Os sete - andre vianco

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Eles começaram a andar, dando passadas pesadas, afundando os pés até a neve chegar quase aos joelhos. Uma imagem formou-se na cabeça do tenente. Era um desenho animado ao qual ele costumava assistir inúmeras vezes na TV quando criança. Um sorriso idiota cresceu em sua face. Dentro de sua cabeça o desenho desenrolava-se com perfeição, fazendo-o relembrar alguma coisa a que assistira trinta e poucos anos atrás. Ele via um cachorro peludo, da Turma do Pica-Pau talvez, caminhando na neve espessa, calçando estranhas raquetes de tênis como sapatos desengonçados. Agora, tantos anos depois, aquelas raquetes sob os pés lhe faziam algum sentido. O cachorro animado calçava aquilo para que os pés e pernas não afundassem na neve, como os seus faziam agora. Se aquele frio demoníaco não lhe estivesse congelando a garganta, certamente partilharia a história com os dois jovens soldados. Será que alguma vez eles teriam assistido àquele desenho idiota? A cerca que envolvia todo o complexo das docas estava à frente do trio, a dez metros apenas. Até chegar à doca, onde fora montada a emboscada, teriam de caminhar uns trezentos metros em linha reta, mas com aquela neve prendendo os pés certamente iriam parecer três quilômetros.

Inverno e Manuel caminhavam pelas ruas estreitas e sem pavimentação da periferia de Amarração. O vampiro havia interrompido seu sobrenatural fluxo congelante; entretanto, já tinha liberado frio o suficiente para que a noite continuasse com temperatura abaixo de zero, mantendo os assustados e desprevenidos mortais dentro de suas casas humildes. Volta e meia Inverno ouvia sua canção favorita. O choro sofrido das crianças, a tosse insistente dos velhos e o murmúrio agoniado das mães e dos pais tentando vencer a noite gelada e manter os filhos vivos até o raiar do sol, a única coisa que conseguiria banir o frio sobrenatural trazido pela criatura maldita. — Onde ele está? — Não te preocupes, amigo Manuel, não teremos problema com ele. Minha primeira preocupação foi guardá-lo para que pudéssemos exercer nosso fascinante ofício sem preocupação. — Onde o guardaste? A voz de Manuel era baixa e sombria, própria do dono, um homem de aparência comum, de estatura baixa e pele alva, tão alva que às vezes se confundia à brancura da neve que cobria o chão das ruas por onde caminhavam, deixando sulcos suaves no rastro de suas passadas. Ali, onde a corrente fria fora menos selvagem do que na área das docas, a camada de neve era pouco espessa, atingindo a altura de três polegadas nas partes mais carregadas. Com exceção dos dois visitantes, as ruas estavam desertas, fazendo suas vozes alcançarem um bom volume mesmo quando sussurravam. Inverno decidiu não responder ao amigo. Ao menos por enquanto seria mais seguro guardar segredo sobre certas coisas, sobre contendas seculares.


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