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Campo e cidade efervescentes, protagonistas da Constituinte

CONTEXTO CENTRO-OESTE CAMPO E CIDADE EFERVESCENTES, PROTAGONISTAS DA CONSTITUINTE

A redemocratização do País nos anos 70 e 80 seguia duas trilhas paralelas: ao mesmo tempo em que os militares comandavam, num movimento intermitente, o processo de abertura lenta, os movimentos sociais se organizavam para exigir o fim da repressão e o retorno da democracia. No Centro-Oeste não era diferente. A região protagonizou, com suas características próprias, participações nas greves nacionais, nas manifestações do movimento estudantil, na campanha pela Anistia e, sobretudo, na reivindicação pelas eleições diretas para todos os cargos políticos. Como lembra o sociólogo e ex-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Federal dos Deputados, Pedro Wilson, do Partido dos Trabalhadores (PT), a ditadura militar usou de todos os expedientes institucionais para prolongar, no tempo e no espaço, o seu domínio: controle da vida partidária, senadores biônicos, reforma do Judiciário, censura, propaganda do milagre econômico, repressão aos partidos e organizações clandestinas, cassação de mandatos e eleições indiretas.

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“É verdade que, diante de pressões internacionais, o regime militar inventou esse processo lento que, aliás, perdura até hoje, porque existem resquícios nas leis de segurança, no medo de revelar arquivos e segredos da ditadura (desaparecidos políticos), torturas, prisões ilegais, repressões, controles de mídia e universidades, infiltrações nos movimentos populares, sindicais e igrejas que aconteceram até os anos 80 - a 'década perdida' para a democracia brasileira. Assim, houve uma gradual abertura consentida de cima para baixo”, relata Wilson, prefeito de Goiânia de 2000 a 2004.

Na visão do cientista político Luiz Carlos Galetti, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal do Mato Grosso, a crise econômica que teve origem na redução das exportações de petróleo também influenciou diretamente a conjuntura política brasileira. Com a alta nos preços do produto, em conseqüência das decisões da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), os preços chegaram a subir 1.000%. “O governo Geisel teve que rever as posições ufanistas e milagreiras do governo Médici que o antecedera. O crescimento da economia a taxas de 10% ao ano não tinha mais como continuar. O chamado milagre econômico, sob a direção do então ministro Delfim Netto, caiu por terra. O governo Geisel, face ao quadro de

crise econômica, teve que promover uma abertura política para conseguir manter a governabilidade”, explica.

Após o sufocamento da luta armada e a derrota dos militares nas eleições de 1974, quando o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) obteve uma grande vitória, os setores da esquerda brasileira rediscutiram e passaram a reorientar sua organização. A articulação democrática ganharia força nos sindicatos, na igreja com as Comunidades Eclesiais de Base, nos movimentos pela terra e pela moradia e na vida partidária, principalmente dentro do antigo MDB e, posteriormente, também no PT.

“É preciso compreender que, mesmo com essa 'disposição' de cima, as coisas também estavam acontecendo de baixo para cima pela redemocratização do país. Em todo Brasil havia uma ebulição política e social. No ABC de Lula, nas mobilizações de universidades, escolas, intelectuais, jornalistas, advogados, profissionais liberais, igreja católica, comitês aqui e no exterior, boletins e jornais alternativos – Opinião, Movimento e seus congêneres regionais, parlamentares, estudantes, operários, trabalhadores rurais, movimentos de pais e mães e parentes de presos, exilados, desaparecidos, havia muitas articulações, mobilizações pela democracia no Brasil”, diz Pedro Wilson.

Ao seu tempo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e Distrito Federal viviam as influências de outras regiões brasileiras ou suas próprias ebulições do espírito da luta contra a ditadura. “Eram relações políticas de dependência e complementaridade. Havia movimentações políticas inerentes às posições de organizações políticas nacionais e outras por circunstâncias locais/regionais. Ou combinadas com dependências ou relativas autonomias”, completa o político goiano.

CLAMORES DO POVO

Na capital federal, por exemplo, os estudantes da Universidade de Brasília (UnB) estavam integrados às manifestações que pediam o fim do autoritarismo militar, a liberdade política e a anistia aos presos políticos. Em 19 de maio de 1977, os universitários candangos organizaram passeatas e assembléias no campus da UnB para marcar o Dia

Nacional de Luta, estabelecido em conjunto com o movimento estudantil em todo o País. Os atos foram acompanhados de perto pela Polícia Militar e, 11 dias depois, o reitor José Carlos Azevedo decidiu suspender 16 alunos identificados como líderes das manifestações. Em nova assembléia, os estudantes aprovam greve por tempo indeterminado. A polícia é chamada e invade o campus por duas vezes para intimidar estudantes e professores.

Os setores progressistas da igreja católica também levantavam suas vozes numa atuação que transcendia as fronteiras da região central em direção ao Norte do País, devido aos movimentos da luta indígena e pela terra. O petista Pedro Wilson destaca a atuação da igreja católica por meio das memoráveis cartas dos bispos Dom Fernando, Dom Tomás, Dom Pedro Casaldáliga e outros da regional da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), “clamando por liberdade, democracia, respeito aos camponeses, posseiros urbanos e rurais”. A igreja iniciava sinais da emersão de setores progressistas. De acordo com o padre e teólogo Alberto Antoniazzi, “a nova consciência dos bispos e superiores religiosos emerge nos documentos de 1973, publicados por ocasião do 25º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU”. Entre os destaques, o célebre texto “Eu ouvi os clamores de meu povo”, assinado por bispos como Dom Hélder Câmara.

Nesse mesmo ano, era criado o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dando seqüência a uma série de críticas já divulgadas pela CNBB, como no manifesto Y-JucaPirama: O Índio: Aquele que deve Morrer, questionando a política indigenista como “assistencialismo barato e farisaico aos condenados à morte, para camuflar o inconfessado apoio aos grandes proprietários”. Como escreveu Libertad Borges Bittencourt, professora da Universidade Federal de Goiás, “a igreja assume com vigor redobrado a defesa dos direitos indígenas através do Conselho Indigenista Missionário, órgão que consolidou uma nova forma de tratar a questão indígena”.

Dom Tomás Balduíno, que comandou o prelado de Conceição do Araguaia, no Pará, por 31 anos, auxiliou na criação do Cimi e chegou a ser um de seus líderes. Atualmente bispo da Cidade de Goiás, Dom Tomás preside a Comissão Pastoral da Terra

(CPT), entidade que também ajudou a fundar em 1975, quase simultaneamente à pastoral indígena. A CPT brotou durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia. Dom Pedro Casaldáliga, religioso catalão e uma das pessoas que mais se esforçou para a criação de uma “comissão da terra”, relembra que sua concepção da CPT surgira tempos antes, logo na sua sagração episcopal. “Dessa carta [Feudalismo e escravidão no norte do Mato Grosso] surgiu a idéia do que futuramente seria a Comissão Pastoral da Terra”, explicou Casaldáliga em entrevista para a revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo. Já no seu nascedouro, a CPT contava com membros no Norte e Centro-Sul de Goiás, além do Mato Grosso. Isso para citar apenas a região Centro-Oeste.

Pouco depois, a CNBB avança nas críticas contra a ditadura militar e, em 1978, já manifesta-se publicamente pela Anistia ampla, geral e irrestrita. O ano posterior marca a publicação de um apelo dos bispos pró-Anistia. Em Goiás, a criação do Comitê Goiano pela Anistia, em fins de 1978, resulta na primeira entidade política e civil a lutar pela Anistia no Centro-Oeste. O grupo reunia professores, estudantes, profissionais liberais, políticos, dirigentes populares, militantes de organizações de esquerda ainda clandestinas, religiosos e parlamentares mais comprometidos do MDB. “Muitos comitês pela Anistia depois de agosto de 1979 se transformaram em centros de defesa dos direitos humanos [ligados ao MNDH – Movimento Nacional pelos Direitos Humanos], que continuaram a luta pela cidadania de perseguidos pela ditadura. E também pobres, negros, jovens, posseiros, camponeses, vítimas da violência policial, do latifúndio urbano e rural e marginalização social, violência contra crianças e mulheres”, conta Pedro Wilson.

BRAÇOS CRUZADOS

No final da década de 1970 e início dos anos 80, uma onda grevista e de reorganização sindical fundada em novas propostas espalha-se a partir do ABC paulista e ganha dimensão nacional. Como relata o professor da UFMT, Luiz Carlos Galetti, este

processo atinge o Mato Grosso com um certo atraso e de forma desigual. “Além da dominação do aparelho ditatorial central, o Estado em Mato Grosso tinha outras peculiaridades: a forte presença das oligarquias locais e regionais, fenômeno semelhante ao coronelismo nordestino, que dirigiam a sociedade através de acentuados laços de compadrio e clientelismo, fundados em relações patrimonialistas e territoriais”.

Em 1978, a criação na UFMT, em Cuiabá, da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Mato Grosso (Adufmat) fornece vigor para uma mobilização inicial de professores, estudantes e técnicos da instituição. A primeira diretoria da Adufmat, liderada pelo professor Wladir Bertúlio, afrontou as forças conservadoras e passa a ser perseguida e, posteriormente, acaba derrubada pela direita, como relembra Galetti.

A visão de que o movimento ligado à universidade foi pioneiro é compartilhada pelo professor do Departamento de História da UFMT, Carlos Américo Bertolini, que destaca o período como “tempo áureo” do movimento estudantil local. Destaque para a sua primeira greve em 1983. “A partir daí, a aliança entre Adufmat, Diretório Central dos Estudantes da UFMT, sindicatos e partidos oposicionistas só viria a crescer, até 1992, com o movimento pelo impedimento de Fernando Collor de Mello. Vale ressaltar que o sindicato dos jornalistas teve papel preponderante nos eventos posteriores à promulgação da Constituição de 1988 e nas eleições de 1989”, analisa.

No Distrito Federal, em fins dos anos 70 e início dos 80, professores cruzaram seus braços em greves estaduais ou nacionais. Em Goiás, também houve o reflexo da reorganização do movimento estudantil com a reconstrução da União Nacional dos Estudantes e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Exemplo foi o caso do Centro Acadêmico do Departamento de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás, cuja abertura garantiu espaço para debates políticos e para professores cassados.

O professor Galetti lembra que, no Centro-Oeste, o movimento popular e sindical, no início dos anos 80, tinha como pólos de referência o movimento docente e estudantil, o sindicato dos bancários, o sindicato dos jornalistas, o sindicato dos motoristas, o sindicato dos vigilantes e outros sindicatos urbanos, aglutinados dentro da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que surgia impulsionada pelos movimentos de baixo

para cima. “Na periferia das maiores cidades mato-grossenses havia efervescência social e política no período. Foram movimentos significativos: o movimento dos sem-teto de Cuiabá, que protagonizou a ocupação de muitos terrenos e criou novos bairros; o Movimento Popular da Saúde – o MOPS; outros movimentos pastorais, a partir da Igreja do Rosário, atuantes principalmente em bairros pobres da periferia cuiabana, incentivando a organização de jovens, mulheres e mães”, registra.

Ao mesmo tempo, no meio rural mato-grossense, a partir de meados dos anos 80, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) regional passou a desempenhar um papel marcante. De acordo com Galetti, “a caminhada dos trabalhadores sem-terra de Jaciara a Cuiabá (mais de 100 quilômetros), com acampamento final no pátio da Igreja do Rosário, no centro da capital, foi um evento de repercussão muito forte para toda a sociedade mato-grossense”. Ele conta que o acampamento possuía dezenas de barracas cobertas de plástico preto, ao lado da Igreja do Rosário de São Benedito. Um cenário que, ao mesmo tempo, afligia e tocava o fundo da alma de muitos passantes. O cientista político recorda-se que vários professores, estudantes e técnicos da UFMT, da rede pública estadual, militantes do PT e da CUT e dos movimentos sindicais, populares e comunitários da grande Cuiabá “participaram ativamente deste notável processo sócio-político”. Ao final da mobilização, o movimento obteve uma vitória parcial, na medida em que os acampados conseguiram um assentamento na região Norte do estado. “No entanto, a simples posse da terra, pelo menos para um certo contingente destes trabalhadores, não era a solução para o problema”, explica Galetti.

Outros momentos da luta dos trabalhadores no meio rural durante a década de 1980 e início dos anos 90 marcaram o estado do Mato Grosso. Entre eles, a mobilização dos sem-terra e parceleiros da Gleba Coqueiral, no município de Nobres, no Norte do estado. A luta foi liderada inicialmente por um grupo de mulheres sem-terra. Galetti conta que na cidade antigos posseiros, moradores centenários da Fazenda São José do Quebó, foram violentamente despejados de suas terras, sob a mira de armamento pesado de jagunços e militares a mando de um fazendeiro. “Estes trabalhadores também conseguiram um avanço notável: formaram uma associação de parceleiros e lutaram

por suas reivindicações, tendo alcançado parte delas, dentre as quais o assentamento na própria gleba. Parece-me, no entanto, que a mudança mais notável a destacar em vários destes lutadores ocorreu em termos da nova visão de mundo que adquiriram. Em palavras bem simples: muitos deles compreenderam a importância de construir sua própria organização, independente e autônoma do Estado e de partidos políticos e religiões”, avalia.

Além de Nobres, outros munícipios no Mato Grosso, como Rondonópolis, Cáceres, Várzea Grande e Poconé também tiveram lutas interessantes dentro deste processo. Em Poconé, município na “boca” da região pantaneira, no começo dos anos 90, os garimpeiros que trabalhavam atolados no barro, começaram a se organizar, formando a Associação dos Filãozeiros.

Nas mobilizações por lutas específicas que acabavam por refletir o processo de redemocratização, surgiam, em Goiás, associações de moradores e movimentos por moradias (leia “Lições de um jornalismo debochado”, à página 166). O político Pedro Wilson cita as entidades representativas como o Conselho Consultivo de Associações de Bairros (CCAB) e a Federação dos Posseiros de Goiás.

O amálgama dos movimentos pela democracia no Centro-Oeste reuniu artistas, intelectuais, exilados, trabalhadores em educação, estudantes, sindicalistas, religiosos, setores empresariais mais progressistas e a mídia alternativa. Como no restante do Brasil, as mobilizações terminariam por desaguar na campanha pelas Diretas Já.

ALTERNATIVA JÁ!

O professor Luiz Carlos Galetti, da UFMT, lembra que a redemocratização no Centro-Oeste teve momentos que não se alinharam imediatamente com a cronologia dos movimentos nacionais, dentre outras razões pela divisão das forças políticas regionais em 1979, data da primeira eleição “separada” para Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. “Como a divisão do antigo ‘MT’ foi obra de gabinete e não resultou de pressões sociais de baixo para cima, ela implicou em uma desarticulação das constelações de líderes locais e regionais, abrindo caminho para novas lideranças”. O processo a que Ga-

letti se refere foi presenciado nos dois lados do antigo estado e fez com que as antigas elites perdessem referências anteriores das articulações regionais, levando aos “rachas” nos grupos das elites tradicionais. Segundo ele, grupos da sociedade e organizações dos mais variados matizes passaram a ocupar o vácuo político deixado pelas lideranças ainda oriundas do período pré-1964, como o caso de Felinto Müller, cujo passamento em 1973 possibilitou até a divisão do estado, para exclusiva conveniência do planejamento da transição tramada por Golbery e Geisel. Neste contexto, no início da década de 1980, ganhou relevo na região a campanha eleitoral de 1982, que restabeleceu as eleições diretas para governadores.

E foi justamente um deputado do Mato Grosso, Dante de Oliveira, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) o responsável por apresentar no Congresso Nacional a emenda que previa o restabelecimento das eleições diretas. Precisamente, no dia 2 de março de 1983, dando início concreto à mobilização pelas Diretas Já.

No mês seguinte, quando Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloisio Lorscheiter (antigo presidente da CNBB) já haviam se pronunciado em defesa das eleições diretas, o PMDB inicia diálogo com outras forças políticas para a adesão à campanha. O PT, forjado na união de sindicalistas, Comunidades Eclesiais de Base, lideranças sociais, estudantes e trabalhadores rurais, adere ao movimento.

Em junho de 1983, a direção nacional do PMDB realiza em Goiânia, com a participação de cinco mil pessoas, o lançamento oficial da campanha das Diretas Já. Entidades como Ordem dos Advogados do Brasil, União Nacional dos Estudantes, e CNBB são procuradas pelo sindicalista Lula e pelo senador peemedebista Teotônio Vilela para aderir à campanha. As mobilizações ganham corpo ao longo do ano em diversas regiões brasileiras e na capital federal. A população já sai às ruas para integrar atos de apoio à “emenda Dante Oliveira”. No Centro-Oeste, 20 mil se reúnem em comício de Anápolis (GO). Mais do que o dobro comparece a ato na capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande. Em abril, Goiânia reúne mais de 200 mil pessoas pelas Diretas. Entre eles, Franco Montoro (governador de São Paulo), Ulysses Guimarães (presidente do partido e deputado federal por São Paulo), Jáder Barbalho (governador do Pará),

Íris Rezende (governador de Goiás) e Tancredo Neves (governador de Minas Gerais). Já em Cuiabá, o número de manifestantes pode ter envolvido mais de 40 mil.

“Desde um ponto de vista mais incisivo e objetivo, o movimento Diretas Já foi sem dúvida o processo político mais forte e decisivo para a queda da ditadura militar”, avalia o professor Luiz Carlos Galetti. Ele registra a realização de dois grandes comícios em Cuiabá, em 1984, que reuniram milhares de pessoas no centro da cidade. O primeiro, na avenida Getúlio Vargas, altura da Praça Alencastro. E o segundo na Praça Rachid Jaudi. “Neste último, pode-se dizer que ocorreu a maior concentração política da história de Mato Grosso”. Galetti recorda-se que as pessoas ocuparam toda a praça e “espalhavam-se também pelos espaços laterais, tomando as ruas Barão de Melgaço, Isaac Povoas e adjacências, formando uma multidão de aproximadamente 40.000 pessoas. A população de Cuiabá e Várzea Grande, juntas, era naquela época da ordem de 420.000 habitantes”. No palanque do comício, tradicionais e novas lideranças políticas locais e nacionais dos partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos, artistas e outras organizações da sociedade civil mato-grossense. Lula (presidente do PT), Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola (governador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT) e outras das principais lideranças nacionais e locais do movimento pelas Diretas também estavam presentes. No Centro-Oeste, o resultado da votação que rejeitou a “emenda Dante Oliveira” trouxe grande frustração, a exemplo do verificado no restante do Brasil.

Segundo o petista Pedro Wilson, foi muito importante em todo esse processo a presença de organizações, grupos e pessoas atuantes na política e na comunicação, especialmente a alternativa, que ajudaram a divulgar as lutas políticas pelas mudanças pela democracia em Goiás e no Brasil. “Os jornalões aqui somente apoiaram as Diretas Já depois que a roda da história já estava caminhando. Assim, foram importantes os jornais estudantis, boletins de sindicatos, Comissão Pastoral da Terra, movimento negro, rádio difusora, rádio universitária, boletins e revistas da arquidiocese impressos. Eles ajudaram nas mobilizações locais e nacionais, dada a sempre presente censura”, destaca o ex-prefeito de Goiânia. Na avaliação de Pedro Wilson, merecem registro especial nesse sentido o Jornal

5 de Março, o Jornal do Deboche, Diário da Manhã, Rádio Riviera, Jornal Opção e Jornal dos Direitos Humanos (ver “Lições de um jornalismo debochado”, à página 166 e “Diário da Manhã: o leitor no comando do jornal”, à página 150). Pedro Wilson registra que, infelizmente, muitos desses boletins e jornais alternativos não continuaram pela falta de recursos financeiros, verbas de publicidade e meios de distribuição para chegar ao eleitor.

O professor de Departamento de História da UFMT, Carlos Américo Bertolini, lembra que os veículos de comunicação no Mato Grosso estavam nas mesmas mãos em que já haviam caído desde a redemocratização de 1945, que pôs fim à ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. “A exceção [estaria] nas áreas de radiodifusão, cuja ampliação implicou na diversificação das relações das forças políticas com os proprietários de veículos, sem qualquer ganho para a oposição; e na TV, cuja implantação no estado se deu ainda nos anos 1960, coincidindo com a decadência do grupo dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Nos anos 70, o grupo Zahran, com base regional em Campo Grande (hoje Mato Grosso do Sul) hegemonizou as relações entre televisão e forças políticas, com claro pendor para o oficialismo”, diz.

Vale registrar que, no Mato Grosso, entre o mosaico de movimentos pela redemocratização, a luta contra a elite controladora da comunicação resulta numa articulação a partir de 1991 em Cuiabá: o Movimento pela Democratização dos Meios de Comunicação. Entre os protagonistas, estavam o Sindicato de Jornalistas do Mato Grosso, CUT, PT, Partido Comunista do Brasil (PCdoB), movimento estudantil e movimento docente da UFMT e do Sintep, entidade ligada à CUT, da área de profissionais da educação pública estadual e municipal, da qual emergiu a liderança de Carlos Abicalil, atualmente deputado federal pelo PT-MT.

Bertolini ainda registra que o Mato Grosso viveu uma situação muito peculiar na abertura da Nova República, quando Sarney teria comprado a “ampliação de seu mandato [de quatro para cinco anos] com base na distribuição de concessões públicas de rádios e de retransmissoras locais de TV, elevando nosso estado a uma condição ímpar no território nacional, a daquela região onde a abertura de novas conces-

sões se deu sem contrapartida de análogo crescimento da renda gerada pelo comércio local”. Segundo Bertolini, municípios de baixa concentração econômica e sem características de pólo-regional chegaram a testemunhar a abertura de duas concessões de rádio ou TV em localidades que sequer apresentavam espaço econômico para uma única rádio FM. O professor de história da UFMT cita como exemplos os municípios de Jaciara e Primavera do Leste, localidades com população inferior a 50 mil habitantes, abrigando dois canais de TV aberta e sem perspectivas de equivalente crescimento econômico regional.

[história] Contexto Centro-Oeste [onde e quando] Goiás,Distrito Federal,Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; de 1960 a 2005, especialmente 1970 a 1989 [quem conta] Carlos Américo Bertolini,Luiz Carlos Galetti e Pedro Wilson [entrevistas realizadas] setembro de 2004 a março de 2005