Os sete - andre vianco

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Manuel aproximou-se e, só depois de Espelho segurar firme a prancha que oscilava bruscamente, tomou o caminho da caravela, com passos cautelosos, levando Eliana, ainda desacordada, às suas costas. Acordador, sempre contido, estava a ponto de soltar um grito de felicidade. A caravela era um elo com a existência passada. Apesar de ter servido de prisão por centenas de anos, ela transmitia lembranças de uma época distante, quando não havia aviões no céu nem mesmo serpentes de ferro. Lembrava uma época em que era mais temido que doenças, que armas e que qualquer homem. Iriam voltar a Portugal. Iriam voltar ao velho castelo encravado no D'Ouro. Retornariam ao seu berço de sangue e vingar-se-iam dos portugueses, que tanto aplaudiram seu enclausuramento. Eliana foi acomodada no convés, deitada sobre a madeira molhada. Quando os grossos pingos d'água batiam contra seus olhos, ela piscava. Parecia retornar à consciência aos poucos. Quando desse por si, provavelmente já estaria em alto-mar, sem chance de escapar. Inverno cruzou o portão de acesso às docas. Percebeu olhos humanos rastreando o lugar. Não o haviam localizado ainda. A maioria dos humanos escondia-se e se protegia da poderosa tempestade que se abatia sobre Amarração. Com mais dois passos teve a visão completa das docas, enchendo-se de emoção ao se deparar com a formosa caravela vagando sobre as águas. A condução para o velho mundo estava lá, chamando por ele, com sua doce nova mãe a bordo, com o sangue poderoso e divino de uma quase ressurreição. As pernas ainda estavam doloridas. Havia gastado quase toda sua energia vampírica para chegar até ali. Caminhou o mais rápido que pôde, quase correndo, ansiando por embarcar na centenária caravela. Tempestade aproximou-se do mastro central. Não havia velas em nenhum deles. Tocou a madeira, sentindo a energia da velha embarcação. Havia algo diferente. Os brasileiros tinham modificado alguma coisa na madeira. Varreu com os olhos o convés. A mulher, debruçada a um canto, tentava se levantar. Olhou para os mastros novamente. Nenhuma vela. Nada. Abriu um sorriso largo. Sabia que não teria problema algum. Afinal, ele era o vampiro que fazia chover. O vampiro que mudava o tempo. Era dono de um dom maldito. Caminhou até a amurada, com a chuva forte batendo sobre a cabeça. Suas roupas estavam completamente ensopadas, e fios de água escorriam-lhe pela face. Os olhos de vampiro encontraram o companheiro que fazia esfriar caminhando rapidamente, aproximando-se da caravela. Sabia que Miguel não viria. Sabia que era hora de ir embora da terra dos brasileiros, a terra de Cabral. Deveria providenciar, ajeitar a partida. Ergueu os braços para o céu e ordenou que a tempestade fosse mais poderosa, mais traiçoeira e mortal. Apontou a mão para as grossas amarras, e então assustadores relâmpagos vieram cortá-las, fazendo as toras que prendiam as cordas explodir com violência. Fernando aproximou-se da amurada e, com as mãos em concha em torno da boca, gritou para Guilherme: — Vamos partir, ó gajo! Corre!


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