenente da Marinha. Filho de almirante. Preso pelos militares em 1964, Francisco não perdoou: A moça cedeu, afinal. E só não foi mais infeliz, porque teve 18 amantes. Obrigado.


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09.05.2013

pal avr a s de André Dias Pereira, filho do acadêmico Francisco José pereira


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Acadêmico Péricles Prade, ilustre presidente da ACL, em nome de quem cumprimento os demais acadêmicos e autoridades aqui presentes. Senhoras e senhores, Um cumprimento especial aos meus familiares que aqui represento, minha mãe, irmãos, cunhadas, sobrinhos e amigos da família. Permitam-me iniciar esta breve homenagem com a citação de um trecho de um samba antigo, Apogeu, de Herivelto Martins e Cícero Nunes, que diz: Mas se você fracassar pode me procurar, porque / o pouquinho que eu tenho chega também pra você. Esta música nunca saiu de minha mente. Nunca ouvi este samba na consagrada voz de Nelson Gonçalves, mas é a música que me remete a mais tenra infância, a primeira melodia e versos identificados por mim como uma canção, pois meu pai a cantarolava em muitas ocasiões cotidianas, nos carinhosos e inolvidáveis momentos em família, e como a história do homem é escrita na infância, como acreditava meu pai, creio também que estes versos cantarolados em doce cantiga dizem um pouco sobre o que ele foi e sobre os homens que nos tornamos, eu e meus irmãos, sob o seu exemplo e sua imagem. Mas não vamos aqui homenagear Chico Pereira em razão da nossa relação transcendente, aguçada pela novel paternidade na família, e nem para tratar do pai de família amoroso e dedicado que sempre foi, mas sim para exaltar o homem e sua história extraordinária que, na condição de filho, privei amiúde. O camarada Chico Pereira, escritor, advogado e jornalista ilhéu — alvinegro e manezinho condecorado —, completaria oitenta anos no último 3 de abril. Não há um só dia que não me recorde dele, dentre as lindas memórias afetivas, indeléveis. A saudade é infinda, torrencial. Incompletude perene em nossas vidas. Nascido e criado no seio de uma família unida e fraternal residente na Travessa Piedade, entre as ruas José Boiteux e Crispim Mira, no centro de


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Florianópolis. De singular e precoce inteligência, tornou-se jornalista aos 17 anos — um dos decanos em nosso Estado —, quando chegou a dirigir o jornal esportivo O Invicto, que repercutia o futebol profissional da Florianópolis do início dos anos 50. Formou-se em Direito convencido de que o socialismo era o ideário mais generoso para a humanidade, dentro dos seus princípios de justiça e igualdade aos mais infortunados, dedicando desde então sua vida política a esta causa. Membro do PCB, no início de década de 60, foi advogar gratuitamente para os mineiros de carvão em Criciúma, em meio às primais e explosivas greves da categoria. Depois, dedicou-se em Blumenau a defender os explorados trabalhadores da indústria têxtil, dentre crianças e mulheres de direitos sonegados, cutucando a onça com vara curta — as poderosas oligarquias patronais de então — ao cumprir o papel de defensor dos pobres, em cujo escritório formavam-se longas filas de desvalidos em busca de justiça. Preso com o golpe militar de 64, evadiu-se da prisão após sete meses de cárcere, cumprindo 16 anos de longo e doloroso exílio na América Latina, Europa e África, período no qual realizou projetos de desenvolvimento social junto a ONU. Com a anistia em 1980, retornou a Desterro de seus amores, onde regressou à luta política por uma sociedade mais igual e humana e quando retomou a literatura que o alçou a esta egrégia Academia Catarinense de Letras, sempre envolta com a temática dos marginalizados e suas originais estórias na capital catarinense. Digno de nota, anterior a esta retomada literária, foi a produção do livro Apartheid — o horror branco na África do Sul, publicado pela Brasiliense, em 1985, com seis edições e mais de vinte mil exemplares vendidos; obra na qual o autor expôs e examinou o regime institucional racista que ainda então vigia no sul do Continente Africano, com seus reflexos e paralelos em nosso país. Mas apenas o retorno a sua terra, com os cenários, enredos e personagens que o fascinavam, permitiu a Chico Pereira a retomada da sua literatura, tão umbilicalmente relacionada ao lugar e espaço que inspiraram seus textos. A antiga Desterro era a sua aldeia de Tolstói. Leitor voraz, possuía sólida formação literária, dos clássicos universais aos indefectíveis policiais americanos. Muita literatura nacional, Machado, Amado, Rosa, Ramos e, concomitantemente, especial predileção pelas crônicas do Rubem, o Braga, e os contos de outro Rubem, o Fonseca, este, mestre do gênero literário que mais estimulou o homenageado e no qual mais produziu sua literatura militante. Sim, literatura militante, não a do engajamento ostensivo ou descompromissado com a arte literária, mas é certo que em sua obra o homem político, o intelectual comprometido, era intrínseco ao escritor e perpassava toda sua literatura, sutil e intencionalmente, na abordagem das vidas humildes dos


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morros da ilha, nas injustiças sociais dos pardieiros das periferias, nas pequenas privações de infâncias na romântica Desterro de meados do século passado, onde o humano, essencialmente, era o cerne das abordagens e reflexões literárias. Pois Chico Pereira sempre foi intelectual engajado, um militante das causas sociais e humanistas, como, inclusive, deveria ser todo o intelectual consciente, como bem defendeu aqui o saudoso Acadêmico Silvio Coelho Pereira ao recepcionar Chico Pereira nesta Academia em 2005, louvando esta virtude no novo confrade. De fato, o saber, o engenho com o pensar e as ideias de pouco valem se não se destinaram ao aprimoramento humano e, ao cabo, à vida em sociedade, mormente em países desiguais como o nosso, onde justiça, igualdade e dignidade constituem princípios ainda inaplicados à grande massa da população. Exemplo desta literatura militante temos o livro As duas mortes de Crispim Mira, certamente a obra de maior impacto e repercussão de Chico Pereira, romance histórico que resgatou um episódio triste da história catarinense, no qual o autor, com fulcro em longa pesquisa reconstrutiva dos fatos, desnuda a história do assassinato impune de um jornalista destemido que, ao denunciar os abusos e desmandos de políticos locais, foi vitimado pelo sistema de poder elitista e corrupto que imperava nestas plagas no início do século 20. Não sabia, então, Chico Pereira que estava ali, naquela obra, resgatando a dignidade dos últimos dias de vida do seu futuro Patrono, na Cadeira 5 desta ACL, quando aqui ingressou treze anos depois do lançamento do livro, coincidência que uniu dois fervorosos e intransigentes defensores do interesse público e da liberdade. Não se poderia deixar de destacar também a grande contribuição de Chico Pereira às letras catarinenses como editor da Garapuvu, hoje dirigida pelo seu filho, o artista plástico Rodrigo Dias Pereira. A Garapuvu, criada em meados da década de noventa, agitou o mercado cultural de SC com a edição de dezenas de livros de autores catarinenses e de diversas coletâneas de contos, que reuniam o que havia de melhor do gênero em nosso Estado, tendo sido premiada pela ABL com a edição do livro A Lexicologia de Os Sertões, de Manif Zacharias. Livros seus publicados pela Garapuvu podemos citar: Destinos sem repouso, Havia estrelas no céu e O pardieiro, todos de contos, este último premiado como livro do ano de 1999, por esta Academia. Permitam-me oportunamente fazer aqui um reconhecimento necessário à Natalia Dias Pereira, esposa e companheira leal de toda uma vida, em 50 anos de casamento, de dedicação integral à família e porto seguro do meu pai em todos os momentos, sem quem nosso homenageado, certamente, não teria cumprido sua trajetória com êxito. Nosso reconhecimento a esta mulher corajosa e guerreira, protagonista e inspiração da história aqui exaltada.


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Por fim, cumpre registrar que ao longo de sua edificante trajetória de vida, Chico Pereira foi exemplo de integridade e honradez aos que privaram de seu convívio. Testemunhei a grande admiração que a figura de meu pai provocava em quem conhecia sua história, independentemente do perfil ideológico. Assim, respeitado por todos e admirado por muitos, Chico Pereira é nome inolvidável desta terra, figura humana ímpar que deixa um legado de comprometimento, generosidade intelectual e luta por um futuro mais justo e fraterno à sua gente, legado este que permeou toda a sua obra literária. Obrigado!


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02.2014

pal avr a s do Acadêmico Artê mio Z anon em homenagem ao Acadêmico Norberto Ulysséa Ungaretti


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Norberto Ulysséa Ungaretti, um monumento cultural extinto1

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T exto publicado no Boletim Informativo O Trinta-réis, número 74, Ano XVIII, de fevereiro de 2014, páginas 20 a 22, da Academia São José de Letras, em cujo órgão de divulgação, sempre que falece Membro Efetivo da Academia Catarinense de Letras, assim é feito.

A vida de cada ser humano, ainda um mistério, ao menos para mim, é vida enquanto é apenas vida, constituída pelo e no conjunto e atos e fatos. Atos, sempre com a inegável participação da vontade humana; fatos, sempre os da natureza e, eventualmente, com a interferência dom homo sapiens. Por que escrevo isso? Como o universo, cada vez mais aldeia global, ainda é grande e, para cada, a seu modo de viver e de se comunicar, sempre mais confuso, inseguro, distante. Passei perto de um “lago” artificial em pequena cidade do Oeste Catarinense, os dias 9 a 19 de janeiro, quase em completa solidão. Não li nenhum jornal, não assisti a nenhum noticiário televisado, jamais um capítulo de “novela”, e ocupei meu tempo, nas primeiras horas da manhã e duas ou três delas antes de anoitecer, num entretenimento que me dá muito prazer; durante as outras horas, revisando livros, fazendo minhas leituras programadas e o curso para Arrais Amador (direção de “embarcação miúda”, consoante legislação do Regulamento de Tráfego Marítimo). Aos poucos, com a leitura dos jornais diários que assino, entregues a domicílio, vou-me “atualizando”. No dia 23 de janeiro (quinta-feira), leio em um deles, artigo situado, com este título: “Uma lágrima por Norberto Ungaretti”. Estremeci. Tendo voltado no dia 19 (domingo), em torno do meio-dia, por hábito, uma das primeiras ações, sempre que deixo dois ou mais dias, sem fazê-lo, foi verificar todas as mensagens que se encontravam armazenadas na minha “caixa eletrônica”. E nenhuma havia comunicando a morte de quem quer que fosse e da parte de ninguém. Suspendo a leitura do matutino e apresso-me em acessar ao Google, digito: Norberto Ulysséa Ungaretti. Leio:


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“Norberto Ulysséa Ungaretti (Laguna, 15 de maio de 1936 — Florianópolis, 9 de janeiro de 2014) foi um advogado e escritor brasileiro.” Requiescat in pace — Repouse em paz!

Mantendo tradição (desde que assumi a Presidência da ASAJOL, em 3 de agosto de 2005 — Ata número 62 —, por força de licenciamento definitivo da veneranda presidente Zoraida Hostermann Guimarães), o Boletim Informativo O Trinta-réis, da Academia São José e Letras, consagra espaço que entende devido e suficiente à memória de acadêmicos da coirmã Academia Catarinense de Letras, e isso na primeira oportunidade em que possa fazê-lo. Norberto Ulysséa Ungaretti, filho de Gil Ungaretti e de Otília Ulysséa Ungaretti, nasceu e morreu nas respectivas localidades e datas. Nos textos em diversos sítios da Internet, cada autor se expressa a seu modo no sentido de rememorar a vida do eminente cidadão que foi Norberto Ulysséa Ungaretti. De tais fontes e de outras, colhe-se que Norberto teve como primeira professora na Escola Jerônimo Coelho, sua própria mãe, Otília Ulysséa Ungaretti. Em 1956, então com vinte anos, como estudante de Direito, Norberto foi chefe de gabinete do governador Jorge Lacerda. Em 1959, durante a VII Jornada Jurídica Nacional, realizada em Florianópolis, Norberto foi classificado por um seleto corpo de jurados como o melhor orador acadêmico de Direito de todo o Brasil, algo até hoje inédito para um catarinense. Consta que se bacharelou em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Catarina, em 1960. No final dos anos 90, Norberto dedicou-se a projeto de pesquisa para escrever uma biografia do seu conterrâneo lagunense Jerônimo Coelho, político ilustre que deu nome à escola onde Norberto foi alfabetizado. Na pesquisa consta que deu destaque aos discursos de Jerônimo Coelho na Câmara dos Deputados. O livro teria como título Jerônimo Coelho, o catarinense mais ilustre do Império, mas a obra nunca chegou a ser publicada, pois Norberto se recusou a receber patrocínio público. De acordo com uma informação familiar, o livro estaria pronto, mas não há confirmação sobre a intenção da família em publicá-lo. Segundo depoimento de Norberto, em sítio da Internet, não haviam sido estudados, até então, com a profundidade que ele os estudou. Pela narrativa sobre a República Catarinense — particularmente importante por ser contemporâneo dos fatos —, pelos discursos sobre colonização em Santa Catarina, sobre o carvão catarinense — muito antes do início de sua exploração —, sobre assuntos militares, entre outros, revelam o homem culto e preparado que foi Jerônimo Coelho, além de incansável defensor dos interesses catarinenses.


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Norberto Ungaretti (nome que assinava e pelo qual era conhecido) durante muitos anos foi professor do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); foi sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina; foi secretário de Estado dos Negócios da Justiça de Santa Catarina; vereador e presidente da Câmara Municipal de Florianópolis; Advogado ilustre; pelo quinto constitucional (pela OAB/SC), foi nomeado desembargador para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em cujo cargo se aposentou e na instituição judiciária foi diretor e professor na Escola Superior da Magistratura. Como membro efetivo da Academia Catarinense de Letras, em retrospecto através das publicações na Revista da Academia Catarinense de Letras, como sucessor de Nereu Corrêa (eleito em 30 de novembro de 1958 e empossado em 20 de junho de 1960), na edição de número 10, referente aos anos de 1990 e 1991, nas páginas 99 a 104 consta: Discurso proferido pelo desembargador Norberto Ungaretti na Sessão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 27 de abril de 1990, denominando “Ministro Luiz Gallotti” o prédio do TJSC. Na página 12, ainda consta como sendo titular da Cadeira 40, Nereu Corrêa. Na Revista da Academia Catarinense de Letras de número 12, correspondente aos anos de 1993 e 1994, na página 14, Norberto Ungaretti consta como sendo o titular, e nas páginas 165 a 191 consta: Sessão de Saudade do Acadêmico Nereu Corrêa, realizada no auditório da Academia Catarinense de Letras, no dia 8 de junho de 1993 (quinta-feira), às 18 horas, evento tendo na presidência Apóstolo Paschoal Pítsica, sendo que fizeram uso da palavra os acadêmicos Almiro Caldeira de Andrada, Lauro Junkes e João Alfredo Medeiros Viera (sendo que o texto foi apresentado pelo Acadêmico Pedro Bertolino), e manifestou-se também a Acadêmica Sylvia Amélia Carneiro da Cunha. É no número 14, dos anos de 1996 a 1998, nas páginas 29 a 32 que se encontra o: Discurso recepcionando o Acadêmico Norberto Ulysséa Ungaretti, no dia 16 de janeiro de 1997, proferido pelo Acadêmico Napoleão Xavier do Amarante, e nas páginas 32 a 35, o Discurso pronunciado pelo Acadêmico Norberto Ulysséa Ungaretti em Sessão de Posse na ACL, dia 16 de janeiro de 1997. Na Oração Acadêmica, Norberto Ungaretti escreveu: Costuma-se afirmar que ninguém é insubstituível. Trata-se de um consolo, não de uma verdade. Nereu Corrêa é insubstituível. Sou apenas quem o sucede, com grande e imerecida honra, na Cadeira que aqui tanto ilustrou.

E na Antologia da ACL, número 2, Ano 2003, número 23 da “Coleção ACL”, as páginas 455 a 464 são dedicadas ao titular da Cadeira 40 — Norberto


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Ulysséa Ungaretti. Consta que é autor de: Laguna: um pouco do seu passado (Edição do Autor, 2002). Norberto Ulysséa Ungaretti foi vítima de um infarto fulminante, em sua residência, no bairro Trindade. O corpo foi velado no Cemitério Jardim da Paz e o sepultamento ocorreu às 10h30min de sexta-feira (dia 10).


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15.05.2014

pal avr a s de Maria Helena Ungaretti, filha de norberto UlyssĂŠa ungaretti


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Ungaretti, muito mais do que legado intelectual Imagine o escritório de um advogado referência na sua área de atuação, desembargador aposentado, altamente respeitado por toda a classe jurídica. Pois o escritório de meu pai era o oposto do imaginado: móveis de magazine, estantes de ferro, carpete antigo, divisórias de fórmica simples, mesa de reunião repleta de pilhas de papéis, cadeira modesta de madeira. Nunca teve carro importado, nunca fez uma grande viagem, nunca comprou nada de marca e nem ostentou luxo. Sua falta de apego material era notória e sempre soubemos de suas doações mensais para a caridade e de sua compaixão com os menos favorecidos. Mas ainda sabendo que valorizava muito mais o ser do que o ter, por vezes me perguntei: como pode um profissional tão renomado receber grandes e importantes clientes em um local sem um mínimo de senso estético e organização? Após o seu falecimento no último dia 9 de janeiro, encontramos recibos de doações com valores suficientes até para compra de um carro popular. Nunca soubemos disso, na mais nobre forma de caridade: a anônima. Foi quando passei a me fazer outra pergunta: quem mais conheço que realmente abre mão do supérfluo para doar ao próximo? Para qualquer um de nós esse dinheiro não estaria sobrando: sempre precisamos comprar algo novo, fazer uma reforma, investir ou fazer uma viagem. Mas para ele ajudar os outros era muito mais importante do que tudo isso. Ele já tinha uma sala, uma estante, uma mesa, uma cadeira que lhe servia. Para que mais? Meu pai deixou muito mais do que legado intelectual, deixou um exemplo vivo da humildade e da prática de amor ao próximo. E, hoje, data em que completaria 78 anos, afirmo que aquela sala simplória e bagunçada, que um dia me fora motivo de vergonha, hoje é, sem dúvidas, o meu maior orgulho.


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02.2014

pal avr a s do Acadêmico Artê mio Z anon em homenagem aos Acadêmicos Mário Pereira e Evaldo Pauli


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Imortais também “morrem” Mário Pereira1 (nome jornalístico e literário de Mário Antônio da Silva Pereira), nasceu em Porto Alegre, RS, no dia 21 de julho de 1943, filho de João Baptista da Silva Pereira e de Geny Bonfiglio Pereira. Fez o Curso Primário (atual Ensino Fundamental) no Curso Roque Gonzales, da Companhia de Jesus (S.J. — Padres Jesuítas), em Porto Alegre, RS, nos anos de 1948 a 1953; o Ginasial ou Clássico (atual Ensino Médio), no Colégio Anchieta, da Companhia de Jesus, anos de 1954 a 1960; Curso de Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluindo-o em 1965; outros Cursos de Extensão e Especializações em diversas áreas do conhecimento. Como jornalista, destaca-se: Zero Hora (Porto Alegre, RS, de 1967 a 1970); editor-chefe de O Jornal dos Diários Associados e Emissoras Associadas, no Rio de Janeiro, anos de 1970 e 1971; editor de opinião de Zero Hora, de 1972 a 1982; editor da revista Quem/RS, anos de 1982 e 1983; colunista do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, RS, anos de 1984 e 1985; editor de opinião do Diário Catarinense, em Florianópolis, SC, de 1986 a 1989; editor-chefe e diretor-geral do jornal O Estado, Florianópolis, SC, de 1989 a 1997; e editor de opinião do Diário Catarinense de 1997 até agosto de 2009. Residia em Florianópolis, SC, desde 1986. Mesmo depois de se aposentar continuou assinando página semanal de resenhas e crítica (análise) literárias no Diário Catarinense, o que fez até poucos dias antes do falecimento ocorrido em Florianópolis, no dia 21 de julho do corrente ano. É autor de: Fazendo a Cabeça — Jornalismo de Ideias e Crítica (ensaios. Editora Paralelo 27. Florianópolis, SC, 1993, 152 p.); Pequena História de Florianópolis (1994. Editora Terceiro Milênio); Certas Certezas (ensaios. 1995. Editora Terceiro Milênio), com essa obra recebeu o Prêmio Othon Gama Lobo

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T exto publicado no Boletim Informativo O Trinta-réis, número 78, Ano XIX, de setembro de 2014, páginas 17 e 18, da Academia São José de Letras, em cujo órgão de divulgação, sempre que falece Membro Efetivo da Academia Catarinense de Letras, assim é feito.


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D’Eça, conferido pela Academia Catarinense de Letras, no mesmo ano; coparticipação na coletânea Círculo de Mistérios — o conto Policial Catarinense (2000. Editora Garapuvu, Florianópolis, SC); Ao Pé da Letra — Escritores Catarinenses Comentados e Outros Textos (ensaios. 2002. Editora Garapuvu, 154 p. Ilustrada); 12 Histórias (contos. 2004. Editora Garapuvu, 136 p.), obtendo o “Prêmio de Melhor Livro de Contos”, agraciado pela Academia Catarinense de Letras, com Diploma de Mérito, na categoria literária conto, no ano de 2004 e Saudade do Futuro e Outras Crônicas (2011. Editora Insular, Florianópolis, SC, 128 p.). Resultado de trabalho que Mário Pereira desenvolveu como professor da disciplina de Redação Jornalística II e III do Curso de Jornalismo da Unisul — Universidade do Sul de Santa Catarina —, por ele organizadas e com introduções de sua lavra, com a participação de seus alunos, foram publicadas as coletâneas: À Sombra da Pedra Branca — Crônicas Universitárias 1 (2000, 80 p.); Simples Prazeres — Crônicas Universitárias 2 (2002) e A Palavra como Arma — Crônicas Universitárias 3 (2003), pelas Editora Garapuvu e Unisul. Foi eleito Membro Efetivo da Academia Catarinense de Letras, em 20 de outubro de 2009. Da eleição também participaram o jornalista Olsen Júnior e o advogado Mário Osny.

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T exto publicado no Boletim Informativo O Trinta-réis, número 78, Ano XIX, de setembro de 2014, páginas 18 a 22, da Academia São José de Letras, em cujo órgão de divulgação, sempre que falece Membro Efetivo da Academia Catarinense de Letras, assim é feito.

Evaldo Pauli2, filho de Silvestre Henrique Pauli e de Clara Maria Reitz, nasceu em Antônio Carlos, SC, no dia 24 de fevereiro de 1925. Na infância aprendeu a falar em alemão e português. Fez as primeiras letras na terra natal e em Florianópolis (Colégio Coração de Jesus). De ascendência católica, da qual vários parentes se tornaram sacerdotes, inclusive o Padre Raulino Reitz (seu tio), entrou para o seminário, fazendo o curso secundário no Seminário Nossa Senhora de Lourdes, em Azambuja, em Brusque, SC, nos anos de 1936 a 1941, e Superior de Filosofia e de Teologia, respectivamente nos anos de 1943 a 1945 e de 1946 a 1949, em São Leopoldo, RS. No ano de 1942 fez, em Brusque, o Tiro de Guerra, ou seja, o serviço militar. Foi em São Leopoldo que teve os primeiros conhecimentos de Esperanto. Doutor em Filosofia; especialização em Educação e Metodologia e professor na Universidade Federal de Santa Catarina no período de 1955 a 1985, quando se aposentou. Por orientação familiar, costume da época em que em famílias católicas ao menos um membro deveria ser religioso, em 4 de dezembro de 1949 foi ordenado padre secular, na Catedral de Florianópolis, e em 1955, quando iniciava a Faculdade Catarinense de Filosofia, começou o Magistério Superior. Após exercer vários cargos sacerdotais (Sombrio, Laguna e Florianópolis), em novembro de 1967, após quinze anos na paróquia de Trindade (que se estendia na época em todo o território da Ilha de Santa Catarina), levou pessoalmente ofício ao arcebispo, renunciando ao uso de ordens eclesiásticas. Professor assistente de filosofia, na Faculdade Catari-


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nense de Filosofia, por Portaria de 12 de abril de 1955; professor catedrático de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, por ato do Presidente da República, de 20 de outubro de 1961, para exercício desde 28 de fevereiro de 1961, quando a anterior Faculdade de Filosofia era integrada na referida universidade; professor titular de História da Filosofia da Faculdade de Filosofia de Itajaí, SC, por contrato de 19 de outubro de 1970. Na Universidade Federal e em Itajaí, exerceu o magistério das disciplinas de História da Filosofia, História do Pensamento Político, História da Educação, Filosofia, Filosofia da Educação, Introdução à Filosofia, Teoria do Conhecimento, Lógica, Estética ou Filosofia da Arte, em oportunidades alternadas. Lecionou na UFSC Filosofia da Educação, Teoria do Conhecimento, Estética; na Faculdade de Filosofia de Itajaí, Filosofia e História da Filosofia. Alguns dos dados até aqui informados, e outros que seguem, são colhidos da pasta da Cadeira 21, da Academia Catarinense de Letras, para cuja entidade foi eleito em 11 de abril de 1967, tomando posse em 18 de abril de 1968, acrescenta-se: até agosto de 1974, quando requereu inscrição no referido Sodalício, tem-se conhecimento de que em sete anos de curso de nível superior frequentou as disciplinas de Filosofia (várias), Teologia (várias), Matemática, Ciências Naturais, Língua Grega, Hebraico, Literatura, Física, Psicologia Experimental, Pedagogia, Economia Política, Homitética (retórica), Direito Canônico, História Eclesiástica, Canto Gregoriano, Arte Sacra e Arqueologia, Sociologia. Participou do Curso de Metodologia Científica na Universidade Federal de Santa Catarina, em 1973; com tese própria, nos Congressos Nacionais de Filosofia, de Curitiba, PR; de São Paulo, de Fortaleza (centenário de Farias Brito); com tese sobre Fritz Müller, no Congresso Internacional de Filosofia, em Brasília, em 1971; chefe do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, de 1967 a 1969; sub-chefe do mesmo Departamento, de 1970, estando no cargo em agosto de 1974 (data do requerimento para a inscrição na ACL); presidente fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia, secção de Santa Catarina, em 1954. Entre outras, fez parte das seguintes instituições: Academia Catarinense de Filosofia, da qual foi fundador; Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (desde 1948); Academia Brasileira de Filosofia (ocupante da Cadeira Huberto Rohden); da Filozofia Asocio Tutmonda (presidente e fundador, em 1983, em Budapest, associação de filósofos esperantistas); Academia de Ciências Humanas Arcipreste Paiva, Florianópolis, ocupando a Cadeira Aristóteles; membro da Associação Universal de Esperanto (Holanda) e da Universala Esperanto Simpozio, com sede em Rotterdam; da Academia Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro, desde 1988); da Associação Catarinense de Esperanto (tendo sido presidente nos anos de 1986 e 1987); Academia de Ciências de San Marino. É autor das novelas: Madrugadas de Marina (1964);


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Filhas de Tubarão (1965) e Blumenita (1966), publicadas pela Biblioteca Superior de Cultura (Florianópolis, SC). Estética Geral (1963); Tratado do Belo (1963); Que é pensar? Fenomenologia do Conhecimento (1964); Primeiras Luzes do Pensamento — Crítica Fenomenológica do Conhecimento (1965); Cruz e Sousa — Poeta e Pensador (1973); A Fundação de Florianópólis (1973, 2.a Ed. 1986); Desafio aos Olhos A zuis (romance, 1978, 208 p.. Obra vencedora do I Concurso Catarinense de Romance, Prêmio Barriga-verde, idealização da Editora e Livrarias Lunardelli); Manual de Metodologia Científica (1976); Esperanto Básico — Baza Esperanto (1985); Hercílio Luz, Governador Inconfundível (1976). Em Esperanto: Rekta Pensado (1983); Pri Dubo kaj Certeco (1985 — com publicação também em francês); Enkonduko en la kategoriojn de Aristotelo (1983, traduzido do texto Grego de Porfírio ao Esperanto e com comentários); Mil jaroj de la Kristana Filozofio (1985, traduzido ao francês) e Baza Esperanto — Esperanto Básico (1985) e dez anos depois Filosofia do dia a dia (1995). É autor de vários outros trabalhos, alguns inéditos, disponíveis na internet, integrados à Enciclopédia Simpozio, que é uma obra universal on-line e bilíngue, com artigos e tratados escritos em português e na língua internacional Esperanto, sendo provedora e patrocinadora a Universidade Federal de Santa Catarina. Participou de Congressos Universais de Esperanto: em Brasília (1981), em Antuérpia (Bélgica, 1982), Budapest (Hungria, 1983), Vancouver (Canadá, 1984), Augsburg (Alemanha, 1985), Rotterdam (Holanda, 1988), Havana (Cuba, 1990), Begen (Noruega, 1991). Também participou em Conferências Internacionais de Esperanto: Metz (França, duas vezes) e Popard (Slováquia) e nesses congressos sempre ocorreram Simpósios de Filosofia, desde 1983, os quais presidiu e nos quais apresentou trabalhos, tendo participação em vários congressos brasileiros de Esperanto. Outra fonte de pesquisa é a Revista da Academia Catarinense de Letras, e na de número 6, Ano 15, edição de 1983, na Diretoria de 1981 a 1984, Evaldo Pauli ocupou o Cargo de Bibliotecário; na Dietoria de 1984 e 1985, foi o 2.o Secretário; na Diretoria de 1988 a 1990, foi secretário e na Revista da ACL, número 8, Anos de 1986 a 1988, páginas 154 a 171, publicou o artigo Uma Política para o Fenômeno Cultural do Folclore; na Diretoria dos anos 1990 a 1992, foi reconduzido ao cargo. Em 1991, a Academia Catarinense de Letras, ao ensejo dos Setenta Anos de existência, publicou a Antologia, “Coleção ACL n.o 1”, Evaldo Pauli no cargo de secretário, sendo que, como participação, tem biobibliografia e textos nas páginas 208 a 213. De 1992 a 1994, integrou novamente a diretoria executiva, o mesmo ocorrendo no biênio 1992 a 1994, e na Revista da ACL, número 12, anos de 1993 e 1994, Evaldo Pauli assina o texto Esperantistas, quem Somos Nós? (p. 49 a 52), discurso proferido na cidade de Anápolis, Estado de Goiás, em 15 de julho de 1992, na qualidade de presidente


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do Conselho Federativo da Língua Brasileira de Esperanto, por ocasião da inauguração do monumento ao Esperanto, na praça central da cidade. Nos anos de 1994 a 1996, Evaldo Pauli continua no exercício do cargo. Na pesquisa na Revista da ACL, a partir do ano de 1996, Evaldo Pauli não mais passou a exercer cargo na diretoria, no entanto, nas páginas 82 a 96, Evaldo Pauli tem publicado o discurso, como orador oficial, que pronunicou em homenagem ao “Centenário do Acadêmico Vieira da Rosa, Sessão Solene realizada em 25 de junho de 1998, na ACL. Na Revista da ACL, número 16, anos de 2000 e 2001, Evaldo Pauli aparece na fotografia que ilustra a quarta face da referida publicação da entidade. Na edição do número 17, ano de 2002, da Revista da ACL, Evaldo Pauli tem discurso publicado nas páginas 161 a 164, proferido ao ensejo da Sessão de Saudade do Acadêmico Lydio Martinho Callado, realizada na ACL, em 15 de março de 2001. Em 2003, da série “Coleção ACL”, veio à luz o número 2, da Antologia e Evaldo Pauli tem texto nas páginas 236 a 245, em cuja obra, está na foto da quarta face, e consta republicado o “Discurso Informal sobre o Hino do Estado de Santa Catarina”, com a observação entre parênteses e em itálico: (Discurso iniciado em 28 de agosto de 1997, por ocasião do Chá, na Academia Brasileira de Letras, RJ, esta então em alongados festejos de centenário. Agora versão de abril de 2000). Ninguém desconhece, no mundo cultural e cívico catarinense, a luta em que se empenhou Evaldo Pauli (e continua em plena campanha o também acadêmico, músico e maestro, teólogo e filósofo, polígrafo e poliglota padre Ney Brasil Pereira), com relação ao “Hino de Santa Catarina”. Embora o conhecimento de causa do tema, pois há pouco tempo fiz parte de uma comissão oficial para se estudar o tema, objetivamente se sim ou se não, a comissão, após vários meses de análises e com integrantes qualificados e especialistas, resolveu por bem, opinativamente, que nada deveria ser mudado. Por questão de respeito à memória de Evaldo Pauli, permito-me apenas transcrever a proposta: Bela e Santa Catarina, Praias, serras verdejantes Tens a graça da menina; Tens a força dos gigantes Estribilho Catarinense, avante! Com trabalho, com amor, Preserva a natureza, Que é nosso grande valor!


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Pela mão do bandeirante Te fizeste pioneiro! Com o trabalho do imigrante, Um Estado altaneiro! Nossas praias são tão belas! Nossos vales verdes são! Nossa gente tão singela, Trata a todos como irmãos! Como estrela bem notada, Te destacas — és gentil! E tua gente sempre honrada Enobrece meu Brasil! Assim, conhecida a proposta de letra, e como entrevisto, uma letra repetitiva, genérica, ingênua até. Para não ser uma opinião gratuita, note-se, por exemplo, a rima pobre e forçada dos 1.o e 3.o versos da 1.a estrofe; de outra, atente-se para o conteúdo do 2.o verso da 1.a estrofe com o dos 1.o e 2.o da 4.a estrofe. Evaldo Pauli faleceu em Florianópolis, SC, no dia 17 de agosto de 2014.

Artêmio Zanon Titular da Cadeira n.o 37 da Academia Catarinense de Letras e da Cadeira n.o 29 da Academia São José de Letras.


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Tragicomédias d’Alcova contos

Edson Ubaldo

Edson Nelson Ubaldo, a par de suas obras jurídicas e de seus escritos sobre vinhos, consagrou-se como um autor de contos regionalistas em que retrata personagens e costumes do planalto catarinense no linguajar típico da região. Bandeira do Divino, Rédea Trançada, O Voo da Coruja valeram-lhe a Cadeira n.o 12 da Academia Catarinense de Letras. Em Tragicomédias d’Alcova, sem perder o humor serrano que caracteriza sua literatura, Ubaldo adota vocabulário urbano, atual, para criar suas histórias picantes, mas realistas, onde heróis e vilões da vida moderna replicam os coronéis de outrora, tão bem caracterizados em seus livros anteriores. Sob os ternos bem cortados e as gravatas de seda de empresários e doutores da era da informática, vislumbram-se facilmente as bombachas e os lenços brancos e colorados dos fazendeiros serranos. Mudaram as aparências e os métodos, mas a essência dos personagens continua a mesma. Através dos contos que compõem o livro, ao explorar a sensualidade e a sexualidade, o autor desnuda o íntimo das pessoas, em contundente crítica aos costumes de uma sociedade em que os atos de trair, mentir e enganar se tornaram corriqueiros, ao ponto de serem confundidos com qualidades e virtudes. Entretanto, em que pesem as inevitáveis reflexões de ordem moral e filosófica a que o leitor é remetido, ou independentemente delas, os contos de Ubaldo, vazados em linguagem precisa e elegante, reveladora de sua vasta cultura humorística, inclusive na área enológica, constituem empolgante e agradável leitura, indispensável a quem aprecia a boa leitura. Antônio Fernando do Amaral e Silva Desembargador aposentado e ex-presidente do TJSC


268 produção acadêmica de 2013

Projeto de Código Penal ensaio

Gilberto Callado de Oliveira

Seduzidos por palavras talismânicas, os juristas encarregados de elaborar o projeto de novo Código Penal redigiram um texto que, na realidade, constitui fiel caixa de ressonância dos objetivos estratégicos e revolucionários previstos no Programa Nacional de Direitos Humanos — PNDH — 3. Nesse projeto, figuram muitas propostas que violam a genuína dignidade da pessoa, da família e da união conjugal, como o aborto, a eutanásia, o chamado combate à homofobia, a hipervalorização do meio ambiente etc. Propostas que contém estranhas descriminalizações ao lado de desproporcionais penalizações, espezinhando os mandamentos da Lei de Deus e a própria lei natural, além de não representar a opinião pública de nosso país. A presente obra tem a finalidade de alertar os brasileiros para o imenso perigo de ser nossa legislação penal visceralmente subvertida, em aberto confronto com as gloriosas tradições cristãs que, desde os primórdios da nossa história, alicerçam a nação brasileira.


269 produção acadêmica de 2013

Um Roteiro Histórico e Sentimental pelas Ruas de Florianópolis ensaio

MÁrio Pereira

Jornalista e escritor, Mário Pereira tem quase três décadas de vivência no cotidiano florianopolitano. Desde quando respirou os primeiros ares locais, sentiu o que disse: o cenário de muitas e muitas vidas na sinfonia inacabada das gerações. Em 1994, já havia publicado A Pequena História de Florianópolis. Agora retorna com este Um Roteiro Histórico e Sentimental pelas Ruas de Florianópolis. Elegeu alguns ícones que vivenciaram momentos desta Ilha entre os séculos XVI e XIX e com estes seres humanos passeia procurando trazer para o presente o espaço, a paisagem e as pessoas que os circundavam. São eles, Aleixo Garcia, Dias Velho, Joana de Gusmão, Irmão Joaquim e os açorianos, com quem alinha fragmentos do passado que julgou importantes para o conhecimento das novas gerações, deles tão carentes. No menino de Canasvieiras, Virgílio Várzea, ilhéu de quatro costados que soube descrever, como ninguém jamais fez melhor, o show que a natureza oferece e em Franklin Cascaes e seu mundo bruxólico, insere os elementos que caracterizam a identidade da Ilha, valorizando as suas tradições que, de tempos em tempos, ficam esmaecidas; mas que, também, de tempos em tempos, resplandecem com muito brilho pela sensibilidade de alguém, como Mário Pereira, que pressente as vozes da tradição. Na busca do que a memória ilhoa guardou e que, pela oralidade, ganhou foros de verdade, não omitiu o desagradável passado da Revolta de 1893-1894. Foi quando o revanchismo, às degolas indiscriminadas de anônimos legalistas, levou ao ajuste de contas maculando proeminentes biografias; gesto induzido pelas regras absurdas do belicismo, episódio vigoroso que inflama imaginações.


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Conclui evocando Cruz e Sousa, nosso poeta de todos os séculos, o Cisne Negro que cantou para o mundo o simbolismo e, descreveu, como ninguém, este fenômeno natural característico da Ilha: o velho vento saudoso... o velho vento vagabundo. Escritor de talento, Mário Pereira tem sua obra reconhecida na nossa literatura, onde marca presença perene, já que foi eleito para a Cadeira n.o 8 da Academia Catarinense de Letras. Assim seus pares deram-se conta do seu catarinensismo e, este novo livro, conciso e pujante, é testemunho de que o autor conheceu, namorou e tornou-se apaixonado pela terra que almeja preservada e inesquecível. Jali Meirinho


271 produção acadêmica de 2013

O reino dos esquecidos romance

MIRO MORAIS

O reino dos esquecidos, romance de Miro Morais lançado em 2013, está estruturado em oito capítulos que embora sobrevivam por si só, são costurados pela história do Barão de Vinhedo, Dom Manoel Manso, personagem central. São eles: Início da aventura; Rumo ao desconhecido; A construção dos sonhos; Um novo olhar; Origem de Mariano Paixão; O amor de Fábio Paixão; O reino ameaçado e Início final. Dom Manoel Manso é um fidalgo muito próximo ao Imperador que, por razões misteriosas, abandona a corte no Rio de Janeiro e se lança à aventura de criar no Sul do Brasil um povoado onde as pessoas possam ser felizes. Para realizar o seu sonho não lhe basta dominar a natureza hostil e fascinante e aprender a conviver com ela. O seu projeto entra em conflito com as crenças e as regras, a ordem e a desordem e o poder que reina sobre tudo e todos. E isso se transforma em mais uma ameaça para o seu plano e a sua vida. Mas a determinação de Manoel Manso não tem fronteiras. Aos poucos ele atrai para sua ideia, vista como visionária, também aqueles que nada tinham: nem bens materiais nem esperanças. E, logo, também os ambiciosos de riqueza e poder. E tudo vai se transformando em um universo com alma própria. Pequenos e grandes heróis expõem suas paixões, seus ódios, seus amores, a traição e a solidão, suas esperanças, tristezas e alegrias. As suas múltiplas histórias se entrelaçam — em capítulos que se auto justificam — dentro de um enredo maior, onde convivem os aventureiros e os acomodados; os santos e os assassinos. Para Dom Manoel Manso o ser humano é o seu santo e o seu demônio. E, dentro dele, perde o que ele conseguir


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mais fragilizar. E é esse desafio da liberdade que ele próprio, cada um dos moradores do lugar que fundou e o próprio país se deparam todos os dias, todos os momentos, que o desencanta e fascina. Este terceiro romance de Miro Morais, é uma obra destinada a incluir-se entre os grandes romances clássicos. O mundo imaginário — maravilhoso e inacreditavelmente real — as múltiplas histórias articuladas com o enredo central, os personagens, tudo envolve e fascina a cada página, a cada parágrafo, a cada frase, em que as palavras são precisas. Um raro livro, em qualquer tempo, sem gratuidades dentro da literatura. Uma obra ao mesmo tempo lúdica e capaz de provocar uma maior visão sobre o mundo humano e sobre cada leitor. O reino dos esquecidos é um romance denso, de fôlego; uma epopeia tupiniquim. Ele vem colocar em evidência mais uma vez o autor de A coroa no reino das possibilidades (1967) e de Cândido Assassino, ganhador da categoria “autor catarinense” no Concurso Nacional de Romance — Prêmio Cruz e Sousa (1982). Vem, na verdade, consolidá-lo como um dos melhores romancistas brasileiros em atividade. Pinheiro Neto


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cancioneiro da ilha poesia

Pedro Bertolinho

Pedro Bertolinho há poucos meses me contatou dizendo de seu interesse em editar um livro. A partir daí comecei a acompanhar seu trabalho por uma rede de relacionamento e tive a nítida impressão de que já havia visto aquele tipo de poemas em algum lugar. Ele os chama de nano-poemas e foi por aí que me dei conta. Faz algum tempo que transduzi (não, não é erro de digitação, não; é transduzi, mesmo) os limeriques de Edward Lear para nosso idioma. Pois assim que me deparei com os nano-poemas me lembrei imediatamente de Lear. Pedro criou, ao seu modo, um tipo de poema (ou nano, como queiram) que lembra muito os limeriques de Lear. Lembrei-me também dos antigos Pão-por-Deus, espalhados a sorrelfa pelos quatro cantos da Ilha em tempos remotos e dos hai-kais e tankas japoneses. Além do que, me contou a história de um roteiro de cinema perdido numa enchente, e que transformou nesse livro, contando a vinda de um forasteiro para a Ilha e este perdendo-se nela, nos seus cantos e encantos, nos seus casos e ocasos raros. Aqui podemos lembrar da velha “Ilha da moça faceira” de tantos e tantos personagens, de tantos lugares aprazíveis, de seu povo alegre e hospitaleiro, de seu vento sul, seus peixes, suas praias, seus bruxedos e, assim como num filme, lembrarmos desse “pedacinho de terra”, hoje tão em voga, no tempo em que ainda estava “perdido no mar”. Vinícius Alves


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Cantata Lírica para Melânia e Outros Cantares poesia

Artêmio Zanon

Caríssimo amigo! O que lhe dizer daqui de tão distante do Brasil e de Santa Catarina? (...) Você é simplesmente um Grande Poeta. O seu Evangelho dos Amantes, composto com cem sonetos decassílabos, o faz, por certo, um dos grandes clássicos da atual Literatura Brasileira que conheço. Nelson Studzinski (Krakow, Polônia, correspondência datada de 08.12.1983)

Recebi o teu O Sétimo Dia, do qual já li a primeira parte, ou seja, os quatro primeiros contos. Deles O Caso Zaneide Rosas é antológico pela forma como o narrador e o escritor tratam o desenvolver dos fatos. Rapaz, fiquei até com pena quando terminou. (...). Meus parabéns pelo novo livro. E bota o pé na estrada da prosa (conto, principalmente) que você tem engenho e arte para ir longe. Acadêmico Celestino Sachet (Ilha de Santa Catarina, correspondência datada de 12.08.1984)

Cinco Poemas Dramáticos, comprova o poeta magnífico, inspirado e culto que sabe explorar a poesia na sua essência e profunda, na sua linguagem e na sua construção lírica. Acredito, com segurança, que os teus poemas dramáticos vieram para ficar na literatura catarinense, entre os melhores. Paschoal Apóstolo Pítsica Presidente da Academia Catarinense de Letras. (Florianópolis, 08.10.1998)


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Artêmio Zanon — Cinco Poemas Dramáticos (Papa-Livro, 1998). Une rose au coeur de chacun, voeu choisi de ce Professeur d’Université dont l’oeuvre poétique est considérable. Au-delà des principes, il écrit selon la tradition ou la modernité, avec une aisance à quoi s’accordent des regards lucides, interrogateurs e réfléchis. Jean-Paul Mestas Poeta ( Jalons — 4ème trimestre 2000, n. 68, p.19, Nantes, França)

Estimado Artêmio Zanon. Agradeço o Tempo de Execução que muito prazer me deu de ler. Gostei sobretudo de Sesta (de Tarefadário, p. 44), da parte IV, de Solstício, p. 42 e do poema Claricanto, do Livro Cinco — Claricanto —, p. 70/1. Parabéns, também, pelo seu invejável curriculum. Um abraço de Fernando Aguiar (Apartado 50253 — 1707 Lisboa Codex — Portugal, 05.10.2000)

Caro Artêmio-Poeta. Mais uma vez seu poema me afeta! Acho que Cruz e Sousa deve estar se regozijando onde quer que esteja. Seus sonetos são sedutores e emblemáticos e se mesmo após a leitura de Cisnes, ainda não escrevi nada (como de costume), é porque os versos se encontram incubados em algum dentro de mim, só esperando para serem externados. Parabéns! Paulo Berri (Florianópolis, SC. Por endereço eletrônico, 26.04.2008, às 17h41min)

Artêmio, acabei de ler o Evangelho dos Amantes. Sensacional! Dizer qual dos cem sonetos é o melhor, isso me é impossível, embora a maior emoção causada na leitura de alguns. [...]. Super abraço, grandes inspirações! David Gonçalves Romancista e contista (Mensagem datada de 19.09.2013, às 20h17min, Joinville, SC)


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Ossos do dia poesia

Artêmio Zanon

Caro Confrade Artêmio Zanon Recebi seus livros Voar de Asas, Somos Pouco Todos Nós e Minhas Horas Cristãs. (...) nem sempre os livros são lidos logo após o seu recebimento. Assim é que tenho, em minha frente, teu livro de poemas Voar de Asas (no qual, conforme a página de rosto, consta que foi escrito em 1960 — quando tinhas vinte anos — e publicado somente em 2010, ou seja, meio século de espera!). Li alguns poemas e pude sentir incomparável maturidade e a intensa serenidade nos textos. Pode-se sentir, em cada poema, um tema abordado onde se manifesta a segurança, a profundidade, o lirismo e a projeção dos mesmos para a receptividade do leitor. Naturalmente que, de cada autor, como é o caso presente, e de acordo com a vivência do leitor, é determinada certa preferência por este ou aquele texto. Tenho diante de mim, o poema Quando o Eterno nasceu (p. 76-7). Todo o enredo preparatório do grande desfecho, segue suave, tranquilo, cheio de paz, harmonioso, sonoro, um prenúncio para algo grandioso que, no céu e na terra, estaria por acontecer. E quando se aguarda um retumbante epílogo, eis que o Poeta (mais que simplesmente poeta) não se deixa vencer pelo entusiasmo da inspiração, e segue no mesmo tom, calmo, sereno, para cantar: Quando o Eterno nasceu houve num instante do mundo, só Glória e Paz .


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Transcendência ( p. 63-4) — Ah, Poeta, que vivência simplesmente bela, como belas são todas as coisas justas. Deixa-me abusar de tua paciência, caro Confrade, mas sou instado a reproduzir alguns versos: ... é felicidade que não se manifesta: ela está dentro de mim, e de mim exala como o perfume a flor, e a flor jamais deixa de ser flor. Sorri.

E, assim, é. Poderia continuar com mais algumas citações de teus belos poemas, no entanto, vou me resguardando de meus comentários. Mas, o que desejei realmente foi manifestar o prazer que me proporcionou a leitura e a vivência dos belos poemas que a alma de um Poeta soube oferecer aos que têm sensibilidade para perceber que o mundo do Poeta é feito de sonhos e que, para o Poeta, o sonho é a sua mais pura realidade. Parabéns, caro Confrade! Edy Leopoldo Tremel


279 produção acadêmica de 2014

UM MARCO HISTÓRICO poesia

C. RONALD

No futuro, a poesia brasileira vai ser conhecida por um divisor de águas: antes de C. Ronald e depois de C. Ronald. C. Ronald é o poeta brasileiro que levou a poesia brasileira ao nível da poesia da Europa, o que Neruda fez pelo Chile. A cultura poética mundial moderna está toda ela por trás da criação de C. Ronald. Ele compete naturalmente com o que existe de melhor no mundo de hoje. Tive informação de que um grupo de literatos esteve cogitando — não sei se fizeram —, em candidatá-lo ao Prêmio Nobel de Literatura. Ele está perfeitamente à altura. Cabe, entretanto, uma advertência aos poetas brasileiros que, estimulados pelo exemplo de C. Ronald, quiserem levar a literatura brasileira adiante no cenário mundial: a crise mundial da literatura, — e a poesia não escapa disso, — é total. Estamos aguardando no mundo inteiro os criadores que venham repor a literatura no papel de porta-voz criativo do espírito humano, que ela exerceu antes de ser esmagada pela civilização científico-tecnológica que está aí. Ricardo L. Hoffmann


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Discípulos de Ninguém romance

Olsen Jr.

A prosa brasileira, desde Machado de Assis, e mesmo com a negação modernista, de viés antropofágico — no sentido de que era preciso “comer” o estrangeiro para regurgitar uma literatura nacional — sempre pagou tributo à literatura europeia. Somente a partir dos anos de 1920 a Europa (e na esteira os autores brasileiros) se curvou a outra vertente literária, com uma linguagem menos rebuscada, e que, por ironia, teve a influência marcante da poesia de Walt Whitman. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, a partir de suas estadas em Paris, viveram, com James Joyce, Pound e Gertrude Stein, principalmente, os loucos anos de 1920, época da conhecida e hoje batizada “geração perdida”. Ainda assim, a literatura norte-americana teve a partir daí, em especial na poesia, o impulso da geração Beatnik dos anos 60. Olsen Jr., um dos mais importantes prosadores da moderna literatura produzida em Santa Catarina, com ressonância no país, reconhece, seja em depoimentos, entrevistas e inclusive em sua obra, de cunho às vezes confessional (ainda quando não trata dos personagens sob o ângulo autobiográfico), sua filiação a Hemingway e Fitzgerald, na literatura, e agrega, no plano filosófico, os ensinamentos e práticas do também escritor Jean-Paul Sartre, o pai do Existencialismo A rigor, em toda sua prosa, nos contos e nos romances, Olsen Jr. faz remissões a estes autores, e, como não se pode fugir às influências (Harold Bloom que o diga), sua obra absorve a cadência e determinadas proposições filosóficas de suas leituras. Como Sartre, apesar de o filósofo francês ter se dedicado também à crítica literária (cujo exemplo maior é o autobiográfico As palavras), Olsen Jr. defende, ainda que de forma


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subliminar, que a reflexão filosófica e o engajamento do ser humano devem ser mais importantes que a literatura, ou a linguagem que a engendra. Nos anos de 1970, quando Olsen começa a escrever, o Brasil vivia sob um regime ditatorial, e é nesse contexto de reflexão sobre a própria existência que seus personagens circulam, sempre rebeldes. Sua militância cultural, como editor, jornalista, agitador, gestor público e agora membro da Academia Catarinense de Letras, é também fundamental para a compreensão de sua obra. Neste livro, cujo título é revelador de seu engajamento (para usar um termo sartriano), dois personagens dialogam de modo incessante sobre o tema “estar no mundo”, e procuram, sob um regime de exceção, não somente entender suas naturais situações existenciais, mas propor uma saída, tentar incluir em suas vidas uma espécie de sentido de militância para viver e combater as vicissitudes humanas, os abusos de poder e injustiças tão caras àqueles autores citados. Olsen Jr., portanto, faz a crítica necessária ao statu quo de uma época datada (vale lembrar que foi escrito nos anos 80), mas passa ao largo da literatura que se fazia então na América Latina, que sofria assemelhados problemas de repressão política. Se na Colômbia (com García Marquez) e na Argentina (com Borges e Cortázar) a tônica era o realismo fantástico, o autor de Discípulos de Ninguém escolheu a linguagem a que é fiel como leitor, o discurso direto de autores que estavam há bem mais tempo escrevendo, malgrado tenham chegado aos leitores brasileiros tempos depois, os já citados Hemingway e Fitzgerald. Para Olsen Jr., escrever é quase uma sina, como bem salientou o intelectual Rodolfo Konder: “Olsen consegue confirmar a verdade do que disse certa vez o Velho Bruxo argentino Jorge Luis Borges: “ser escritor não é uma profissão, é um destino”. Um livro há tanto tempo iniciado e sua coragem de (re)buscá-lo no fundo da memória, revisá-lo, atualizá-lo, revela muito da obra e da vida de seu autor. Quando afirmamos que seus personagens são autobiográficos, e o autor de seus discursos, ansiedades, desejos e contradições se manifesta através deles (ou o contrário), somos obrigados a dizer que a literatura precisa também destes traços dialéticos, quase dramatúrgicos, criados pela ojeriza que o autor tem à submissão humana, qualquer que ela seja, de onde ela venha e tão bem manifesta em sua obra. Enfim, a leitura de Discípulos de ninguém é fundamental para se compreender uma época de triste memória, cujos fatos históricos e personagens centrais (Osvaldo e Ernani), projetados no curso do tempo, propiciam o melhor/maior conhecimento do que se passa no presente. Péricles Prade


282 produção acadêmica de 2014

LEATRICE POETA — verso e prosa poesia

Leatrice Moellmann

Quem conhece e convive com a poeta (prefiro esta grafia à outra, poetisa, de aceitação escolar pertinente) Leatrice Moellmann já se habituou em ter em mãos com relativa periodicidade um livro de poemas da autora. Normalmente sonetos bem trabalhados onde evoca situações de um romantismo de que parece sempre estar imbuída ou de uma estranha saudade, um estigma de quem transmite ideias através de versos. Em seu último livro, Leatrice Poeta — verso e prosa, entretanto, parece ter decidido dar uma guinada, como se tivesse de prestar contas de sua vida para a história ou pelo menos celebrar um acordo público com o que julga ser: primeiro, a essência de sua vida, a literatura através da poesia/prosa e segundo, quem sabe a motivação para que um dia pudesse fazer a escolha que fez com todos os seus “porquês” bem defendidos. Texto de leitura leve. Inicia com uma síntese da chegada da família Moellmann ao Brasil, se atendo às lembranças afetivas que emocionaram a autora diretamente e do que retém na memória da época e prossegue com sua própria vida, evocando a infância, a juventude, o primeiro casamento (do qual afirma ter “saído” em tempo), os cursos, as especializações, enfim, a escolha livre e voluntária do seu próprio caminho, sem nunca perder de vista esta essência que a tornou poeta a ponto de levá-la a ocupar a Cadeira n.o 7 da Academia Catarinense de Letras. Livro corajoso e revelador, que consegue conciliar a matéria que é de memória (fatos, lembranças e história) com os sentimentos (amor, nostalgia, saudades), e para quem mantém a sensibilidade em alta, esta obra de Leatrice Moellmann é um prato delicioso, bem servido, cujo paladar transcende mesmo depois de a comida ser degustada.


283 produção acadêmica de 2014

Jorge Lacerda biografia

Moacir Pereira

Jorge Lacerda é uma das mais brilhantes personalidades de nosso país, sobre quem pouco tem se transmitido às gerações que o sucederam. Reconhecendo outras importantes contribuições, reparar em parte esta omissão é o objetivo desta obra, pois sua prematura e fatal perda em 1958, não pode obscurecer seu legado. Eis aqui os principais discursos de Jorge Lacerda, revelando, além de algumas das suas principais ideias, preocupações e propostas, a sensibilidade que tinha ao tratar os problemas humanos, sociais e econômicos de Santa Catarina, bem como seus atributos para motivar e proteger a produção cultural nacional. Também artigos, depoimentos e crônicas de ilustres intelectuais brasileiros, consagrando-o e elevando-o como importante vulto da nação. São páginas que ilustram a memória do grande humanista e estadista aqui biografado, seja como jornalista, notável incentivador e promotor da nossa cultura, ou como político, brilhante parlamentar e aplaudido governador!


284 produção acadêmica de 2014

trilogia

prosa péricles prade

Não é prudente acreditar em poetas Não é prudente acreditar em poetas, já disseram: Platão, quando quis expulsá-los de sua república; Fernando Pessoa, ao proclamá-los “fingidores”; e Gilberto Gil, na canção “Metáfora”, quando cantou: “Por isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata”. Lembrei de toda essa “penca de gente sabida”, replicando o verso de Ezra Pound, quando li e reli Memória Grega e outros poemas viajantes, de Péricles Prade, porque ele é poeta na mais alta acepção da palavra. E sendo, não é de outro modo que não aquele que despista; aquele a quem não se deve crer no sentido prosaico da vida, mas em outro, no plano inatingível, e muitas vezes intangível da arte poética.


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São inúmeras suas qualidades. Seja porque almeja, como queria Wally Salomão, “o poema de arquitetura ideal”, seja porque sua poesia, desde Este interior de serpentes alegres, seu livro de estreia, tem a unidade necessária do ofício. E ela se dá em todos os níveis desejáveis, principalmente no musical, no que tange à métrica, e na elevação de objetos e seres que ele vê, sente e vive em metáforas, e no visual mallarmaico, quando é possível ler versos separados em outro plano espacial, como no poema “Mistery Tour”, no qual palavras destacadas compõem outro verso que diz: “ou digo/ quem grita / é santo”. Além disso, não faz concessões, não pretende agradar e não pertence a nenhuma escola, apesar da paixão, reconhecível nos seus versos, por Apollinaire, Saint-John Perse e Borges, nunca como diluidor, mas como mestre, na classificação de Pound, atribuindo-lhes a virtude daqueles homens que “combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores”. Este também não é seu primeiro livro de viagens, e desconfio que ele viaja para escrever versos e os transforma em outras viagens. Estas, precisamente as que não devemos confiar no sentido de colher informações sobre paisagem, costumes, povos ou línguas, mas confiar na leitura poética dos lugares “reais”, o outro olhar, o olhar do “outro” que só poetas podem descrever. Um dos versos deste Memória Grega é revelador neste sentido, quando o poeta “conversa” (viaja) com o filósofo grego: “A Pitágoras consulto / sobre o número exato / das línguas em sobressalto”. Em outro verso, joga dados com piratas falantes, e em uma das imagens mais comoventes do livro, quando frequenta o Circo Estelar, multiplica-se ao infinito com o número oito tatuado na testa, e se divide em sete, desde que seja solicitado com educação. Mas Prade avisa logo na introdução, para que nenhum leitor sinta-se traído ou desavisado: “As viagens imaginárias e atemporais prevalecem sobre as fundadas no real imediato.” E vai além, dizendo com mais economia aquilo que este prosador de orelha gasta duas abas para escrever: “Em meus poemas, quase sempre, ele [o real imediato] constitui mero pretexto para catapultar, ao universo da escritura, as impressões e intuições geradas pelo caminho movediço rumo à perseguida e inalcançável epifania.” Péricles Prade é um dos poetas mais importantes do país, não só porque viaja longe dos modismos, ou porque criou a unidade dentro não somente de cada livro seu, e na interligação de todos eles, como um ouroborus poético — no qual o alfa um dia comerá o ômega — mas também porque construiu, ao longo de sua trajetória, um universo à parte do “real”, porém, “incrivelmente” real (a realidade à qual não é prudente que se creia) tanto sobre a visão particular das descrições sobre as sensações de uma viagem, quanto sobre o próprio ofício de escrever versos, porque a metalinguagem é a chave essencial de partida para a melhor fruição desta e de toda a sua obra. Fábio Brüggemann


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molecagens vernáculas crônica

Sérgio da Costa Ramos

O petrichor de Sérgio da Costa Ramos Estamos aqui juntos, a atriz Maria Paula e eu, para afixar um par de brincos nas orelhas deste livro. Nós o fazemos por uma razão muito simples: ambos a-do-ra-mos os textos de Sérgio da Costa Ramos. Degustamos cada crônica como se fora, e o é, como diria Jânio Quadros, um principesco acepipe, que, aproveitamos para lembrar, designou originalmente em árabe a passa de uva e o fico seco, que os “brimos” chamam “az-zebib”. Os textos deste cronista, senhor de um estilo de refinamento florentino, açoram nosso paladar literário há vários anos. Aos leitores que não sabem o que é “açorar” lembramos que é proceder como o açor, a ave de rapina parecida com o falcão nos hábitos de caça, existente em tão grande quantidade num arquipélago português que lhe deram o nome de Açores. Os prezados leitores (ia dizer “amados”, mas meu parceiro neste texto ponderou que “prezados” está bom demais, acho que é ciúme, que, soube por ele, significa excesso de zelo...), mas, dizíamos, os prezados leitores pensam que invocamos e evocamos o açor e os Açores à toa? Um momento: precisamos ver se à toa, que tinha hífen, ainda tem. Conferimos. Não tem mais. Ah, essas reformas ortográficas. Ainda ficaremos analfabetos de algumas delas! Não! Não trouxemos açor, a ave, e Açores, o arquipélago à toa. É que a herança açoriana é uma das mais belas contribuições portuguesas ao belo estado de Santa Catarina. Deonísio já apresentou outro livro de Sérgio da Costa Ramos, na companhia de Luís Fernando Veríssimo. E agora


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o faz em minha (de Maria Paula) companhia. Nos dois casos, meu amigo foi editor do cronista quando fez isso. Foi no passado e o é agora. Artimanhas das transcendências de nossas vidas. Também eu (Maria Paula), cheguei aos livros do Deonísio por outras pessoas. “Querido Deonísio, precisamos falar mais de Sérgio da Costa Ramos nesta apresentação, não?.” “Há controvérsias. Ele está posando de latifundiário neste livro. Tocou para nós só esse par de brincos nas orelhas dele, isto é, do livro dele!.” “E o que dizemos mais, então?.” “Amada Maria Paula, vamos transcrever uns tira-gostos de suas crônicas. Assim o leitor provará e verá que são deliciosos. Não é preciso comer toda a iguaria para saber se a comida está boa de tempero!.” “Boa ideia! Transcrevamos, então.” Primeiro, este memorial do Sérgio quando menino: “Um colega da primeira série C me garantiu que, ali, naquele catatau, poder-se-iam encontrar todas as palavras sacanas do mundo. E todos os palavrões também. (...) Passei a tarde inteira às gargalhadas, ávido por saber se naquele tijolo impresso haveria mais palavras ridículas ou feias. Ridículas como “esparadrapo”. Engraçadas como “penico”. Feias como “Mer...,” reticências. Naquele tempo os palavrões eram quase castos de tão inofensivos. “Diacho”, “istepô”, “purgante”... “Pentelho”, não. Era palavrão pesado.”. E este outro pedacinho, escrito em tempo de eleições, fresquinho, pois ultimamente sempre temos tido eleições: “Uma Aleivosia”, que é uma falsa acusação, custa baratinho, mais ou menos mil reais. Já uma “Contumélia”, com esse nome de flor do mal, custa um pouco mais. Um bom insulto, uma ofensa bem planejada — dessas que “pegam pesado” — bem que pode cair no gosto do povão. Aí, o artigo fica um pouco mais salgado. Pula para R$ 2 mil. Uma “Verrina”, assim entendida como “uma crítica apaixonada e violenta”, não fica por menos de R$ 3 mil, incluída a gravação em estúdio. Trata-se de remédio caro na receita eleitoral. “Verrina” é uma crítica mais fundamentada e com “parecença” de verdade. É um destampatório completo, uma coleção de ofensas. É uma crítica com assinatura de “grife”. Criação do seu padrinho de batismo, o tribuno romano Cícero, patenteador da “Verrina”. “Será que ficou boa nossa apresentação, prefácio, orelha, Deonísio? Quero ter certeza de que todos percebam que tanto eu como você além de leitores, somo fãs do Sérgio. Aliás, para seguir no seu estilo didático de escrita, quero revelar minha sensação de estarmos diante de um petrichor! Será que dessa vez eu consegui te pegar?” “Pegou, Maria Paula! Pela primeira vez nos últimos anos, alguém me pergunta uma palavra cujo significado ignoro. E, uma vez que você tem aquele ar da minha primeira professora, que tinha um cheirinho bom e abraçava com carinho este então pirralho, me explica o que é petrichor, palavra que, confesso, nunca tinha ouvido ou lido.”


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“Petrichor, Deonísio, é o cheiro da chuva! Melhor dizendo, o perfume maravilhoso que se sente quando cai a primeira chuva após um período prolongado de seca. A palavra vem do grego ‘petros’, que significa pedra, e ‘ichor’, que nada mais é do que o líquido que circula dentro das veias dos Deuses da mitologia! Realmente, é coisa dos Deuses.” Um artigo da revista Nature, explica o fenômeno com bastante clareza. Certas plantas expelem um óleo que tem como função proteger as sementes da germinação! Danadas de inteligentes essas plantas, certamente a época da seca não é a mais apropriada para que suas sementes germinem. Pois bem, esse óleo é absorvido pelas pedras e pela terra e é solto no ar durante a chuva juntamente com o “geosmim” (composto metabólico produzido por uma actinobactéria), se houver raios na tempestade, o ozônio também estará presente enriquecendo ainda mais o perfume da mistura! Enfim, já estava há algum tempo achando que os livros de crônicas eram sempre mais do mesmo... Até que me caiu nas mãos esse livro, anunciando que a época da seca havia terminado. Então, mãos à obra leitores, vocês têm nas mãos um material cheio de frescor”. Maria Paula Fidalgo Atriz, psicóloga e apresentadora de televisão, mais conhecida do público por seus trabalhos na TV Globo (a série Malhação, o programa de humor Casseta e Planeta etc.)

Deonísio da Silva Escritor e professor. Seus livros mais recentes são Lotte & Zweig (romance) e De onde vêm as palavras (etimologia)


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NOSSA FAMÍLIA AUMENTOU prosa

URDA ALICE KLUEGER

“Bem que eu a via aos pulos e corcoveios, durante os dias, naquele canto do quarto, brincando com aquele fio elétrico, talvez a coisa que mais a encantasse dentro de casa — mas sempre tinha a esperança de que ela desistisse de desligar aquela tomada, mas era uma esperança vã — em algum momento do dia ela enfiava lá as unhazinhas e puxava a tomada para fora. Digamos que ela fez tal coisa durante uns 500 dias — atualmente não faz mais — e eu queria entender que milagre a salvou de ser eletrocutada as 500 vezes, tendo em vista que gatos só tem sete vidas, conforme dizem, e não havia vida que chegasse para tanto risco de choque. Vamos partir do princípio, portanto, que a vida de Manuella Saens é uma coisa milagrosa.” Lélia Nunes


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