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Coojornal: O fim da ditadura – e da reportagem

DANIEL CASSOL é jornalista, assessor de imprensa do deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS), colaborador do jornal Boca de Rua e integrante do Intervozes

Em fevereiro de 1983, quatro repórteres da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre foram condenados à prisão pelo Supremo Tribunal Militar. Motivo de revolta e evidência do anacronismo da ditadura, a prisão de jornalistas em pleno processo de abertura política foi o último golpe desferido contra uma das mais originais experiências de imprensa independente que o Brasil já conheceu. Fundada por 67 jornalistas asfixiados pela censura e falta de emprego, em 27 de agosto de 1974, a primeira cooperativa do gênero do País aliou organização coletiva com jornalismo crítico e independente, provocando estragos na ditadura e deixando, para museus e bibliotecas, uma lição hoje esquecida pela imprensa.

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A participação de muitos de seus fundadores na experiência da Folha da Manhã, jornal editado pela empresa Caldas Jr., entre 1972 e 1974, foi a gênese da cooperativa. “Éramos um estado de oposição, mas a imprensa não atendia a esse público. Havia espaço para uma imprensa independente”, lembra Elmar Bones, secretário de redação da Folha da Manhã e, depois, diretor da Coojornal. O sucesso obtido com a profissionalização da redação e a abordagem de temas que mobilizavam a oposição não impediu que a empresa cedesse às pressões do regime. Após um incidente com a publicação de uma reportagem sobre problemas nas portas dos aviões da Varig, Elmar Bones, autor da matéria para a Folha da Manhã, pediu demissão. Em seguida, uma reportagem, do então desconhecido Caco Barcellos, provocou mais uma crise dentro do jornal. Cerca de 20 jornalistas se demitiram em massa, o jornal recuou e a imprensa gaúcha – que já havia perdido o Pato Macho, que promoveu uma “rebelião impressa” em 1971 – ficou órfã de uma alternativa.

Nesse contexto nasceu a Coojornal. “A questão do mercado de trabalho – lembra Bones – mobilizava mais, mas havia um grupo pequeno que acreditava na possibilidade de se criar um jornal independente”. A cooperativa começou editando jornais para terceiros. Enquanto juntava capital para criar o sonhado jornal, criou um boletim interno para discutir as questões do cooperativismo e da imprensa no Brasil. O boletim cresceu e, em 1976, a cooperativa decidiu transformá-lo em um jornal mensal, intitulado Coojornal, o jornal dos jornalistas. Na capa, uma reportagem sobre o assassina-

to da esposa do deputado gaúcho Euclides Kliemann, em 1962, que nunca fora esclarecido. “O Coojornal foi às bancas numa fase já mais definida de abertura política. O regime militar começava a entrar para a história. E o Coojornal se tornou o contador dessa história”, escreveu o professor e jornalista Bernardo Kucinski em seu livro Jornalistas e Revolucionários.

O Coojornal foi o primeiro jornal do País a falar na Guerrilha do Araguaia, na edição de julho de 1978. Em 1977, fez um levantamento completo dos políticos cassados em 13 anos de “revolução democrática”. Abordou as ditaduras nos países da América Latina e deu voz aos líderes históricos da esquerda, como Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes, Leonel Brizola e aos personagens que iniciavam suas trajetórias, como Luiz Inácio Lula da Silva e Olívio Dutra. Também dedicou-se a temas da economia, da cultura e do esporte, mantendo sua característica inicial de fazer a crítica da imprensa. “Era um assunto em que, simplesmente, não se tocava”, aponta Bones. Em pouco tempo, o jornal ganhou importância e influência. Chegou a alcançar uma tiragem de 35 mil exemplares, dos quais mais da metade circulava fora do Rio Grande do Sul.

Para José Antonio Vieira da Cunha – autor da idéia da Coojornal a partir de uma nota em uma publicação, que falava de uma cooperativa de jornalistas na Itália – o êxito se devia à profissionalização do projeto. “Era isso que dava credibilidade e prestígio para o Coojornal, na medida em que ele procurava tratar os assuntos da maneira mais objetiva e isenta, do ponto de vista de vícios partidários”, explica. O veículo não teria essa força se não fosse a estrutura de propriedade coletiva, na opinião de Bones. “O jornalista era o dono da empresa e isso gerou uma grande simpatia no meio”, afirma. Nas palavras de Kucinski, “tratava-se, não de organizar partidos ou vanguardas, mas de permitir aos associados a prática de um jornalismo livre e independente, cujas ‘expectativas’ seriam satisfeitas, muito mais no resultado do confronto geral do projeto com a ditadura, do que como expectativas pessoais”.

Com a repressão aos sindicatos, as assembléias da cooperativa extrapolavam as questões administrativas e tornavam-se grandes fóruns de discussão sobre a conjuntura política brasileira. “Eram assembléias que chegavam a durar oito horas”, recorda Vieira

[Reprodução]

Capas do Coojornal: protagonismo e registros históricos

da Cunha. Internamente, os conselheiros editoriais, repórteres e fotógrafos permitiam uma democratização das decisões diárias da cooperativa.

Editorialmente, o Coojornal passou a testar os limites que a ditadura impunha. Assim, puxou a imprensa para os temas antes censurados, impelindo baixas à ditadura, ao mesmo tempo que soava o alarme nos gabinetes militares. “Houve um plano deliberado para detonar a Coojornal”, atesta Bones. Militares faziam visitas aos anunciantes, pressionando para que retirassem o apoio. “Eu tenho vários testemunhos de empresários que foram visitados”, lembra. A maioria obedeceu. Bombas explodiram em algumas bancas que vendiam o jornal. Nesse meio tempo, chegaram à redação os documentos oficiais do Exército relatando as ações de desmantelamento dos focos de guerrilha no Vale do Ribeira e da execução de Carlos Lamarca. “Tínhamos uma desconfiança muito forte de que aquilo era uma armação. Só que os documentos eram autênticos e revelavam coisas que tinham acontecido em 1970, 1971, mas que ninguém sabia. Era uma bomba”, recorda Elmar. A reportagem foi publicada e acabou provocando a prisão de Osmar Trindade, Rosvita Sauerssig, Rafael Guimaraens e Elmar Bones, em 1983, já com a abertura política sendo retomada.

Sem clientes nem anunciantes, a Coojornal passava por um processo de desgaste interno, por conta de divergências entre o grupo dirigente e a oposição. Esse desgaste provocou, por fim, a falência do projeto. A última edição do jornal saiu em março de 1983. Despejada de sua sede por ordem judicial, teve todos os seus documentos e sua biblioteca recolhidos a um depósito judicial e queimados, sob a alegação de falta de espaço, destruindo fração importante da memória do jornalismo brasileiro – cada vez mais carente de iniciativas como essa.

ELMAR BONES: “PRECISAMOS DE UM CONJUNTO DE PEQUENAS MÍDIAS, PARA A SAÚDE DA DEMOCRACIA”.

Espécie de fio condutor da história do Coojornal, Elmar Bones hoje dirige o Já, um pequeno jornal de bairro de Porto Alegre (RS) que ainda insiste em fazer jornalismo: em

2004, por exemplo, o Já viu uma de suas reportagens conquistar o Prêmio Esso de Jornalismo.

Foi na redação do jornal, onde também funciona a Já Editores e sua casa, que Elmar concedeu essa entrevista, para contar a experiência empreendida na década de 70 e falar sobre a situação da imprensa no Brasil.

_ O objetivo da Coojornal era criar uma alternativa de mercado ou uma válvula de escape para o jornalismo crítico e independente?

A questão do mercado de trabalho era um problema concreto em Porto Alegre e motivou um grupo maior. Mas tinha um grupo menor que tinha uma visão crítica da imprensa local, que sempre foi muito governista, oficiosa.

_ Qual foi a influência da experiência que vocês tiveram com a Folha da Manhã?

A experiência da Folha aglutinou o grupo que criticava o oficialismo da imprensa. Fizemos um jornal ativo, em contraposição aos jornais passivos. A nossa tese se revelava verdadeira à medida que o jornal crescia muito em vendas. Mas ele começou a trazer problemas para a Caldas Jr [empresa que editava o jornal], uma empresa que, como todas as outras, apoiou o regime militar. A imprensa sempre adere aos movimentos da elite.

_ Depois do fim da Folha da Manhã, como esse grupo continuou?

Seguíamos nos reunindo com a idéia de que havíamos descoberto um caminho. Com uma cooperativa, poderíamos aglutinar mais gente. Começamos a nos aproximar das cooperativas agrícolas, fortes por causa da expansão da lavoura de soja, que receberam bem a idéia de uma cooperativa de jornalistas. Desde o início, pensávamos em fazer um jornal, mas vimos que não tínhamos recursos. Tratamos de organizar a cooperativa, aglutinar mais gente e juntar dinheiro para fazer um semanário.

_ Se o Coojornal fosse editado por uma empresa convencional, ele teria a mesma força? Claro que não. O grande diferencial era a participação. O jornalista era o dono da em-

presa e isso gerou uma grande simpatia no meio. O cooperativismo é a forma mais democrática de organização. Essa coisa do controle da empresa, que está na mão do jornalista, era bem original.

_Como surgiu a tendência em se fazer uma memória da ditadura que ainda não havia acabado?

Não queríamos atrair a censura, que recém havia saído das redações. Trabalhávamos no limite que o regime permitisse. Avançávamos aos poucos. Falávamos indiretamente das questões que estavam no ar, que a esquerda estava levantando, mas que não tinham espaço. E, à medida que começamos a notar o interesse das pessoas, passamos a ficar mais ousados. O Ernesto Geisel começou a colocar, muito discretamente, o discurso da abertura lenta, gradual e segura. Aparentemente, a revolução era vitoriosa: tinha eliminado seus inimigos e podia se dar ao luxo de descomprimir um pouco o ambiente político.

_Mas como explicar a prisão de vocês, já na década de 80?

A abertura teve vários solavancos. Um dos problemas que a abertura encontrou foi o crescimento da imprensa alternativa. Ela puxou a imprensa convencional para novos temas –e aí vem a importância dela. Havia mais espaço, mas a imprensa convencional se acomodou na posição de não incomodar o regime. Até porque o regime censurava e financiava essa imprensa. Esses grupos todos que estão aí ganharam muito dinheiro. Mas esse refluxo na abertura política é uma parte da história que ainda não foi bem contada. Houve um plano deliberado para detonar a Coojornal, desde medidas oficiais tomadas pelo governo até ações terroristas, como o caso das bombas nas bancas. Eu sei que houve reunião do III Exército com empresários, em que se orientou a não apoiar a “imprensa comunista”.

_ Isso acabou acirrando, também, uma cisão interna na cooperativa?

O grupo que dirigia a Coojornal achava que o importante era preservar a organização, a estrutura de trabalho. Achávamos que aquele processo ia passar. Mas havia um grupo mais à esquerda, que defendia o fim dos serviços prestados para terceiros, para concen-

trarmos esforços no jornal, fazer um jornal mais agressivo e buscar apoio no leitor, o que era uma coisa utópica. Na hora em que começa a ter bomba em banca, até o leitor te abandona. Aí veio o processo, veio a prisão, se acirrou a disputa interna. O grupo da oposição ganhou a eleição e as pessoas – a essa altura tínhamos cerca de 400 sócios, mas a maioria não tinha essa perspectiva política – se afastaram. No meu caso, como os salários começaram a atrasar e eu ainda divergia com a linha deles, me afastei. Hoje a gente vê que havia uma briga interna muito forte. Por isso que a pequena imprensa é necessária. Aqui no Jornal Já, por exemplo, posso abordar temas que a Zero Hora não pode. Na nossa edição sobre o golpe de 1964, publicamos a manchete “O dia em que o Rio Grande vacilou”, nos referindo aos dias em que o estado poderia ter comandando uma reação contra o golpe. Se fizesse isso na Zero Hora, o pessoal que apoiou o golpe iria pra cima do jornal, dizendo que, ao contrário, os gaúchos estiveram sempre do lado certo, apoiaram a revolução e impediram a implantação do comunismo no Brasil.

_ Já outros jornais não precisaram ser muito sutis e falaram logo em “revolução”.

Mesmo na Zero Hora, a palavra “golpe” apareceu aqui e ali. Mas o pequeno jornal pode fazer isso, e isso influi no grande jornal. Se o pequeno traz uma informação quente, o grande jornal não pode ignorar por muito tempo. Um conjunto de pequenos jornais consegue expressar opiniões que precisam de espaço. Para a saúde do sistema democrático é preciso um conjunto de pequenas mídias instigando a mídia grande, que tende a se acomodar, porque ela é uma mídia empresarial, está muito mais ligada aos seus próprios interesses.

[Daniel Cassol]

[história] Coojornal [onde e quando] Porto Alegre (RS),de 1976 a 1983 [quem conta] Elmar Bones (foto) e José Antonio Vieira da Cunha [entrevistas realizadas] Abril de 2004