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Comunicação e igreja em defesa da democracia

LUCIMEIRE MATOS é jornalista e integrante do Intervozes

Incomunicação Social. Em julho de 1975, plena ditadura militar, esse era o tema de congresso realizado em Campinas (SP), do qual o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns – então à frente da Arquidiocese de São Paulo – participava como convidado. “Não queremos falar sozinhos. O anúncio, simplesmente o anúncio, é sempre um monólogo. Um sozinho falando para os outros. O povo tem que dizer o que pensa, dar sua opinião”, diz ele, ainda hoje, lembrando o início de sua luta pela comunicação dentro e fora da igreja católica.

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Comunicação e sociedade eram assuntos não muito debatidos – ainda mais em tempos de repressão. A igreja, especialmente Dom Paulo, contribuíram para levantar esse debate com o trabalho da União Cristã Brasileira de Comunicação (UCBC). Após esse encontro de 1975, a UCBC realizou também, em 1977, um congresso, em São Leopoldo (RS), com o tema “Comunicação e Participação na Sociedade”; outro, no ano seguinte, em Bragança Paulista, intitulado “Comunicação e Consciência Crítica”; e, em 1980, 1981 e 1982, realizou encontros com pessoas que voltavam do exílio.

A UCBC continua sua trajetória hoje, através da Rede de Comunicadores Solidários, que integra jornalistas, radialistas e comunicadores populares, e da Rede Brasileira de Jovens Comunicadores. Mas a defesa dos direitos à informação é uma atitude que não esteve sempre na pauta da igreja católica.

HISTÓRICO

Boa parte da igreja católica brasileira foi conivente com o golpe militar de 31 de março de 1964. Essa opção fica clara quando se observa a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, organizada em apoio ao governo golpista, assim como relatos, por exemplo, da jornalista Helena Salem que, em seu livro A Igreja dos Oprimidos, conta que “apenas dois dias depois do golpe, a Polícia Militar cercou o seminário dos dominicanos de Juiz de Fora, em Minas Gerais, invadiu e fez uma busca. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não moveu uma palha sequer na defesa dos perseguidos, salvo alguns bispos, que agiram por conta própria e com grande coragem”.

Com a radicalização do regime, entretanto, a igreja compreendeu que não poderia

exercer a sua missão sem entrar em choque com os militares. A igreja católica recebeu um ataque frontal depois do recrudescimento do regime com o AI-5 (Ato Institucional Número 5), assinado pelo presidente, o Marechal Arthur da Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. Centenas de militantes cristãos foram seqüestrados, torturados e assassinados. Com essa repressão indiscriminada, a igreja começa a se aproximar cada vez mais das classes populares, aumentando o alcance e a aceitação da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), entre outros. As CEBs, em especial, ajudaram a criar espaços participativos onde se podia lutar por liberdade e justiça.

Em 1973, Dom Paulo Evaristo Arns torna-se cardeal da cidade de São Paulo e cria, neste mesmo ano, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese, em defesa dos perseguidos pelo regime militar. Oferece apoio, muitas vezes salvando vidas.

Para a abertura democrática, foi determinante sua atuação nas manifestações contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, em São Paulo. Dom Paulo foi uma das principais vozes que se levantou contra a versão dos militares de que Herzog havia se suicidado nos porões do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército). “Minha intervenção foi direta, de maneira alguma permitiria aquilo. Protestei para que Herzog tivesse todas as honras que um herói pode receber aqui na Terra” e também para que pudesse “servir de exemplo para a juventude. E foi o que aconteceu”, afirma Dom Paulo.

O papel de Dom Paulo no caso Herzog e na luta contra a ditadura tornou-se ainda mais importante com a celebração do ato ecumênico na Catedral da Sé, na data da missa de sétimo dia da morte do jornalista. O ato em memória a Herzog, que reuniu milhares de pessoas em protesto público contra a ditadura – católicos, judeus, protestantes, gente de todos os credos – é visto como um fato histórico decisivo no processo de derrubada da ditadura e de redemocratização do Brasil.

Em 2005, Herzog recebeu inúmeras homenagens, como a intitulada Vlado – 30 Anos de Vida Eterna, que contou com o Ato inter-religioso em memória de Vladimir Herzog, pela Paz e Direitos Humanos, na Catedral da Sé, com a participação de representantes de 20 religiões e com apresentação do Coral de 1.000 vozes, regido por Martinho Lutero.

UCBC

Outra figura que fez parte do grupo fundador da UCBC na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), integrando sua primeira diretoria provisória, foi o professor José Marques de Melo, que presidiu a entidade no biênio l974-1976, justamente quando havia sido demitido do quadro de professores da Universidade de São Paulo (USP), acusado de “atividades subversivas”. Depois da anistia política, em 1979, ele retornou à USP, mas absorvido pelas atividades acadêmicas, participou somente dos congressos anuais da UCBC. É ele quem conta alguns detalhes sobre a luta pela democratização da comunicação dentro da igreja.

_ Como nasceu a UCBC?

A UCBC nasceu em 1969, durante um congresso latino-americano de imprensa católica realizado na PUC-SP. A intenção inicial era a representação dos brasileiros na UCLAP – União Católica Latino-Americana de Imprensa. Depois a entidade assumiu fisionomia própria, mais sintonizada com o momento político vivido pelo Brasil, defendendo a liberdade de expressão e denunciando a perseguição aos jornalistas.

_ O que fez a UCBC para desenvolver a compreensão da comunicação na igreja católica?

Creio que a UCBC ofereceu duas contribuições fundamentais à igreja católica no Brasil. Primeiro, ajudou a neutralizar o comportamento apocalíptico tradicionalmente assumido pelas autoridades eclesiais perante a mídia; depois, fortaleceu a prática da liberdade de imprensa no exercício do jornalismo, tanto incentivando o episcopado a se converter em fonte permanente de notícias, quanto fomentando as Comunidades Eclesiais a ler criticamente o noticiário veiculado pela empresas jornalísticas.

_ Quais são os princípios da UCBC e como era a relação da instituição com a sociedade civil?

A UCBC ancorou-se historicamente em princípios basilares como: liberdade de expressão,

pluralismo ideológico e democratização cultural. Esse comportamento não dogmático permitiu seu trânsito na sociedade civil brasileira, então castigada pela repressão institucional.

_ O congresso em Campinas, em 1975, teve a presença de Dom Paulo Evaristo Arns falando sobre Incomunicação Social. O que a participação de Dom Paulo trouxe de mais importante ao congresso?

A presença de Dom Paulo Evaristo Arns no congresso de Campinas foi reconfortante naquele momento, pois nos trouxe uma mensagem carregada de sabedoria e perseverança. Aprendemos, dolorosamente, o que era a Incomunicação Social, pois as autoridades de então receberam com desconfiança a presença do cardeal Arns em nosso encontro anual. Tanto assim que a mídia ignorou solenemente o nosso congresso. Por isso tomei a iniciativa de reunir em livro as principais reflexões ali esboçadas, com a finalidade de ampliar a sua difusão nacional.

_ Em tempos de repressão, a UCBC lançou o projeto Leitura Crítica da Comunicação. Qual a origem da iniciativa? Atualmente, o projeto volta a ser desenvolvido com ênfase pela UCBC. Da proposta original, o que mudou?

A autoria foi coletiva. Pretendia ser um contraponto em relação àquelas jornadas de inspiração norte-americana que faziam uma leitura puramente moralista da mídia. Nós queríamos enfatizar sua leitura política, naquele sentido de leitura do mundo sugerida por Paulo Freire. Infelizmente, a dinâmica do projeto acabou por torná-lo enviesado, na minha opinião, assumindo o caráter de leitura ideológica, no sentido althusseriano. Mas esta nunca foi a intenção da equipe que se reuniu intensivamente para esboçar suas diretrizes.

_ O que motivou o senhor a construir boa parte de sua vida na luta por novas políticas de comunicação?

A minha obstinação pelas políticas de comunicação está enraizada no sentimento democrático, que cultivo intensamente.

Toda sociedade precisa definir claramente as regras do jogo comunicacional, sob o risco de convertê-lo em território propício às artimanhas dos manipuladores de plantão. É possível que as políticas instituídas não sejam tão democráticas quanto gostaríamos, mas é fundamental que elas garantam espaços pluralistas e responsáveis, no sentido de garantir seu constante aperfeiçoamento. O casuísmo como política comunicacional tem sido danoso à nossa sociedade, fortalecendo a ação dos tradicionais donos do poder.

_ A igreja conseguiu superar a visão instrumentalista da comunicação, evoluindo nas questões dos direitos humanos?

Pouco a pouco a igreja vai superando suas posturas conservadoras. A questão dos direitos humanos tem povoado intensamente a agenda da igreja católica. Sua apropriação comunicacional deve incluir tanto a denúncia das violações (agenda negativa), quanto as conquistas civilizatórias (agenda positiva).

_ Qual o papel da UCBC nos dias de hoje? Antes, a figura do inimigo era muito clara: era a ditadura, era o autoritarismo. Quem são os “inimigos” de hoje?

O papel da UCBC hoje deve ser o fortalecimento da sociedade democrática. Ultrapassamos os maniqueísmos peculiares à conjuntura da sua fundação, marcada pelo autoritarismo. Se existe inimigo à vista ele continua sendo a exclusão comunicacional, responsável pelo lento desenvolvimento da nossa vida democrática.

[Wellington Costa] [Oswaldo José dos Santos/ Jornal da USP] [história] Igreja e comunicação [onde e quando] São Paulo (SP),de 1964 a 1982 [quem conta] Dom Paulo Evaristo Arns e José Marques de Melo [entrevistas realizadas] Abril a Junho de 2004