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Murilo Rubião, criador e editor do Suplemento Literário do Minas Gerais NUNES, Aparecida Maria (Unifal-MG)

Não foram poucos os problemas que o escritor Murilo Rubião enfrentou ao criar um suplemento literário, como forma de difusão de informação e cultura, dois anos após o golpe militar de 1964. Sobrinho do juscelinista Israel Pinheiro, eleito em 1965 ao governo de Minas Gerais, Raul Bernardo Nelson de Senna ocupava o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado quando resolveu encarregar Rubião de criar uma página de textos noticiosos e literários no Minas Gerais, como alternativa para os 200 municípios mineiros que estavam na ocasião sem receber informação além de suas fronteiras. A ideia de Senna era a de reviver antiga tradição do diário oficial que chegou em 1929 a publicar crônicas de um de seus redatores: o ainda desconhecido Carlos Drummond de Andrade, sob os pseudônimos de Antônio Crispim e Barba Azul. Murilo Rubião aceita a proposta de Senna, mas recomenda de pronto a realização de um suplemento e não apenas de uma página. O projeto sofre resistência por parte de alguns escritores mineiros, céticos à iniciativa, pois temiam não haver material literário suficiente e de qualidade para publicar. A ideia, caso o suplemento vingasse, era recorrer a traduções. Mas Rubião guardava uma antiga recomendação do escritor paulista Mário de Andrade ao poeta Carlos Drummond de Andrade, quando, em 1925, este fundou o periódico modernista A Revista, juntamente com Emílio Moura e Gregoriano Canedo. O autor de Macunaíma aconselhou: “Você deve fazer uma revista compósita, uma revista misturada, em que o novo se misture com o velho” (Cury, 2001, entrevista). Belo Horizonte vivia em meados da década de 1960 um marasmo artístico e a produção de jovens escritores não encontrava apoio da mídia. Os suplementos de jornais estavam em declínio. Apenas dois ainda resistiam no mercado: o do jornal O Estado de S. Paulo (SP) e o do Correio do Povo (RS). O diálogo entre as gerações praticamente não existia. Nesse cenário, o conselho de Mário de Andrade não poderia ser mais atual. Mesmo sendo vítima de difamações infundadas, inclusive de alguns membros da Academia Mineira de Letras, Murilo Rubião não abdica da proposta esboçada. Não esmorece e decide abrir espaço para autores mineiros que residiam em outros Estados e até no exterior. Encontra apoio em Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro, e em Murilo Mendes, em Roma. No período de um mês, o primeiro número do Suplemento Literário é encartado ao Diário Oficial do Estado, no dia 3 de setembro de 1966, com uma tiragem de 27 mil exemplares. No expediente, Murilo Rubião figura como secretário da publicação e Paulo Campos Guimarães está na direção da Imprensa Oficial. O editorial expõe o feitio esperado – “reivindicar a importância da literatura, frequentemente negada ou discutida” – e privilegiar a poesia, o ensaio e a ficção em prosa, como também a crítica literária, a de artes plásticas e a de música. Multidisciplinar, pois, em época na qual esse aspecto era pouco discutido. 1


Com a proposta de publicar autores consagrados e desconhecidos, conforme conselho do modernista paulista, o primeiro número já denota a audácia de seu criador para aqueles tempos, amparado pela diversidade de assuntos e por aglutinar, em torno do Suplemento Literário, nova geração de escritores, artistas e pensadores da cultura brasileira. Logo na estreia, por exemplo, a edição conta com ilustrações de Álvaro Apocalypse e Yara Tupynambá (que estudaram com Guignard), publica o poema “O país dos laticínios” de Bueno de Rivera e o ensaio sobre Sousândrade de Affonso Ávila. O crítico Fábio Lucas escreve sobre a “Função da poesia renovadora” e João Camilo de Oliveira Torres comenta o papel das Minas Gerais diante da política que o país vive. Na página três, a poeta e ensaísta Laís Corrêa de Araújo inaugura a coluna “Roda gigante”, cujo prestígio manter-se-á por alguns anos. E assim é que, pelo incansável trabalho e personalidade determinada de Murilo Rubião, o Suplemento Literário congrega nomes como Adão Ventura, Affonso Ávila, Ângelo Oswaldo, Carlos Herculano Lopes, Duílio Gomes, Eduardo Frieiro, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa, Humberto Werneck, Ivan Ângelo, Jayme Prado Gouvêa, Luiz Vilela, Márcio Sampaio, Maria José de Queiroz, Roberto Drummond, Oswaldo França Júnior, Paulinho Assunção, Sebastião Nunes e Wander Piroli, entre tantos. O lançamento do Suplemento Literário do Minas Gerais – SLMG, apesar da oposição para sua feitura, foi marcado por solenidade oficial, cuja cobertura mereceu noticiário de página inteira no segundo número do encarte. Com a presença de secretários e representantes do governo do Estado, ex-diretores e funcionários da Imprensa Oficial, de conceituados artistas plásticos, escritores e jornalistas, a cerimônia foi caracterizada por pompa e merecidos elogios. Rubem Braga, embora capixaba mas “afeiçoado a coisas de Minas” por ter iniciado a carreira de jornalista em Belo Horizonte, salientou a importância da criação do SLMG e enalteceu seus realizadores, argumentando que a qualidade do primeiro número mostrou “que sua execução foi entregue a gente capaz” (SLMG, 10 de setembro de 1966, p. 8). Houve também quem até arriscasse uma profecia, como a que fez o jornalista José Guimarães Alves, exdiretor da Imprensa Oficial, ao considerar que o SLMG “está destinado a marcar época na vida literária do Estado” (SLMG, 10 de setembro de 1966, p. 8). Mas esse vaticínio não era infundado. Vinha amparado por dois predicados que destacou em seu comentário: o conteúdo do primeiro número e o fato de a direção estar confiada ao escritor Murilo Rubião.

Um Luxo Chamado Murilo Rubião Em sua última entrevista concedida, em agosto de 1991, a Luciene Alves, o contista Murilo Rubião confessa que “quase ninguém acreditava num suplemento literário em jornal oficial” (SLMG, 26 de outubro de 1991, p. 26). Mas essa descrença principalmente de parte da intelectualidade belo-horizontina não foi o único obstáculo a ser superado. Problemas de ordem operacional também exigiram paciência e determinação da equipe do SLMG. Murilo conta que, para conseguir contratar um fotógrafo, foi necessária a espera de mais de dois anos e a criação de uma lei por parte do governador para tal. Até então “os trabalhos de fotografia eram feitos por profissionais de outros jornais”, explica. E, para solicitar a colaboração de alguém,

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somente por carta, porque era muito difícil conseguir interurbano. A carta, por incrível que pareça, chegava mais rápido, comenta Rubião. Um dos grandes méritos do SLMG reside no trabalho de valorização e difusão do conto em época na qual o gênero estava em declínio. Cada edição tinha por princípio abrir espaço para contistas, consagrados ou não. A seleção era rígida. Não somente os contos, mas tudo o que o SLMG publicava era submetido a severo controle de qualidade. Mas, como era um encarte em jornal oficial, algumas pessoas acabavam desprezando as regras da publicação. Rubião recorda a fúria de um juiz do Tribunal de Alçada ao serem recusadas algumas crônicas de elogio ao governador do Estado. “Publicamos crônicas, sim. Mas literárias; de elogios não”, respondeu o editor (SLMG, 26 de outubro de 1991, p. 26).

Fac-Símile da primeira página da primeira edição do Suplemento Literário Fonte: Acervo de Escritores Mineiros – Fundo Murilo Rubião

Aliás, a história do SLMG, sobretudo nos anos iniciais em que Murilo Rubião esteve à frente, não pode ser contada sem o que se chamou depois de Geração Suplemento. Não sem o olhar perscrutador da elite cultural de Belo Horizonte, as páginas do suplemento contribuíram ainda para a renovação da ficção brasileira contemporânea. Vale salientar que no período compreendido entre os anos 1966 e 1969 3


surgiram nomes como o de Humberto Werneck, Sérgio Sant’Anna, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Vilela e Roberto Drummond, entre tantos outros. Humberto Werneck, por exemplo, foi parar no SLMG a convite de Murilo Rubião. Werneck havia ganhado em 1965 um concurso de contos do qual Murilo era jurado. “Ele apostou em mim – a gente nem se conhecia e ele me levou”, conta.

Já não me lembro do valor do cheque que recebi das mãos de Alceu Amoroso Lima, mas sempre considerei como maior prêmio o exemplar autografado de Os dragões e outros contos com que Murilo me presenteou. E me senti importantíssimo quando, em 1966, ele me convidou para colaborar no suplemento, o que comecei a fazer em 1967. Olhando para trás, devo admitir que, na apoteose mental de meus 21 anos, fui tomado pelo que chamo de vertigem de sobreloja. Razão de sobra, sei hoje, tinha Paulo Mendes Campos ao observar que na vida literária a verdadeira glória vem no começo. (WERNECK, 2011, p. 5)

Werneck considera que o SLMG alcançou merecido prestígio por ter sido conduzido por Murilo Rubião. “Ele foi, de longe, o intelectual mais generoso e isento de preconceitos com que já cruzei, e isso se estampou com nitidez no seu suplemento”, avalia. Werneck recua no tempo e sinaliza que o talento de Rubião já se manifestara em outros órgãos de comunicação. E faz questão de frisar que “a redação do Minas tinha, em 1965, um luxo imerecido chamado Murilo Rubião, a quem a chefia, pouco imaginativa, entregava tarefas pífias como escrever necrológios – necrológios de gente viva, inclusive, como foi o caso do ex-presidente Wenceslau Brás, que só viria a morrer em maio de 1966” (2011, p. 3). Tamanho apreço pelo profissional de imprensa que foi Murilo Rubião não se separa da admiração que a geração de novos talentos nutriu igualmente pelo caráter ilibado do editor do SLMG. Discretíssimo, Murilo jamais posou “de maître à penser, de guru, de dono do terreiro”. Era um enigma, conclui. Murilo, podemos dizer, seguiu à risca o conselho de Mário de Andrade. Não desistiu de oferecer oportunidade aos novos talentos literários. Para tentar conter os ânimos, toma algumas providências. Werneck, que estava por lá nessa época, nos conta: Desde o começo, pôs lado a lado nomes consagrados, como Emílio Moura, Henriqueta Lisboa e Bueno de Rivera, e o sangue novo de Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Libério Neves, Sebastião Nunes ou Adão Ventura. Até mesmo passadistas como Moacir Andrade, Djalma Andrade e Eduardo Frieiro, escritores de nariz torcido para o já grisalho Modernismo, tiveram espaço no suplemento de Murilo Rubião. (2011, p. 4)

O pesquisador Roniere Menezes considera que a personalidade de Murilo Rubião se adaptou satisfatoriamente ao projeto do Suplemento, “pois ali podia exercer sua competência administrativa, conviver e trocar correspondências com os amigos de todos os tempos e lugares e agregar novas amizades” (Cf. Murilianas, em sítio murilorubiao). Murilo também, mediante a consolidação desse projeto em pleno regime militar, foi um favorecedor da difusão daquilo que de melhor se produzia em cultura no Brasil. Mas, a despeito de tudo isso e do sucesso da iniciativa, Rubião, como descreve o jornalista Ângelo Oswaldo, conservava sua simplicidade peculiar: 4


O Murilo era um homem tímido, discreto, muito reservado e sempre escondido atrás dos óculos e do bigode, parecia até o homem do poema do Drummond, que ficava atrás da piteira. Murilo fumava muito e usava uma pequena piteira. Gaguejava um pouco, ele baixava um pouco os óculos e olhava, tinha os olhos grandes, era um homem tímido e reservado, falava pouco, mas sempre o que ele dizia era inteligente, irônico, ele gostava de rir, de satirizar as situações. (Cf. Murilianas, em sítio murilorubiao)

Roberto Drummond, Murilo Rubião e Luiz Vilela Fonte: Acervo de Escritores Mineiros – Fundo Murilo Rubião

Murilo Rubião, embora protegido pelos óculos e bigode, como instila Ângelo Oswaldo, olhou longe. À frente do Suplemento abriu espaços e democratizou a produção intelectual, esgarçando fronteiras. Ateve-se ao local e ao regional, como era de se esperar por ser uma publicação semanal comprometida editorialmente com a Secretaria do Estado e Cultura do Estado de Minas Gerais. Mas ousou privilegiar ainda a crítica e a literatura de caráter universal, sobretudo as literaturas portuguesa e africana de língua portuguesa. Para tanto, não bastaram as oito páginas iniciais. Já na segunda edição, a publicação no formato 40x26cm passou a ter doze páginas. E os números especiais circularam com dezesseis. O sucesso, portanto, era inevitável. Na opinião de Ângelo Oswaldo, foi precisamente no Suplemento que Murilo se revelou “um homem com talento político e diplomático, porque tanto conseguiu superar as resistências e restrições dos conservadores da Academia Mineira de Letras e dos escritores reacionários e subliteratos, como também venceu as pressões do regime autoritário” (Cf.: Depoimento de Ângelo Oswaldo sobre o suplemento literário no sítio murilorubiao). 5


Além das montanhas de Minas Murilo Rubião reunia notável experiência administrativa e jornalística quando se responsabilizou pelo SLMG. Foi a oportunidade para realizar uma antiga ambição, revelou certa vez. Havia a necessidade urgente de criar espaço para talentos jovens. Essa prerrogativa, que constituiu um dos méritos do suplemento e que exigiu de Murilo empenho e jogo de cintura suficientes para driblar o conservadorismo literário mineiro, talvez tenha se sustentado pela importância de Mário de Andrade na vida de um rapaz de 23 anos de idade. Quando Mário de Andrade viaja a Belo Horizonte, em 1939, como convidado do Diretório Central dos Estudantes para inaugurar o programa de difusão cultural do DCE mineiro, alguns intelectuais se reúnem na estação para recebê-lo. O jovem Murilo Rubião, que havia ingressado há pouco como redator da Folha de Minas, recebe a pauta para entrevistar o poeta modernista. Mário viaja pelo Noturno da Central e recusa recepção formal. Desembarca às 10h de um sábado. Era 11 de novembro. A simplicidade e a solicitude de Mário de Andrade confirmaram no espírito do jovem redator aquilo que já se sabia do modernista. Murilo ficou de tal forma impressionado com a cultura e generosidade de Mário, que o artigo que publica, intitulado “Mário de Andrade, Minas e os mineiros”, não somente apresenta valor de documento, mas também pontua aspectos sobre as impressões de Murilo sobre Mário e alguns pressupostos que se fazem notar em Murilo na condução do suplemento, quase trinta anos depois. O texto é divulgado na revista Tentativa, fundada em 1939 por Rubião e outros colegas da faculdade de Direito. Mas não reproduz uma entrevista. Diante da conversa longa e dos assuntos interessantes tratados por Mário de Andrade, o novato jornalista preferiu fazer um “apanhado das opiniões e impressões” ali registradas. O texto confirma “as qualidades de homem que ainda não conhecíamos” e destaca, em Mário de Andrade: a prosa simples, a acolhedora bondade “principalmente no tratar com os moços”, o carinho por Minas e pelos intelectuais mineiros, a cultura desmedida. Mas, um aspecto parece ter fisgado a atenção de Murilo, o qual podemos inferir pelo primeiro parágrafo: “Toda época tem os seus revolucionários. Os que não se conformam com os erros do seu tempo, com a mediocridade dos que não conseguem desprender-se dos modelos velhos, sentindo a incapacidade para criar novos” (Rubião, 1993, p. 153). Murilo apresenta dessa maneira seu entrevistado ilustre, com o qual manterá correspondência, mas, por outro lado, por ironia do destino, o texto também configura o cenário político e cultural da implantação do SLMG e da resistência que demonstrou ao lidar com a estagnação e soberba da intelectualidade do final da década de 1960, sobretudo em Minas. Conforme Humberto Werneck, Minas Gerais “era onde o semanário de Murilo Rubião fazia menos sucesso. Julio Cortázar lia em Paris o suplemento que em Belo Horizonte era ignorado pela pequenez liliputiana de escribas provincianos” (Werneck, 2011, p. 6). Alguns protestos também vinham do interior mineiro que não compreendia certas liberdades e ousadias dos novos talentos. Polêmica marcante aconteceu, por 6


exemplo, devido a um verso do poema “O poeta mede a altura do edifício”, de Affonso Romano de Sant’Anna, em 1967, por chamar o prédio Empire State de “o pênis maior do mundo”.

Fac-símile da capa que causou escândalo por causa de um verso Fonte: Acervo de Escritores Mineiros – Fundo Murilo Rubião

Foi um escândalo. Somente contornável pela habilidade diplomática de Paulo Campos Guimarães, então diretor da Imprensa Oficial. Mas não foi fácil conter o alvoroço:

Vigários, freiras, prefeitos, vereadores, juízes, promotores de tudo quanto é canto de Minas protestaram contra o metro escolhido pelo poeta para medir o famoso arranha-céu-nova-iorquino. O governador, mesmo, não dava maior importância a tais reclamações. Certa vez, no palácio, cutucou Murilo Rubião: “Como é, tem saído muito palavrão no nosso suplemento?” – e deu uma gargalhada. (WERNECK, 2012, p. 196)

A redação do SLMG funcionava em uma sala do térreo da Imprensa Oficial, batizada com o nome de Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao poeta que na mesma sala trabalhou quando, em 1924, atuou como redator do Minas Gerais. Apesar de ser considerado pelos conservadores como um antro de “maconheiros, comunistas e gays”, o local tornou-se ponto de encontro dos jovens escritores protegidos de Rubião. Discutia-se muito o papel da literatura no contexto marcado pela ditadura militar e dos movimentos artísticos engajados de oposição política.

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Atento, pois, à proposta de publicar sempre produção de vanguarda, Murilo Rubião escreve a poetisa Ana Hatherly, comunicando-lhe o interesse do SLMG em homenageá-la. Aproveita a oportunidade e sonda a possibilidade de se realizar um número especial dedicado à nova literatura portuguesa. A intenção foi boa. A proposta ganha fôlego e resulta em dois números especiais, 131 e 132, que circularam em 1º e 8 de março de 1969, com a colaboração dos escritores portugueses Arnaldo Saraiva e E. M. de Melo e Castro e dos brasileiros Laís Corrêa de Araújo, Affonso Ávila e outros.

Exemplar do SLMG proibido de circular na Portugal salazarista. Fonte: Acervo de Escritores Mineiros – Fundo Murilo Rubião

Portugal, que ainda estava sob a ditadura salazarista, interpreta como provocação a página com as cores vermelho e verde da bandeira portuguesa, estampando o nome “Portugal” em preto sobre um fundo vermelho, e proíbe a circulação do SLMG em terras lusitanas. Ernesto Manuel de Melo e Castro, nome consagrado na poesia visual e experimental, foi intimado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado – Pide – a não divulgar o SLMG. E Ana Hatherly, uma das figuras mais expressivas do movimento de vanguarda da “Poesia Experimental”, também foi convidada pela Embaixada Brasileira em Portugal, na época tendo por adido cultural o escritor Otto Lara Resende, a conversar a respeito do ocorrido. A literatura latino-americana do mesmo modo era discutida pelo SLMG, sobretudo na seção “Roda Gigante”, entre 1966 e 1969, de Laís Corrêa de Araújo, que comentava lançamentos de livros e revistas, apresentava escritores e noticiava eventos culturais. Laís também traduziu o conto “Todos os fogos o fogo”, primeiro texto publicado no SLMG de Julio Cortázar.

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Conclusão É graças a obstinação de Murilo Rubião que o Suplemento foi o que foi. Testemunha da época, o jornalista Ângelo Oswaldo, que conheceu o escritor quando da realização da publicação, recorda que não bastou um olhar apurado para levar adiante o projeto do Suplemento. Murilo, segundo Oswaldo, sofreu, inclusive, pressões de autoridades militares por considerarem que ele estaria acobertando escritores de esquerda. De “reduto de comunistas”, o encarte que deveria ser despretensioso como qualquer encarte de jornal, na verdade foi um órgão de resistência contra a mediocridade. Murilo esteve à frente do Suplemento até 1969. Resistiu a todo tipo de intempérie até ser denunciado como subversivo. Deixou o cargo de editor, mas em seguida assumiu a chefia do Departamento de Publicações da Imprensa Oficial. Diante desses pressupostos, podemos afirmar que Murilo Rubião teve participação singular na imprensa brasileira, notadamente aquela voltada para o jornalismo cultural. Mas, uma rápida biografia sobre ele, com a qual finalizamos este artigo, talvez possa auxiliar a compreender melhor o perfil desse homem, tímido e tenaz. Paralelamente aos ofícios públicos que exerceu e ao trabalho de contista, o jornalismo o seduzia. Em 1938, quando atuava no Diretório dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, fundou, com o auxílio de um grupo de escritores-estudantes, a revista Tentativa. No ano seguinte, também é redator da revista Belo Horizonte. E, em 1943, é designado diretor da Rádio Inconfidência. Em 1947, publica o volume de contos O ex-mágico e, logo depois, em 1950, é nomeado Oficial de Gabinete do governador Juscelino Kubitschek e diretor interino da Imprensa Oficial e da Folha de Minas. Na redação do Minas Gerais, vamos encontrá-lo em 1961. E, em 1975, diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial do Estado e presidente do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais. Apesar do reconhecimento da crítica literária, a obra do contista Murilo Rubião ainda requer estudos diversificados e aprofundados, em face da sua profundidade narrativa. Sergio Milliet e Álvaro Lins foram alguns dos críticos de renome que, nos anos 1940, sinalizaram o talento e a originalidade da prosa muriliana. Lins, inclusive, chegou a aproximar o contista mineiro a Kafka. Depois, para abreviar o percurso, Mario de Andrade e Antonio Cândido, Jorge Schwartz e Davi Arrigucci Jr. não mediram empenho em atestar o valor da contística muriliana, embora reduzida a poucos volumes publicados durante a vida do autor: O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974) e A casa do girassol vermelho (1978). Como escritor, Murilo Rubião estreia aos 31 anos. E deixa um legado de 33 contos. Mas há outros inéditos, dispersos em jornais e revistas. Como se sabe, Murilo é conhecido pelo trabalho incansável, quem sabe até obsessivo, de reescrever sua prosa. Talvez pela procura alucinada da precisão daquilo que buscava transmitir. Mas se arriscou em outros gêneros. Na verdade, sua vida literária teve início com a poesia, por conta da empolgação de um namoro juvenil. Depois vieram algumas crônicas, publicadas na imprensa da primeira metade da década de 1940, e esboços de novelas. 9


Referência Bibliográficas ALVES, Luciene. Murilo Rubião, em sua última entrevista: “Quase ninguém acreditava num suplemento literário em jornal oficial”. Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 26 de outubro de 1991, p. 26. Edição comemorativa do centenário. Nº 1171 ARRIGUCCI Jr., Davi. Minas, assombros e anedotas (Os contos fantásticos de Murilo Rubião). In: ARRIGUCCI Jr., Davi. Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. COELHO, Haydée Ribeiro. Diversidade crítica e literária no Suplemento Literário do Minas Gerais (1966-73): ruptura de fronteiras. In: O eixo e a roda. Revista de Literatura brasileira. Belo Horizonte. FALE/ UFMG. 2003/2004, v. 9, p. 85-96. COELHO, Haydée Ribeiro. Suplemento Literário de Minas Gerais: apontamentos para uma história em processo. In: Minas Gerais. Suplemento Literário, Belo Horizonte, v.1284, nov. 2005 b, p.14-19. COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991. CURY, Maria Zilda Ferreira. [Entrevista]. In . Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995. HAY, Louis. A literatura sai dos Archivos. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. pp. 65-81. MIRANDA, Wander Melo. (Org.) A trama do arquivo. Belo Horizonte: Editora UFMG, Centro de Estudos Literários FALE/UFMG, 1995. MIRANDA, Wander Melo. (Org.). Anos JK: margens da modernidade. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Rio de Janeiro: Casa de Lucio Costa, 2002. MIRANDA, Wander Melo. Nações literárias. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010. MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Mário e o pirotécnico aprendiz: cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995. MOURÃO, Rui. Fontes Mágicas. “A casa do Girassol Vermelho”. Revista Veja. São Paulo, 13.set.1978.

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RUBIÃO, Murilo. Mário de Andrade, Minas e os mineiros. Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte, v. 1. n.1, pp. 153-155, out. 1993. Disponível em <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1089/1189> Acesso em 13 de janeiro de 2015. SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo. Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. SOUZA, Eneida Maria de e SCHMIDT, Paulo (Org.). Mário de Andrade: carta aos mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1997. SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Belo WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: Jornalistas e escritores em Minas Gerais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. WERNECK, Humberto. Meu suplemento inesquecível. In: Suplemento Literário, Belo Horizonte, julho-agosto/2011, edição nº 1.337, pp. 3-6.

Sítios http://www.ufmg.br/aem/Inventario_murilo/murilo.htm . http://www.murilorubiao.com.br .

Aparecida Maria Nunes é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do curso de Letras da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), publicou Clarice Lispector jornalista (Senac/SP, 2006), além de outros que organizou, para a editora Rocco: Clarice na Cabeceira – jornalismo (2012), Correio Feminino (2006) e Só para Mulheres (2008), com textos inéditos da jornalista Clarice Lispector. Correio Feminino e Só para Mulheres também foram traduzidos para o espanhol e publicados pela Siruela, na Espanha. Contato: cydamaria@gmail.com

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