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Diário da Manhã: o leitor no comando do jornal

ALOISIO MILANI é jornalista, editor e coordenador de pauta da Agência Brasil, e integra o Intervozes RODRIGO SAVAZONI é jornalista, redator-chefe da Agência Brasil, e integra o Intervozes

[COLABORARAM]

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ANTONIO BIONDI MILENA ARAGUAIA é jornalista

Essa é uma breve história do jornal Diário da Manhã quando Washington Novaes o dirigiu. Experiência que durou pouco. Cerca de um ano e sete meses. Dela também participaram Aloysio Biondi, Reynaldo Jardim, Lauro Veiga Filho e Marco Antonio Coelho. Durante o período, a equipe do Diário da Manhã construiu uma forma de fazer jornalismo radicalmente democrático, fundamentado no espírito público e baseado em amplo diálogo com a sociedade. O trabalho desenvolvido por Novaes e equipe serviu de referência para outras bem-sucedidas experiências de bom jornalismo que ocorreram no País nos últimos 25 anos, como é o caso do Correio Braziliense quando foi dirigido por Ricardo Noblat. Por ter, no entanto, ocorrido fora do eixo hegemônico RioSão Paulo, a saga ainda é pouco conhecida. Nesse texto, quem nos conta a história é Washington Novaes. O jornalista Batista Custódio, que era o dono do veículo à época em que os fatos ocorreram e ainda hoje dirige o Diário, não respondeu às diversas tentativas de entrevista encaminhadas pela equipe de reportagem.

“A duração de um periódico não expressa, de modo algum, o que conseguiu realizar. Umas poucas edições, e depois o fechamento abrupto podem significar mais para a história da cultura do que um século de publicação ininterrupta” . (Perry Anderson, em Retomadas, texto escrito em 2000 no qual ele apresenta a nova linha de ação da New Left Review)

Tudo começou por causa de um artigo. Em março de 1982, o jornalista Washington Novaes passou a escrever para o jornal goiano Diário da Manhã. Num dos textos, falou de ética no jornalismo, coisa que à época discutia-se pouco e hoje se discute menos ainda.

“Contei uma história de 25 anos antes, na velha Folha da Manhã (hoje Folha de S. Paulo): o secretário do jornal, pessoa muito ética, decidira publicar numa página interna, quase escondida, a notícia de um desempregado/desesperado que matara a mulher e os filhos e se suicidara; quando observei que ele deveria dar mais destaque à notícia, ele me contou que fizera isso em outra ocasião, dera na primeira página, com muito

destaque, uma notícia semelhante; nos dias que se seguiram surgiram várias outras notícias idênticas”, narra Novaes no livro A Quem Pertence a Informação? , em que conta sua experiência no Diário da Manhã.

O secretário nunca soube se aquela notícia desencadeou a onda de suicídios, mas também não poderia afirmar o contrário. Perguntou a Novaes o que faria em seu lugar. Novaes não soube responder.

E vinte e cinco anos depois de ter ouvido a história, fez a mesma pergunta aos seus leitores, porque aquela seguia para ele como uma questão importante.

Estimulado por aquele debate, o dono do Diário da Manhã, Batista Custódio, ligou para Novaes e perguntou: - Se é isso que você pensa porque não vem para cá e coloca em prática?

Novaes aceitou o convite.

Ficaram para trás a TV Globo, o Rio de Janeiro, a estabilidade de uma carreira consolidada nos principais veículos de comunicação do país, entre os quais Correio da Manhã, TV Globo, Fator, Veja, Visão e Folha de S. Paulo. À frente, apresentava-se o desafio de trabalhar para mudar a história das comunicações brasileiras.

Em 1982, Iris Rezende (atual prefeito de Goiânia), do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), sagrava-se nas urnas governador do estado de Goiás, depois de anos de intervenção militar no país.

Naquele momento, o Brasil vivenciava o longo e agonizante fim da ditadura (19641985) e começava o não menos longo e não menos agonizante processo de redemocratização. Era, também por isso, um tempo de fervores democráticos. Após tantos anos de botas e armas, os setores médios da sociedade e a intelectualidade exigiam democracia e alguns chegaram a apostar que a troca de regime traria à tona debates que foram reprimidos, entre os quais sobre a mídia e o papel da comunicação em uma nova sociedade.

Novaes tratou desse assunto em um dos artigos que publicava no jornal. “Mas não tenhamos dúvida: o avanço democrático no Brasil, a transição completa para uma democracia digna desse nome, está na dependência direta de uma reformulação profun-

da dos meios de comunicação e no exercício da profissão de jornalista. Se essa transformação não acontecer, se a sociedade como um todo não ganhar formas de expressão real nos meios de comunicação, não haverá como sustentar o avanço da democracia. Principalmente, se os despossuídos da sorte não ganharem espaço nos meios de comunicação, com certeza viveremos dias muito difíceis”.

Era essa formulação que orientava a equipe do Diário da Manhã. Um ideal que começou a se materializar antes mesmo de Novaes assumir a direção da redação. “O Batista falou que queria um jornalismo responsável. E eu disse que não era só isso. Um jornal só pode ter um compromisso: que é com o leitor. Não pode ser com o poder econômico. Nada. Ele disse que topava, que me dava inteira liberdade para fazer o jornal como quisesse”, conta o jornalista, em entrevista exclusiva aos autores deste artigo. Mas para fazer um jornal comprometido unicamente com o seu leitor e que tenha como alicerce o objetivo de democratizar as comunicações no país é preciso muito mais do que boa vontade. E é justamente por isso que a experiência do Diário da Manhã é tão rica. Porque conseguiu desenvolver métodos e rotinas jornalísticas que se mostraram eficientes – em certa medida revolucionárias –, as quais apontam um caminho para qualquer veículo que pretenda fazer um jornalismo comprometido unicamente com seus leitores – e mais além, com a cidadania.

JORNALISMO PARTICIPATIVO

A primeira medida que Novaes tomou logo ao assumir a chefia do Diário da Manhã foi alterar a composição do Conselho Editorial, que passou a ser formado por todos os jornalistas da redação, com direito a voz e voto. O dono do jornal integrava o Conselho, mas tinha apenas um voto, como os outros membros. Novaes lembra que não foram poucas as vezes em que ele foi vencido pelo interesse da maioria.

“Esse conselho se reunia todos os dias, à uma hora da tarde, para discutir tudo o que havia saído no jornal daquele dia e tudo o que seria publicado no dia seguinte. A discussão era aberta e qualquer divergência se resolvia por voto”, explica Novaes.

“Isso foi revelando coisas muito curiosas, a principal das quais era que a abertura do jornal para determinados temas levava a transformações, levava a discussões muito significativas. Isso começou com o jornal promovendo debates nos bairros e levando para a discussão autoridades e especialistas das áreas que iam ser discutidas. Nesses debates se mostrou uma primeira coisa: que 80% dos problemas podiam ser resolvidos ali mesmo, com decisões tomadas ali, na hora”, escreve o jornalista em seu livro A Quem pertence a Informação?.

Essa experiência participativa evoluiu com a criação de um Conselho de Leitores, que materializava um instrumento de controle social sobre a informação produzida pelo Diário da Manhã. Foram convidados 50 representantes de partidos políticos, sindicatos de empregados, patrões, associações, empresários, advogados, médicos, engenheiros e igreja, que, no início, reuniam-se mensalmente. A periodicidade aumentou e as reuniões passaram a ser quinzenais, depois semanais e Novaes conta que alguns Conselheiros passaram a acompanhar diariamente a execução do jornal.

As avaliações feitas pelo Conselho de Leitores eram publicadas, o que levava ao envolvimento de mais leitores no processo. “Eram discussões bastante surpreendentes”, rememora o jornalista. “E foi muito curioso porque nas primeiras reuniões só apareciam aquelas pessoas que representavam grupos sociais que ainda não tinham espaço nos meios de comunicação; os que já tinham espaço, como, por exemplo, a Federação das Indústrias, a Ordem dos Advogados, os grandes partidos políticos, a própria igreja, não apareceram, só apareceram os dos invasores (movimento dos sem-teto), das microempresas, pequenas empresas, sindicatos, etc. Mas como os debates no conselho passaram a ser publicados pelo jornal, então as outras pessoas começaram a aparecer”, conta Novaes em seu livro.

Segundo ele, foi uma experiência “muito rica, muito fértil”. No entanto, uma experiência que encontrou resistência por parte dos jornalistas da própria redação, que achavam um absurdo essas discussões existirem. Esses opositores, porém, acabaram sendo engolidos pelo processo, que se baseava no conceito de que a informação é um direito da sociedade, o que viria a ser estabelecido pela Constituição de 1988.

“Os debates nesse conselho deram uma idéia muito clara de que a sociedade pensa sobre os meios de comunicação de modo bastante diferente daquilo que os profissionais da comunicação pensam, em geral. O que as pessoas acham que deve ser publicado, quais são os assuntos importantes, a sua visão desses assuntos são bastante diferentes da dos jornalistas”, avalia Novaes.

UMA COISA PUXAVA A OUTRA

Mas se fosse apenas uma experiência interessante do ponto de vista da “organização” do jornalismo, o Diário da Manhã não teria tido a força que teve. Força essa que levou o jornal a ser o mais lido da capital goiana, superando o seu concorrente direto, O Popular, pertencente a um grupo de mídia proprietário da retransmissora local da TV Globo. A preferência do público era resultado direto dessas inovações estruturais, mas acima de tudo era um prêmio à criatividade da equipe, à qualidade do jornalismo, e a uma pauta corajosa, que procurava a verdade sem concessões.

Essa equipe foi composta, ao longo da existência do jornal, por, entre outros, Marco Antônio Coelho, José Antônio Menezes, Reynaldo Jardim, Lauro Veiga Filho, além de Washington Novaes, como diretor de redação, e Aloysio Biondi, como editor-adjunto. Entre os colunistas, estavam Jânio de Freitas, Cláudio Abramo, Newton Carlos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Millôr Fernandes.

“Existem várias histórias diferentes que eu poderia contar de como o jornal seguia atrás das histórias e transformava aquilo em coisas importantes”, narra Novaes. “Um dia, por exemplo, a repórter Lisa França foi à Casa de Detenção. Chegou lá e ficou muito impressionada com uma moça de 19 anos de idade com duas crianças no colo e uma terceira na barriga. Todos os três vivendo da caridade dos presos. O marido dela estava lá e os três comiam os restos de comida dos detentos. E a história era a seguinte: quando nasceu o último filho do casal, o homem tentou comprar fiado um litro de leite em um botequim. E o dono do bar, não só não vendeu o leite, como ainda debochou, chamou-o de vagabundo, botou ele para fora. O homem puxou um canivete, en-

fiou na barriga do dono do bar e depois fugiu. Ele foi preso alguns dias depois e estava preso lá fazia vários dias. Essa matéria chegou na reunião do Conselho Editorial do jornal e tinha uma foto impressionante daquela mulher com as duas crianças nas mãos e aquele corredor de celas, onde os presos olhavam e deixavam suas mãos crispadas nas grades. Demos essa foto em oito colunas, a largura inteira da página. Na manhã seguinte, apareceu um promotor público impressionado com aquilo e queria mais informações. E foi atrás do processo. A repórter o acompanhou. O cara só estava preso porque era pobre. Ele era réu primário, podia responder o processo em liberdade até porque era um processo de lesões corporais, não de homicídio. Os prazos processuais estavam todos vencidos e nem advogado ele tinha. O promotor pediu ao juiz que o libertasse, o que foi autorizado. Ele foi libertado nesse dia mesmo. E a Lisa França voltou para o jornal com a matéria contando tudo isso e mais as fotos com o reencontro dele com a família do lado de fora, abraçando mulher e tudo. Botamos a seqüência de fotos na primeira página. Um outro repórter acompanhou a volta deles para a casa. Eles moravam num barraco de papelão numa comunidade de mendigos e catadores de papel debaixo da ponte. Fizemos outra matéria sobre aquele pessoal e novamente demos na primeira página. Então, um procurador do Estado reconheceu nas fotos um irmão de criação dele que fazia 40 anos que estava desaparecido. Ele foi lá, buscou o irmão e o levou para casa. No outro dia, publicamos o reencontro dele com a família. No dia seguinte, o governador do estado baixou uma ordem para um programa habitacional destinar uma parte do conjunto para o pessoal que morava debaixo da ponte. E isso foi para a primeira página também. Uma coisa puxava a outra”.

Como essa, há muitas outras histórias. Novaes narra várias delas, de forma vibrante, com olhos de certeza. Com a convicção de que cada um desses casos ajudou a mudar a vida das pessoas. “Outra história dessas muito bonita aconteceu num dia quando eu cheguei na direção do jornal e o Batista Custódio [dono do jornal] me chamou e disse: ‘Escuta, parece que tem uma notícia aí. Parece que um cara doido veio aqui reclamar que deram uma porrada nele na agência da Caixa Econômica Federal. E o segurança deu uns tapas nele porque ele era doido. Ele anda com um saco nas costas e

um penico dentro. E ele quer uma conta na Caixa Econômica Federal e eles dizem que não podem abrir conta para um doido’. Peguei a matéria da repórter Lisa França, que contava toda a história e o mendigo dizia que toda a vez em que ele chegava lá, eles aumentavam as exigências, e não deixavam nunca ele abrir a conta. Naquele dia, ele tinha perdido a paciência, começou a dar um esporro nas pessoas e o segurança botou ele para fora com umas porradas. Lisa contava isso e ouvia o pessoal da Caixa. Eu li a matéria, disse que o que precisava ser feito estava feito, mas me ocorreu o seguinte. Será que não era preciso correr atrás da família dele? Ver se o cara é doido ou não? Aí ela disse que não iria. Se fosse aquele o critério, ela não concordava. ‘Tem gente até mais doida que fala todo dia aí no jornal’. E citou o Delfim Netto [risos]. Ninguém vai na casa deles”. Novaes então decidiu levar a discussão para o Conselho Editorial. “Em dez minutos, a discussão já estava incendiada. Metade do Conselho achando que não devia publicar aquilo, dizendo que o jornal acabaria um refúgio de todos os doidos. E outros dizendo que não, que deveria publicar. E um dos editores do jornal disse que ele andava com o penico nas costas porque foi aposentado por incontinência urinária. E ele não quer sair mijando em qualquer lugar. E Goiânia não tem banheiro público. Então na verdade o cara era um cidadão exemplar. Foi assim que surgiu a campanha do jornal para a construção de banheiros públicos. Chegou uma hora na discussão que tivemos que interromper, porque senão ficaríamos ali três dias. Eu propus deixar para publicar no domingo, ao lado de uma matéria contando o que aconteceu, a discussão que fizemos e abri para que outros fizessem o mesmo. Dez jornalistas resolveram escrever sobre o assunto e isso tomou duas páginas do jornal. E para mim esse é um dos momentos mais bonitos do jornal. Aquelas duas páginas que discutiam a nossa profissão. Depois de publicado, o debate recomeçou na sessão de cartas”.

Esse tipo de postura era constante no Diário da Manhã, e foram várias as grandes coberturas que surgiram aparentemente do nada nos 19 meses em que o jornal brilhou. “E quando havia tentativa de desviar o jornal desse caminho, denunciávamos imediatamente. Publicávamos. Por exemplo: esteve aqui ontem o senhor tal que não queria que nós publicássemos tal assunto”, relembra Novaes.

[Reprodução]

Diário da Manhã,1983: jornalismo transformador

TESÃO DE FAZER JORNALISMO

A experiência do Diário da Manhã durou pouco. Um ano e sete meses. Mas foi inesquecível. Entre os fatores que contribuíram para a saída de Novaes – e que culminariam com o fechamento do jornal dois anos depois – o cerco político realizado pelo governador Íris Rezende, que proibiu o Estado de anunciar no jornal, e as disputas de poder internas, envolvendo o proprietário Batista Custódio, foram determinantes. “O que foi uma pena, porque era um jornal que dava um tesão de fazer”, desabafa Novaes.

“Nunca mais eu quis dirigir nenhum jornal. Não vou conseguir chegar a um jornal com essa independência. Fora a qualidade. Os articulistas que o jornal tinha. O Jânio de Freitas, por exemplo, que estava longe há muito tempo, voltou para a comunicação para fazer uma coluna no jornal sobre o Rio de Janeiro. O Newton Carlos fazia uma coluna internacional. O Cláudio Abramo escrevia às vezes. O Carlos Drummond de Andrade, o Fernando Sabino e o Millôr Fernandes escreviam no caderno de cultura”, lembra.

Atualmente, Novaes segue como uma das grandes referências do jornalismo brasileiro, mantém colunas em jornais de grande circulação e programas sobre meio ambiente em TVs Públicas. E o Diário da Manhã permanece em sua vida, não apenas como lembrança, mas como um sonho que se fez real.

“Tínhamos alguns conflitos com o pessoal dentro da redação. Tínhamos conflito com o pessoal do Partido dos Trabalhadores (PT). Porque o pessoal do PT queria fazer um jornal partidário. E a gente dizia não. O jornal era aberto a tudo. O jornal não pode ser partidário. E isso levou a algumas dificuldades. Mas chegou a um momento em que houve essa soma de crises e resultou então num impasse porque a mulher do Batista Custódio, a Consuelo Nasser, exigia que se demitisse metade da redação. Eu cheguei a negociar com a redação para abrir mão de um aumento salarial em troca de não demitir ninguém, mas com um compromisso assinado no sindicato. Mas isso não adiantou. O Batista fechou questão e eu disse que saía. Saíamos todos. Fiquei um ano e sete meses no Diário da Manhã”.

E o que havia começado com um artigo, terminou com outro. Este que republicamos no livro, como homenagem a Novaes e ao jornal que ele fez. E para que os leitores saibam que podem comandar um veículo de comunicação e que a imprensa pode ser muito melhor justamente por isso.