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O direito de não mentir

ARTIGO O DIREITO DE NÃO MENTIR Washington Novaes

Neste sábado de Natal, deixo de ser editor geral do Diário de Manhã. Uma espécie de presente às avessas, neste Brasil abastardo e humilhado.

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Sempre disse à redação que, quando chegasse esse dia, gostaria de sair metade do meu rosto triste, por esgotar-se uma história fascinante, na qual me atirei de corpo e alma, 24 horas ao dia (nesses 19 meses de Goiás, só vivi, respirei, sonhei Diário da Manhã, sem tempo para mais nada, nem para fazer amigos fora do jornal).

Mas com a outra metade tranqüila, pela certeza de haver feito tudo que era possível para ajudar a crescer esse extraordinário projeto de construir um jornal só comprometido com os fatos, com o leitor e com a comunidade.

Nenhum caminho leva a lugar algum, dizia uma personagem de livros que andou em voga em passado recente. A diferença única é que alguns caminhos têm coração, outros não têm. O caminho do Diário da Manhã, para mim, foi todo coração, como diria o poeta Maiakovski.

Agora, por circunstâncias, as duas trajetórias se separam, a minha e a do jornal (embora, à convite de Batista Custódio, continue aqui com meus artigos). O Diário da Manhã, cercado por forças terríveis, terá de reajustar sua estratégia, repensar seus meios, reorientar seus caminhos. Vamos nos separar, por isso. Sem rusgas. Sem brigas. Sem mágoas.

Nada disso cabe. Não me arrependo um segundo de ter vindo, de ter feito tudo que fiz. Faria de novo.

O Diário da Manhã foi um reencontro comigo mesmo, com os valores mais fundos e mais antigos, herdados de meu pai, minha mãe, meus avós, e temperados ao longo de uma vida pessoal acidentada.

Foi, ao mesmo tempo, como que uma retomada da cidadania plena, com a possibilidade de discutir os problemas do país, do Estado, da cidade, sem nenhuma restrição, sem nenhum compromisso com interesses de grupos ou ideologias.

Foi um exercício de democracia e de convívio ver o crescimento e a consolidação de um conselho editorial onde todos – editores, repórteres, redatores e diretores – têm igual voz e voto e onde as decisões são tomadas por maioria e respeitadas por todos, inclusive os vencidos.

Foi um jogo de esperança ver o jornal comprometer-se com tantas causas, principalmente as causas dos desvalidos. Ver o jornal liderar a luta em defesa dos invasores da fazenda Caverinha, transformados em moradores da Vila Fim Social. Foi emocionante assistir a mudança daquelas 4.500 famílias que pela primeira vez conseguiam um chão para erguer seu teto.

Foi reconfortante, ver um jornal resistir a todas as pressões que queriam engajá-lo na campanha eleitoral, vê-lo abrir espaço para todas as tendências representadas na sociedade. Foi empolgante vê-lo expor suas vísceras para contar ao público como algumas pessoas ligadas ao PDS, conluiadas com inescrupulosos, tentaram fraudar o resultado de uma pesquisa eleitoral para favorecer o candidato do partido governista na eleição de 1982 em Goiás. Foi glorioso ver o jornal correr o risco de desmoralizar-se negando crédito à pesquisa que ele mesmo encomendara – mas recusando-se a pactuar com a falcatrua de pessoas que hoje até arrotam grandezas e virtudes.

Alegrou a alma presenciar a luta do jornal para tentar evitar demissões no funcionalismo goiano, sendo coerente com a pregação que vinha fazendo, sobre a necessidade da prevalência ao social no Brasil, neste momento. Uma coerência que o levou a lutar desesperadamente durante dez meses contra a necessidade de cortes, em seus próprios quadros, apesar do agravamento da crise.

Retemperou a fé na possibilidade de um jornalismo independente ver o Diário da Manhã colocar em discussão – para que a comunidade possa se posicionar a respeito – temas como o projeto GICA e o projeto dos chineses de Formosa para Goiás, os negócios especiais da CFT, o escândalo da manipulação das cotações de alimentos nos últimos meses.

Foi extraordinário assistir a essa iniciativa inédita, única no País, que é a criação de um Conselho de Leitores, para que a comunidade possa dizer o que quer e espera de

um jornal. Como foi extraordinário ver esse mesmo Conselho debater as relações da imprensa com o poder público e até as demissões no próprio Diário da Manhã.

Valeu uma vida profissional ver a corporação jornalística de Goiás mergulhar na discussão sobre o papel dos jornais e dos jornalistas, dos sindicatos de jornalistas. Ver, afinal, a ética da imprensa ser discutida de público, ainda com as feridas sangrando, mas sabendo que desse debate depende o procedimento de abertura política do País.

Chegou o momento, porém, que o Diário da Manhã não teria mais como fugir ao cerco que lhe foi imposto exatamente por ser independente, livre, isento, comprometido com o fato e o leitor. O jornal terá de reciclar-se, redefinir-se, reprojetar-se. Terá de levar uma vida mais que espartana para sobreviver sem concessões que o maculem. Chegou, então, o momento da separação.

Mas é preciso dizer ainda, uma vez, nesta hora, que a crise do Diário da Manhã, o seu calvário, é a sua glória. Ele sofre porque não dobra a espinha.

Sofre porque os poderes todos ainda não se convenceram de que o Brasil só sairá da crise se houver uma grande discussão nacional sobre tudo, colocando tudo em questão – e com o povo participando. Mas o povo só participará se houver meios de comunicação que o ouçam, e abram espaço, e dêem voz. E os poderosos estaduais, ou federais, ainda não querem ouvir o povo, abrir-se à crítica e ao debate. Preferem compor-se com os inimigos de ontem e fazer um arremedo de participação.

Sofre porque os empresários ainda não descobriram que, se não existirem jornais independentes, eles continuarão a ser vítimas inermes do autoritarismo burocrático, que distribui favores e concentra renda. E cada um desses empresários esperará calado que chegue a vez de naufragar.

Sofre porque cada um de nós ainda não entendeu completamente o quanto carrega em si mesmo de autoritarismo – e só o vê no próximo e nos que detêm o poder.

Mas o Diário da Manhã vai continuar. Porque ele já não é mais um projeto apenas do Batista Custódio e da Consuelo Nasser. É de cada um dos jornalistas que aqui estão. É dos leitores. É da comunidade.

Talvez nos encontremos de novo noutra volta de caminho. Ou não.

Seja como for, se a vida continuar generosa como é, um dia terei netos e poderei contar-lhes que, uma vez, trabalhei num extraordinário jornal, que não tinha medo de nada. Um jornal em que era possível exercitar a conquista maior de uma vida: o direito de não mentir.

E talvez meus netos comecem a brincar de jornal.

Goiânia, dezembro de 1983

[Arquivo pessoal]

Cláudio Abramo,Washington Novaes e Marco Antônio Coelho

[Arquivo pessoal] [história] Diário da Manhã [onde e quando] Goiânia,1982 e 1983 [quem conta] Washington Novaes [entrevista realizadas] janeiro de 2004