O Armário do Banheiro

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O Armário do Banheiro

Texto: Frederico Oliveira Toscano Ilustração: Celso Vinícius Sales

Levantei-me da banca e deixei a sala de aula. Lá dentro, o professor explicava, com seu sotaque quase cômico, que os artigos, em alemão, simplesmente não possuíam regras. Pareceu a hora perfeita para usar o banheiro, uma vez que, ausente de regras, uma explicação torna-se um mero exercício de memorização. E isso podia esperar até que eu voltasse do sanitário. Caminhei pela fileira homogênea de armários de metal, passando pelo banheiro feminino, buscando chegar ao seu equivalente masculino, em direção diametralmente oposta. Nada. Um tanto confuso, refiz meus passos até o inicio da galeria de armários. Encontrei o banheiro feminino e voltei pela direção oposta, agora mais lentamente. Mais uma vez nada. Apenas fileiras


intermináveis de armários metálicos perfeitamente simétricos. Estéreis.O banheiro masculinho simplesmente não estava lá. Fiquei em pé, confuso, meu cérebro tentando formular explicações racionais para uma situação tão bizarra. Nenhum som escapava das salas de aula do CAC. Não havia o ruído de estudantes conversando ou de pés se arrastando pelos corredores. Estava envolto pela penumbra criada pelas velhas lâmpadas que se esforçavam, quase em vão, para expulsar a noite daquele local, quando meus ouvidos começaram a registrar aquele inusitado silêncio. Havia uma estranha imobilidade no ar, uma calmaria. O olho do furacão. Ansiosos, os armários me observavam com seus cegos olhos de metal. Foi então que percebi. Estava bem à minha frente, todo aquele tempo. Esperando-me. Um armário, como todos os outros, e atrás dele, uma porta. Intrigado, afastei a peça de mobiliário, que ofereceu pouca resistência aos meus esforços. Parecia querer se mover e revelar o que escondia atrás de si. Era, de fato, a entrada para o sanitário masculino. Estaquei, em dúvida. Por que a porta do banheiro masculino estaria oculta daquela forma? Quem faria tal coisa? O silêncio ao meu redor havia evoluído para um pulsar cadenciado, reverberando em meus ouvidos. Um ritmo surdo, que se espalhava pela minha pele, ossos, sangue e coração. Estendi a mão suada e abri a porta. Dentro, escuridão total. Uma réstia de luz corajosa ousava invadir aquele negror, revelando uma parte dos lavabos e o espelho na parede em cima deles. Meu reflexo parecia estranho, pouco definido. Não natural. Fitei meus próprios olhos, buscando conforto e familiaridade e encontrei apenas escuridão. O pulsar tornava-se mais alto, me impelindo a avançar em direção as trevas. Dei um passo para dentro. Mais outro. Com os olhos adaptados à ausência de luz, consegui identificar, à minha direita, a fila de cabines individuais de sanitários, suas portas escancaradas. Menos uma. O pulsar parou repentinamente. Meu olhar foi irresistivelmente atraído para aquela porta cerrada. Fui chegando devagar. Toquei a superfície estranhamente fria da madeira. A luz atrás de mim parecia morrer aos poucos, agonizando, desistindo de lutar. As trevas não aumentaram, ficaram apenas mais densas, quase palpáveis. Envolveram-me como uma teia de escuridão, tecida por algo antigo, uma coisa sem explicação, uma mente dominada por propósitos alienígenas demais para que a mente humana possa ao menos começar a compreender. Senti o meu cérebro ser invadido por visões


de horror indescritível, uma torturada existência afastada da luz e do calor, eternamente vagando por intermináveis corredores repletos de armários enferrujados, para sempre encontrando aquela porta oculta, revelando segredos sombrios que pessoa alguma jamais deveria conhecer. Parei. Caminhei lentamente para trás. O pulsar retornou, urgente. Chamando, implorando por mim. A luz pareceu renovar-se, fazendo as sombras abandonarem, apressadas, seus esconderijos infectos. Virei para a passagem e saí do banheiro. Lá dentro, ouvi a cabine do sanitário se abrir lentamente. Com as mãos trêmulas, fechei a porta do banheiro. O pulsar era um tambor, rufando no ritmo do meu coração descompassado. Por baixo da horrenda pulsação, um som de arrastar, bizarro e, ainda sim, estranhamente familiar, como que saído de alguma região primitiva do meu cérebro, dormente, porém jamais esquecido. Em pânico, tentei recolocar o armário no lugar. O mobiliário, antes tão leve, agora encontrava-se pesado, obstinadamente imóvel. O pulsar era insuportável. Sinto que a coisa estava quase chegando à porta, sua presença imunda roubando a força das minhas pernas. Desesperado, lancei meu corpo contra o armário, sentindo uma dor aguda causada por suas protuberâncias metálicas. A pulsação parou. O som de arrastar desapareceu. Olhei ao redor e vi que me encontrava no início da fileira de armários. A luz, antes mortiça, agora se espalhava saudavelmente por todo o local. Ao longe, escutei o tagarelar dos estudantes deixando suas salas de aula. Afasteime, cambaleando, daquele estranho lugar. Um tanto trêmulo, retornei à minha aula de Alemão, que já estava se encerrando. Ao notar minha face pálida, um dos estudantes comentou: - Meu irmão, velho, o que foi que tu comeu? Forcei um sorriso no canto dos lábios, murmurei um boa-noite para as pessoas e me retirei. Voltando para casa, fiz a mim mesmo um juramento que jamais pretendo quebrar. Nunca mais, na minha vida, vou ao banheiro do CAC.

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.


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