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O Fifó: ventos e combates no interior baiano

SOPHIA MIDIAN é estudante de comunicação na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Trabalha na TV Local 36, da Net, e é integrante do Intervozes SÉRGIO MELO é jornalista e integrante do Intervozes

Vitória da Conquista foi uma das cidades baianas mais marcadas pela ascensão dos militares ao poder. De acordo com Ruy Medeiros, jornalista e historiador baiano, “as maiores violências contra políticos, autoridades, ou militantes de partidos no interior do estado, aconteceram em Conquista”. O capitão Antonio Bendochi Alves Filho foi designado, logo no início da ditadura, para instaurar os Inquéritos Policias Militares, IPMs, na região. Sua chegada à cidade, acompanhado de uma centena de soldados, aterrorizou a população local com a prisão e a exibição pública de dezenas de pessoas, entre militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), profissionais liberais, funcionários públicos, comerciantes, sindicalistas, estudantes, professores e até um juiz.

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Nem mesmo os vereadores e o prefeito foram esquecidos: sofreram uma série de prisões e interrogatórios que, em muitas vezes, eram realizados sem motivo concreto algum, servindo apenas para a consolidação do poder autoritário do regime. “Quando fui preso, fiquei numa cela com uns 20 presos. Revezamos a noite inteira na guarda, com medo de alguma violência. E quando éramos interrogados, dava pra perceber que eles nem sabiam direito quem éramos nós”, destaca Pedral Sampaio, preso em Conquista e transferido para Salvador, onde respondeu a um processo que cassou seus direitos políticos por 20 anos.

Um fato trágico marca a violenta atuação dos militares na cidade. O comerciante e vereador Péricles Gusmão Régis, preso na primeira leva de opositores ao regime, faleceu na cadeia. Sua morte, ocorrida em circunstâncias pouco esclarecidas, deixa muitas dúvidas sobre os fatos ocorridos naquela ocasião. Após um longo período de interrogatórios que vararam a madrugada, o vereador foi encontrado na cela com os pulsos e o pescoço cortados. O médico legista, que também estava preso, acusado de oposição ao governo, declarou que a morte havia sido provocada por suicídio, versão que ainda hoje é contestada por amigos e familiares do vereador. Até mesmo o prefeito deposto Pedral Sampaio, ao saber da morte do vereador, declarou que “a morte de Péricles é fruto da pressão exercida pelos militares”, e que “a violência que os militares praticam é muito grande”.

[Reprodução]

Com apenas 14 exemplares, O Fifó ficou na memória de Vitória da Conquista

Ao final da década de 1970, a disputa política entre a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) era explícita. Em Conquista, já em 1972, Jadiel Matos fora eleito o primeiro prefeito emedebista no interior do estado. Na eleição seguinte, Raul Ferraz, originário de um racha do MDB, se elegeu sem apoio político e governou em meio a conflitos com o governo estadual.

Nesse contexto político, a comunicação no interior baiano levaria ao surgimento de um representante da luta pela redemocratização. A própria situação política brasileira e, em especial, a disputa interna no MDB, impulsionaram a criação do semanário O Fifó, em Vitória da Conquista, em 1977. Ao utilizar linguagem direta e opinativa, o jornal trazia para o cotidiano das discussões políticas do município, uma análise crítica dos fatos que norteavam as disputas entre militares e democratas.

Apesar da curta existência, O Fifó conseguiu deixar sua marca na história política e jornalística da cidade. O projeto nasceu da dissidência “MDB autêntico”, que tinha como principal expressão Jadiel Matos, além de Ruy Medeiros, Elquisson Soares, Sebastião Castro, Hérzem Gusmão, Said Suffi, Gilson Moura e Vicente Cassimiro.

“Além da bandeira da redemocratização, tínhamos um objetivo muito claro, que era o de analisar Vitória da Conquista. Nesse sentido, começamos a discutir a realidade local”, destaca Ruy Medeiros, um dos idealizadores e responsável pelo jornal.

Na segunda edição do jornal, em outubro de 1977, a própria discussão nacional sobre o próximo presidente, que substituiria o general Ernesto Geisel, era criticada como princípio democrático. “Toda cogitação em torno da sucessão presidencial, nos moldes em que está sendo feita, em nada auxilia, mas contraria a caminhada do povo brasileiro em suas aspirações pelo retorno ao legítimo Estado de Direito. Realmente, qualquer projeto que proponha a redemocratização do país deve passar pela participação do povo na luta sucessória, como agente e não simplesmente como espectador”, registra.

Posteriormente, quando o nome de João Baptista Figueiredo figurava entre os mais cotados, o jornal ironizou o processo de sucessão. “Uma convenção sui generis deverá escolher o Presidente da República Federativa do Brasil, que já está devidamente esco-

[Givanildo Brito Nunes]

lhido (a política nacional se encontra com tantas práticas estranhas a ponto de a tautologia ser inevitável). Escolher o escolhido, é isso”.

As próprias atitudes do partido que, naquele momento, representava a opção democrática, eram questionadas. O MDB deveria, na visão do jornal, defender o avanço da oposição ao regime. “O que assistíamos era exatamente o inverso: enquanto o MDB cala, o povo brasileiro é defendido pela Igreja, Ordem dos Advogados do Brasil, empresários, estudantes, etc., que tomam para si as bandeiras da redemocratização do país, direitos humanos, liberdade de imprensa e anistia. Enquanto isso, o MDB ‘dorme em berço esplêndido’, após lançar a Constituinte, como se essa idéia fosse a obra derradeira da criação e que não necessita de propagação, luta e defesa”, publicou em sua décima edição, em dezembro de 1977.

Nos anos de 1977 e 1978, quando O Fifó circulou, já havia sido suprimida a censura prévia ao jornal. No entanto, não havia uma liberdade de informação, de divulgação do pensamento. Nesse sentido, O Fifó pretendia ser um meio para se construir esse espaço, uma espécie de degrau que intercedesse a favor da redemocratização do Brasil em uma cidade do sertão da Bahia e, para isso, deveria exercitar a liberdade de criticar o AI-5 (Ato Institucional Número 5), a estrutura de governo e a falta de democracia imposta ao País.

Entretanto, não deixava de existir, dentro do próprio jornal, uma espécie de autocensura. “Isto é, você arrisca até determinado limite, até porque se tinha dentro de O Fifó pessoas que eram de esquerda, mas ao mesmo tempo pessoas que ainda viviam delimitadas pelo liberalismo e, na hora de discutir textos, você tinha que mediar entre todos que levavam para frente esse projeto de O Fifó”, explica Medeiros.

Os editoriais do jornal, assim como as análises políticas eram escritas por Ruy Medeiros. Já Hérzem Gusmão encarregava-se das matérias relativas ao esporte amador e Fernando Martins colaborava com as suas críticas de cinema.

O impresso também se propunha a discutir o processo histórico em que estava mergulhada a cidade de Vitória da Conquista. “Sofremos uma oposição muito grande quando lançamos a edição que comemorava o aniversário de Vitória da Conquista.

Aquilo despertou um ciúme muito grande, porque ninguém fez o que O Fifó fez: um estudo do processo histórico conquistense, numa visão materialista, crítica”, completa Ruy Medeiros.

É importante destacar a pessoa de Ruy Medeiros no contexto da ditadura e do jornal O Fifó. Historiador, advogado, professor universitário e também jornalista, Ruy foi preso durante a ditadura por participação num jornal universitário, produzido no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Em certo momento, O Fifó chegou a ser totalmente escrito por ele. Segundo Raul Ferraz, ex-prefeito de Vitória da Conquista, “tudo que possui a mão de Ruy Medeiros é radical. Não se pode dizer, portanto, que O Fifó se tratava de um jornal independente. Também sou de esquerda e nunca fui independente, mas, sobretudo, contra a direita”.

Segundo Hérzem Gusmão, “o jornal era independente e reunia uma seleção de intelectuais na cidade de Vitória da Conquista. Eu tive o prazer de ser convidado, embora não integrasse esse pelotão de notáveis”.

A qualidade gráfica de O Fifó foi muito elogiada. Sua diagramação e impressão, arranjo gráfico de forma geral, eram feitos por Flávio Scaldaferri, em Itapetinga (BA). Era um jornal relativamente bem lido e existia um clima de simpatia por parte da comunidade local, exceto o pessoal ligado à direita, que o combatia e, às vezes, a facção mais conservadora do MDB, que posteriormente criaria o jornal O Povão, para defender a administração municipal de Raul Ferraz.

O Fifó circulava nas cidades de Vitória da Conquista e Itapetinga. Além disso, algumas pessoas remetiam-no para conquistenses que estavam fora da cidade. Um exemplar era mandado para a Residência Universitária Conquistense, Ceusc, em Salvador. “A gente achava importante manter o contato com os estudantes que estavam retomando a luta contra a ditadura militar no movimento estudantil, mas também tínhamos a informação de que O Fifó chegava em outras regiões do Brasil, principalmente em Diretórios do MDB”, completa Ruy Medeiros.

Infelizmente o jornal não pôde sobreviver. Apesar de inserido no processo de desgaste da ditadura militar e de reedificação da democracia burguesa no País, o jor-

nal apresentava dificuldades de financiamento. As empresas não se dispunham a investir publicidade em um jornal que tinha perfil democrático, crítico à situação estabelecida no País, no estado e no município. Desse modo, saía de circulação O Fifó, deixando como herança seus 14 exemplares, que ainda hoje constituem documentos de referência da luta pela redemocratização do Brasil.

[Sophia Midian] [história] Jornal OFifó [onde e quando] Vitória da Conquista (BA),1977 e 1978 [quem conta] Hérzem Gusmão,Pedral Sampaio, Raul Ferraz e Ruy Medeiros (foto) [entrevistas realizadas] Março a Junho de 2004