Livro Ex 157

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CRISTIAN DE SOUZA AUGUSTO (AFRO-X)

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Copyright © 2009 by Cristian de Souza Augusto Todos os direitos desta edição reservados à Auto-Estima Entertainment Records São Paulo-SP-CEP 09895-595 Tel: (11) 2897-0659 contato@afro-x.com.br www.afro-x.com.br Digitação Lindacir Preparação de originais Diva Ferreira Revisão Martha Souto Contra-capa Cristiane Bomfim Colaboradores Verônica Truppel Cristiane Bomfim Kely Nascimento Pesquisa Cristiane Bomfim Produção Lu Clemente Fotos João Wainer Projeto gráfico e diagramação Décio Soncini Cristian de Souza Augusto, Afro-X EX-157/ Cristian de Souza Augusto - São Paulo Auto-Estima Entertainment Records, 2009.

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Dedico e consagro esta obra primeiramente a Deus, Criador do universo, Rei dos reis, Senhor dos exércitos e meu maior ídolo, Jesus Cristo. Em especial, às fontes de inspiração: de coração aos meus amados filhos Ryan Eduardo, Aysha Benelli, Hemellyn Lawryn, João Pedro e a Malu. A minha querida mãe, Dona Neusa, e meu pai, Tião. Aos meus irmãos Bad, Nithiely e a todos os entes queridos. Em memória a todos aqueles que morreram injustamente em virtude desse caos que vivemos e a todos aqueles que acreditam num ideal de mudança. Meu sonho é que essas singelas palavras contidas na obra sejam sementes para uma transformação espiritual e social para todos que lerem.

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-AGRADECIMENTOSA Deus pela dádiva de escrever esta obra. A toda minha família que sempre me incentivou nos momentos difíceis. A todos que de alguma forma contribuíram com atenção, idéias, positividade, em orações, palavras. Este livro tem um pedaço de todos vocês. Ao Dr. Ariel de Castro, Rose Nogueira, Margarida Pressburger, Jonya Lúcia Tratte e a todas as comissões de direitos humanos do mundo. Ao juiz de direito, Otávio Augusto Machado de Barros Filho. Ao agente Cultural, José Júnior (Afroreggae). Aos jornalistas Gilberto Dimenstein, Cristiane Bomfim, André Caramante, Josmar Jozino, Bruno Paes Manso, Diva Ferreira. Ao fotógrafo João Wainer, que me acompanha desde o início da carreira. A Lu Clemente, Marcos Caneta, Caru. A revista Celebre, Dra. Miriam e Fernanda Kelly. Um grande salve à todos os guerreiros do movimento Hip Hop porque vocês são os principais protagonistas dessa história. Ao terceiro setor. Aos movimentos sociais de inclusão e a todos os agentes multiplicadores que acreditam e fazem sua parte para a tão sonhada mudança. A todos aqueles que estão privados de sua liberdade e a todas as comunidades e favelas do Brasil.

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– SUMÁRIO –

Prefácio ..................................................................................... 6 Introdução .............................................................................. 11 Sexta-feira 13 ......................................................................... 16 Cinco meses depois ................................................................ 27 O rei da favela ........................................................................ 44 Do crime ao sucesso ............................................................... 52 Quarto mundo dentro de um terceiro ................................... 82 Segunda sem lei ..................................................................... 91 Campo de concentração ....................................................... 101 Inocente ou não .................................................................... 103 Conheci uma estrela ............................................................. 111 Alegria de preso dura pouco ................................................ 119 Radiografia do barril de pólvora ......................................... 128 Vaso ruim de quebrar ........................................................... 142 A lei é para todos, mas a justiça é para poucos .................. 156 Papai e mamãe, tô chegando ............................................... 162 Assim meu coração não agüenta ......................................... 169 Falhei na missão ................................................................... 177 A virada ................................................................................. 182 Dialeto .................................................................................. 188

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– PREFÁCIO – Conheci Afro-X nos últimos anos do século passado, quando procurava nas favelas de São Paulo sobreviventes das execuções da polícia. Eu era um repórter-garimpeiro, em busca de raridades escondidas. Os forasteiros eram recebidos em silêncio, estranheza, desconfiança. Mas Afro-X me abriu as portas de sua casa para falar, com indignação, das agruras da juventude do Jardim Calux. Com o passar dos anos, nossos destinos não precisavam se cruzar para eu acompanhar a sua trajetória de surpresas e de sucesso. A voz de Afro-X, assim como a de seu parceiro Dexter, virou uma referência do rap. Tinha que ser o rap a música que amplificou o grito da periferia para todo o Brasil. Agora, abril de 2009, recebo dele uma mensagem com uma bela notícia, de primeira mão. É nóis, agora com um livro... Em busca da tão sonhada paz. Registro aqui com alegria a minha ansiedade: quero ler antes de todo mundo. A história da vida de Afro-X, tem elementos de sobra para a garantia de uma leitura inesquecível. Caco Barcellos, repórter e escritor. “Não há uma relação direta entre pobreza e violência. Se fosse assim, todos os pobres seriam violentos. Há, sim, uma relação entre violência e falta de perspectiva de futuro. Isso significa que quando os indivíduos não desenvolvem um sentido positivo de pertencimento à escola, à família, ao trabalho ou á sua comunidade - corre maior risco de marginalidade.” Gilberto Dimenstein, jornalista, escritor e colunista da Folha de São Paulo. “Cada um escolhe o caminho por onde seguir. O criminoso está no crime porque assim ele escolheu. A sociedade precisa criar caminhos alternativos atraentes que seduzam mais do que

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o crime. O jovem que conhece sua história e a de seus antepassados estará mais preocupado com o futuro”. Bruno Paes Manso, repórter do Estado de São Paulo. “Se toda regra tem uma exceção, Afro-X, sem dúvida, é uma delas. Pagou pelo erro, saiu da prisão e superou os difíceis obstáculos. Com fé, força de vontade, determinação e amor à família, aos amigos e a si próprio, reconstruiu sua vida. Mas nem todos têm essa chance. É difícil tentar explicar os motivos que levam as pessoas ao crime, ao 157. Mas num país de desigualdades, onde a distância entre pobres e ricos é cada vez maior, os menos favorecidos têm mais chance de ir para a prisão. Milhões já nasceram excluídos. Vivem em condições desumanas. Não tiveram oportunidade de concluir os estudos, trabalhar e consumir. São marginalizados pela própria sociedade. A maioria que sai da cadeia é rejeitada socialmente. Nem concurso pode prestar. Parecem condenados à prisão perpétua, mesmo soltos. Faltam ações sociais e governamentais para assistir, com dignidade e seriedade, essa população. A educação é uma delas. Essa situação precisa mudar. Todos têm direito de se recuperar e mudar de vida. Tanto os que estão nas ruas como aqueles privados da liberdade.” Josmar Jozino, repórter do Jornal da Tarde. “Sem Justiça não há paz. Sem Justiça social, menos ainda. O que faz do Brasil um país injusto? Parte das dezenas de respostas para pergunta tão complexa pode ser encontradas quando nos dispomos a conhecer a vida de homens como Cristian de Souza Augusto, ex-157, ou melhor, ex-ladrão, ex-perigo para a sociedade, como se diz no submundo das ruas de São Paulo. Negro e pobre, Cristian resolveu buscar ascensão social com um revólver na cinta. Saiu derrotado e amargou anos nos presídios superlotados. Na dureza da tranca da Casa de Detenção do Carandiru, onde o conheci há mais de uma década, ainda no início da minha caminhada como repórter e ele na dele de excriminoso, Cristian sentiu o peso da Justiça no Brasil, princi-

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palmente quando a espada da deusa Têmis corta a pele dos jovens excluídos. A vida de Cristian mostra porque no Brasil a lei é aplicada de acordo com os números. Não os dos artigos do Código Penal (o 157, crime de roubo, foi o gravado em Cristian), mas, sim, de acordo com o número do CEP, do código postal, da origem do réu, dos cifrões. Para os da periferia, a severidade da Execução Penal e prisões podres; para os abastados, a proteção total.“ André Caramante, repórter da Folha de São Paulo. Sempre me perguntava por que alguém viveria à margem das leis. Cheia de “razões”, só condenava e julgava. E o pior, não acreditava na recuperação de presidiário. Por ironia, trabalhei no Ministério da Justiça onde, me surpreendi abraçando um projeto que buscava reintegrar egresso a socidedade. Em cada história conhecia uma outra versão dos fatos. E descobri: quem erra está condenado duas vezes: uma pelas leis, outra pelos homens, sem as leis. Isto é, pela sociedade. Talvez, eu não saiba responder porque uma pessoa comete erros graves. Mas, sei porque essa mesma pessoa enfrenta tantas dificuldades para corrigir tais erros. É porque o sistema pune, mas não recupera. Constrói presídios, mas não reconstrói vidas. E a saída está na vontade de cada um, com o apoio de outros. Quem constrói sua própria liberdade prova que o cenário pode mudar, porque a prisão não está apenas por trás das grades. Está também, nos preconceitos fora delas. A vitória é individual, mas durante a caminhada pode haver incentivo e ajuda. Com os egressos, aprendi o quanto eu era presa à minha ignorância, à crenças limitadas e a falsos conceitos. Essas pessoas me libertaram. Dentre elas, o autor desse livro, Cristian de Souza Augusto. Meus parabéns e profunda gratidão ao meu amigo Afro-X. Diva Ferreira jornalista de Brasília, integrante do movimento IVE-Imagens e Vozes da Esperança - Pela Paz na Mídia. “Estamos num emaranhado de coisas que não sabemos onde inicia muito menos onde se encerra. Estamos no meio deste tur-

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bilhão que fabrica todos os dias um montão de miseráveis, analfabetos, desempregados, desinformados, drogados. Pense no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro; na COHAB em São Paulo ou nos morros e favelas de Florianópolis. O que eles têm em comum? Como vivem os pobres e jovens? Olhe os ricos, como vivem? Onde estudam? O que comem? O que vestem? Quais drogas consomem? Até na droga há diferenças. A culpa é de quem? Do Estado ou nossa? Só sei que existe uma máquina gigante que utiliza a mão invisível para decidir vidas. Alguns, como nós, contrariam as estatísticas e combatem este sistema cruel, corrupto que fabrica excluídos. Mas, sendo assim, quantos estão incorporados ao nosso exército? Onde estão os que acreditam na mudança?” Marcos Caneta, Agente Cultural e secretário de Cultura em São José - SC. “Hoje tudo é muito rápido e o desejo de sucesso é vendido a toda hora na televisão, nas revistas, até nos videoclipes de RAP. E toda essa propaganda, pressão social, a falta de estrutura familiar, aliada a quase inexistência de oportunidades que o Estado oferece, faz da nossa sociedade uma fábrica de jovens perdidos, que depois, os jogamos nas cadeias e “Fundações”, esperando que o problema se resolva sozinho. O investimento em segurança é maior que em educação, isso é uma tendência em todo mundo, construímos mais presídios que escolas, com essa política errônea os governantes são os co-criadores do crime organizado. Enquanto não assumirmos nossas responsabilidades com a reintegração dessa parte da sociedade, estaremos alimentando um monstro, que já é grande, mas pode se tornar muito pior!” Alexandre De Maio, editor da revista Cultura Hip-Hop e Jornal Boletim do Kaos.

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– INTRODUÇÃO –

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erto dia no pavilhão 8 do Carandiru um piolho me contou uma parábola que mudou minha vida. Ela era mais ou menos assim: estava acontecendo um grande incêndio na selva e todos os animais corriam em direção contrária ao fogo, uns para salvar suas vidas e outros por não acreditarem que era possível conter aquela situação. Por incrível que pareça o leão, rei da selva, gritava para todos fugirem, desacreditado com o que viu. Pensou ele: “O baguio tá loko. Não tem mais jeito, vou me jogar, me salvar e salvar minha família, fui!” Nesse episódio surgiu um personagem que fez a diferença. Era uma andorinha. O passarinho voava até a margem de um lago perto da floresta, pegava o que podia de água e voltava velozmente para conter o incêndio. Foi quando nessas idas e vindas o pássaro trombou como o leão correndo assustadíssimo já quase saindo da selva. Espantado exclamou para andorinha: - Demorô, vambora que a chapa tá quente neguim! Respondeu o pássaro: - Sei que de repente não vou conseguir salvar a floresta, mas eu tô fazendo minha parte! Essas idéias foram o meu despertar, minha visão mudou completamente. Então comecei fazer minha parte escrevendo um manuscrito, me dedicando de dez a 12 horas diárias. Esse antídoto me fez enxergar que com o avanço desenfreado científico, espacial e tecnológico o homem regrediu mental e espiritualmente. Prioridades como a paz, o amor, a igualdade entre os povos viraram mera utopia.

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Vejo as pessoas cada vez mais e mais materialistas, consumistas e o homem trabalhando em prol da cobiça, manipulando massas em nome do progresso. Infelizmente o homem se perdeu por causa da ganância e obsessão pelo poder. Foi infectado pelo câncer do mundo: o egoísmo. A tendência é a perda de valores como: temor a Deus, importância da família e o amor ao próximo. O coração está na sola do pé. A moral e os bons princípios estão sendo dissolvidos. Infelizmente estamos vivenciando o descaramento da perda dos valores, a banalização das coisas e a falência do sistema através dos indicadores: - Desigualdade social ou falta de oportunidade: o rico é muito rico e o pobre é muito pobre. Apenas 10% da população brasileira detêm todo o capital. Cerca de 45 milhões de brasileiros vivem em condições de miséria absoluta. - Falta de Educação e Cultura: a qualidade do ensino público está cada dia mais superficial. Um dos critérios de peso exigido é a frequência. O sistema não tem interesse que as pessoas sejam esclarecidas. - Sonho de consumo: é ministrado por grande parte dos meios de comunicação que vende ilusões e ganha milhões. A TV é a pior doutrinadora e todos nós temos uma dentro de casa. Através de mensagens subliminares que influenciam, tem o poder de persuadir, gerar a alienação e o emburrecimento. Se não soubermos discernir algumas programações viveremos um mundo ilusório. Por falta de entendimento, a Palavra de Deus diz que o povo perece e nunca vai entender a escravidão sofisticada, a política do pão e circo vem através de futebol, carnaval e cachaça. - As drogas são usadas como válvula de escape para as frustrações do dia a dia. É o flagelo da humanidade. Existem as drogas liberadas (álcool, tabaco) e as não-liberadas (cocaína, heroína, crack, êxtase e maconhas as mais conhecidas). Temos o livre arbítrio para tomar nossas decisões e definir nosso destino, mas quis tomar um atalho na vida e aprendi com a dor.

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Eu sou o retrato de vários jovens que estão espalhados pelas periferias do Brasil, uma geração que vem morrendo precocemente no caos da violência, no álcool, nas drogas e na criminalidade. Mas a consciência só veio quando me tornei 157.858, apenas um número no sistema penitenciário brasileiro. Deus tinha uma promessa na minha vida, assim como tem para todos que n’Ele crer. O quebra-cabeça foi montado de uma forma sobrenatural. A partir daí, encontrei um amigo de infância dentro do maior presídio da América Latina, o Carandiru. Criamos um grupo de nome 509-E, número da cela onde morávamos que resultou em sucesso nacional. Com o trabalho musical conheci Simony, ex-integrante do grupo infantil Balão Mágico ícone de minha geração. O destino uniu nossas vidas, tivemos dois filhos. O conto de fadas gerou controvérsias na mídia, numa sociedade que vive uma falsa democracia e ainda sofre os resquícios da ditadura. O questionamento revolucionou os conceitos da sociedade, entre eles, os conservadores, os hipócritas, os preconceituosos em quaisquer aspectos que sejam: de preto para branco, do rico para pobre, do livre para o preso etc. e tal... Superar o medo, vencer a ansiedade e trabalhar as dores da existência são as mais difíceis lições da vida. Amamos a serenidade quando estamos tranqüilos, mas quando angustiados vivemos num cárcere emocional. Te convido a conhecer um novo universo, a história que a mídia desconhece da vida real de drama, suor, sangue, lágrimas, tragédia, descaso, omissão, luta, persistência, até a glória. Partindo do princípio que ninguém nasce com uma arma na mão, todo mundo merece uma oportunidade. Ufa! Mesmo com todos meus erros e sofrimento descobri o segredo. Proponho um grande desafio de mudança, qual personagem na sua vida real você quer ser no término da leitura desse livro?

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“O DIA EM QUE CHEGUEI NA PRISÃO” FOTO: JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 1 – Sexta-feira 13

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anhã de sexta-feira, 13 de novembro de 1.998. Por volta das 8h, um companheiro e eu fazíamos a faxina na galeria, pois a limpeza é primordial para servir a refeição matinal aos presos. Para mim era um grande alívio. A carceragem do Depatri (Departamento de Investigação de Crime Contra o Patrimônio) não proporcionava banho de sol, causava fobia ficar dentro daquele barraco de 4 por 5 m2 abarrotado de gente. Todas as 16 celas estavam superlotadas, com aproximadamente 35 a 40 presos. Assim que terminamos de servir a alimentação, um carcereiro encostou na gaiola e cantou meu nome completo. Logo deduzi que era bonde. Porque a liberdade iria demorar uns dias para cantar. Eu estava descabeladão, desesperançoso. Três dias atrás eu havia completado 25 anos, contrariando a estatística dos jovens das periferias que muitas vezes nem chegam a completar a maioridade e são vitimados pelo caos da violência. Minha filha primogênita, Hemellyn Lawryn, era recém nascida. Que pena da minha filha, imaginem o que é ter um pai atrás das grades. Somando todas penas dava quase 23 anos de condenação. Peguei 16 anos só num BO que caí de laranja. No dia anterior por pouco não fui embora, maldito GOE (Grupo de Operações Especiais), nos pegou no telhado da cadeia prontos para descer pela tia e irmos embora. Liberdade! Que nada... Senti só o gostinho da brisa no rosto. O couro comeu sem massagem! Nossa tentativa de fuga foi frustrada. Os carrascos nos torturaram por aproximadamente uma hora. Meu corpo ficou cheio

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de hematomas pelas coronhadas e choques elétricos. Dois presos foram baleados nas pernas, sem contar que também suspenderam nossas visitas. Na vida tudo tem seu preço. Deu mó desacerto. Com certeza caguetaram porque passarinho era mato. Por outro lado, acredito que Deus tinha outro plano na minha vida. Enfim, uma verdadeira operação policial foi montada para transferir 60 presos. Coisa de cinema mesmo! Várias viaturas a milhão no trânsito. Com giroflex ligado, policiais civis passavam sinal vermelho. Usavam coletes e estavam fortemente armados, com pistolas, escopetas, metralhadoras e até fuzis, faziam a escolta. Aquela pressão com meio corpo para fora da janela da viatura. Até o mosquito de ferro acompanhava a operação. Estávamos em oito no chiqueirinho. Nem imaginava para onde nos levariam. Não demorou muito e a viatura foi reduzindo, reduzindo até que pararam. Então ouvimos uma porta dianteira abrir, ouvimos passos de um PM que desceu. Conversou com alguém. Não sei com quem. Segundos depois, a viatura andou poucos metros. Na seqüência, ouvimos o barulho de portões se abrindo. A viatura entrou e parou. Percebemos pelas frestas de ventilação que era um ambiente fechado e de pouca luz. Os PMs desceram novamente. Ficamos parados por alguns minutos. Em seguida ouvimos mó falatório. Alguém perguntou: “Quanto tem aí dentro?” O tira respondeu: “Tem oito ladrões!” Não demorou muito ouvimos abrir outros portões. A viatura movimentou-se mais uma vez e parou poucos metros depois. Nessa hora ouvimos abrir mais outros portões. Nesse instante registrei: “Caramba! Quantos portões. Vão nos trancafiar. Pra onde esses vermes tão levando a gente? Pelo amô são portões até umas horas”. Outro detento também comentou: “Agora a gente ta trancado a sete chaves. Pra onde será que trouxeram a gente?”

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“Pelo percurso rápido acho que é a detenção ou a penita do Estado. Só Deus sabe dizer”, respondi. Outra vez a viatura movimentou-se, andando mais alguns metros. Estacionou e desligou. Em conjunto, como se combinado, falamos: “Agora chegou!” Segundos depois, ouvimos as portas dianteiras abrindo. Os PMs desceram. Senti o maior frio na barriga e até certo receio, porque é do ser humano temer o desconhecido. Estava a maior lua dentro do chiqueirinho. O suor descia no rosto e em todo corpo. Minha camiseta ficou encharcada. Não aguentava mais ficar naquele cubículo. Já estava respirando com dificuldade. Depois de muita canseira ouvimos alguém falando, caminhando em direção da viatura. De repente colocaram a micha e abriram o tampão traseiro. Sentimos a brisa e a claridade ofuscante. Minha vista demorou um pouco para se acostumar. Não consegui me localizar. Logo um brutamonte abriu a grade que fecha o chiqueirinho e ordenou em voz alta: “Vai ladrão, demoro! Desce rapidinho, forma uma fila, que vamos tirar as algema!” Tiraram as algemas, falaram para cada um pegar suas trouxas e continuar em fila. Nessa hora, reprisou um flash em minha mente. Tudo que eu havia passado desde criança, todo sofrimento que minha família estava passando por minha causa. Quando olhei ao redor fiquei impressionado com o tamanho da Casa de Detenção de São Paulo Professor Flamínio Fávero, vulgo Dita. Verdadeiro depósito humano, onde o filho chora e a mãe não vê. Estava no maior presídio da América Latina. Quem diria? Por vezes passei de metrô na frente da Detenção indo e voltando da balada. Olhava e pensava em alguns conhecidos que estavam presos. Na muralha via os gambés com fuzis. Parecia um mundo paralelo e desconhecido no centro da metrópole. Esse monte de prédios lembrava uma COHAB hostil, obscura e ao mesmo tempo misteriosa. Pensava que nunca iria cair nesse inferno, mas para o criminoso só há três caminhos: ficar paralíti-

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co, ir para o cemitério ou para a cadeia. Sabia que qualquer dia o desacerto aconteceria, mas a ambição, a ganância e a sensação de poder fizeram com que eu ficasse desacreditado e iludido. Por outro lado, o que vem fácil, vai fácil. O diabo dá com a mão e puxa com as duas. É desse jeito. Agora tenho de sobreviver e me manter vivo. Passei por um inferno astral naquele momento. Logo saí do transe, com a ordem do chefe: “Vai ladrão! Presta atenção na chamada. Permaneça em fila e me acompanhe!” Abriu-se então o portão da Divinéia. No mesmo instante senti um temor, os batimentos cardíacos aceleraram, pedi proteção a Deus para entrar no universo do crime e segui na fé. Minha sorte estava lançada. No pátio externo do P2, uma pá de presos olhava com curiosidade para saber quem chegou. Tanto poderia ser parceiro, como inimigo. Paramos em frente à gaiola do pavilhão. Um funça, que estava sentado num banco, levantou e abriu o portão para passarmos. O chefe, mais adiante, comandava a fila indiana. Passamos pelo pátio interno do P2 e fomos parar no setor de controle geral. Fomos obrigados a deixar as trouxas do lado de fora. Fizeram novas chamadas e nos colocaram dentro de uma gaiola fedorenta. O cheiro de urina e o mofo impregnavam. Luz, somente a que entrava pelas frestas do chapão de ferro. As paredes minavam água, sem contar os insetos, que faziam festa. Vários presos vinham perguntar de onde era o bonde. Depois de algumas horas de molho, o chefe foi chamando um por vez. Revistavam as trouxas. Em seguida, apenas de cuecas, colocaram-nos em fila para passar pela rouparia, e deixar os pertences, calças jeans, bonés, enfim toda vestimenta que não é permitida no país das calças beges. Deram-nos uma calça jega de tom bege. A cor servia para diferenciar os presos dos funcionários. Na seqüência, nos mandaram para barbearia. Os barbeiros (detentos) fizeram o corte tradicional triagem, estilo tigela. A máquina é passada em formato circular nas laterais do cabelo, deixando raspada a parte de baixo e a parte de cima mais alta. Servia de controle dos presos que chegam a casa.

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Saí de lá, fui ao boi. Paguei uma ducha e voltei para o setor do controle. Recebi o nº 157.858 meu prontuário. Coincidência. Os três primeiros números se referem ao artigo criminal em que fui enquadrado: assalto à mão armada. Naquele momento me tornei apenas mais um número no sistema penitenciário brasileiro. Rótulo que carregarei pelo resto de minha vida. Em seguida foi feita a qualificação dos presos. Ela consistia em: dados pessoais, data da prisão, de qual cadeia era procedente. Depois me encaminharam a outro setor para preencher o rol de visitas, tirar a fotografia em preto e branco, com uma plaqueta indicando a data da inclusão, o prontuário e o artigo. No pátio interno do P2 um fato me chamou a atenção e parei para observar. Nunca ouvi tantas misturas de sons e ruídos ao mesmo tempo. De um lado os evangélicos cantando, orando. No outro a umbanda em pleno ritual. Existia uma rádio interna que era apelidada de Locução que tocava vários gêneros musicais. Estava num recinto multiétnico, com crenças e religiões distintas. Todos em um mesmo espaço físico. Outro fato marcante foi na marquise do segundo andar. Avistei um bando de pombos, que vivia em plena harmonia com dezenas de gatos. Maior lição de vida para o ser humano que não consegue viver bem com os outros homens. O homem fabrica as armas que poderão matálo, cria a droga que irá viciá-lo e destrói a natureza em nome do progresso. Cria a justiça de olhos vendados. Enfim o homem é o pior dos animais. Os últimos raios do sol caíam no quadrangular do Carandiru. Não trombei nenhum aliado para me dar um auxílio. Me senti só. Era um sinal que tinha de me preparar para os diversos imprevistos, dificuldades que viriam pela frente. Entretanto, sempre tive muita fé em Deus e a convicção que iria me dar bem devido a caminhada no crime sem rastro, ao meu proceder, a humildade e a disposição para resolver o que fosse necessário. Depois de toda burocracia de inclusão na casa, nos levaram para a triagem no P6, que mais parecia um pulgueiro, um habitat natural de insetos de todas as espécies. Procurei arrumar um

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cantinho, mas foi em vão. Ficamos amontoados naquele muquifo, lutando contra as muquiranas. Olhei ao meu redor e percebi que o sofrimento não escolhia cor, nem idade. Eu e outros 60 presos estávamos no mesmo barco. Já era final de tarde, começo de noite, então os faxineiros vieram pagar nossa bóia. Quando peguei a boia pensei: “Nossa! É a mesma empresa que também distribui os bandecos no Depatri e nos distritos de São Paulo. Mó monopólio. Deus que me perdoe, mas nem cachorro come essa gororoba fria e azeda.” Em princípio relutei, mas a lei da sobrevivência falou mais alto, ou melhor, a fome falou mais alto. Em certas ocasiões não temos muita escolha. Acabei de me alimentar, não demorou nada, deu mó revertério na barriga. Então corri para o boi. Nunca vi um lugar tão imundo, o cheiro era insuportável, estava cheio de papéis sujos ao lado do vaso sanitário, que estava entupido até o topo. O ambiente era infestado de moscas, paredes verdes e escorregadias de tanto lodo. Os banheiros dos bares mais nojentos do centro de Sampa ganham de dez a zero daquela espelunca. Infelizmente fui obrigado a usar. Na parede de frente, um pouco acima da minha altura, tinha um cano todo enferrujado, com um registro no mesmo estado. Aproveitei para usar, não existia papel higiênico ali. Liguei o registro. Paguei uma ducha. A água era fria e avermelhada, saía igual um conta gotas. Após terminar enxuguei com minha camiseta e logo que vesti a roupa. Meu corpo começou a coçar. Mal havia acabado de me alimentar já estava com fome. Tudo era amaldiçoado naquele lugar. “Meu Deus! As ratazanas mais pareciam gatos.” Na triagem do sexto andar do P6, ficamos incomunicáveis. Somente pelas frestas das ventanas é que conseguíamos distinguir se era dia ou se era noite. Dessas mesmas frestas consegui avistar os dois pavilhões que eram chamados de fundão. O P8 e o P9 aparentavam dois castelos mal-assombrados, um acoplado ao outro. Só as muralhas os dividiam. Era um contingente enorme de presos, entrando e saindo daqueles castelos. Lá de cima parecia um formigueiro, ainda mais que era final de semana e

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dia de visita. Relembrei de quando estava preso na penita de Presidente Bernardes, cidade paulista próxima às divisas de Mato Grosso do Sul e Paraná. Nos três raios (pavilhões) a população era de cerca de 1.500 presos. Não havia comparação de tamanho com o que vi no P6 naquele sábado, 14 de novembro, quatro dias depois do meu aniversário. Bela comemoração! Tinha certeza que me mandariam para um dos pavilhões do fundão. Em princípio o P9 era destinado a primários e o P8 para reincidente. O martírio durou até segunda-feira pela manhã, quando nos levaram para palestra do diretor da Casa e também para sermos distribuídos nos respectivos pavilhões. O discurso irônico do diretor era mais ou menos assim: “Sejam bem-vindos à nossa Casa! Costumo dizer que quem bebe dessa água jamais esquece. Quem tem inimigo? Avisa logo, porque depois é tarde demais! Não pague pra ver” Falou também que não interessava o que havíamos feito no Depatri. Na Detenção era outra história. Se obedecêssemos à disciplina e cumprido o tempo penal, a Casa liberaria. Explicou mais sobre algumas regras e desejou boa sorte a todos. Enquanto discursava, um assistente seguia anotando tudo. Por fim, o tal diretor nos perguntou: “Quem avisamos em caso de falecimento?” Aquilo era apenas o vestibulinho de preparação para a universidade. Na seqüência, o diretor avisou para cada um de nós, qual seria o pavilhão de destino. Fui encaminhado para o P8. Um funça cantou alguns nomes, separou as fichas nas mãos, ordenou para pegarmos nossos pertences e acompanhá-lo em fila. Seguimos pelo pátio externo do P2, quebramos à esquerda sentido academia de boxe. No final do corredor, um funça responsável pelo trânsito do P8, abriu o portão para passarmos. Entramos no pátio externo do P8. Fiquei abismado com o tamanho da área. Tinha quadra de futsal, outro espaço enorme em volta da caixa d’água desativada, mais adiante um campo de futebol aparentemente oficial. Nesse percurso, uma pá de presos curiosos me entrevistava e perguntava de qual cadeia eu fui transferido e

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de que quebrada eu era. Nessa caminhada trombei com alguns conhecidos de outras cadeias até parar na carceragem do P8, onde foi feito outra chamada e o funça mal-educado disse que eu iria pro castigo, por causa da fuga da colônia, onde cumpria o regime semi-aberto. O restante dos detentos, o funça mandou procurar uma gaiola. Permaneci na carceragem. Em seguida, o funça me liberou para eu dar um pião. Estava com preguiça porque tinha acabado de almoçar. O carcereiro avisou que mais tarde me trancaria. Deixei meus pertences num canto e fui ao pião para reconhecer o território. Quando saí da carceragem olhei a minha direita e avistei um altar com uma imagem enorme de Nossa Senhora Aparecida e outros santos. Flores e velas acesas compunham a religiosidade. A minha esquerda estava o pátio interno do P8. Na marquise existia uma academia de musculação com vários detentos treinando com disposição, parecendo se preparar para uma guerra. Mesmo diante daquela realidade nua e crua tentava me adaptar. Ou melhor, tentava entender minha nova moradia. Passei pela gaiola e comecei subir as escadas do prédio. Um clima pesado e tenso pairava no ar. Arrepiei dos pés à cabeça. Senti um calafrio, estava no antro da maldade. Em silêncio clamei a Deus e continuei subindo as escadas. Foi quando fiquei atônito e estarrecido com uma cena que vi. Só deu tempo de encostar as costas na parede. O lagarto desceu arrastando o presunto pelos pés com violência. O cadáver estava desfigurado, esfacelado. Por onde passava deixava um rastro de sangue e pedaços da massa cefálica nos degraus. Mesmo esquivando, o sangue respingou em minha calça. Olhei ao redor e notei a frieza que os presos encararam o fato. Era como se nada estivesse acontecendo. Todos sorriam e conversavam normalmente. Pensei: “O que será que aquele homem fez para morrer tão brutalmente?” Transtornado, continuei subindo até parar no quinto andar. Ninguém me dirigiu uma palavra. Muitos olhavam e sabiam que eu estava chegando aquele dia devido ao corte triagem. A cadeia estava transbordando de detentos e gatos. Primeira vez que vi

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uma prisão com gatos. Na galeria deste andar a maioria dos barracos tocava rap. Parecia mercadão de peixe. Mó falatório. Um exército de homens na ociosidade, um verdadeiro depósito humano. Vida sedentária. O que mais me chamou a atenção foi que a maioria era jovem como eu e 70% não haviam completado 30 anos. Logo, os conhecidos me encontraram e me levaram para o barraco deles. Foi lá que paguei uma ducha gelada e prolongada, me alimentei. Trocamos várias idéias, até a hora em que o funça iria me trancar no castigo do quinto andar. Às 16h me apresentei na carceragem, pois era a hora da contagem, o funça ordenou que eu pegasse minhas coisas e me levou para o castigo. Quando a cela abriu, não acreditei. A cela 2x4m2 estava abarrotada. Muito abafado lá dentro. O ambiente era mórbido. Maior fumaceira de cigarro, cheiro de baseado e mesclado, doente com TB (tuberculose). Sem nenhuma condição de convívio, um monte de gente em pé, porque não tinha espaço para sentar. Injuriado, disse ao funça: “Aí chefe, tá pagando mó raiva. Ali dentro não cabe mais ninguém!” Asperamente, o carcereiro algoz respondeu que se eu não entrasse rápido, me mandaria para a masmorra do P4 e ainda dobraria o castigo: de 30 dias, passaria para 60 dias. Respirei fundo contei até dez e agi com razão. Provei mais uma vez do gosto amargo do fel. Naquela noite revezamos. Enquanto um dormia, o outro ficava em pé acordado, assim sucessivamente por três dias. Outro fato que me deixou comovido e ao mesmo tempo perturbado foi à história de um preso que estava no castigo. Ele havia chapado doidinho da silva. O mano era réu-primário, foi preso em fragrante no 157. Por não delatar seus parceiros, a polícia - para se vingar – o levou para um distrito de presos jurados de morte, a maioria era justiceiro e estuprador. Por mera perversidade os jujus, em parceria com os duques 13, estupraram o mano. Logo em seguida recebeu a notícia que haviam assassinado sua mulher e, para

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aumentar a desgraça, sua família o abandonou. Diante dessas catástrofes o mano não aguentou a pressão psicológica e ficou com seríssimos distúrbios mentais. Ficou mais vulnerável do que uma criança, não tomava banho, não cortava o cabelo, mal se alimentava. Estava maltrapilho e com as unhas grandes e sujas. Esse rapaz num certo dia foi usar o boi e comeu as suas próprias fezes. “Esse mano deveria estar num manicômio, só Deus para ter compaixão daquela criatura”, pensei. Dias depois, soube que acabou o sofrimento do mano, porque ele se enforcou! O jeitinho brasileiro predominava no Carandiru. Saí do castigo porque paguei R$ 100 aos carcereiros. Ficar preso já é ruim imaginem ficar preso dentro da prisão. Aí é cruel. Desci para o convívio e fui morar num barraco do setor do lixo. Fazia a faxina da favela - nome dado a área atrás do pátio externo do P8. O início da caminhada na prisão é muito difícil. Não há coletividade. É fundamental adaptar-se as regras porque na cova dos leões todos estão sendo observados. As hienas ficam só esperando um deixa, para te derrubar e fazer nome em cima de sua pessoa. A toda hora tem que provar que é homem. Sempre terá alguém para testar sua fé! Com pouco tempo percebi que ninguém ajudava ninguém, a não ser por interesse, era cada um por si e Deus pra quem quiser. Certa vez li uma frase escrita na parede da cadeia. Naquele momento definia tudo que eu estava vivendo: “O cárcere é um lugar onde vivemos do passado, pensando no futuro, tentando esquecer o presente”.

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“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”

FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 2 – Cinco meses depois

O

s meses passavam lentamente. Superava gradativamente os estágios de dificuldade da ilha. Pelo instinto fui aprendendo as regras do quarto mundo. Só com a prática adquiri a vivência. A malandragem que aprendi nas ruas em minha infância estava tendo um peso relevante na balança. A paciência, a psicologia e a disposição também foram pesos consideráveis. A teoria capitalista de que o dinheiro fala mais alto era a mesma no Carandiru. Tudo era bem mais fácil e simples para quem tinha dinheiro ou para quem usava a violência para impor o poder e conquistar adeptos e o apoio da massa em todos os sentidos. Tudo custava dinheiro. Os maus exemplos partiam dos funças, que cobravam propinas para simples favores como colocar nomes do rol de visitas, levarem algum detento em outro pavilhão. Esses expedientes eram os mais comuns. Tudo era vendido. Desde a cela, colchões e lençóis até alimentos como feijão, bacon, carne seca, ovos, alho, cebola, temperos, biscoitos e produtos de higiene pessoal entre outros. Pasmem, eram vendidos com 100% de ágio nas banquinhas improvisadas nos andares, nas lanchonetes administradas e gerenciadas por detentos. A moeda da cadeia era o cigarro. Um maço de Hollywood equivalia a R$ 1. O dinheiro era contravenção. Entretanto, a corrupção permitia que as cédulas circulassem normalmente. Comprávamos alimentos nas banquinhas ou pedíamos para vir no jumbo, para reforçar nossa nutrição, sobreviver com aquele bandeco

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oferecido pela casa com certeza morreríamos de inanição. O P8 estava na maior gandaia. Por incrível que pareça a maioria estava feliz! Não era para menos, a cadeia estava carregada de drogas. Mais tarde descobri que sem droga a cadeia não funcionava. A maldita segurava a prisão e a diretoria sabia disso. O baseado deixava a rapa calminha. A farinha e a pedra desviavam o pensamento, distraindo os presos para não fugirem. Na teoria, a segurança era muito rigorosa. A revista na visita, minuciosa e humilhante, mas todos sabiam que a conivência de funcionários para a entrada das drogas existia. Resolvi morar no P7 por causa de algumas vantagens. Era menos populoso e no xadrez moravam apenas três detentos. Eu tinha conhecido lá também, o pavilhão era considerado de trabalho, portanto, mais favorável para ganhar benefícios. O fundão estava cruel. Era uma nave fora de controle. Um verdadeiro palco de guerra, onde foram registradas mortes bárbaras. Nos primeiros meses de 1.999 cerca de 70 presos morreram assassinados brutalmente com golpes de estiletes na guerra entre quadrilhas. O diretor em exercício na Casa de Detenção chegou a ser demitido pelo governador do Estado, pois não queria ser alvo, nem fazer parte de uma guerrilha banal, sem explicação, patrocinada pelo sistema. Não estava vendo ninguém se adiantando ou ganhando benefícios. Os manos tiravam cadeia feito Mandela, indo embora somente de vencida. Eu observava os episódios cruéis com atenção. Muitas vezes a desgraça alheia servia de exemplo para não errar. Um piolho sempre dizia: “o crime é podre, mas não admite falha.” Muitas vezes reclamava com Deus sobre minha situação, mas quando olhava e conversava com muitos ao meu redor não demonstrava que por dentro eu ficava super comovido. É que via muitos paralíticos em cadeira de rodas e outros tipos de deficientes físicos sem condições adequadas. Via também portadora de HIV e tuberculosos em estado terminal. Quantos da minha idade ou até mais novos estavam condenados na lei dos 30, período máximo de condenação? Vários estavam esquecidos e aban-

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donados pelos parentes. Se eu parasse para analisar, preencheria uma lista enorme de exemplos. Vendo essas lições de vida cheguei à conclusão de que minha situação não era a mais triste. Em certo ponto era até um privilegiado por ter uma saúde de ferro e entender a real intenção do sistema, pela minha condenação não ser fim de carreira e por ter meus familiares por perto, especialmente minha mãe: a dona Neusa. Buscando minha melhoria fiz uma manobra. Vendi meu barraco no P8 e fui morar junto com outro mano. O Pepe da Zona Leste, que na real era baiano radicalizado em São Paulo. Uma

“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM” FOTO: JOÃO WAINER

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verdadeira figura. Tinha 33 anos, boa aparência, jovial, fumava cachimbo e era viciado em atividades físicas. Mais tarde, se tornou meu parceiro na academia de musculação. Compramos o xadrez 225-E do P7, onde na manhã de 2 de abril de 1.999, logo após o funça abrir a tranca, alguém bateu na porta. De dentro do barraco em voz alta pedi para entrar. Em seguida ouvi passos e um cara de estatura mediana, cheio de tatuagens no braço, pediu licença e foi entrando. Era um dos carrinheiros da bóia. Sem cerimônia ele perguntou quem era o Cristian. Meio cabreiro, respondi: “Qual é a fita, mano?” “É o seguinte bandido. É que me pediram para entregar um pipa para ele. Disseram que ele mora aqui!” “Sou eu mesmo, mano.” Sem hesitar, o carrinheiro sacou um papel do bolso e me entregou. Em uma das dobras estava escrito: para Cristian de Souza Augusto, cela 225-E. Quando abri a pipa fiquei surpreso. Era o meu truta da rua, o Dexter. Ele tinha vindo de bonde da cadeia de Bragança Paulista e estava na triagem do P2. Pedi para o mano aguardar uns minutos e me fazer um favor. Rapidamente escrevi uma pipa dizendo que recebi a notícia de sua chegada na ilha. Pedi para ter calma e que assim que possível iria até a triagem para prestar assistência a ele. Depois que o mano saiu, fiquei pensativo. Desde janeiro de 1.998 não tinha notícias dele. Fiquei sabendo que estava preso no interior, mas não sabia onde. Dexter era meu amigo de infância. Jogávamos bola nos campinhos de terra da quebrada, corríamos descalços nas ladeiras em época de empinar pipa. Desde pequeno convivemos com o miserê. Nossas famílias não tinham condições de nos dar brinquedos eletrônicos sofisticados. O salário mal dava pro sustento. Nascemos no mesmo ano de 1.973, com três meses de diferença apenas: ele em agosto, eu em novembro. Por certo período ele sumiu da área e foi morar em Campinas, no interior de São Paulo. Perdemos o contato. Só vim trombar ele aos 17 anos, justamente numa treta. Um maluco com inveja queria jogar um contra o outro, mas

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nossa amizade prevaleceu e o contratempo foi superado. Na década de 1.990, meu irmão Bad – que é dois anos mais novo que eu –, o Denis Buiu – que hoje é skatista profissional – e eu formamos um grupo de rap chamado Suburbanos. Velhos tempos. Foi nosso começo dentro do movimento Hip Hop. Quando fui preso em 1.994, o Dexter convidou Bad para ser parceiro de vocal em seu grupo de rap o Tribunal Popular. A união foi importantíssima porque nessa época meu irmão ficou super abalado com a minha prisão, já que sempre fomos muito unidos. O rap serviu para que ele espairecesse a mente e não fizesse besteira. Inúmeras vezes o Dexter foi me visitar na penita de Presidente Bernardes. Em 1.998 ele foi preso no artigo 157 do código penal (assalto a mão armada) e entre inúmeras penitenciarias foi parar justamente no Carandiru. Agora de visitante passou a encarcerado. Que zica! Na época pensei: “É, o mundo dá muitas voltas. Por isso é que não podemos cuspir pro alto senão cai na cara. Agora tenho que ver como meu truta tá”. Coloquei rapidinho a calça, o tênis, a camiseta e saí na missão. Assim que passei da gaiola do segundo andar e comecei a descer as escadas, ouvi uma sequência de tiros e, pelos estampidos, eram de fuzil. Logo em seguida a sirene soou. Rapidamente os funças trancaram todos os portões de acesso aos pavilhões. Chegando ao pátio externo notei que o trânsito estava suspenso até segunda ordem. Ninguém dizia o motivo real. Imaginei que pudesse ter acontecido uma fuga ou pelo menos tentativa de fuga. Mais tarde soube do episódio trágico que deixou toda a população revoltada e de luto pela atrocidade. Um mano que estava tomando sol no campo do P8 viu toda a cena e me contou o fato. No campo transcorria uma partida de futebol entre detentos do P7 contra os do P8, pelo campeonato interno da FIFA, interpavilhões. O sol rachava o coco e o chicote estralava nas quatro linhas. Uma multidão se divertia com o espetáculo e circundava o campo de terra. Afastado da massa estava o Joy, sentado e encostado na muralha. Era um faxineiro do terceiro andar do P8. Num dado momento foi surpreendido por um banho

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de urina. Enfurecido, com a fisionomia transformada, sangue nos olhos, levantou-se a fim de saber de onde veio a brincadeira de mau gosto. Foi quando olhou para cima que fitou o autor: um policial. Ele estava na muralha, tendo crise de gargalhadas. Joy pegou vários pedregulhos e começou apedrejar. Disparava vários palavrões contra o vigia que se esquivou e procurou abrigo na guarita. Vendo que o mano não parava o policial já em estado revoltoso, empunhou, engatilhou e mirou seu fuzil. Ao mesmo tempo berrou para o mano a fim de intimidá-lo: “Pára ladrão! Pára, senão vão atirar em você! Pára páaaara!” Mas Joy estava cego, com os nervos abalados e exaltados. Xingava o PM. Não quis acatar a ordem. O mano que me contou a cena disse que ficou mudo, atônito e com os olhos arregalados quando assistiu a execução sumária. Joy foi mais uma vítima do despreparo emocional, psicológico e o instinto assassino de muitos PMs. O militar friamente apertou o gatilho. O projétil de 762 viajou e atingiu a cabeça, mais precisamente entre o nariz e os olhos. Nossa! O mano ficou feio na foto! A garrafinha estraçalhou e se pá foi morte instantânea. A vítima só teve tempo de dar um grito estridente, agonizante e foi caindo em câmera lenta. O rosto ficou desfigurado, pedaços da massa cefálica, restos do globo ocular, chumaço de cabelos e parte da arcada dentária caíram ao redor do corpo. O sangue escorria no chão. Joy, segundo o mano me contou, ainda tentou reagir, mas o corpo começou a tremer e se debater. Nesse momento a partida de futebol foi interrompida pelo corre-corre. Foi o maior auê, muitos em pânico procuravam abrigo. Quando caíram em si, ficaram paralisados com a cena. Os mais serenos correram tentando socorrê-lo, mas nada puderam fazer. Alguns minutos depois Joy deu o suspiro derradeiro. Assistir aquela tragédia e a facilidade com que um gambé algoz pôde tirar uma vida foi como acender uma chama no combustível. A revolta foi geral. A massa, munida de palavrões e pedregulhos, tentou atingir os policiais na muralha sem êxito algum. A reação foi rajadas de fuzis e bombas de efeito moral

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para intimidar e dispersar a multidão enfurecida. Com inúmeras desvantagens os detentos foram vencidos pelo cansaço. O gambé foi indiciado por homicídio - artigo 121 do código penal - e julgado pela polícia militar. Por causa do triste episódio, a cadeia ficou de luto. Um clima sombrio e sinistro tomou conta da ilha. O trânsito permaneceu suspenso e os funcionários ficaram em alerta temendo mais revolta. Nos finais de semana o trânsito interpavilhões era suspenso por ser dia de visitas. Por isso, só na segunda-feira pela manhã consegui atravessar para o P2. Levei para o Dexter alguns produtos de higiene pessoal, cigarro, bolacha, entre outras coisas. Quando cheguei ao guichê da triagem não consegui localizá-lo entre os vários que se encontravam ali. Em voz alta saudei a todos: “Salve, salve rapa! Aqui tem um mano chamado Dexter ou Marcos Fernandes de Omena?” Sem hesitar, Dexter se levantou e veio em direção ao guichê. O ar de satisfação foi mútuo em nosso semblante. Apesar do lugar, é gratificante encontrar um amigo verdadeiro. Naquele momento senti que Dexter ficou aliviado em me ver. Automaticamente tive a certeza de que ali estava um forte aliado para somar na intensa guerrilha. Nos cumprimentamos com entusiasmo e demos margem para uma longa conversa cheia de confidências. Contei o motivo pelo qual não apareci antes e logo em seguida perguntei: “E aí, truta? Como cê tá? Tá firmão? Tá vindo de onde? Mó zica hein, mano, a gente se trombar aqui nesse lugar?” Dexter respondeu: “Aí, truta! O barato é loco mesmo ó! Tô vindo de Bragança. Aconteceu uma fuga lá, tá ligado? E eu fui nessa também. Mas aí dei um azar muito grande e fui recapturado no dia seguinte. Não fiquei nem 24 horas na rua. Foi cruel! Voltei pra cadeia, é mole? Poucos dias depois me mandaram pra cá. É cruel truta, fim de carreira!” Balancei a cabeça concordando e indaguei novamente: “Você chegou que dia na ilha?” “Na quinta-feira truta. Por incrível que pareça dia 1o de abril”, respondeu.

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“Nossa! Logo no dia da mentira! Você não se impressionou com o tamanho da cadeia? Qual foi sua reação?” Aí ladrão / essa aqui é sua nova casa / eu mando e você obedece / se tiver inimigo avisa logo e vai pro cinco, certo? (Trecho da música “Triagem” - Dexter 509-E). “Foram exatamente essas palavras que ouvi de um funça alto, bem vestido, porém ríspido, quando desci do bonde e pisei pela primeira vez nas dependências do Carandiru. Confesso que me impressionei com o tamanho do condomínio fechado. Fiquei meio sem reação. Queria acreditar que tudo isso era uma grande mentira, já que a data me permitia pensar assim. É, irmão, tive que cair na real! Olhei para o alto e percebi o quanto era verdadeiro aquele momento. Ver aquela muralha me causou fobia. Ver aqueles ratos cinza em cima dela, armados com fuzis AR-15 me fez reviver o filme Alcatraz. Só que nessa produção eu era o ator que vivia na vida real o papel de prisioneiro sem bala de festim, sem dublê e sem maquiagem. Não precisei ser muito inteligente para perceber que não é só devagar que se vai longe. Com dinheiro se vai também. Corrupção total.” Realmente, o mano Dexter tinha razão, concordei e em seguida indaguei: “E os funças, truta? Pagaram muita raiva pra você?” Com detalhes, ele continuou me contando: “’Aí ladrão! Mãos pra trás e me acompanhe!’ É truta, essa frase vai ficar pra sempre na memória. Nesse momento, em silêncio, pedi proteção para Deus. Era chegada a hora de conhecer o inferno por dentro. Um, dois, três. Quatro portões foram suficientes para chegar ao setor de controle geral. Na sequência, tive que cumprir todos os requisitos de praxe da inclusão na casa. Por fim, me deram o prontuário nº 164.953. Me tornei mais um gado marcado.” Entusiasmado no papo, prossegui: “Mas aí, como você me achou? Foi difícil?” “Aí mano, não foi difícil não, tá ligado? Tem um conhecido que chegou comigo e sabe como funciona. É o Kong, um patrício

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sangue bom. Nossa amizade iniciou quando ele me viu fumando um cigarro. O mano me apresentou o japonês que por sua vez me orientou a escrever uma pipa com seu nome completo. Ele descolou o pavilhão e o xadrez que você estava. Na sequência, ficou na responsa de entregar o pipa, entendeu?” “É, pode crê. O mano foi firmeza, pediu para o carrinheiro entregar o pipa na minha mão.” Eu mostrava interesse no assunto e o Dexter continuou narrando sua chegada: “Já era final de tarde, começo de noite. O sol sumia atrás do P2. Exausto e com muita fome, sentei em um dos bancos existentes no pátio interno. Vários triagens colaram a meu redor e ficamos trocando idéias. Mesmo assim me senti um forasteiro num território hostil. Por dentro estava receoso por não saber qual seria meu destino. De repente, um GP (guarda penitenciário) asperamente chamou todos os triagens e ordenou para formarem uma fila. Em seguida nos escoltou até a triagem no terceiro andar.” Dexter me pegou de orelhada, pois há vários dias não tinha ninguém para desabafar. Deixei o mano à vontade, já senti na pele todo o sofrimento que ele estava passando. Nessas horas o apoio é super importante. Na prisão nunca podemos esquecer o dia de amanhã. Estiquei mais a conversa e lhe fiz mais uma pergunta: “Mas aí truta? Tem alguém aqui trincando com você e te dando uma assistência?” Dexter continuava o mesmo, não mudou nada. Sempre extrovertido, falando gíria. Gesticulando, ele me disse: “É o seguinte truta. O Kong, aquele patrício que me ajudou a te encontrar, me apresentou quatro malandros ali do segundo andar da cela 217. Os manos me trataram no maior respeito É o Pastel, o Maurício, o Gegê e o Tinda. Eles são lá da Bela Vista, exceto o Gegê que é do Mangue, em Pinheiros. Os manos trinco. Eles trocaram mó idéia com um funça, deram uma merreca e o funça liberou a gente. Paguei uma ducha quente, tomei um café de responsa, depois almocei com os manos. O Kong até fumou um baseado com os manos. Eu não quis. Tudo isso foi no segun-

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do dia depois que atraquei na ilha. O Maurício até fez um corre pra gente ir até o pavilhão que você mora, mas por causa da tragédia com o Joy, ficou impossível sair daqui. Passamos a tarde de sexta-feira, só contando história. Você tá ligado como é. Ladrão vive de lembranças. Pelo menos nessas horas estamos livres. Passei o final de semana trancado. Os manos chegô comigo, mas te confesso truta, apesar do lugar tô feliz em revê-lo e ver que você está bem. Não via à hora de te trombá, foi um grande alívio ouvir a sua voz.” Há quanto tempo não ouvia palavras de um amigo. Às vezes sentia mó vontade de desabafar com alguém. Muitas vezes estava agoniado, com um aperto no coração, mas em quem confiar? Convivendo diariamente com a maldade é impossível não ter maldade. O dia a dia me ensinou assim, sempre ter um pé atrás para evitar decepção e traição, porque quem vê cara não vê coração. Enquanto Dexter retomava o fôlego, pediu para eu falar um pouco sobre mim. Sem rodeios fui falando: “É o seguinte, truta, no último ano minha vida deu maior reviravolta. Tenho que dar graças a Deus por estar vivo. Foram muitas loucuras, aventuras desafiando a morte. Você se lembra? Em 98, tava firmão na colônia de Mongaguá. Meu intuito era dizer ao crime nunca mais. Tava trampando em Santos numa oficina mecânica. Concluí os exames criminológicos para o RA (Regime Aberto). Tava só no aguardo da liberdade para a felicidade ser completa. Numa segunda-feira saí para trampar. A pedido de meu patrão subi a serra para comprar algumas peças de carro na Avenida do Cursino. Aproveitando minha vinda a São Paulo, passei antes em casa para ver minha mãe que tava grávida de minha irmã caçula, a Nithiely. Na real um perdidinho básico. Fiquei cerca de uma hora em casa, despedi do pessoal e quando fui sair, minha mãe pediu: ‘Filho pelo amor de Deus, faça o que tem que fazer e volte para a colônia. Tô com um mau-pressentimento’. O mal da gente é não ouvir nossos pais. Naquela hora, até pensei: ‘Nossa, minha mãe pesa até umas horas’, mas respondi para ela não esquentar e que só ia resolver uma parada e voltar para colônia.

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“A despedida foi com um beijo no rosto. Minha mãe estava apreensiva. Subi as escadas de casa rumo à rua. Desci a ladeira, resolvi parar na padaria para comprar chiclete, quando trombei o David. Foi uma surpresa revê-lo, pois há muitos anos não o via. A conversa foi breve. Quando me despedi, ele perguntou para onde eu iria. Ofereceu carona. Aceitei. Elogiei a nave de fuga e entrei no golf prata. Foi quando recebi uma proposta indecente. O David me chamou para um assalto: ‘Jão tem uma fita ali mó mamão. Ta faltando um mano pra cena. É uma fitinha dada pelos pé-de-porco do coban. Tem uns R$ 200 mil, pra dividir em quatro, dá pra gente se levantar ou não? Ainda mais agora, cê ta saindo de cana, ninguém não dá nada pra ninguém. Tem que correr atrás neguim, por que agora você é um ex-presidiário. A sociedade vira as costas mesmo, mano. Fecha cum nóis, que é daquele jeito. Nosso lema é um pelo outro, se pam nóis troca com os zomem até a última bala. ’” O sonho de todo criminoso é fazer a boa, eu também acreditava nessa lorota. Mas o crime é um mundo de ilusões, costumo dizer que é uma rosa que esconde seus espinhos. Em princípio fiquei meio cabreiro, mas não levei em conta meu sexto sentido. A maldita ambição fez os meus olhos brilharem. Agi pela emoção, aceitei o convite e já sentado no golf puxei o cinto de segurança, senti mó aperto no coração, me arrependi amargamente por não ter ouvido minha mãe, mas já era tarde. O David ligou o carro, acelerou, seguimos em frente. Nem sabia, mas estava num cabrito com várias armas e o vacilão do David pagando de gatinho. Continuei: “Ele sacou do bolso um celular. Na época, poucas pessoas tinham acesso a essa tecnologia. David ligou para os outros parceiros que já estavam na sintonia, depois ligou para o pé-deporco que confirmou a quantia deixada pelo carro-forte. Logo na outra quebrada encontramos os manos para uma breve reunião de acerto de detalhes, que chamávamos modus operantis, estratégia de entrada, a função de cada um, rota de fuga. O grupo estava fortemente armado com pistolas, matraca, fura, cole-

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tes e até uma granada. Pouco depois entramos nos carros, David e eu no cabritão e os outros aliados numa van adesivada de uma empresa. Saímos para a missão rumo ao coban na Avenida Jabaquara. Próximo ao metrô Saúde parou num farol. Segundos depois ouvimos sirene de viatura. Nesse momento David se apavorou, os zomens desconfiaram da reação do rapaz que abriu a porta do carro e saiu à milhão no meio do trânsito. O camburão da rota não iria nem nos parar, mas vendo o vacilo do David que titubeou, veio para cima daquele jeito, já atirando.” E não tinha como não dar errado. “Meus batimentos cardíacos aceleraram. Tava na cena do crime, em flagrante ainda. Saquei minha quadrada, abri a porta, saí me esquivando. Dei alguns disparos para dispersar, comecei correr, pânico geral, aquele auê, pessoas apavoradas, correndo, gritando, carros freando. A troca de tiros começou a ficar intensa, eu tentava a todo custo escapar, mas foi em vão, sem chances. Fui pego e autuado no artigo 157 e resistência à prisão, segundo o código penal, e o David conseguiu fugir é mole? Resultado: carro roubado e eu no semi-aberto. Os zomens não quiseram acreditar na minha versão, nem muito menos que eu era inocente. O couro comeu quando pegou em meu bolso a carteirinha da colônia. Me bateram até umas horas. Eles queriam que eu caguetasse a goma do David. Infelizmente fui coagido a segurar o BO porque Cagueta morre feio na foto, entendeu?” Dexter com a mão no queixo, falou balançando a cabeça: “Ham, ham. Entendi tru.” “Irmão, peguei 16 anos de condenação. Há poucos dias ganhei nove anos na apelação devido as falhas do processo. A natureza é justa, fui preso nesse BO e o David nem me mandou uma bituca, me tirou grandão. Só que ele se envolveu numa quadrilha lá da Zona Sul, os manos foram fazer um assalto. O prego tava no cavalo e na hora que a chapa esquentou, ele se jogou e deixou os manos falando, mó desacerto! Os caras caíram em flagrante no coban. Só que dessa vez a falha de David não teve perdão. Cê tá ligado. Sem massagem os manos mandaram um pipa da cadeia

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pra rua, os parceiros dos assaltantes não mataram David, mas deram vários tiros de ponto 40 nas rótulas e na coluna. Infelizmente hoje está amargurando em uma cadeira de rodas.” Antes mesmo que meu amigo tentasse falar, prossegui: “Fiquei descabelado. A Luciana tava grávida de dois meses da minha filha Hemellyn Lawryn. Fui preso no 16 ª DP de São Paulo. Fiquei durante um mês e fui de bonde para o 44° DP e fiquei por lá três semanas. Aí meu cavalo marchô, trutão! Fugi pelo tatu com mais nove caras. Foi mil grau, coisa de engenheiro. Demoramos dois dias para abrir o buraco com a matraca, depois cavamos 13 metros debaixo da terra. No interior do tatu a gente só se movimentava engatinhando. O túnel era turvo, abafado e o ar era escasso. Em princípio me causou fobia, mas meu desempenho valeria minha colocação na fuga. “O que mais me causou aversão e agonia foi quando encontramos vários insetos como baratas, minhocas, inclusive ratazanas, fezes e água suja de um cano de esgoto que se rompeu. A maioria dos manos era experiente. Eles planejaram, calcularam e saímos no lugar exato, mas o diâmetro para descer no buraco era de apenas 30 centímetros. Só deu para fugir de shorts e sem camisa. Saímos rastejando no estacionamento das viaturas no fundo, pulamos um muro de mais ou menos três metros de altura, uma verdadeira prova de triátlon. Valia tudo pela liberdade, isso aproximadamente às 3h. “Imagina negão, o bonde dos vida loka correndo pelas ruas. Pulamos para a linha do trem, sem parar continuamos correndo descalços nos trilhos, sujos de terra, até chegar numa favela. Foi aí que resolvemos nos dividir e três manos foram comigo, não conhecia a região e muito menos onde tava. A sorte tava do meu lado. Consegui até escapar de um cerco de viaturas, pulei vários barracos e me escondi atrás de um. Depois cheguei numa viela, bati palmas num barraco, pedi ajuda. Um desconhecido me deu uma calça, uma camiseta e um chinelo velho. Saí correndo e me escondi num matagal. Só saí de lá por volta das 8h da manhã, quando vi um monte de trabalhador indo pro serviço, me envolvi no meio do povo, abordei um táxi e fui embora pra casa, coisa

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de cinema, graças a Deus mesmo com os hematomas e os pés esfolados cheguei vivo no mundão. “Pensa: tudo dando certo, eu tava sem freio de mão, comecei a meter uns BO. Ganhei uma grana, me levantei de novo, comprei uma nave, meti rodas aro vinte, aí cê sabe né, vários rolês, praia, várias cachorras. Ajudei minha família, tive uns desacertos, tomei uns botes dos tiras e fui obrigado a fazer uns acertos. No dia 5 iria fazer à boa. Ia derrubar um carro-forte, só a minha parte era de R$ 300 mil reais. Iria ficar sossegado, mas me atrasaram. Um zé povim me caguetou pro Depatri. Fui pego de surpresa e voltei recapturado depois de três meses. Nem acreditei, nem senti o gosto da rua, meu castelo caiu. Mas o mais importante é ta vivo. Logo a gente atravessa as fronteiras novamente.” Dexter, viajando na idéia, disse: “Sumemo, mano! Deu mó trampo pra polícia, hein? Mas e agora? Parou com o crime, deu um tempo? Já sei ganhou uma moeda e tá rico.” Interrompi dizendo: “Que dinheiro que nada, só arrumei cadeia e inimigo! O barato é loco truta. Fiquei meio revoltado por ter sido condenado há tanto tempo, a gente nunca aceita a correção de ninguém. O primeiro BO confesso que fui eu, mas o segundo tava de laranja. É difícil reconhecer nossos erros e ser homem de dizer que o crime não compensa! Por algum tempo me deu vida boa, grana, ouro, carango do ano, moto, curtição, mulheres, enfim tudo que jamais teria condições de ter trabalhando. Mas parece um dinheiro amaldiçoado. Hoje não tenho nada a não ser cadeia pra tirar. Perdi tudo pros ladrões dos ladrões, para a polícia e para um advogado, um tremendo doutor areia. Às vezes penso que tô fazendo minha família sofrer demais. Sabe, todos aqueles que diziam serem meus amigos nem uma carta me mandaram. Hoje em dia quem trinca comigo são meus familiares, realmente me amam, não há interesse. Mano, minha filha nasceu, é minha jóia rara, tem apenas seis meses, precisa tanto de mim. Que exemplo poderei dar a ela sendo um presidiário? Às vezes penso em pa-

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rar, mas será que a sociedade me dará uma nova oportunidade? Não sei, tenho minhas dúvidas. Por enquanto é muito cedo pra dizer se parei ou não. Nós nem sabemos se sairemos vivos. Sinto mó vontade de viver honestamente. Minha família sentiria maior orgulho de mim. É, mas o amanhã só pertence a Deus.” Dexter concordou e mudou de assunto perguntando: “Mas aí? Quem tá vindo te visitar?” Com os olhos brilhando respondi: “A Dona Neusa trinca, né? São vários anos me acompanhando nas caminhadas, não falta uma visita. Vêm sempre com minha prima Célia, meu irmãozinho Jonathan e minha irmã caçula a Nithiely. O Bad vem sempre que pode e traz meus sobrinhos, o Jeron e a Sttephany. A Luciana também tá trincando, traz minha filha Hemelly Lawryn de 15 em 15 dias, tá mó gracinha. É a minha cara. O meu pai tá firmão, mas é difícil ele vir me visitar devido às correrias do trampo, mas sempre me ajuda na medida do possível. Minha família me dá muita força, em minhas orações diárias agradeço a Deus e peço paz, saúde e proteção para todos eles.” Depois desse papo, disse ao Dexter que tinha uma vaga no xadrez onde eu morava, mas o auxílio que os manos lhe deram ficou uma gratidão e decidiu ficar provisoriamente no P2, xadrez 404. Despedi-me do parceiro e retornei para o pavilhão. Como de costume, todo entardecer eu subia no quinto andar para espairecer a mente. Olhei pela ventana e celebrei o final de mais um dia. A brisa soprava em meu rosto. Logo viajei num bando de pombos que voava em sincronia e fazia o cruel contraste com a sentinela na muralha. Mais uma tarde caía no Vietnã. Agradeci a Deus por mais um dia. No horizonte cor de anil, um espetáculo majestoso que só a natureza pode proporcionar. Os últimos raios do sol reluziam feito ouro. Sua cor assemelhava-se a uma gema de ovo. Um presente para os meus olhos. Já havia perdido até a conta e mais uma vez assistia o metrô itinerário Jabaquara passar. Pensei: “Hoje entendo que a natureza dos crimes que cometi me fez parecer uma pessoa violenta. Mas acredito que a pessoa que mais prejudiquei fui eu mesmo.”

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– CAPÍTULO 3 – O rei da favela á vai o malandro dono do mundo”, era exatamente como na letra da canção da Sonia Santos que eu me sentia. Eu queria dar uma solução rápida e fácil para todos os meus problemas. E só o crime poderia me ajudar. Só o crime poderia mudar minha vida de uma hora para outra. Tudo começou como em uma brincadeira de criança. Com apostas se eu teria ou não coragem de roubar algo no supermercado sem ser notado. Para provar que eu era capaz, saí da loja com um pacote de bolacha sem pagar. Eu ainda era criança, mas o sucesso nesta ‘missão’ foi o incentivo para a prática. A aventura, o desafio e a sensação do poder fascinam. E histórias como a minha se repetem todos os dias. Na carreira do crime, comecei como trombadinha e cheguei ao topo da profissão perigo: assaltante de banco, também conhecido como 157. Roubar banco exigia mais inteligência do que força. Nossa quadrilha era formada, normalmente, por sete pessoas. Para tomar um coban, contratávamos um maluco que roubava o carro que seria usado no dia do assalto. A preferência é que ele fosse, no mínimo, 1.8 e tivesse quatro portas. Para sucesso da operação, realizávamos três reuniões. A primeira era para discutir a estratégia da entrada no banco, a rota de fuga e definir as funções de cada componente do grupo. Todas as operações tinham as funções de cavalo – piloto de fuga –, o linha de frente – anunciava o assalto e rendia os vigias –, a isca – normalmente uma mina gostosa que distraia o pé de porco.

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Durante a segunda reunião, a rotina do banco era passada a limpo. Checávamos a quantidade e o horário de troca dos seguranças, a hora de chegada e saída do carro forte, quem eram o gerente e o tesoureiro, os dias e os horários de maior movimento. No último encontro escolhíamos as armas, treinávamos tiros, definíamos o horário do assalto, locais de esconderijo e repassávamos todos os modus operandis. Saíamos com dois carros: um quente e um frio com placa adulterada. Preferíamos carros utilitários, como Kombi, Fiorino e van, geralmente com adesivos de empresas, que mandávamos fazer. O cabrito estacionava na porta do coban. No carro quente, apenas o motorista carregava o armamento até próximo ao banco. Neste local, as armas eram entregues discretamente aos bandidos que estavam dentro do carro frio. Cerca de dois quarteirões antes da entrada do banco, os integrantes desciam, se separavam e iam a pé até a agência. O primeiro a entrar era o ladrão de boa aparência, com uma arma de brinquedo escondida. Depois entrava a mina de saia, com duas armas Glock nas cochas. Cada pistola tinha apenas uma bala na agulha, para não ser detectada pelo alarme da porta giratória. Por último, para distrair os seguranças, entrava o mais feinho de todos. Ele roubava atenção ao tentar passar pela giratória com molho de chaves, celular, moedas. Era nesse momento, que a mina rendia o gerente e o cara de boa aparência, já na fila do caixa, Pegava um refém e dava voz de assalto. Com os vigias rendidos, era só pegar a grana nos caixas e, se desse tempo, no cofre. Assaltar era o nosso trabalho e para que tudo desse certo, o tempo máximo dentro da agência não podia ultrapassar dois minutos. A fuga era a maior adrenalina. Toda a quadrilha entrava no cabrito que circulava por, no máximo, dois quarteirões, quando ele era substituído pelo carro quente. Alguns quilômetros depois, o bando se separava e só se reencontrava no esconderijo para a partilha do roubo. A desobediência gera abismo sobre abismo, mas a pegada até então era ser notado. Deixei de ser o “zero à esquerda” e me

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tornei “o cara” em pouco tempo. Virei referência, espelho da quebrada. Minha auto-estima foi lá para cima e passei a andar de queixo empinado, me achando. Ascensão, dinheiro fácil, o “vibe” do momento. Eu era o mais requisitado por todos, principalmente pelas mulheres. Elas queriam diversão, glamour, luxo. Acreditavam nessa ilusão do “fim do sofrimento”, de uma vida menos dura proporcionada pelo dinheiro e pela companhia de um cara respeitado. As brigas para o posto de titular ao lado de um bandido eram freqüentes, mas elas sempre sabiam da existência de filiais. Vagabundo adora ostentar, se exibir. Ama pagar de pá. Eu não era diferente. Acreditava que com isso estava ganhando respeito. Eu era o rei da favela, achava que estava em uma redoma de vidro, com todos me olhando. A vaidade trouxe a cegueira e eu pensava que estava abafando. Na real, o que eu chamava de respeito não era nada além de medo. O que vem fácil vai fácil, a conquista sem sacrifício não tem valor. Permaneci dando bandeira. Pulseira de ouro no pulso direito, cordão com pingente de crucifixo no pescoço. Quase 40 gramas de ouro 18 quilates. Usava relógio original Bulova, camiseta Bruno Minelli, perfume Eternit, calça jeans Calvin Klein, o tênis Nike mais caro que tinha nas lojas, óculos de sol da Armani. Sem contar a nave zerada brilhando, cor preta, filmada, com rodas de liga - leve aro 19 cromada, sonzera que mais parecia um baile ambulante. O carro era um Passat Pointer, a caranga do momento. Tive também várias motos RD-350, CBR-450, Tenereé 600 e 7 Galo. Quando chegava ao bar, gostava de ser notado. Para aparecer pagava uma rodada de cerveja para todo mundo, mandava buscar vários quilos de carne da melhor qualidade, algumas garrafas de uísque e energético. O churrasco seguia até altas horas. Mas tudo indicava que não iria ter um desfecho feliz. Só eu não queria enxergar. Minha mãe desconfiava que eu estivesse envolvido com o crime, mas eu dizia que estava fazendo rolo de carro. Ela dava conselhos, procurava me alertar, mas eu, feito um cavalo com cabresto, não conseguia enxergar além. Vários

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manos que cresceram comigo no sofrimento não se corromperam. Eu segui o outro caminho. É dificílimo lidar com a vaidade, orgulho e o poder. Quem não tinha um real no bolso, passou trazer alegria material para família. Tudo que fazia meus olhos brilharem enquanto assistia a TV, eu já podia comprar. Meu hobby predileto era gastar no shopping, me sentia o Rei da favela com um praquezão de notas graúdas no bolso, as vitrines me fascinavam, realização de sonhos, saia das lojas com um montão de sacolas, no passeio estava incluso uma paradinha numa lanchonete, cinema, motel vivendo a vida a mil. Por incrível que pareça, minha quadrilha fazia o social. Os carros serviam de ambulância, distribuíamos cestas básicas para os necessitados, remédios, ajuda aos familiares dos manos que estavam presos, bancávamos os advogados dos parceiros que caiam num BO. Quando um macaco vê muita banana se lambuza. De que adiantava ter grana e não ter mais sossego. Era um dinheiro amaldiçoado. Quanto mais eu ganhava mais eu gastava. O dinheiro que eu tinha não correspondia à realidade financeira do bairro que morava e dos ambientes que freqüentava, muito menos quando ia para metiês mais requintados. Fomos caguetados por nós mesmos, pela falta de etiqueta, o modo de agir, proceder, o sobrenome. Só mais tarde percebi que nem os mais ricos esbanjavam tanto quanto eu, elemento suspeito. O outro fator para minha decadência é que nos dia de hoje ninguém quer ver ninguém bem. Recalcado e X9 é mato. Na quebrada, tinham vários gansos camuflados, que não se intimidavam devido a proteção da polícia. Logo a casa caiu pela primeira vez e tive que fazer um acerto com os ladrões de carteirinha para não ir preso. Daí por diante já fomos detectados, ficamos escrachados, não tivemos mais sossego. A casa caiu neguim, não existe final feliz para o crime. É a lei da semeadura você colhe o que planta é inevitável. Mundo de ilusão, sonhos e o castelo de areia desmoronaram no rei da favela.

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– CAPITULO 4 – Do crime ao sucesso

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uitas vezes me questionei: “será que a vida do crime compensa?”. São tantos os porquês que caí em uma inevitável introspecção. Grande parte das drogas e armamentos de última geração apreendidas no Brasil são de fabricação estrangeira. Qualquer um pode ter acesso a essa tecnologia bélica, na real um bandido pé de chinelo que negocia na periferia é apenas a pontinha desse iceberg, homens do alto escalão que usam terno e gravata estão por trás disso. Boa parte dos órgãos públicos nomeados para defesa e proteção do cidadão, está falida, corrompida. Ela extorque os criminosos, faz negociatas e financia a indústria do crime. Tenho convicção que ninguém nasce criminoso, o ser humano é condicionado. A periferia hoje é a senzala de ontem, só que com uma diferença: há brancos e negros no mesmo sofrimento. Os métodos de escravidão de hoje são sofisticados, não há escolha de cor. Os poderosos utilizam a periferia como um laboratório de experiências. Inserem o álcool e as drogas para nos viciar, patrocinam armamentos e munições para nos destruir. Hoje, vejo vários debates e campanhas antiviolência, mas a maioria dessas pessoas não tem conhecimento de causa. Um problema nunca será resolvido com soluções paliativas porque a principal causa está na raiz. Há muitos e muitos anos a violência existe na periferia. Só que agora ela desceu o morro e chegou ao asfalto. Como conseqüência, atingiu todas as classes sociais. Quem mora na periferia vive indiretamente ligado ao crime. Vejo por mim. Passei minha infância numa região pobre de São

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“CID ADE DO CRIME” “CIDADE FOTO JOÃO WAINER

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“CASAMENT O DOS MEUS P AIS” “CASAMENTO PAIS”

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Bernardo do Campo, mais precisamente no bairro Jardim Calux. A vila era constituída de construções modestas com poucas casas de alvenaria. A maioria eram barracos de madeira. Poucas ruas asfaltadas e muitas ruas de terra, mal iluminadas. Faltavam água e saneamento básico, muitos morriam de inanição e epidemias. Nossa casa era humilde como nós. A situação financeira não nos dava luxo, nem comodidade. A construção era de alvenaria, mal acabada, num terreno de 10 por 25 metros quadrados, bem acidentados. Possuía três cômodos e um banheiro nos fundos. Na frente existia um quintal enorme com algumas árvores frutíferas. Residíamos na casa meu pai, minha mãe, meu irmão mais novo Cleiton e eu. Meu pai, seu Tião, era mestre de obras autônomo. Minha mãe, a Dona Neusa, era dona de casa e trampava como diarista fazendo faxina na casa das madames em troca de migalhas para complementar a renda familiar. O sonho dela era ver a gente formado, quem sabe um engenheiro, médico ou advogado. Minha coroa havia sofrido de montão com o alcoolismo de meu avô, doença comum nas periferias e não tratada. Inúmeras tragédias em família a indústria do álcool promove. Quando tinha doze anos meus pais se separaram, após quase 16 anos de casamento. Éramos muito apegados ao nosso pai. Não queríamos e nem conseguíamos entender. Foi um grande abalo. Essa fase foi dificílima. Em uma separação conjugal quem perde mais são os filhos, a partir daí a família se desestabiliza. É aí que mora o perigo, nessas falhas de atenção, carinho, ausência, o crime surge como melhor amigo das crianças e adolescentes. Muitas vezes alguns sites de relacionamentos na Internet e as más companhias assumem a função da figura paterna. Meus pais sempre tiveram que trabalhar muito ficavam o dia todo longe de casa. Era tudo muito precário. Eles não tinham estudo. Isto facilitou que ficássemos vulneráveis ao crime, a promiscuidade. Vi muitas garotas, da minha idade na época – entre 12 e 13 anos – engravidarem e garotos se tornarem pais quando ainda queriam brincar. Depois do primeiro filho, vinha o segun-

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do e até o terceiro em intervalos muito curtos de tempo. Imagine a conseqüência de situações como esta. Como será a geração futura? Desde pequeno eu tinha uma personalidade marcante. Era teimoso e rueiro, como diz minha mãe. Tais travessuras me custaram muitas surras e choros como qualquer criança. Nessa época já despertava meu instinto de guerreiro. Era fascinado por aventura. Nunca fui parasita, acomodado. Eu e meu irmão catávamos ferro-velho para ajudar no orçamento de casa e trabalhávamos como ajudantes do nosso pai. Nas ruas aprendemos a lei da sobrevivência, aliás, aprendemos o que é bom e o que não presta. O centro comunitário (sede do bairro) não tinha incentivo. Servia de ponto de encontro de aposentados e idosos. Nosso bairro não oferecia muitas opções de lazer. Tinha somente quatro campos de terra ou brinquedos, brincadeiras improvisadas pela pivetada, como soltar pipa, jogar bolinha de gude, jogar pião, esconde-esconde, caçar com estilingue, andar de carrinho de rolemã, brincar de polícia e ladrão. Meu sonho era ser jogador de futebol e jogar com a camisa oito na seleção brasileira. Sonhar é bom e não custa nada. Os anos passaram, eu cresci e esse sonho foi ficando para trás em decorrência da realidade. Na região existia apenas uma escola estadual, a Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Professora Pedra de Carvalho. Ela atendia três bairros que ficavam ao seu redor. Assistência médica só no PS (Pronto Socorro) localizado no centro da cidade. São Bernardo vivia o caos na saúde. Os botecos batiam o recorde, aproximadamente um em cada esquina. O tráfico também se expandia feito erva daninha, recrutando cada vez mais soldados. Entre os envolvidos estavam amigos de infância, conhecidos de classe e vizinhos. A prática rendia bem mais do que o salário de fome oferecido pelo governo. Os negócios ilícitos são um grande atrativo, fascinam e indubitavelmente são um mundo de ilusões. Defino o crime com a seguinte frase: “O crime é uma rosa que esconde seus espinhos”. Infelizmente a maioria dos manos que cresceu comigo se envolveu. A necessidade ou o sonho de consumo faziam os olhos

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brilharem. Quem tinha os melhores tênis, roupas de grife, relógios da moda, cordão de ouro, caranga equipada, moto e as mais lindas minas, eram assaltantes, traficantes ou quem tinha poder aquisitivo. O jovem é induzido a ser consumista em potencial. Vivemos numa sociedade do ser e do ter, mas o que prevalece é a do ter. Através de alguns meios de comunicação podemos ser influenciados, porque a televisão é a pior doutrinadora e todos nós temos uma dentro de casa. Ela vende ilusões e ganha milhões, nos faz viver num mundo surreal, dita comportamento. A mensagem subliminar contida em alguns comerciais tem grande poder de persuasão. Esse quadro dificilmente mudará. Quem não quer ser reconhecido e bem sucedido? É o capitalismo selvagem: você vale o quanto pesa. Se você não tem, as pessoas te olham com menosprezo. Um bairro carente se torna marginalizado, o povo vive ao deusdará. Para esquecer as frustrações e os problemas, muitos enchem a cara de cachaça. Os de mente mais fraca se envolvem com as drogas, começando com o álcool depois a maconha, a cocaína e por final o crack, mais conhecido como pedra. Os efeitos são devastadores. Os manos desandam porque essa droga causa dependência física e mental em pouco tempo de uso. Perambulando na nóia os viciados roubavam varal, os comércios da área e até os coitados dos trabalhadores. Quando começavam a dever muito para os traficantes e não tinham como pagar, eram executados com vários tiros na cara. Grande parte dos casos não era elucidada, pois prevalecia a lei do silêncio. A tolerância era zero. Inúmeras vezes a ignorância tomava conta da razão, o que contribuiu para uma taxa elevada de homicídios. Perdi a conta das donas Marias que vi de luto e dos manos tão jovens mortos brutalmente, deixando filhos órfãos, com a tendência de trilharem o mesmo caminho do pai. O rabecão do IML (Instituto Médico Legal) e a perícia chegavam, no mínimo com cinco horas de atraso. O cadáver ficava exposto ao sol, ao relento, tornando a morte habitual, natural para as crianças e moradores do bairro. E para o governo, ape-

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nas mais um número na estatística. Eu assistia a minha geração se acabando nas drogas, no alcoolismo, morrendo prematuramente e ninguém fazia nada para cessar o caos urbano. Se não me falha a memória, recordo que alguns políticos só apareciam na quebrada em época de eleição. Prometiam melhorias, ganhavam a eleição e como num passe de mágica desapareciam. Até hoje essa história se repete. A escola da vida me tornou homem, precocemente, experiente em quase tudo. Um guerreiro na luta pela sobrevivência. Não nasci num berço de ouro, nada foi fácil para mim. Uma porta se abria e muitas se fechavam. O mundo não era tão colorido quanto imaginava e assistia na TV. Com todas as adversidades e contratempos sempre mostrei interesse nos estudos. Exatamente em 1992 concluí o ensino médio técnico em contabilidade. Do primeiro ano do ensino fundamental ao ensino médio, passei sem repetir. Já meu irmão Bad era bem preguiçoso e não demonstrava o mesmo empenho. Minha família botava maior fé em mim que eu teria um futuro promissor. Assim que terminei os estudos fiz um curso profissionalizante no Creci (Conselho Regional de Corretores de Imóveis) para exercer a profissão de corretor de imóveis. Batalhei um trampo, mas só no início de 1.994, por intermédio de meu pai, foi que consegui uma vaga como corretor de imóveis autônomo. Justamente nesse ano Fernando Collor de Melo assumiu a presidência do País. Eu não tinha experiência nenhuma no ramo, mas me esforçava ao máximo para superar o estágio. Entrava às 8h, mas saía de casa duas horas antes porque só tinha dinheiro para pagar uma passagem. O ônibus vinha lotado, mais parecia uma lata de sardinha. Por vezes viajei pendurado no ferro da porta para não perder o horário. O restante do percurso seguia a pé. A grana era tão curta que não sobrava para o almoço. Às vezes comia um pão com manteiga ou com mortadela. Muitas vezes uma coxinha com um copo de água da torneira. Mostrando dinamismo logo consegui dois sobrados para ven-

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da que me renderiam 6% em comissões. As coisas começavam a engrenar quando o Excelentíssimo Presidente deu aquele golpe fulminante que quebrou as pernas de todos os brasileiros. O Judas cometeu um crime hediondo contra a pátria. Nessa época, o mercado imobiliário e financeiro sofreu uma crise jamais vista na história. As vendas tiveram queda. Nesse ínterim fiquei desnorteado, pois era das vendas que vinham meu sustento e de minha família, de minhas vestimentas e alguns trocados para diversão. Lutei os 12 rounds feito um guerreiro, mas o árbitro trapaceou e acabei caindo na lona. A necessidade e a revolta começaram a perturbar minha mente. Decidi pedir ajuda a alguns parentes, mas não obtive o retorno esperado. Injuriado, fui pedir uma força para um amigo de infância. Desconfiava que ele mexesse com alguma contravenção, porque o mano era pobre e de uma hora para outra se levantou. A casa modesta se transformou num vistoso sobrado. Pense num vida boa, a sonzera na casa corria solto a semana toda. Comprou carro do ano, moto, só andava com uns panos da hora, esnobava cada dia exibindo três marcas diferentes de relógio: um Rolex, um Breitling e um Bulova. Só sei que as minas o ovacionavam. O mano transava com várias, estava no auge. Todos o respeitavam: as crianças, os caras da vila e até os tiozinhos. Também o malandro era muito educado. Ninguém dizia que o mano fazia algo de errado. Quando expliquei minha situação, ele foi sincero e direto no assunto: “É o seguinte mano, uma ajuda financeira fica difícil para eu te dar, porque eu também tô na corrida. Eu tô ligado que você não é um cara bobo, cresceu com a gente na periferia e sabe como é a lei da sobrevivência. Tem que correr atrás, truta. O Collor não ta nem aí com a situação da gente. Hoje em dia é cada um por si. Ninguém ajuda ninguém. Você é respeitado pelo que tem. Nunca fui parasita, tudo que eu tenho foi porque não abaixei a cabeça diante da situação, corri atrás do preju e desafiei o

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perigo. Só estou te contando porque confio em você e sei que não dirá nada a ninguém, entendeu?” No início fiquei chocado com a sinceridade que o mano abordou o fato, mas minha prioridade era dar logo uma solução para minha situação. Aflito, olhando na menina dos olhos dele perguntei de que forma poderia me ajudar. Sem hesitar ele respondeu: “É o seguinte, patrício, vou te passar umas coordenadas. Aí você vê se ta dentro de suas condições. Se você tiver na pegada sua porcentagem é 70% de êxito.” Tentando ser mais explícito, sacou da cinta uma pistola 380 niquelada. Num movimento ágil apertou a trava e soltou o pente. Com a arma em punho estendeu em minha direção e indagou se eu sabia manejar. Aquele foi meu primeiro teste. O mano queria ver minha reação e me colocou em xeque: pegar ou largar. Demonstrando atitude, friamente estendi a mão destra e peguei a PT. Com a arma na mão, fiquei girando-a com ar de admiração sem dizer nada – era novíssima. Meus olhos brilhavam, e como diz meu parceiro Dexter: “as armas têm um grande poder. Faz você pensar que é o foda sem ser”. Depois de alguns segundos respondi: “Aí, truta, quanto ao manuseio da ferramenta é sem tempo ruim. Nunca tive uma dessa, mas sempre convivi próximo de quem tinha entendeu. Mas ai, qual é a minha missão?” “Muita calma, mano, muita calma. Um conselho que te dou é o seguinte: se você tiver que se arriscar, que seja por muita grana. É claro que ninguém começa por cima, tem que fazer por merecer pra subir os degraus. O barato é loco, pra se levantar, tem que colar com uns parceiros apetitosos e leais que jamais te vão caguetar e nem te deixar falando. Quando a chapa esquentar cê tem que pensar também, que tanto poderá adiantar como poderá se atrasar. Será a resolução de seus problemas ou vários anos atrás das grades. É uma faca de dois gumes, um risco que terá que correr; só a prática lhe fará entender mais. Mas aí, vamos ao que interessa. Eu to precisando de uma moto, mais precisamente uma RD-350 porque tenho

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um documento quente e preciso de um cabrito pra jogar em cima dela. Você sabe pilotar moto?” É lógico que sei, dirijo carro e piloto moto desde os 14 anos, morô? Exclamei. Entusiasmado o mano respondeu: “Então demorô! Eu faço o cavalo e você enquadra uma RD350. Eu te pago US$ 400. A semana que vem tenho um coban (banco) pra derrubar. Aí é nós! Te envolvo na fita, é mó mamão! Na sequência, te explico qual é a pegada. A respeito da moto, você nem precisa me dá a resposta agora. Se achar que pá cola aqui na minha goma amanhã, às 8h. Firmeza?” Conheci ali parcialmente o outro lado da moeda. Entreguei a pistola, cumprimentei com aperto de mão, me despedi do mano e disse: Aí mano, sem palavras. Muito obrigado pela luz. Não vou te prometer nada, mas se pá amanhã cedão to aqui, certo! “É nós, truta, lado a lado em qualquer situação.” Saí pensativo e fui para minha casa. Chegando lá minha mãe estranhou minha atitude. Eu não quis jantar e nem conversar com ninguém. Preocupada me perguntou o que estava acontecendo. Inventei uma desculpa esfarrapada, uma dor de cabeça e fui para o quarto dormir ou pelo menos tentar. Passei quase toda a noite em claro, perturbado pela insônia, pela dúvida e pela aversão da situação. Meu cérebro queimou milhões de neurônios. Pensei em várias maneiras e não via opção. Queria esquecer os problemas, mas eram visíveis. E assim, seguiu esse inferno astral até clarear o dia. Como era habitual, a dona Neusa me chamou às 5h. Levantei meio sonolento e fiz meu ritual de oração. Depois presenciei uma cena que me deu maior desassossego. Havia acabado o café, o açúcar e minha mãe não tinha o maldito dinheiro para comprar pão e leite para tomarmos o café da manhã. Ela ainda tentou disfarçar, mas na real as prateleiras estavam quase vazias. Aquela cena foi patética. Percebi que ela ficou muito triste por não poder me servir. Abracei-a no intuito de consolá-la, mas não consegui disfarçar meus sen-

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timentos. Deu mó aperto no coração e meus olhos lacrimejaram. Fiquei mais indignado quando lembrei que não tinha dinheiro para passagem. Aliás, não tinha nem um mísero tostão no bolso. Senti que era o mais insignificante dos homens. Naquele momento fiquei confuso. Perdi a noção do certo e do errado. Meu Deus! Nunca mais desejo sentir aquela sensação. Com o estado emocional abalado, deixei a ira aflorar. Cabisbaixo, me despedi dando um afetuoso beijo. Disse a ela que iria trabalhar, mas a intuição fez com que ela percebesse a mentira na minha afirmação. Quando eu ia saindo ela disse com sapiência: “Filho! Deus só dá a cruz que podemos carregar. Coração de mãe não se engana, pense bem antes para não se arrepender mais tarde. Cuidado e vai com Deus.” Imaturo, não consegui ou não quis absorver a essência de suas palavras. Hoje me arrependo da minha ignorância, temos que acatar os conselhos de nossos pais, pois só querem o nosso bem. Considero herói todos que conseguem se esquivar do ciclo vicioso. Os que sobrevivem com um saláriomínimo são vencedores. Confesso que falhei nesse desafio. Feito um cabeça dura, segui com um cabresto com olhar numa só direção. Quando cheguei em frente a casa do facínora, apertei a campainha, freneticamente: “dim dom, dim dom, dim dom!” Eram mais ou menos 7h20. O mano abriu parcialmente a janela, olhou meio desconfiado, fez um gesto com a mão para eu esperar um pouco. Aguardei alguns minutos. Ele desceu as escadas até chegar ao portão e exclamou: “Nossa, hein, mano! Caiu da cama?”. Olhou no relógio e sorrindo brincou: “Caramba! Ainda é madrugada!” Dei um sorriso tímido. O comentário me descontraiu um pouco, porque eu estava muito tenso. Em seguida me cumprimentou com um aperto de mão. Pediu para eu entrar na garagem e

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perguntou com seriedade: “E aí, mano? Essa é a hora. Tá pronto para a missão?” Olhando na bolinha dos olhos dele respondi: “Demorô, é só explicar o modus operandis!” “É o seguinte: ontem fiz uma corrida e pedi para um aliado trocar as placas do meu carro. Eu vô no piloto e a gente sai no pião sem destino até a hora que encontrarmos uma RD-350. Aí eu encosto você faz a cena, sobe na moto e eu te sigo! Se a gente se perder no trânsito, você vem aqui pra casa. Vou te dar uma cópia da chave, você guarda o cabrito na garagem. O restante é comigo. Assim que a gente chegar eu te dou a grana que combinamos. Outra coisa que você nunca poderá esquecer: na hora em que você sacar a arma e der a voz de assalto, controle as emoções, demonstre calma. Enquadre a vítima pelo menos num espaço de um metro ou um metro e meio de distância, ela ficará sem possibilidade de reação, caminhe devagar e faça uma revista minuciosa. Muito cuidado para não ser surpreendido. Mande a vítima virar de costas e correr sem olhar pra trás, entendeu?” Respondi a ele que havia assimilado a idéia. Sem hesitar, David sacou a PT da cinta e me entregou. Alertou que a arma estava municiada e travada. Então entramos no carro e seguimos em direção ao centro de São Bernardo. Não rodamos muito. Logo o mano avistou uma RD-350 cor cinza. Como um predador, tinha olhos de águia. Era chegada a hora. Não podia mais voltar atrás e nem quebrar as pernas. Só que jamais poderia imaginar que aquela aventura se tornaria um vício e uma bola de neve. O diabo é astuto, se aproveita das horas de dificuldades e com suave eloquência te ilude e convence. Como um aviso, aquela vozinha interior me disse que um dia iria me arrepender por ter aceitado aquele convite. Toda a trajetória do jogo incerto foi relatada nas linhas de um rap intitulado Ex-157, que coincidentemente é uma triste realidade de vários brasileiros.

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“O CRIME NÃO COMPENSA”

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Na favela é um dois pra se envolver, Assistia TV e não podia ter, Mó veneno ir pra escola de chinelo de dedo, Não tive infância, muita menos brinquedo, Sem perspectiva, sem futuro, Minha mãe doméstica sem estudo, Família sem estrutura, meu pai batia em mim, A vida do crime se pam meu trampolim, Muito álcool, muita droga, armamento pesado, Periferia laboratório eis o resultado, Uma pá de Bin Laden descendo o asfalto, Violência trafico, latro e assalto, Sem escola, emprego, incentivo cultural, Pátria amada, mãe gentil, Brasil desigual, Necessidade ou ambição fui me entrutando, Quem será essas horas meu radim tá chamando, É tudo nosso mó mamão cê vai ver, O time sou eu e mais quatro, nois num joga pra perder, Duzentos mil só sua cara, só pra começar, É a boa rapaz, nóis vai se levantá, Que tal uma lupa da Armany ou um sapão zerado, Um flat nos Jardins outra vida estatus, Linha de frente entrei, no sapatim dominei, Todo mundo rendido me senti um rei, Fisionomia transformada, tremia, suava, A adrenalina quase não controlava, Tava tenso, mas firmão, ufa deu tudo certo, Meu ego disse o mundo é dos espertos, A giratória não brecava agia com malícia, Eu pegava o pé de porco na febre sem preguiça, Dois minutos era a cena encosta a tenereé, Puxa o pino da granada a rota volta de ré, A gente não imagina do que é capaz, Eu era honesto, bom filho, bom rapaz, Só que dinheiro é o mal, ambição em alto grau, O crime é uma mentira, só fui ver no final.

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OS SONHOS SÃO O PASSAPORTE DA VITÓRIA FOTO JOÃO WAINER

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Por todos esses motivos cheguei à conclusão de que o crime não compensa. “O crime só compensaria se eu soubesse roubar com uma caneta, tivesse colarinho branco e imunidade parlamentar”. Esses caras-de-pau são os piores larápios e aves de rapina, enquanto nós servirmos de bode expiatório para encobrir suas falcatruas. Na atual conjuntura os inúmeros escândalos viraram fatos corriqueiros. Os golpes de milhões estão na moda. A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), órgão que foi criado para agir com veemência na apuração dos fatos e responsabilizar os culpados, não funciona na prática. De volta à rotina. Passaram-se três meses e Dexter decidiu ir morar comigo no P7. Ele se ligou que num campo minado, é necessário ter um parceiro de confiança. Com muito sacrifício compramos em conjunto o xadrez 509-E. Pagamos na ocasião R$ 650. Em princípio não ficamos muito satisfeitos, mas nosso dinheiro não nos dava outra opção. A cela estava num estado lastimável, mais parecia uma espelunca. As paredes eram pintadas com cal. As cortinas, que dividiam o barraco para nossa privacidade, estavam todas esburacadas devido às traças. O chuveiro era frio e o vaso sanitário estava estourado, exalando mau cheiro. Enfim, a cela precisava de uma reforma geral e nós nos dispusemos, aos poucos, a fazê-la. Apesar de não ter mais esperanças e achar que minha sina era o crime, escrevia letras de rap e guardava a sete chaves. Confesso que o fato de o Dexter ter ido morar comigo me incentivou e reacendeu uma vontade de formar uma dupla com ele. Mesmo estando na vida do crime, ele também escrevia rimas novas e me mostrava as levadas. Um empurrão imprescindível foi quando meu irmão Bad assumiu o grupo do Dexter Tribunal Popular, gravou o single Xeque + não mate, título escolhido por mim e duas composições do Dexter, pela gravadora Cosa Nostra, dos Racionais Mc’s. Lá no fundo, meu sonho sempre foi gravar um CD de rap, só que esse sonho foi frustrado com a minha prisão. Senti mó orgulho de meu irmão por não ter deixado a peteca cair e lutar em prol do objetivo.

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Sabia que também tinha o dom. Era só questão de acreditar em mim mesmo. Todos elogiaram o título do CD, fiquei contente. Meu irmão contribuiu muito para o aumento de minha autoestima. Esse estímulo foi uma grande força para recomeçar. Tinha ciência que não seria nada fácil devido às condições remotas e a falta de oportunidade. Era apenas mais um desafio, porque basicamente o dia a dia no cárcere consiste em desafios. Sempre tive o rap na veia. Faz parte de minhas raízes. Por isso, quando ouvia esse ritmo no rádio ficava vidrado, sentia mó emoção, energia, a adrenalina acelerava. Nessas horas batia a nostalgia, lembrava com saudade dos tempos bons quando iniciei no movimento hip hop, nessa época o rap era desconhecido para a mídia. Quem estava envolvido era por amor à camisa. Com o decorrer dos anos percebi que não era efêmero e nem moda, amava o ritmo de coração. Após longos anos de ditadura militar, a juventude pobre e negra resgatou a voz ativa, através desse veículo de comunicação de massa, mais consciente e emergente da atualidade. Esse movimento assumiu uma postura sarcástica devido à crise e morte súbita do caráter de algumas autoridades. Com indignação vejo o surgimento do lixo fonográfico imposto por multinacionais invadindo as paradas de sucesso e dizimando os valores da boa música. A população sofre sem referência, sem acesso à qualidade musical fica sem senso crítico. Não há nada de consistente, a não ser alguns pretos vendidos, servindo de chacota e rebolando bem mais que as mulheres. É tudo por dinheiro. A demagogia é notória quando banalizam a palavra amor que só é usada na relação homem-mulher, porque na prática é tudo fugaz, vivemos a era do ficar e continuamos mais carentes de amor ao próximo. As mulheres tornaram-se objeto de desejo, fetiche. Só são consideradas artistas porque têm um corpo sensual e se submetem a cenas eróticas. No meu caso, que sou preto, pobre e enxergo a necessidade de mudanças, o rap veio a calhar e se tornou minha forma de desabafar. É a minha cara.

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O movimento hip hop nasceu na Jamaica. Foi levado para os guetos norte-americanos onde se desenvolveu, aprimorou, consolidou e se lançou no âmbito mundial. Em meados dos anos 1980 chegou ao Brasil, mais precisamente no metrô São Bento, na cidade de São Paulo. Ecoou nos quatros cantos e levantou multidões. E continua levantando. O rap é o filho mais novo das ramificações originárias da Mama África que nos concedeu o jazz, o blues, o rock, o reggae, o soul e, posteriormente, o funk. O estilo se mostrou completo. Está dividido em quatro elementos: o rap (música), o break (dança), o grafitte (arte) e o conhecimento. A abreviação de rap em inglês é Rhythm and Poetry, a tradução para muitos é ritmo e poesia. Para mim, Revolução através das palavras. Com a música vieram também outros componentes, sendo eles, o DJ (Disk-Jockey) que comanda e anima as festas com as pick-ups, ou seja, com os toca-discos fazendo scratchs, riscando os discos em cima de batidas pesadas. O outro aliado é o MC (mestre de cerimônias), vocalista que rima no compasso da batida. Rap é sinônimo de resistência. Em 1.988, um truta skatista foi participar de um campeonato nos Estados Unidos e me trouxe um presente que guardo com muita estima: um vinil do grupo Public Enemy. Quando ouvi pela primeira vez a faixa Fight the Power foi simplesmente contagiante. O parceiro me explicou mais ou menos a letra. A tradução era Combata o Poder. Foi amor à primeira ouvida pelo ritmo. Anos depois, em 1.990, conheci o trampo de uns manos que falavam numa linguagem simples, objetiva e fácil de assimilar. Era tudo que eu queria ouvir e falar. As letras eram conscientes, falavam do dia a dia da periferia, do racismo velado, da autovalorização do homem preto. Ouvir aquela obra-prima chamada Holocausto Urbano, do grupo Racionais Mc’s, despertou uma luz em minha mente. O conteúdo me fez entender a real intenção do sistema e resolvi fazer minha parte para a situação melhorar. Desde então, tornei-me mais um aliado em prol da revolução mental das pessoas. Certo dia, no mês de julho de 1.999, Dexter e eu fomos convi-

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dados por Mauricio, um patrício da Bela Vista lá do P2, para assistir a uma aula de teatro no P6, ministrada por uma ex-atriz, voluntária. Na Casa de Detenção, o trabalho dela trazia aos presos uma atividade com perspectiva de resgate da autoestima. Essa pessoa de grande senso humanitário e carisma chama-se Sofia Bisiliat. Sofia, uma mulher de estatura mediana, com características européias, pele clara com sardas, nariz fino e vistosos olhos azuis, nos trataram com cordialidade. E, diante de tanta simpatia, foi impossível não me interessar e me envolver no projeto intitulado Talentos Aprisionados. Todos esses aspectos favoráveis que citei foram um trampolim para a formação de nosso grupo de rap batizado de Linha D´frente, nome escolhido por mim. Na prisão há vários caminhos, cabe a você escolher qual deseja trilhar. Há o caminho das drogas, o caminho para se especializar em um PHD no crime, o caminho do cristianismo ou ainda descobrir o talento e o dom que Deus lhe deu. O caminho da religião atingia cerca de 40% de adeptos. Na real, poucos se convertiam de coração. A grande maioria infringira regras do crime e se escondiam atrás da Bíblia, mas eram desmascarados, porque não tem como enganar a Deus. Nós resolvemos optar pelo caminho da música. Após muitos anos de sofrimento, cheguei à conclusão de que o sistema não regenera e não tem interesse de recuperar ninguém. Senti uma vontade interior de mudança. Senti necessidade de dar alegria à minha família, de usar em benefício próprio e até mesmo como lição de vida, os quatro anos e seis meses que estava cumprindo. Passei a acreditar que a minha vida poderia servir de testemunho e exemplo para evitar que muitos jovens e adultos se deixassem levar pelos convites e pela ilusão com a vida do crime, que em principio é glamouroso. Mas o final é trágico, pouquíssimas e raras exceções. Nesse intuito, passamos a nos dedicar com afinco, durante muitas horas do dia e muitas vezes invadindo pela madrugada afora. Nossa mudança de comportamento despertou muita curi-

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osidade e crítica, algumas construtivas e outras um tanto desanimadoras. Uns diziam: “Vão em frente que vocês têm talento e irão conquistar o que almejam”. O time de pessimistas era bem maior: “Ih! Mano ta chapando! Nossa cara é o crime! Lá fora que é campo aberto vocês não conseguiram gravar, imaginem atrás das grades! Vocês acham que alguém vai acreditar e investir em dois presos? A sociedade é descrente na questão que os presos possam se regenerar. Tão sonhando muito grande, quando vocês acordarem nos avisem.” Entre todo o otimismo e pessimismo, tínhamos que respeitar as opiniões, fazer nossa parte, contrariar a estatística e provar o contrário para essa sociedade que fabrica bandidos. Meu irmão Bad vinha eventualmente nas visitas. Num daqueles dias, mostramos nosso trampo para ele analisar e opinar. Ele curtiu muito o projeto e com empolgação exclamou: “Nossa mano! É mil grau. Quando lançar no mercado, vai ser um estouro, pode acreditar!” A opinião de Bad era válida, porque é um cara que tem visão do negócio e estava na rua analisando a tendência do mercado. Entusiasmado, ele pegou uma cópia da fita demo, levou para fazer uma corrida nas gravadoras, difundir o trampo e levar ao conhecimento dos manos do rap, que o Dexter e eu havíamos formado um grupo com letras conscientes, verídicas e bombásticas. A idéia espalhou-se e nomes de peso do cenário do rap nacional apoiaram e aprovaram. Entre eles: Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kljay, todos dos Racionais Mc’s. Fui apresentado aos componentes em 1.992, por intermédio do Dexter. Tínhamos ideologias parecidas e uma grande proximidade musical. Nasceu uma grande amizade e acredito que o apreço seja recíproco. Nosso grupo também teve o apoio de MV Bill, do Rio de Janeiro, e Thaíde & DJ Hum, um dos grupos pioneiros do rap. Quando soubemos do apoio, apostamos todas as fichas em nosso trabalho, com o pé no chão, é lógico. Não nos empolgamos. Usamos o apoio como incentivo para a luta, em busca do cume da montanha. Desde o início analisamos e chegamos ao

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consenso, que nossa cara era surgir de forma autêntica, diferente de tudo que estava no mercado, desde a ideologia, o estilo de vestir, de cantar, o nome do grupo e o modo de falar. O conjunto iria fazer o diferencial. Não queríamos ser apenas mais um. Levamos aproximadamente três meses para selecionar um repertório de nove músicas. Quando finalizamos essas faixas resolvemos gravar outra fita demo (independente), no micro system que o Dexter ganhou de presente. Tínhamos vários CDs instrumentais que nos serviram de fundo musical. Nos tornamos autodidatas, mas o que me levava a crer que tinha o dom era cantar na cadência da batida, sem sair do compasso, mesmo sendo leigo em música, sem saber partitura e as notas musicais. Compor um rap sem arranjo e encaixar perfeitamente esse rap na base instrumental. Quando parei para analisar essas questões, me empolguei ainda mais. Passei a me dedicar de corpo, mente e coração. Notei também que o sistema poderia prender meu corpo, mas jamais poderia prender meu espírito, meus pensamentos. Concluí que em qualquer situação a pior prisão é a do preconceito, do egoísmo, da mentira, da hipocrisia, da inveja e a da cobiça. Enfim, a pior prisão é a da mente! É óbvio que para atingir as metas almejadas, contamos com algumas lições desses professores renomados. Através de visitas periódicas, nos davam algumas dicas para descobrirmos nosso real estilo. Ensinaram alguns métodos para parecermos mais autênticos ao cantar e expor com veracidade as letras. Chamavam nossa atenção para analisarmos minuciosamente o conteúdo das letras, pois passaríamos a ser formadores de opiniões. Como alunos dedicados, seguíamos à risca os ensinamentos dos professores da Old School. Depois, resolvemos levar nosso trabalho ao conhecimento da diretoria, porque estávamos encontrando certa resistência e perseguição por parte dos funcionários, que muitas vezes brecavam nossos visitantes e inventavam pretextos absurdos. Certa vez, barraram o mano Brown, porque ele estava com

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trança enraizada no cabelo. Inúmeras vezes proibiram meu irmão e os manos de entrarem na visita. Implicavam com a calça muito larga. Proibiam de entrar revistas, fitas, CDs de rap. O recalque era total. Nas revistas mensais na cela, amassavam, rasgavam nossas letras, quebravam CDs, esculhambavam com tudo. Juramos para nós mesmos que esses imprevistos serviriam de forças para alcançarmos nossos objetivos. Não poderíamos perder a oportunidade, a sorte não bate várias vezes na mesma porta. No mês de julho de 1.999, tivemos a idéia de fazer um show no dia dos pais para os presos e visitantes do P7 com grupos de rap da rua e com grupos locais da detenção. Não tínhamos experiência nenhuma no assunto, mas metemos as caras. Desde 1996 a cadeia estava de castigo e não tinha nenhum tipo de evento. Foi uma tremenda queda de braço. Na negociação com a diretoria, tivemos que assinar vários termos de responsabilidade. Caso acontecesse algum desacerto assumiríamos toda a culpa. Graças a Deus deu tudo certo. Conseguimos realizar nosso propósito quebrando um jejum de três anos e levando aos internos e visitantes o entretenimento, informação e a consciência através do rap. Foi satisfatório ver nos semblantes das crianças, dos pais presos e das mães, sorrisos e alegria que não são comuns mesmo em dia de visita. Havia muitos que nunca tiveram a oportunidade de assistir a apresentação ao vivo do Racionais Mc’s. Uns por estarem presos havia muitos anos. E alguns visitantes que não tinham condições financeiras de ir num show. Tenho certeza de que esse dia ficará guardado para sempre na memória, de todos aqueles que estavam presentes. Aquele dia me fez crer que o rap tem um grande poder. É capaz de mudar as pessoas, que é nosso caso. A música rompeu barreiras e as energias negativas. Nosso evento foi encerrado na paz total. Apresentaram-se nesse dia, no palco de madeira, construído por nós, detentos, no fundo do pátio externo do P7, os grupos Racionais Mc´s, Tribunal Popular, Lino Cris & DJ Dri. Os grupos não cobraram cachê. Nosso grupo, o Linha D’Frente, e mais uns nove grupos da Casa também se apresentaram.

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Nunca esquecerei os vários guerreiros que correram lado a lado e contribuíram para a realização daquele projeto. A partir desta data, as portas começaram a abrir para nós. O show do dia dos pais foi filmado e a gravação do evento foi parar nas mãos de José Carlos dos Reis Encina, vulgo Escadinha. Ele era ex-traficante e assaltante, do Morro do Juramento, no Rio de Janeiro, e cumpria pena no presídio de segurança máxima Bangu l. Escadinha estava com um projeto em andamento para lançar seu CD Coletânea, em parceria com 12 grupos de rap renomados. Convidou o Linha D’Frente para fechar esse time. Aceitamos ao reconhecermos a seriedade do trabalho em prol da recuperação do ser humano. Isso sem contar que era nossa chance de provar porque viemos. Não conseguimos autorização judicial para sair da prisão e gravar em um estúdio apropriado. Fomos obrigados a improvisar em nossa cela 509-E, uma espécie de estúdio, para captar nossa voz, num aparelho de MD. Na sequência, levaram para um estúdio profissional em São Paulo e resultado foi à faixa batizada de Barril de Pólvora, produzido por DJ Luciano e MV Bill, no CD intitulado Escadinha Brasil-1 Fazendo justiça com as próprias mãos. Graças a Deus, a tecnologia e ao profissionalismo conseguimos realizar nosso sonho. Ao ouvir a música produzida ficamos radiantes. É difícil explicar a sensação. A vitória com sacrifício tem um sabor especial. Fiquei muito orgulhoso de mim mesmo, foi o primeiro filho do Afro-X e do Dexter. Sofia com seus olhos clínicos enxergou nosso talento. Incumbiu-se de levar a fita demo e o CD recentemente gravados para um velho amigo. Nada mais, nada menos, que Wilson Souto, presidente da multinacional Warner na época. Caímos nas graças do homem, porém não tínhamos bagagem suficiente para uma gravadora daquele porte. Oferecíamos alguns fatores interessantes como: a polêmica de estarmos presos, a autenticidade de nosso trabalho e o time de produtores que iríamos reunir simplesmente a nata, jamais reunidos num cd de rap nacional. Mas, para ele ainda não era o suficiente para estarmos na Warner.

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Tínhamos que fazer estrada, conquistar o sucesso e consagrar o nome do grupo, porque o mercado fonográfico não trabalha com hipóteses e sim com bases concretas. Wilson Souto, visando nosso crescimento futuro, nos levou para a Atração Fonográfica, gravadora de médio porte e assinamos o contrato de 18 meses, em novembro de 1999. Selecionamos o repertório de doze faixas para o primeiro álbum da dupla, intitulado Provérbios 13. O título ganhou por unanimidade entre os vários nomes indicados por nós. Certo dia em sua oração matinal, Dexter abriu a Bíblia justamente no livro de Provérbios, capítulo 13 versículo 1 que diz: “o filho sábio ouve a correção do pai, mas o escarnecedor não ouve a repreensão”. Dexter teve uma idéia brilhante. Tinha tudo a ver com nossa recuperação. O livro de provérbios consiste em conselhos e ensinamentos de Salomão, considerado o homem mais sábio e rico do mundo. Adaptados para o nosso dia a dia, essa analogia queria dizer que se tivéssemos praticado a palavra de Deus e ouvíssemos nossos pais, não estaríamos atrás das grades. Quanto ao nome do grupo, tivemos que substituir, para evitar problemas futuros, porque fizemos uma pesquisa e constatamos que já existia um Linha D’frente registrado. Escolhemos vários nomes e fizemos uma votação entre o Dexter, o Leandro, vulgo Função, e eu. O Leandro morava conosco no xadrez e escreveu o prefácio do CD. Permanecemos num impasse durante quase um dia para escolha do novo nome. No final da tarde Função opinou: “Aí, rapa, já sei. Por que não 509-E, o número da nossa cela?” De bate pronto aceitamos. Nada mais justo, porque foi ali que tudo começou. Ficou super original, seria também uma novidade, já que no Brasil, não existia nenhum nome de grupo com número. Realmente era nossa cara. O próximo passo foi selecionar o repertório, a escolha dos produtores de nosso segundo filho, onde definimos que Mano Brown juntamente com os co-produtores Zé Gonzáles (DJ do Planet Hemp) e o Marquinhos Borracha da Vida Loka produziriam cinco faixas: Triagem, Oitavo Anjo, Castelo de ladrão, Uh!

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Barato é loco e De A a Z. Edi Rock seria responsável por quatro faixas: Só os fortes, Sem chances, Carta a sociedade e Sem palavra. Já MV Bill, em parceria com DJ. Luciano produziram os sons: Hora H e Confiança e Desconfiança. Por fim, o DJ Hum produziu uma faixa: a Saudades mil. Influenciados pela Black Music, procuramos resgatar a herança do soul, do funk, misturando um suingue abrasileirado que ouvimos em vinis em nossa infância e adolescência. Saudosas trilhas sonoras, que eram nosso passaporte de emoções. Tais influências foram significativas para formação do meu caráter e autovalorização enquanto homem preto. A gravadora Atração nos deu livre arbítrio para trabalhar. Apostaram em nosso talento e na assessoria. As fotos ficaram a meu critério: tanto a capa, como a contracapa e encarte. Procurei seguir o script das letras. Observando a seriedade do trabalho, a diretoria concedeu aos produtores uma visita extra semanal. A reunião de praxe era utilizada para acompanharmos o andamento das músicas. Assim foi possível opinar na produção e nos familiarizar com as bases instrumentais. A produção foi concluída em tempo recorde, devido a nossa afinidade e proximidade musical com os produtores. Foram precisos dois meses para produzir as onze faixas. Mesmo diante de todas essas realizações, ainda pairava um impasse, porque necessitávamos de uma autorização judicial para sair da prisão e gravar a voz no estúdio profissional. Caso o pedido fosse indeferido, optaríamos por um estúdio móvel, mas dificilmente alcançaríamos 100% de qualidade. Em busca desse êxito, Sofia não mediu esforços com nossa gravadora, marcou uma audiência com o Juiz de Direito Corregedor da Vara de Execuções Criminais da Comarca de São Paulo, Otávio Augusto Machado de Barros Filho. A autorização foi deferida e expedida para o período de 15 a 18 de março de 2.000. O horário era das 19h às 5h em três estúdios diferentes de São Paulo. Nos quatro dias em que saímos, permanecemos num estado de êxtase. Se eu sofresse de problemas cardíacos, com certe-

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za teria um enfarto. A emoção foi tamanha, sensação de liberdade com realização de um sonho. Parecia mentira. Não sabia se gritava se chorava se dava risada. Só sei que agradeci muito a Deus por aquela vitória. Quase dois anos sem ver a rua, a não ser pela televisão. O Dexter idem. Fomos levados no chiqueirinho do camburão da Casa, sem algemas e três funcionários na escolta. Rolou até uma aposta entre os funças da Detenção. A maioria apostou que nós iríamos fugir. Em resposta a esse pré-julgamento decidimos fazer a abertura do CD com a faixa Confiança e Desconfiança, que retratou a perda da aposta dos medíocres. Procuramos ser mais verdadeiros possíveis. Até as participações nas músicas foram feitas por nossos parentes que mesmo sem experiência trabalharam como o previsto. O profissionalismo foi relevante para a desinibição e a produtividade. Parcialmente missão cumprida, bem que os manos disseram que nosso time só joga para ganhar. Nem acreditamos na velocidade com que foi feito o Provérbios 13. Foram muitos sacrifícios, muita ansiedade e noites de insônia, mas valeu à pena. Agora era outra etapa. O filho foi gerado. Como pais corujas, tínhamos que cuidar com amor, dedicação e atenção, para ele crescer e ter um futuro promissor. No lançamento oficial do CD, enfrentamos uma comitiva de 60 repórteres numa entrevista coletiva. Foi um momento histórico e glorioso. Nunca imaginei ser o centro das atenções. Nunca vi tantos holofotes, câmeras e fotos em toda minha vida. Fomos muito bem assessorados por uma nipônica, de estatura mediana, responsável pela divulgação e marketing de nosso produto. Com muita competência, ela nos orientou como agir diante da situação. Levei algum tempo para acreditar. Era tudo muito novo. À noite, deitei a cabeça no travesseiro e refleti o quanto Deus foi bom conosco. Hoje acredito que ele tinha um plano para nossas vidas. Realmente fomos abençoados. Em abril de 2.000 demos um entrevista para a Folha de São Paulo no caderno teen intitulado A Voz da Cadeia. Tal entrevista

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chamou a atenção de duas jovens, a Tiane e a Samara, estudantes de jornalismo. Devido ao nosso exemplo de recuperação dentro do sistema carcerário falido, elas foram estimuladas a fazer uma entrevista conosco, já que na ocasião desenvolviam um trabalho de faculdade sobre ritmos musicais. Da entrevista nasceu uma amizade e posteriormente surgiu um relacionamento entre Samara e eu. Ela era uma mulher madura, extrovertida, 28 anos e desimpedida. Em princípio não queríamos nada sério, mas acabamos nos envolvendo afetivamente. Cumprindo com o trato, a gravadora bancou dois videoclipes das músicas Só os fortes e Triagem. A primeira retrata com autenticidade o dia a dia cheio de tortura no Carandiru, o sistema falido, a lentidão da justiça e o jogo de cintura necessário para sobreviver no quarto mundo. No refrão uma frase de força e perseverança que acaba se tornando uma lição de vida no cárcere ou nas ruas: Só os fortes sobrevivem. No clipe tivemos participações especiais do meu irmão Bad (Tribunal Popular) e Edi Rock (Racionais Mc’s), recitando um trecho do salmo 91. No final da música, o diretor Mauricio Eça, mostra todo seu brilhantismo, com atores encenando os sete pecados capitais. Meu senso participativo fez com que eu fizesse a prévia de um roteiro. O clipe da música Triagem retrata a chegada de um novato no Carandiru, toda a burocracia de inclusão na Casa, a agonia e aversão de ser prisioneiro na maior cadeia da América Latina. Dexter narra tudo isso minuciosamente. Contamos com a participação de Mano Brown, Bad, Batatão, Neguinho, DJ. Niggaz e Marcão. Os dois clipes levaram dois dias árduos de filmagens, das 9h às 16h30, com muita cooperação da massa. A direção contou com o profissionalismo dos renomados Maurício Eça, Marcelo Corppani e Tereza Eça. Eles foram vencedores do VMB 98 (Vídeo Music Brasil, da MTV) com o clipe Diário de um detento, do Racionais Mc´s. Nem imaginava a proporção que o 509-E iria tomar. A firma cresceu e começamos a fazer shows. Lembro como se fosse hoje. Nosso cachê inicial era de R$ 1.000. Em gratidão por toda bene-

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volência, convidamos Sofia para ser nossa empresária, que aceitou e somou em nosso time. Gradativamente fomos ganhando espaço. Agenda lotada, divulgações a milhão, com entrevistas em revistas e jornais nacionais e internacionais, em destaque a Newsweek americana. Fomos ouvidos em rádios FM e comunitárias. Demos palestras em faculdades e até na antiga FEBEM, hoje Fundação Casa. Fomos convidados para gravar programas da TV aberta brasileira. Íamos de vento em popa, em busca de prestígio profissional. A firma já tinha um time de dez manos longe do crime, à inclusão social sempre foi nosso foco principal. O rap aguçou mais meu discernimento. Resgatei minha auto estima, descobri o significado de minha vinda na terra, notei que tinha um valor. Honroso é ajudar nossa família. Poder ser orgulho para eles é de extrema importância. Nosso discurso se tornava prática a partir do momento que gerávamos empregos. Levar entretenimento, informação e conscientização através da música é gratificante demais. Ver o delírio da galera, arrancar aplausos dos manos e das minas, gritos histéricos, lágrimas e sorrisos ao mesmo tempo. A energia positiva, assédio, dar autógrafos aos fãs, o carisma, o calor humano. Estar no palco é minha grande paixão. Confesso que se não fosse Deus e o rap, com certeza teria voltado para vida do crime. Agora, com convicção, posso dizer ao crime nunca mais! O sucesso foi notório, mas meu maior sucesso foi sair do crime.

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– CAPÍTULO 5 – Quarto mundo dentro de um terceiro

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Casa de Detenção foi fundada em 11 de setembro de 1956. Ficava no número 2630 da Avenida Cruzeiro do Sul, ao lado direito do metrô Carandiru. Na fachada, um letreiro identificava o estabelecimento penal como Casa de Detenção de São Paulo, também conhecida como Carandiru. Para os detentos, Dita, a cidade do crime. Depois da demolição parcial dos pavilhões, o local se tornou o Parque da Juventude. Na fachada existia uma guarita do lado direito. No pátio funcionava o estacionamento dos funcionários. Todos os prédios na área da entrada compunham o complexo de acesso restrito, como a diretoria geral e administração. Na sequência, estava a portaria central, dividida por dois portões, depois vinha a ratoeira com o portão de acesso a Divinéia. Em 28 de fevereiro de 2.001, os números do Carandiru eram:

Divinéia Era como um setor de cargas e descargas. Tudo entrava e saía pela Divinéia, que tinha formato de encruzilhada. Poucos reeducandos tinham acesso a essa área, considerada de segurança máxima. Ela era formada por um departamento de revista de funcionários, copa de funcionários da administração e diretoria geral. Havia também o parlatório para atendimento dos ad-

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“O JOGO É JOGADO ENTENDEU NEGÔ” FOTO JOÃO WAINER

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vogados. No mesmo lado ficavam: as salas da equipe técnica do CTC (Centro Técnico Criminológico) e a plataforma de carga e descarga dos patronatos. Do outro lado estavam à sala da FUNAP (Fundação de Amparo ao Preso), os setores de identificação e do lado esquerdo, um jardim mal cuidado. Mais adiante, ficava o portão de acesso ao P2. Do lado direito, uma guarita do funcionário responsável pelo trânsito de detentos. Logo atrás, um jardim rodeado de árvores habitadas por saguis, um coreto no centro de outro jardim com três bancos de concreto. Quase no centro da Divinéia havia um chafariz de azulejo branco. Ele estava inativo. Pavilhão 2 (P2) Era o primeiro pavilhão da cadeia, que dava acesso para toda prisão. Todos que chegavam obrigatoriamente sendo réu primário ou reincidente passavam por ele. O prédio era composto por cinco andares. Todas as celas eram moradias, com a média de dez presos em todo o xadrez. A exigência para morar no P2, era que o reeducando estivesse trabalhando em algum setor. Todas os X que continham o número 17 moravam os faxineiros e os boieiros. Era o pavilhão com a maior galeria. O P2 era o único que não tinha celas do lado externo e todas as ventanas eram voltadas para o pátio interno. O lado externo ficava tão próximo da rua, mas rendia castigo para quem fosse flagrado olhando para rua da ventana. Saindo da Divinéia chegava-se ao pátio externo do P2. O depósito de lixo ficava à esquerda. O patronato de cadernos e pastas, à direita. Em frente ao patronato ficava a borracharia para conserto dos pneus dos carrinhos. Na sequência, o setor de produção e a academia de boxe para os reeducandos. Ao lado, uma guarita e um funça no portão que controlava o trânsito do P8. Após o primeiro portão do P2, havia uma gaiola. À esquerda ficava a sala do diretor. À direita, a sala dos rondantes e a escada de acesso aos andares. Havia também uma copa minúscula dos funcionários. Na seqüência entramos no pátio interno, onde ficavam alguns setores burocráticos e de trabalho da casa.

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Rodeando o pátio interno existiam os setores: de elétrica, a chefia, a lanchonete, a sala de compras, a laborterapia, a alfaiataria, a igreja Assembléia de Deus, a igreja Universal do Reino de Deus, o refeitório dos funcionários, o portão de acesso ao campo, o controle geral, a rouparia, a carceragem, a barbearia, a enfermaria, os banheiros para os visitantes, a fotografia, a Umbanda e por fim a igreja Católica. População total = 645 presos. Pavilhão 4 (P4) Era pavilhão-hospital, considerado o mais triste e deprimente. Lá também ficava a temida masmorra ou cela forte e os casos graves ADD (À Disposição Da Diretoria). O preso nesse regime permanecia incomunicável com o restante da prisão. O contato era conseguido apenas através de pipas, camuflados por códigos para que os funças não percebessem. O dialeto, os códigos eram demonstração da criatividade dos presos. Nesse período as visitas familiares eram canceladas. No quinto andar ficavam os doentes com HIV. Os doentes em estado terminal ficavam em doze celas. No pavimento ainda havia um duchão com três chuveiros elétricos e um gelado, três vasos sanitários, uma sala de cirurgia improvisada, o depósito de remédios e o setor burocrático da enfermaria central, onde eram feitos os encaminhamentos e retornos dos hospitais. No quarto andar ficavam a gráfica, a laborterapia, o judiciário, o setor de esporte e também alguns reeducandos em cumprimento de pena. No terceiro pavimento, ficava o setor do encarregado geral da faxina e era ocupado para cumprimento de pena. O segundo era um dos mais deprimentes, pois era o andar dos doentes mentais e dos paralíticos. Todos os anda res tinham um duchão coletivo. Na gaiola do P4 à direita estava à escada. A esquerda ficava o único elevador em funcionamento de todo o complexo penitenciário. Mais a frente à esquerda existia a elétrica. À

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direita tinha um patronato de cadernos. No corredor a frente tinha outro portão, à direita ficava uma gaiola, onde os funças deixavam os requisitados para médico ou exame CTC. Na seqüência vinha à masmorra, o pátio interno com seus diversos patronatos. Do outro lado ficavam os banheiros masculinos e femininos, o ambulatório, a chefia, a diretoria, o consultório médico, o raio-X, a carceragem, a escola, a igreja e por fim uma gaiola que antecedia o setor de tuberculose, área altamente contagiosa. No pátio externo havia a quadra de esportes. Atrás do pavilhão tinha um campo de futebol tipo society, um jardim com bancos de cimento, uma balança, duas gangorras e dois portões de ferro ao lado da guarita que dava acesso ao P7. População total= 69 presos Pavilhão 5 (P5) O pavilhão cinco era considerado seguro de vida. Geralmente habitavam lá os detentos que infringiam as regras do crime e os homossexuais. Era também um dos mais populosos. O pátio interno era constituído dos setores de carceragem, a chefia e diretoria, a odontologia (única existente no complexo), o setor de educação, a biblioteca, a enfermaria, a capela São Luiz, o judiciário, a barbearia, a igreja Pentecostal Deus é Amor, a academia, os banheiros para visitantes, a hidráulica, a manutenção, a igreja Congregação Batista Betel e o setor de espiral. O prédio era composto por cinco andares com 71 celas do lado externo e 42 do lado interno em cada andar. Atrás do pavilhão existia um campo de terra pequeno. No P5 ficava o amarelão. Dependendo da gravidade do castigo, o indivíduo era mandado pela diretoria para lá sem retorno ao seu pavilhão de origem. Todas as celas de todos os andares eram moradias. Cabiam cerca de cinco presos em cada uma. População total = 1.722 presos

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Pavilhão 6 (P6) A rigor era o centro de segurança e disciplina do complexo. Ficava cercado por todos os pavilhões. Era o único composto por seis andares, sendo que só os dois últimos eram habitados por reeducandos. Era o pavilhão mais habitado por estrangeiros presos, principalmente, por crimes internacionais. Eles ficavam, na maioria das vezes, em celas do quinto andar. No sexto andar à direita ficavam: as celas de RCD (Regime de Cela Disciplinar), RO (Regime de Observação) e ADD (À Disposição da Diretoria). No quarto andar, ficavam a diretoria de educação, ao lado setor de central de correspondência. No mesmo andar ficavam as salas de aula, a sala de informática, a sala de datilografia e cursos extras, a sala de supletivo da igreja Universal e a central da laborterapia. No terceiro andar ficavam: o arquivo vivo, o expediente geral, a correspondência oficial, a sala de sindicância interna e por último a sala do diretor de disciplina e segurança. No segundo andar era situado: o arquivo morto, o esporte central (FIFA), Umbanda, judiciário central, a quadra de esporte e uma academia de musculação, o salão nobre, posto cultural central, a sala de informações da VEC (Vara de Execução Criminal) e a sala de diretoria de recursos humanos. E, por fim, no térreo ficavam: a cozinha inativa, a dispensa, as caldeiras, a lavanderia, a elétrica, a sala do rondante, dois corrós, a chefia, a carceragem e no portão de saída, uma mesa onde o funça controlava o trânsito com listas dos outros pavilhões. Era o único pavilhão que não tinha campo de futebol e menos populoso. População total = 166 presos Pavilhão 7 (P7) Foi construído para ser pavilhão de trabalho, embora não oferecesse serviço para todos reeducandos. O P7 possuía um amplo pátio externo. Atrás dele estava situado um campo de futebol de terra. O prédio era composto de cinco andares, sendo que todos os

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andares serviam de moradia. Em cada andar havia 45 celas do lado externo e 24 do lado interno, com a média de três presos por cela. Todas as celas 22-I eram celas de boieiros e encarregados do andar. Rodeando o pátio interno existiam os seguintes setores: a produção, a chefia e sala do diretor, a elétrica, a carceragem, a igreja Universal do Reino de Deus, a escola, o setor de clipes, o silkscreen, o setor de obras, a laborterapia, o jumbo, a capela Católica, a judiciária, os banheiros para visitantes, a Assembléia de Deus, a Tenda da Mãe Ogun, a enfermaria, a lanchonete, a barbearia e no piso superior a academia de musculação para os presos. As celas que não eram registradas nos setores de trabalho fechavam às 16h. As registradas fechavam às 19h. População = 973 presos. Pavilhão 8 (P8) Em princípio era destinado aos presos reincidentes. Era também o pavilhão com a maior extensão, com um campo de futebol de terra, tamanho oficial e uma quadra de futsal. O prédio era composto de cinco andares, sendo em cada andar 44 celas do lado externo e 30 do lado interno. Todas serviam de moradia. Com a média de cinco presos nas celas do lado externo e dois presos nas celas do lado interno. Na entrada do pavilhão, dentro da gaiola ao lado esquerdo, ficava uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, com flores artificiais e uma bíblia nos pés da santa. Seguindo à esquerda estava a carceragem. Em seguida constituindo o pátio interno existiam a chefia, a igreja Assembléia de Deus, a cantina, o setor de rap e artes, a barbearia, a serralharia, a hidráulica e manutenção, a marcenaria e artesanato, o setor do lixo, o jumbo, o posto cultural, a laborterapia, a igreja pentecostal Deus é Amor, a igreja Universal do Reino de Deus, a Tenda de Umbanda, a escola, a igreja Católica, a cabine de som, a sorveteria, o judiciário, o setor de lixo reciclado, a enfermaria, a elétrica e a academia de musculação em cima da marquise. População total = 1.489 presos

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Pavilhão 9 (P9) Assim como P8, o P9 era denominado fundão. Os dois pavilhões eram os últimos do complexo. Teoricamente, o P9 era destinado para presos primários. No amplo pátio externo existiam um campo de terra, semi-oficial e uma quadra de futsal. Certo dia fui conhecer o pavilhão, que recentemente havia passado por uma reforma. Mesmo com uma “boa aparência”, quando entrei nas dependências senti um calafrio, era o mais sinistro, tenebroso e de clima tensão pairava. Não conseguia esconder as marcas do massacre ocorrido em outubro de 1992, quando 111 presos foram executados pela Tropa de Choque da Policia Militar, comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães. O pátio interno era constituído pela chefia, a diretoria, a cabine de som, a igreja Universal do Reino de Deus, a escola, o jumbo, a manutenção, a produção, o laborterapia, a barbearia, o setor de cadernos, a escada de acesso a academia de musculação, a igreja Católica, a judiciária, a igreja Batista, a Tenda de Umbanda, a lanchonete, os banheiros dos visitantes, a enfermaria e a elétrica. O prédio era composto por cinco andares, sendo que todos serviam de moradias, em cada piso existiam 46 celas do lado externo e 52 do lado interno, com a média de 12 presos nas celas do lado externo e dois presos nas internas. Em todos os pavilhões os barracos internos eram menores os do que as celas do lado externo. População total = 2.035 presos

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“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS”

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– CAPITULO 6 – Segunda sem lei

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s boieiros, ao pagar o café da manhã, já estavam estressados no maior murmurinho na galeria. Nem os funças queriam subir o prédio para soltar os presos para tomar sol. Pelo andar da carruagem, a chapa iria esquentar. Quando todo mundo estava de tênis, calça comprida, logo cedo, sabia que tinha maldade no ar. Mesmo assim peguei meu walkman e liguei bem alto. E, alheio ao quarto mundo, fui dar um pião para ver qual era o buxixo. De cara, vi um monte de exum na rua dez trocando idéia já com os nervos exaltadíssimos. Nem tomei conhecimento, virei e continuei minha caminhada. A bruxa estava solta. No quarto andar também havia uma confusão generalizada. Corria um boato que um maluco era talarico. No terceiro andar, o clima era totalmente tumultuado. Tinha um sequestrado sendo espancado, porque fumou o maldito crack e não tinha como pagar. Vi uma pá de sangue-bom virar nóia, perder a moral e o caráter por causa desse vício devastador. Depois que perdeu o conceito já era. O cara virava lagarto para não morrer. No walkman, Bob Marley tocava I shot the sheriff. Continuei descendo, no segundo andar avistei um maluco apenas de cuecas e correntinha no pulso caído ao chão. O indivíduo agonizava numa poça de sangue, com o crânio dividido e uma faca cravada nas costas na altura dos pulmões. Vixe! Ficou feio na foto! O fedor de sangue fresco era repugnante! Enquanto não é com a gente ou com um dos nossos, nada vimos. Assim não somos vistos e permanecemos incógnitos à si-

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tuação. Aquela era uma das cenas mais violentas que presenciei desde que fui preso. Segui em frente, virei à esquerda enquanto os predadores certificaram-se do serviço. O maluco levou facada até na sola do pé. Quando terminei de descer as escadas, pisei na gaiola de alimentação. Mesmo com o som no último volume, consegui ouvir em alto tom o grito de misericórdia da caça e ao mesmo tempo o do caçador: “Já era! Já era! Já era”. Estarrecido, nem olhei para trás. Continuei indo para o campo de futebol. Minutos depois, o enfermeiro passou correndo, empurrando o carrinho-ambulância e nele estava o cadáver. Pensei: “como pode estar ali um ser humano morto. Que frieza! O coração do ser humano ta na sola do pé. Meu Deus! Tenho medo de me tornar um homem desprovido de sentimentos. A mim parece que todos são assim, porque se acostumaram ao cotidiano violento”. Enquanto isso, em vez de assistir uma partida de futebol, vi o Terror dar um rodo e um tapa na orelha do Bino que caiu, tentou levantar, mas levou um chute no meio do peito e caiu novamente. Foi aí que a turma do deixa - disso correu para separar. Os soldados do Bino chegaram bravos, mas se o tal patrão do tráfico apanhou, imagina o que poderia acontecer com os subordinados, apesar da massa ter chegado a um consenso de que a briga no campo findava dentro das quatro linhas. Contudo, na beira do terrão eu assistia mó pandemônio. Com certeza a discussão iria ser resolvida dentro do pavilhão e, provavelmente, terminaria em facada. Bino morava no quarto andar e o Terror no terceiro. Se essa fita não fosse bem conversada, engrossaria muito mais o caldo, podendo até pôr um andar contra o outro, pois os dois eram considerados e o Bino era o pai do mel. Em todos os andares estava tendo briga. No dia anterior, após terminar a visita no P9, cerca de 500 homens endiabrados pertencentes à Seita Satânica (SS), queriam bater de frente com a faxina do terceiro andar. Eles estavam vestidos e calçados de preto, prontos para agraciar Satanás com um banho sanguíneo, só que não contavam que a faxina seria apoiada pelas faxinas

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dos outros pavilhões e a maioria da população carcerária. A confusão foi geral, porque também tinha faxineiro de preto e ninguém sabia ao certo quem era quem. De qualquer maneira, eu nunca tinha visto alguém desafiar a temida faxina do P9, com seus mais de 600 faxineiros. O bagulho estava louco e com certeza a rivalidade não iria acabar assim. À beira do campo de futebol eu observava os fuzis encostados na guarita. Os PMs, de braços cruzados, assistiam à nossa autodestruição com sorriso no rosto. Senti uma angústia tão grande que minha cabeça chegou a doer. Acabou o lado da fita do Bob Marley, virei e saí andando curtindo Racionais Mc’s, Mundo Mágico de Oz. No campo tentavam pôr os pingos nos is. O PM continuava rindo, agora apoiado na muretinha da muralha. Resolvi voltar para o mundo interno do meu xadrez. Subindo ao segundo andar avistei os faxineiros. Eles iam dar início à lavagem do sangue, fazendo a limpeza dos pedaços de carne humana e dos vestígios de massa craniana. Mesmo após tudo bem lavado, o odor do sangue impregnava todo o ambiente. Mais adiante soube de um fato que me deixou ainda mais chocado. Um diabinho da SS decepou alguns dedos do morto – verdadeiro ato de crueldade - para executar um ritual macabro. Pensei que essas cenas só aconteciam em filmes de terror. Meu Deus! Aquele lugar era o verdadeiro inferno! Repugnado, segui subindo as escadarias do prédio, pensando em minha liberdade, minha vida, minha filha, meus pais, meus familiares. Invoquei Jesus Cristo, pedindo paz, força, sabedoria e proteção. O walkman tocava minha trilha sonora: “Queria que Deus ouvisse a minha voz e transformasse aqui no mundo mágico de Oz”. Firmei os passos e fui parar na minha cela, a 8529-I. As tretas continuavam sendo debatidas. Os ânimos estavam à bilhão, mas a fita do terceiro andar com muitíssimo custo e muita idéia foi apaziguada. O maluco não tinha como pagar a droga consumida e para não morrer ficou a disposição dos bandidos. Virou laranja!

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O quarto andar já estava calmo. O talarico foi para o P5 (pavilhão de seguro), porém levou uns tapas na cara e umas facadas na jaca. Teve sorte, pois a sentença era a morte! Cheguei a minha cela, que fica bem próxima à rua dez. Estava o maior alvoroço. A bruxa estava solta naquele dia. Liguei a TV, dei um pião no seletor de canais. Não consegui sintonizar nada melhor do que Tom & Jerry. Fiz um suco artificial de abacaxi, voltei à fita para novamente ouvir Racionais Mc’s dessa vez, a música A fórmula mágica da paz. Dei um gole no suco. Na TV, nada interessante. Vi o Jerry dar umas pancadas no Tom. Abri a porta do xadrez para dar uma olhada rápida no movimento do corredor e vi um rapaz que conhecia de vista que vivia fazendo uns corres loucos para cima e para baixo a fim de levantar uma grana para sustentar o maldito vício. As más línguas diziam que era porque ele tinha roubado outro preso. Rato de mocó meu! Mas, independentemente de qualquer coisa, ele tinha um conceito, pois uma pá de exu estava do lado dele e contra a faxina. A tensão do debate foi tanta, que ele não suportou a pressão psicológica e confessou o erro. Quebrou as pernas dos parceiros que deram apoio e colocaram as próprias vidas em risco. Quando os faxineiros ganharam o debate, todos viraram contra ele. Para amenizar com a faxina seus companheiros disseram: “Pode deixar que nós tomamos conta disso!” Os faxineiros guardaram as facas, cruzaram os braços e juntaram-se aos demais expectadores. E, para evitar guerra com os faxinas, os próprios companheiros, deram covardemente quase que ao mesmo tempo, dezenas de facadas no peito, na barriga, na cara, nas costas, nas pernas e até na sola dos pés. Novamente os integrantes da SS entraram em cena para a coleta de órgãos humanos. A neurose dos companheiros revoltados era tamanha, que um deles com uma faca com cabo branco de açougue arrancou o coração do traidor e mordeu. O sangue escorria pelos cantos da boca. Parecia que o coração ainda pulsava. Enquanto isso, outro homem endemoninhado arrancava um dos olhos do esfaqueado. Dificilmen-

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te o IML (Instituto Médico Legal) conseguiria decifrar quantas facadas esse indivíduo tomou. Enquanto o olho esquerdo do morto era colocado em um vidrinho, ouvimos um grito: “Já era!”. Horrorizado, dei uma olhada, pensei comigo: “Já era mesmo!” Quando cheguei ao Carandiru, as regras já existiam e mesmo que não concordasse com elas não poderia ir contra. Eu não era melhor do que ninguém para inventar regras novas na cidade velha. Tive que fazer a minha correria e comprar uma cela no valor de R$ 600 para morar. A pior coisa era depender dos outros. Quando menos esperava, tacavam na cara. A maioria dos presos era interesseira e só ajudava visando algo em troca. Além disso, eu tinha visita íntima e era raridade alguém fazer o sacrifício de sair do seu conforto para andar o dia inteiro a fim de que o outro tivesse algum momento de prazer. Quem não tinha visitas intimas invejava quem as tinha. Sorte daquele que recebe visitas, já que a maioria dos presos era abandonada pelas famílias. Por isso decidi comprar a cela 529-I. Como o imóvel era valorizado no Carandiru! Será por que estava situado numa região central? Ou será por que algumas celas tinham vistas para o metrô? Ou por que outras tinham vista para o Center Norte? De algumas celas dava até para ver o movimento do mundão. Transeuntes em seus carros, a linha azul do metrô. Até a Avenida Paulista, eu conseguia avistar. O barato era louco. Parecia uma miragem: estava perto e ao mesmo tempo tão longe. Nos finais de tarde, os presos que exerciam a função de carteiro entregavam as correspondências nas celas. Muitas vezes, as cartas eram passaportes para grandes emoções. Serviam até mesmo como uma visita, nos fazia sair daquele mundinho de prisão, tristeza, reclusão social e nos trazia alegria de ter informações boas de quem estava do outro lado da muralha. Certo dia recebi uma carta que não trazia uma boa notícia. Meu irmão Bad escreveu dizendo que o Adhemar, um conhecido nosso, havia feito um assalto. Houve troca de tiros e ele foi alvejado. O mano perdeu os movimentos das pernas e passou a viver em uma cadeira de rodas. Pensei na hora: “olha as

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conseqüências do crime! Agora só Jesus pode fazê-lo andar, agora só um milagre!” É uma grande virtude enxergar um palmo além do nariz. Comecei a perceber coisas que me deixaram desapontado. Vi muita gente morrendo por causa de ninharia. Presenciei atos banais fruto de desamor, falta de humanidade e muita opressão. Coisas que poderiam ser resolvidas numa conversa amigável. Mas o Carandiru era a terra de ninguém, onde só podíamos contar com Deus. A cegueira espiritual de muitos e suas mentes emprestadas ao Diabo agiam de forma tão espantosa que contando fica difícil alguém imaginar. Na Casa de Detenção as mentes eram oficinas da maldade. Certa vez vi um cara sendo vítima de uma roubadinha. Ele foi extorquido e violentado. Na cadeia não vale nada o ditado antes um covarde vivo, do que um herói morto. É melhor ser um homem morto do que a palavra não valer nada. A dignidade e a moral valiam tanto quanto a vida. Porém vi pouquíssimos presos lutando por liberdade. A mente havia atrofiado, o corpo e a alma estavam presos no quarto mundo. É incrível a capacidade que um ser humano tem de se conformar em praticar o mal. Entender a prisão é muito complexo, cada qual interpreta ao seu modo. Éramos testados psicologicamente em todos os momentos. Vivíamos em conflito interno e a briga entre o bem e o mal era travada diariamente. Só os fortes resistiriam. O complexo penitenciário era formado por famílias, ou seja, grupos de aliados e parceiros de uma mesma região ou não. Eram unidos em qualquer situação. A maior família era a da Zona Leste. Eu nunca me envolvi com elas, sempre trilhei minha caminhada sozinho, porque sempre corri pelo certo, não caguetei ninguém, nunca dei a bunda na cadeia e se eu não puder adiantar, jamais vou atrasar, porque acredito 100% na lei da causa e efeito. Os meses foram passando: mais um Natal, mais um Ano Novo, mais um Carnaval. Quatro aniversários perdidos. Quatro anos de neurose e sofrimento. Só Deus para saber se eu sairia vivo. Mesmo com todos os contratempos, fui convivendo, aprendendo

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e sobrevivendo no ninho de cascavéis. Com muito jogo de cintura, tentava me esquivar dos atrasalados. Contudo, se nem Jesus Cristo que foi o único homem perfeito do mundo, conseguiu agradar a todos, imaginem eu, um mero mortal. Nunca conseguiria. Para passar o tempo eu fazia desenhos artesanais. Uma espécie de papel de carta confeccionado com diversos desenhos coloridos, purpurinados, com frases românticas em letras manuscritas. Vendia por um maço de Hollywood (cigarro era a moeda da cadeia). Vendia aproximadamente 30 desenhos por dia. No final do mês eu tirava cerca de R$ 400 e ajudava a minha família. Mas sempre tinha alguém para testar a fé. Certo dia, um malandrão quis montar uma roubadinha em cima de mim para tomar minha cela. Então, numa segunda-feira, que pelo resto de minha vida ficará em minha memória, fui ao barraco de um traficante fazer a cobrança. Um dos indivíduos que morava com ele havia comprado 30 desenhos. Já passavam de duas semanas e ele não me pagava e nem dava explicação para o atraso. Só podia estar me tirando como otário. Quando entrei na cela, tinha um montão de gente trocando idéia, cheirando farinha e fumando mesclado, mó fumaceira. Nesse instante toda a atenção se voltou para mim. Educadamente pedi licença, saudei a todos com a mão e chamei o tal fulano de canto para saber o que estava pegando. O maluco, na maior arrogância e com a voz alterada, chamou a atenção de todos no barraco gritando: “Então maluco, essa é hora de vim me cobrar? Estava na maior idéia com meus aliados. Sem contar que 30 moedas pra mim é merreca, é mixaria.” “Só vim aqui te cobrar porque faz semanas que você disse que iria me pagar e não pagou. Não me deu nenhuma satisfação. E a sua palavra não vale nada?” Nessa hora todos levantaram. Revoltado, o traficante ordenou que um dos presos travasse a porta por dentro da cela. O malandrão, gesticulando muito e falando gíria, sacou um cabo branco da cintura e comprou a treta. O tal traficante tinha diver-

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sos soldados ao seu comando que o defendia com a própria vida, só sei que a chapa esquentou! O calor psicológico não me intimidou. Não demonstrei fraqueza para o bolo podre. Além disso, eu estava certo. Sabia bem como proceder e conhecia a ética do crime. Poderia até acontecer uma covardia que custasse a minha vida. Entretanto, na continuação, sei que os parceiros iriam cobrar. Os manos estavam ligados que eu não dava mancada. As vozes foram se alterando de ambos os lados. A discussão foi tomada pelo nervosismo. Queriam passar o errado por certo e eu não admitia. Batia de frente dizendo: “Só quero o que é meu. Se vocês me matarem, vão matar um sujeito homem e que tá certo” Irredutível, o traficante disse que o malandrão não iria me pagar porque eu não soube cobrar. Sem contar que não acreditaram em mim. Disseram que se eu corresse atrás do prejuízo, me mandariam pro amarelão, no P5, e ainda ficariam com a minha cela. Indignado com a situação, tentei reverter a meu favor. Era como um jogo de xadrez, ataque e defesa. E, naquele instante, meu melhor lance foi recuar um pouco para retornar com um contra-ataque fulminante. Xeque! Saí dizendo que 30 moedas não me deixariam nem mais rico e nem mais pobre. Eles me subestimaram e me mandaram sair andando. Saí da cela atacado. Subi correndo as escadas. Fui parar na faxina do quinto andar. Já cheguei desabafando para o encarregado. A faxina é o coração da cadeia. Todos os problemas, de modo geral, eram discutidos por ela, inclusive as sentenças de morte também eram decididas lá. Enquanto eu explicava o fato para o encarregado chegou um mano que me conhecia da penitenciária de Presidente Bernardes. O mano era super respeitado no crime, devido seus 15 anos de caminhada limpa dentro do sistema. Eu estava cumprindo quase quatro anos e sempre tive meu conceito. Jamais admitiria que uns pés de breque tirassem minha moral. Liguei o ocorrido para o mano também e disse que estava disposto a duelar com o malandrão que queria me tirar.

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“Demorô! Se você estiver certo a gente tá lado a lado, correndo com você. Só não pode quebrar nossas pernas!” “De jeito nenhum rapaz. Tô certo. Disposição é mato, vô pro arrebento.” Nessa hora meu coração ficou apertado. Pensei: “Caramba. Sinto que estou na idade medieval, igual um gladiador preste a duelar na Rua 10, a arena da detenção”. A ajuda quase sempre vem de onde a gente menos espera. Nessa fita fui armado por uns manos do barraco de frente ao meu. Me deram um facão de aço confeccionado na cadeia e ainda disseram que se tivesse covardia eles entrariam na treta. Era nóis na fita! Estava transtornado naquela hora, nem eu mesmo me reconhecia. Era matar ou morrer. Minha fisionomia estava mudada. Eu suava. Meus batimentos cardíacos estavam à milhão, igual bateria de escola de samba. Fiz um juramento para mim mesmo, que custasse o que custasse, iria sobreviver. Mesmo diante daquele clima tão tenso, embaraçoso e exaustivo clamei interiormente pelo Senhor dos Exércitos. Senti então minha alma ficar serena, pronta para defender a minha vida a qualquer custo, assim como minha moral. Então meu instinto guerreiro ficou pronto para o combate. A fé é imprescindível nessas horas. A sorte mudou de lado. Era minha vez de surpreender os inimigos. Eles não imaginavam que depois de tudo, eu ainda bateria de frente. Os atrasalados foram requisitados na faxina do quinto andar, que era a nave central de todos os debates. Quando chegaram na gaiola do andar, notaram um movimento diferente. Perceberam uma pá de caras de canto, com olhares sinistros, volume na cinta e com semblantes preparados para a guerra. Ficaram perplexos quando me viram. A cela estava abarrotada de presos e o encarregado pediu para eu dizer o que havia acontecido. Repeti o ocorrido na presença de todos os bandidos. Em seguida, como num júri, ouvimos a versão do malandrão. Sempre eram ouvidos os dois lados de qualquer questão. Ao tentar se justificar, dizendo que eu não

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soube fazer a cobrança, o malandrão foi Imediatamente interrompido e os vários bandidos afirmaram: “Quem deve é a cara pagar! Nunca vimos o mano aqui metido em confusão, o que não é seu caso!” Incisivo, o encarregado concluiu que o malandrão estava errado e que não adiantaria bater o pé. As evidências eram notórias. Deu o prazo até o outro dia às 12h para ele me pagar o que devia. Todos deram a palavra de homem e bruscamente o encarregado do setor da faxina finalizou dizendo: “Já era manos, já era!” Senti um alívio enorme. Interiormente dei glória a Deus pela vitória. A justiça foi feita. Agora tinha que ser cada dia mais sagaz para superar o limite entre a vida e a morte. Nesse momento cumprimentei apertando a mão de todos os bandidos, agradecendo também pela sensatez. Aquela experiência somou em mais uma página da minha vida, que graças a Deus teve um final feliz. Minha mãe costuma sempre dizer que depois da tempestade vem a bonança. Acredito neste ditado. Uma semana após esse infortúnio, minha pena foi reduzida. Ganhei um beneficio de apelação no total de nove anos de reclusão, apesar das falhas do processo serem suficientes para minha absolvição. Minha pena que era de 23 anos foi reduzida para 14,5 anos de reclusão no regime fechado. Enquanto não vinha a minha liberdade, a prioridade era sobreviver naquele lugar com a certeza de que Deus me daria o livramento.

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– CAPÍTULO 7 – Campo de concentração

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uinta-feira, 15 de fevereiro de 2.000. Por volta das 6h da manhã acordamos assustados com as pancadas do funça no guichê, gritando: “A contagem. Óia a contagem.” Permaneceu batendo no guichê até que a luz fosse acesa. Ele nos contou e foi contando de cela em cela. Estranhamos, pois não era praxe contagem neste horário. O funça ainda deu uma letra, só que não captamos. Ele disse: “Guardem a sacola de pães. Vocês vão precisar!” Ainda estava escuro. Voltamos a dormir. Porém menos de uma hora depois o Careca levantou gritando: “Óia a Tropa de Choque. Óia a Choque mano!” Levantamos. Subimos todos na jega de cima para olhar pela ventana e ver o que estava pegando. Nisso, vimos a Choque a postos na Divinéia com os seus cães latindo, estilo soldadinho de chumbo. Estavam armados com metralhadoras, fuzis, escudos, capacetes e alguns até com colete, prontos para embocar. Mais que depressa começamos a desmontar os quietos e tirar os quadros da parede, principalmente os do Malcom X, dos Racionais Mc’s e por fim a foto do Caco Barcellos com o Dexter. Tiramos todas as nossas coisas para que os policiais não destruíssem. Da última vez, zuaram tudo! Jogaram óleo e pó de café em nossas roupas. Fizeram com que ficássemos nus e ajoelhados com as mãos na nuca por mais de uma hora. Os cachorros treinados latiam, babavam e pareciam loucos para estraçalharem ladrão. Essas terríveis experiências deixam muitas seqüelas. Co-

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nheci alguns sobreviventes que ficaram traumatizados devido ao episódio que assistiram em outubro de 1.992, quando 111 presos foram assassinados dentro do Carandiru. A tropa de choque banhou de sangue as galerias e escadarias do P9. Relutamos, mas fomos coagidos. O policial ordenou para que tirássemos nossas roupas. Olhamos com a maior cara de desprezo e Dexter, irônico, perguntou: “É agora que a gente vai sair?”. Os PMs da tropa de choque responderam: “ “Vai Zé, vai Zé!” Com desdém tiramos nossas bermudas, ficamos só de cuecas e de joelhos olhamos para a bolinha dos olhos do policial, que esbravejou apontando a arma. “De costas! No canto da cela de joelhos! Sai logo, seu filho da puta! Vai Zé, vai logo!” Enquanto isso, na cela 502-I, um detento chamado Gil se revoltou com a atitude da tropa e em voz alta chamou a atenção de todos: “Cu, não! Me respeita! Sô homem! Quer me humilhar? Me humilhar vocês não vão! Aí todo mundo, tão querendo me zuar! Aí todo mundo.” O grito ecoou na galeria. Algum tempo depois, vimos da ventana que Gil vestia apenas cueca. Ele estava sendo levado para a Divinéia, com as mãos para trás. Estava sendo agredido covardemente por funcionários da Casa de Detenção e por PMs da tropa de choque. Gil, na neurose, continuou exigindo seus direitos e pedindo respeito. Mas mesmo assim foi de bonde para o Anexo de Taubaté, no interior paulista.

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– CAPÍTULO 8 – Inocente ou não

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rocávamos idéias S.R., o Z, o Bebeto e eu. Falávamos de nossas famílias, da dificuldade em sair da vida do crime, assuntos pertinentes a música e quando ainda falávamos, no rádio tocou a música Esquinas, do Djavan. Ela nos fez relembrar os bons momentos que passamos quando éramos felizes e não sabíamos. Estávamos empolgados com a conversa quando de repente ouvimos baterem na porta da cela: “Tum, Tum, Tum”. Com passos cuidadosos o maluco entrou no barraco. Nesse instante toda atenção se voltou para ele. Foi aí que eu quis saber: “Liga mano, qual é a fita?” Houve silêncio por alguns segundos. O rosto do rapaz não disfarçava o nervosismo e até certo medo. Depois, com sotaque arrastado, ele disse: “É que eu sou do Sul do país e lá ouvia a música de vocês. Um mano ligou que vocês moravam aqui. Nem acreditei. Todos são do grupo?” “Não! Só eu e o Dexter”, respondi. “Quem é o Dexter?” “Ele tá tirando um descanso. Faz um favor, volta na seqüência que você conhecerá o parceiro, certo?” “Ta bom! - Depois eu volto”, respondeu o sulista. Assim que ele saiu comentamos que o cara era humilde e talvez nem fosse do crime. “Ah, mas quem vê cara não vê coração”, retrucou Bebeto. Não passou muito tempo e o sulista estava de volta. Olhou pelo guichê e meio desconfiado abriu a porta. Entrou novamen-

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te no xadrez sem pedir licença. Ficou alguns segundos parado, só observando. Todos nós ficamos impressionados com o rápido retorno e a ansiedade do rapaz em conhecer o 509-E. Sugerimos que ele sentasse. O maluco sentou no banco de concreto e apoiou o cotovelo direito na mesa também de concreto e calado continuou observando. Foi então que puxei assunto: “Qual o seu nome?” “Jairo. Jairo dos Santos, mas me chamam de Catarina.” “Por que você tá preso, Jairo?” “Num sô do crime não. É que eu vim do Sul para trabalhar aqui e quando cheguei na rodoviária do Tietê fui roubado.” “Mas porque você veio pra trampar em São Paulo?” “Eu morava em Araranguá, em Santa Catarina, e era pescador. Mas não tava dando nem pro sustento. Minha família é pobre. Sou casado e tenho um filho de nove anos. Meus pais trabalham na lavoura de arroz. Eu assistia na televisão que São Paulo era um bom lugar de ganhar dinheiro, que tinha muitas empresas, bastante emprego e iludido decidi arriscar tudo em busca de uma vida melhor. Juntei tudo o que tinha, dava para comprar uma passagem de vinda e dormir duas noites numa pensão.” “Mas me diga, por que você foi preso?” “Quando eu cheguei em São Paulo e desci na rodoviária do Tietê dois homens me abordaram dizendo ser policiais. Eles roubaram tudo o que eu tinha: dinheiro, documentos, e até a esperança. Desnorteado, sem conhecer ninguém, num lugar estranho, fui andando. As pessoas não me davam atenção e muito menos queriam saber o que aconteceu comigo. Minha cabeça rodopiou que nem um pião. Fiquei todo confuso. Lembro como se fosse hoje, fazia muito frio e meu estômago vazio reclamava. São Paulo era totalmente diferente do que vi na TV. Na televisão via as pessoas calorosas e amistosas. Senti na pele que os cidadãos daqui eram iguais a temperatura.” “Cheguei até a pedir algo para comer nos botecos que encontrava pelo caminho, mas queriam me pagar apenas pinga. Entre as pessoas tiveram exceções uma ou outra me deu um pedaço de

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pão, um prato de comida. A grande maioria me ignorava, tinha medo por causa da minha aparência e fisionomia. Continuei andando, diversos porquês confundiam meu raciocínio e perambulando pelas ruas fui parar nas escadarias da catedral da Igreja da Sé”. “Eram umas 17h. As portas da Igreja estavam abertas. Entrei, rezei, deixei tudo na mão de Deus para ser ajudado e abençoado no meu dia a dia. Pedi também para voltar pra Santa Catarina. Depois saí sem destino, caminhei uns 50 metros. Fui abordado por um casal que distribuía panfletos de evangelização da Assembléia de Deus. Começamos a conversar sobre a situação terrível em que me encontrava. Pediram para eu ter fé, que Cristo é a salvação e ele iria providenciar minha vitória.” “Perguntaram se eu já tinha me alimentado. Respondi que não. Eles disseram que não me acolheriam porque não tinham condições, pois a família deles era muito grande. Mesmo assim me convidaram para jantar. Fomos pro ponto de ônibus, pegamos o Vila Penteado. O casal pagou minha passagem. No ônibus eu dizia que estava admirado com a cidade, por que comparada com a minha cidadela, os prédios aqui são bem maiores que os de lá, eles riam muito da forma deu conversar, muito ligeiro. Explicaram que eu estava na terceira maior metrópole do mundo. Se uma pessoa é atropelada os outros passam por cima. Ninguém ajuda ninguém. Disseram que aqui a pessoa tem dois caminhos. Ou trabalha para sobreviver ou cai pro assalto. Principalmente forasteiros iludidos pela cidade grande. Disseram também que muitos se davam bem, outros retornavam para a cidadezinha de onde saíram ou viravam mendigos. Comentaram que com o meu jeito meio sonso, era capaz que os outros se aproveitassem de mim”. Os evangélicos ainda orientaram o catarinense: “Você tem que ser mais esperto! Não converse com qualquer um, tá? Por que têm pessoas boas, mais a maioria tem maldade, pode até te pôr na vida do crime, te iludir com drogas. Essas foram as palavras daquele senhor crente e de bom coração”.

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“Ao descer do ônibus, caminhamos uns cinco minutos até a casa deles. Era um sobrado modesto, de cor amarela com janelas e portões de alumínio, não tinha garagem. Havia uma pequena varanda, um tanque de lavar roupas no canto esquerdo, um varalzinho com uma toalha pendurada. Fiquei na varanda. Eles entraram pela cozinha. Eu queria ficar ali mesmo, mas insistiram para que entrasse. Então, fiquei sentado na cozinha enquanto a mulher fazia a comida e o marido dela tomava banho. Depois que jantamos, o irmão me levou na casa do pastor, que ficou boquiaberto e me perguntou por que eu tinha saído da minha cidade”. “Depois de nossa conversa o pastor se propôs a me ajudar provisoriamente. Pediu para o seu filho me levar para a creche deles. Chegando lá me apresentaram a todos. Mostraram onde eu iria ficar. Fiz minha cama no chão, me arrumaram um colchão igual ao nosso aqui, rezei junto com eles, conversamos sobre meu caso e fui dormir”. “Ao amanhecer, enquanto esperava fazer o café na cozinha da creche a mulher do pastor chegou com uns papéis nas mãos, perguntando se eu sabia desenhar. Eu disse que mais ou menos. Ela me mostrou umas cinco folhas com desenhos infantis e perguntou se eu conseguiria desenhar nas paredes e nos muros. Respondi que sim. Desenhei nas paredes externas e no portão da creche. Botei o Pato Donald e o Patolino na entrada no portãozinho, espalhei os outros desenhos pela creche toda. Levei dois dias para terminar tudo. Como pagamento, recebi comida e estadia.” “Noutro dia, ao amanhecer, pedi um copo de café para uma mulher que trabalhava na cozinha da creche e ela respondeu com estupidez que não era minha empregada. Nem levei em consideração. Virei as costas e saí. Fui terminar as pinturas e voltei ao meio-dia para o almoço. Nessa hora ela perguntou o que eu estava fazendo na cozinha. A mulher me pareceu indignada e disse que era melhor eu voltar para minha terra. Mesmo assim, serviu o almoço.

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“Chorei bastante quando lembrei do que tinha ouvido. A cozinheira tava certa, eu tinha que voltar pra minha cidade mesmo. Ao cair da noite tomei banho e desci para rua, era mais ou menos 20h. Botei um cigarro no dedo e saí fumando ladeira abaixo, igual a um louco. Após uns 500 metros, encontrei um mendigo que me pediu um cigarro. Dei um pra ele e me sentei ao seu lado. Aproveitei e tomei um gole da cachaça que ele carregava. Triste comecei a desabafar. A calçada serviu como um divã e o mendigo como um conselheiro, diga-se de passagem, do Diabo. Neste momento pensei que éramos iguais, ele era um mendigo, mas era um mendigo consciente. Sabia o que tava falando. “O problema do mendigo era a esposa que o deixou. Nunca me esqueço ele levou a garrafa de pinga à boca, como se ela fosse um microfone e disse: ‘se amar fosse pecado, eu jamais seria perdoado, porque estou amando demais’. Ele era um poeta. Sabia conversar, apesar de ser mendigo. Em nossa conversa ele me convenceu que o único jeito era assaltar, porque ninguém dava nada pra ninguém em São Paulo. Agradeci pelo gole de cachaça, me despedi e saí meio tonto, cambaleando, apoiei no muro com a mão canhota, comecei a chorar pensando em minha mãe, meus irmãos e em tudo que havia deixado para trás.” “E pensando, falei com Deus. Pedi para eu voltar para meu estado. Eu tava de bermuda, chinelos e camiseta. Resolvi voltar até o mendigo, tomei outro gole e disse pra ele agora eu vou mesmo... e fui.” “Parei num trevo. Minha cabeça doía muito. Nesse momento avistei um carro e percebi que era um táxi. Acenei. Ele parou. Abri a porta dianteira, sentei no banco do passageiro e disse ao taxista para tocar rumo á Santa Catarina. Ele pensou que era um bairro muito violento na zona Sul, mesmo assim continuou rodando. O taxista só foi perceber que eu estava bêbado quando avisei que ia mijar dentro do carro. E mijei. Ele reclamou e disse que ia parar o carro.” “Com a mão esquerda em baixo da camiseta simulei estar armado e disse que ele não iria parar o carro porque era um assal-

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to e eu queria ir para Florianópolis, em Santa Catarina. Em pânico, o velho taxista fez seu apelo: ‘Pelo amor de Deus, eu tenho 62 anos. Trabalho honestamente pra cuidar da minha família, meus filhos, minha mãe. Trabalho porque preciso. ’” “Na sequência, pedi que ele parasse o carro. Peguei o dinheiro, coloquei o taxista no porta-malas e assumi a direção. Dirigi sem saber. De vez em quando eu mexia na marcha e arranhava tudo e o coitado do taxista gritava do porta-malas para eu tomar cuidado para não bater o carro. E eu mandava calar a boca. Toquei sentido Limeira. Avistei uma barreira com várias viaturas, era uma blitz. Conclusão: os policiais me pararam. Ouviram o tiozinho no porta-malas em pânico. Aí o chicote estralou pro meu lado. Apanhei até umas horas, fiquei cheio de hematomas e ainda me quebraram um braço. Me confundiram com ladrões de uma quadrilha que roubava carros e levava para o Paraguai.” “O xadrez para onde fui levado estava superlotado. Nem sei como cabia tanta gente. Perguntei para o preso mais velho como é que funcionava o xadrez. Recebi as orientações de praxe. Eu não sabia, mas estava tudo pronto para uma fuga. Os manos serraram as grades e eu segurei a porta para passar os quatros manos. Nessa hora pensei na liberdade e não resisti, fui o quinto. Saí à milhão. Lá fora perguntei: E agora? Pra onde é que eu vou? Um mano de Santos sugeriu que eu fugisse com ele. Entrei dentro de um Santana quatro portas que tava estacionado com a chave no contato. Nem imaginava para onde tava indo. Depois de uns minutos chegamos a uma mansão. Ele tocou a campainha e se identificou pelo interfone. O portão abriu. Entramos e uma mulher loira nos recebeu. Tomamos um cafezinho na casa e descemos para a garagem, lá tinha um carro e quatro caras armados com pistolas 9 milímetros, 45 cromadas e fuzis. Os caras perguntaram quem eu era. O mano de Santos respondeu que eu era sangue bom e que estava dando uma força pra eu voltar para minha casa. “Enquanto eles conversavam, eu com medo olhava para as armas. O que eles falavam eu não estava nem ouvindo, muito menos entendendo. No outro dia a mulher do Santista foi ao

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banco pegar dinheiro para eu retornar para casa. Me levaram pra rodoviária, agradeci por tudo, comprei a passagem e voltei pra minha terra. Botei a cabeça no lugar e fui trabalhar de servente, de engraxate, vendi frutas, cervejas e refrigerante na praia. Passei num concurso da prefeitura do município de Balneário para trabalhar em serviços gerais. Fiquei um ano. Até que a mesma cachaça que nove anos atrás me trouxe pra cadeia, me prendeu! Estava num boteco, bebendo com uns amigos depois do expediente, arrumei uma confusão, fui parar na delegacia e constatou que eu era fugitivo da justiça, aí minha casa caiu! Por isso que o crime não compensa. Minha mulher vendeu a TV e daqui uns quinze dias ela vem me visitar.”

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“DEUS ESCREVE CERTO CERT O POR TORT ORTAS” LINHAS T ORT AS”

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– CAPÍTULO 9 – Conheci uma estrela

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ntardecer de inverno de agosto de 2.000. Uma beldade no auge da juventude voltava para casa após seu hobby: fazer compras no shopping acompanhada de uma amiga a bordo de seu Audi A3 prata. Por descuido, ela havia esquecido em casa o estojo de CDs. Sem opção sintonizou o rádio na FM para ouvir uma música que agradasse. Nesse momento a amiga disse: “Deixe aí na 105 porque vira-e-mexe toca um rap da carta, que você vai adorar!” “Ih! Rap? Aquela música que só fala de violência?” “Esse rap é diferente. É muito legal. Se você não gostar, a gente muda de estação, tá bom?” Assim que acabaram de falar, como se fosse planejado, o rap da tal carta tocou. “Amiga, amiga! Aumenta o volume. É essa a música!” Alô, alô amiga, como vai você? Senti saudades resolvi te escrever Espero que esta carta te encontre numa legal Com saúde, harmonia e tal Eu tô por aqui, na fé, na paz Na correria, adiantos e mais (Trecho do rap Saudades mil/ Dexter 509-E) A música fala de sentimentos, em especial da saudade. A melodia tocou fundo o coração daquela jovem, tirando toda má impressão que tinha do rap. No término da música, o locutor

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anunciou o nome do grupo. Mais que depressa pediu para que a Tatá, sua amiga, anotasse o nome, já que as duas desconheciam a existência dele. Seguiram o percurso na marginal Tietê sentido Castelo Branco, foi quando a jovem resolveu parar em shopping para comprar o CD do grupo 509-E. Quando pegaram o disco na mão, olharam para a capa e ficaram impressionadas com o realismo e acabaram deduzindo que era uma montagem para o marketing do produto. Tata, conhecendo bem a amiga, notou certo encantamento, algo assim meio anormal. Nesse instante deu um sorriso sarcástico e balançou a cabeça. Eufórica, ainda com o CD na mão, sorriso no rosto, a jovem dona do A-3 disse apontando para o cara do lado direito da capa “Ah! Ele não é lindo?” No mesmo instante se apressou para pagar o CD. Foram para o carro e seguiram rumo a Alphaville. Em poucos minutos estavam em casa, já era noite. Parou o carro na garagem e retirou do banco traseiro sua bolsa Louis Vuitton e várias sacolas com a ajuda de Taís. Caminharam para o quarto amplo. As sacolas foram jogadas pelo chão. Deitaram sobre a cama enorme, modelo king size. Retirou o CD da bolsa. Elogiou a qualidade do encarte e pôs no micro system para tocar. “Nossa! Não é montagem não! Os caras realmente estão presos naquela cadeia onde só tem ladrão de alta periculosidade, o Carandiru!” Em princípio a jovem sentiu certo receio, pois nada daquilo fazia parte da sua realidade, por ser uma pessoa de mente aberta seguiu o que seu coração mandava. Com o controle remoto na mão aumentou o volume do som e atenciosamente lia todo o conteúdo do encarte. Seu interesse aumentava a cada página. No seu modo de ver, aquele CD era um trabalho inusitado e ao mesmo tempo exótico. As fotos revelavam uma história de sofrimento, lição de vida. As lágrimas rolaram. O CD foi ouvido muitas vezes e a amiga não aguentava mais o repetição, muito menos comentar sobre o assunto. Por um momento se arrependeu de ter

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feito o comercial, porém achou que aquela euforia era passageira. Aturou a teimosia da amiga até a hora de dormir, a 1h30. Naquela noite, a jovem não dormiu bem. O sono foi interrompido várias vezes, em razão do universo que acabara de conhecer, mesmo que parcialmente. Acordou por volta do meio-dia, seu horário costumeiro e novamente foi perturbada pelo desejo de saber mais sobre o 509-E, em especial sobre um integrante da dupla. Lutou contra esta vontade, mas foi em vão. Existia uma força maior agindo. Teve a idéia de ligar na Casa de Detenção no intuito de conhecer os integrantes pessoalmente. Parou e refletiu para saber de que modo iria fazer esse contato. Resolveu ela mesma ligar, mas se identificou como assessora. No Carandiru, conseguiu falar somente com a secretária do diretor-geral na época, Maurício Guarnieri. Perguntou se o 509-E se encontrava detido na Casa e se poderia fazer uma visita ao grupo. A secretária foi gentil e disse que esse tipo de visita era meio burocrático, então orientou que ela pedisse uma autorização judicial e passou o telefone da Vara de Execuções Criminais de São Paulo com o nome do juiz responsável. A jovem tentou falar com o juiz, mas não teve êxito. O juiz Otávio Augusto Machado de Barros Filho estava em uma audiência. O secretário a aconselhou que passasse um fax solicitando a visita extra em caráter excepcional. Mesmo impaciente, seguiu como mandava o figurino. Enviou o fax descrevendo o motivo da solicitação e ficou aguardando o retorno ansiosamente. O juiz de direito retornou atenciosamente o fax depois de algumas horas, vetando a possibilidade de visita extra, pois temia pela segurança da visitante. No entanto, foi gentil passando o número do telefone da Sofia, empresária do 509-E. Deixou também à disposição o número do seu celular. O resultado não foi o esperado, mas ainda havia outras tentativas Os contratempos se tornaram estimulantes. Ligou para a Sofia, mas também não teve êxito. Tentou inúmeras vezes. O número havia mudado.

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Aguardou quatro dias e voltou a ligar para o juiz, mas ele foi categórico e descartou qualquer possibilidade de visita. Para não ser totalmente intransigente, disse à jovem que a cadeia não oferecia segurança. Passou os contatos da Sofia, a empresária do grupo, para que fosse assistir a um show do 509-E. Descontente com a notícia ligou de novo para a Casa de Detenção. Foi atendida pela secretária que estava bem-humorada e resolveu passar a ligação para o diretor de segurança e disciplina. Com intenção de ser atendida, foi logo se identificando. O diretor ficou tão surpreso com a ligação inusitada, que achou que era trote: “Nossa! Você sendo uma cantora consagrada, qual seu interesse com dois presidiários?” “Senhor Manoel, creio que o senhor desconhece, mas aí na Casa de Detenção existem dois rappers do grupo 509-E, de muita expressão e com a carreira em projeção nacional. Para sanar qualquer dúvida basta o senhor acessar a internet. Eu sou fascinada pela Black Music. Acredito que tenho uma grande proximidade musical com o grupo. Para falar a verdade eu não curtia rap por achar que incentivava a violência e era destinada a marginais. Um grande preconceito da minha parte. Hoje, através da música deles, consegui entender o intuito e o valor do rap. O outro fator é que aprendi admirar demais a força de vontade deles.” O Diretor ouviu atentamente e ficou espantado com a eloquência e sinceridade da jovem e sentiu-se constrangido pela displicência a respeito do 509-E. Mesmo diante do exposto não levou a idéia a sério. Desconfiado, prosseguiu o interrogatório: “Até agora não consigo acreditar que você é a Simony do Balão Mágico. Como você pode provar isso?” A cantora estava impaciente com todo aquele interrogatório, mas naquele momento não via outra opção a não ser convencêlo, porque ele era possivelmente o intermediário entre ela e o 509-E. Taxativa, sugeriu ao cético: “Como o senhor não conseguiu reconhecer minha voz, a úni-

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ca forma que vejo para provar que sou eu mesma, é cantando o trecho de uma música”. Com um timbre de voz inconfundível, cantarolou trechos da música Quando te vi. “Realmente você é uma cantora profissional, mas não me convenceu que é a Simony.” “Senhor Manoel, já que eu não lhe convenci, não posso mais tomar seu precioso tempo. Espero pelo menos contar com uma gentileza. Por favor. É possível o senhor anotar meu número de telefone e entregar para o 509-E?” Duas semanas após este episódio, Dexter e eu trombamos com o diretor de segurança e disciplina caminhando na radial, indo em direção ao P6. Ele nos parou imediatamente e pediu para irmos com urgência até sua sala. Ficamos preocupados e não demoramos muito tempo para chegar ao local. Ele nos contou toda a história com menosprezo e ainda duvidando da veracidade dos fatos. De qualquer forma foi sujeito homem e nos passou o número do telefone que ela deixou. A notícia nos surpreendeu. Ficamos lisonjeados. É muito gratificante ver o reconhecimento do nosso trabalho. Nós também chegamos a pensar que era uma brincadeira, mas analisamos: “Se fosse mentira porque ela deixaria o número do celular?” Chegamos à cela. Peguei meu telefone. Ligamos imediatamente para aquele número. Simony atendeu e foi pega de surpresa e nem acreditou, pois estávamos presos. Enquanto Dexter conversava com ela fiquei ansioso esperando, pensando no quê iria falar. Quando chegou minha vez meu coração disparou. Foi difícil conter a emoção. Quando criança, era um telespectador assíduo do Balão Mágico. Para mim aquele momento também foi mágico e de imensa satisfação. Assim que o Dexter me passou o telefone, me identifiquei e fiquei todo encabulado em meio aos elogios. O carisma dela foi cativante. Admirei a simplicidade, pois a televisão nos passa uma imagem bem diferente das pessoas. Ela disse ser fã do nosso trabalho e me parabenizou. Agradeci dizendo que estava lisonje-

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ado e em seguida retribui os elogios com cordialidade dizendo ser fã dela também, que aquela data seria inesquecível e o início de uma grande amizade. Disse também que a voz dela era muito bonita e inconfundível, que seria um enorme prazer conhecê-la pessoalmente e ter presença dela em um show do 509-E. Simony é extrovertida e por isso a conversa ficou descontraída. Papo vai, papo vem, percebemos muitas coisas em comum entre nós. Para finalizar a idéia ela propôs que mantivéssemos contato e que muito em breve nos encontraríamos pessoalmente. Respondi que seria uma honra e nos despedimos com egos enaltecidos. Continuamos trocando confidências pelo telefone. O tempo passou e restava saber se pessoalmente teríamos a mesma afinidade. O sofrimento me ensinou que os olhos são janelas da alma. Através deles captamos diversos sentimentos do ser humano. Devido ao entrosamento tudo levava a crer que éramos amigos há muitos anos. Sentia no coração que as trocas de idéias eram sinceras. Nos envolvemos de tal forma que falávamos abertamente de nossas vidas particulares. Na ocasião minha mina, a Sá, estava grávida de três meses. Simony estava livre, desimpedida e, pelo que eu podia perceber, muito carente. Com satisfação me tornei seu analista preferido e o telefone, o divã. Chegou o grande dia. Íamos fazer um show em 26 de agosto de 2.000 e, coincidentemente, Simony iria fazer uma tarde de autógrafos no Mc Donald´s do Carrefour da ponte do Limão. Ambos os compromissos eram na Zona Norte. O 509 - E conquistou a confiança das autoridades e judicialmente conseguiu a autorização para sair da Casa de Detenção para cumprir a agenda de shows. Nesse dia, Dexter e eu conseguimos convencer um agente penitenciário, o mesmo que fazia nossa escolta, para sairmos duas horas mais cedo. Por volta das 18h30, meu irmão Bad já estava aguardando no estacionamento dos funcionários. Quando pisei no estacionamento minha adrenalina já tava a milhão. Entrei no carro, cumprimentei Bad com um aperto de mão, e sentei no banco traseiro. Assim que o Dexter e o agente peniten-

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ciário entraram e bateram as portas, meu irmão deu a partida. Estava muito ansioso, procurei controlar as emoções. Nesse instante, abaixei o vidro para sentir a brisa no meu rosto. Minutos depois chegamos ao tão esperado estacionamento do Carrefour da ponte do Limão, deixamos o carro e subimos as escadas rolantes rumo ao Mc Donald’s. Quando chegamos ao piso, peguei o celular e liguei para saber onde ela estava. Simony atendeu e me surpreendeu dizendo: “Boa tarde, Afro. Tudo bem? Tenho uma boa notícia. Vira um pouquinho para a sua esquerda, olha em linha reta e você terá uma surpresa, porque eu já estou filmando você!” Meus batimentos entraram em ritmo acelerado. Virei e olhei em direção ao local indicado por ela. Simony estava sorrindo e acenando com as mãos, numa distância de mais ou menos 100 metros. A cena chamou a atenção de vários curiosos que estavam no local. Também acenei com a mão e em passos apressados segui puxando a fila. Logo notei que ela também estava acompanhada de duas minas. As três estavam sentadas, rodeadas de várias crianças, adolescentes e adultos eufóricos na caça de um autógrafo. Simony adorava aquela folia e assinava todos os pedidos gentilmente. Assim que nos aproximamos, ela pediu licença, levantou, e caminhou em nossa direção. Nessa hora fiquei parado de braços cruzados babando no mulherão de sandália plataforma, calça jeans cintura baixa. Com olhos clínicos e em fração de segundos registrei os dotes da musa e em devaneios viajei. “Nooossa Simony, como você cresceu!” Desinibida ela nos cumprimentou com um beijo no rosto, esbanjando alto astral. Para descontrair, disse olhando em seu relógio Cartier: “Pensei que vocês não viessem mais. Estão vinte minutos atrasados!” Quando finalizou a frase soltou um belo sorriso e discretamente cruzamos os olhares. Fiquei atraído pelo brilho de seus olhos. Ela superou todas as minhas expectativas. Nessa hora des-

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pertamos a atenção do público presente. Três rappers natos, pretos, carecas e mal encarados vestidos com calça larga, tênis de couro, jaqueta de nylon. O agente penitenciário era o único que fugia do estilo, parecia nosso segurança. Os olhares dos curiosos pareciam perguntar: “Quem são esses caras?” O clima era de total descontração, assim como nossas curiosidades. Quando olhei o relógio, já eram 20h. Tínhamos que ir para o nosso compromisso. Aproveitei o ensejo e fiz o convite para Simony colar conosco no show na quadra da escola de Samba Unidos do Peruche. Sem hesitar ela aceitou, fita dominada! A vida é uma caixinha de surpresa! Em questão de minutos chegamos à Peruche, a bordo do Audi A3 e acompanhados de três gatas. Os manos já estavam no apontamento. Com muito custo driblamos o assédio dos fãs, os paparazzi e fomos para o camarim. Lá estava todo o nosso time da produção, que ficou surpreso e lisonjeado com a presença da cantora Simony. Me apresentei naquele show com grande adrenalina, afinal no palco uma estrela estava me esperando. Assim que nossa apresentação terminou, fomos jantar e logo surgiu o primeiro beijo. A partir daí começou o nosso namoro. Simony passou a me visitar no presídio semanalmente. Fazíamos planos para o casamento. Aquele era o início da formação de nossa família, o alicerce do homem.

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– CAPÍTULO 10 – Alegria de preso dura pouco

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509-E recebeu o prêmio Hutúz de revelação no ano de 2.000. Com isso, nossa agenda lotou e logo tivemos uma surpresa: as saídas do grupo do Carandiru para realizar shows foram vetadas. Nossa trajetória foi interrompida precocemente após a participação no programa Altas Horas (Globo), comandado por Serginho Groisman. O tema do programa era violência e ressocialização. Éramos a prova viva que o ser humano pode se regenerar. Estava presente na mesa debatedora, o deputado estadual Conte Lopes - deputadozinho com visão reacionária. O auditório estava formado por estudantes que apoiaram nossa temática contra a política de repressão do sistema. O deputado se sentiu ofendido. Posteriormente sofremos represálias. No debate desmoralizamos uma autoridade em rede nacional, tocamos na ferida. Dois presidiários – Dexter e eu – levaram simultaneamente a 12 países a verdadeira face de um sistema atroz, intransigente, implacável e degenerativo. Conquistamos a confiança das autoridades por méritos e fomos autorizados a desenvolver as nossas atividades profissionais, como músicos, com apenas uma escolta e um carro particular. Estávamos presos somente pela consciência. O crime era um passado e uma referência para o futuro. Queríamos apenas espaço para desenvolver o nosso trabalho honestamente, com a responsabilidade de pagar os impostos, gerar empregos e ajudar nossas famílias. Tínhamos 156 saídas com retorno para shows, entrevistas e palestras. E nada que desabonasse a nossa conduta.

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Percebemos que não há interesse para que as pessoas saibam da verdade sobre a desigualdade social e suas conseqüências. Conscientizar as pessoas é como dar um golpe de estado. Hoje, Dexter e eu admitimos que deveríamos ter sido meticulosos, porque estávamos nas mãos do sistema. E o sistema nunca poderia saber a nossa real intenção. Aquele episódio foi questão de honra. Desabafamos os longos anos de sofrimento que estavam entalados em nossas gargantas. Muitos revolucionários sofreram drásticas conseqüências porque lutaram por uma causa em prol de mudanças, entre os memoráveis destaco: Malcolm-X, Martim Luther King, Mahatma Gandhi, Zumbi do Palmares, Che Guevara, Steve Bico entre outros. Eles morreram por uma causa justa, mas deixaram discípulos. O método usado para destruir o 509-E foi nos tirar de circulação, mas não contavam que deixaríamos uma semente plantada na mente dos adeptos e fãs. Ícones do Rap e a população fizeram uma passeata que saiu da galeria 24 de maio

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até a Vara de Execuções Penais, na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, região central de São Paulo, protestando a liberação para voltarmos a fazer os shows. Contudo, foi em vão. O interesse em brecar o 509-E passou a ser político. Descobrimos que fama tem um preço e pagamos caro por isso. Amargamos a volta ao cárcere, a vida vegetativa e improdutiva. Todos os pedidos judiciais para shows, palestras, entrevistas passaram a ser indeferidos. Mesmo com o boicote concorremos e fomos premiados. Ganhamos um troféu de melhor videoclipe do ano 2000, do programa Clipper TV Gazeta, com o videoclipe da música Só os Fortes. Outro troféu foi o de melhor grupo do ano, do Projeto Radial e Rádio Imprensa FM 102. Infelizmente não tivemos o gosto de levantar os canecos. As autoridades nos tratavam com o maior desdém. Não deram justificativa cabível para as recusas. Simplesmente vetaram. Esse foi um período dificílimo para o Dexter e eu. A pressão psicológica era enorme. Ficamos desnorteados. Tanto sacrifício para projetar o nome no mercado, e ver todo sonho ir por água abaixo. Perder o prestígio é fácil. O 509-E tinha muitos shows agendados. Os contratantes investiam o capital na divulgação e o grupo estava impossibilitado de sair. Pagamos muitas multas contratuais, assistíamos a tudo de mãos atadas. A possibilidade de desapontarmos nossos fãs não saia da minha cabeça. O não comparecimento nos shows poderia resultar em descrédito. Aquela reviravolta em minha vida causou uma inevitável dúvida: “Agora é o fim. Será que a Simony virá me visitar aqui no Carandiru?” Felizmente ela superou minhas expectativas. Mesmo com toda a humilhação e constrangimento da revista na entrada do presídio, a fila quilométrica que o visitante de um presidiário enfrentava, Simony continuou me visitando. Nosso sossego acabou quando um repórter sensacionalista descobriu nosso relacionamento e nossa vida particular virou notícia em um jornal de São Paulo. Luz, câmera, ação, a imprensa de todo Brasil aderiu transformando a nossa história em ibope. A notícia ganhou destaque nos principais jornais e emissoras do

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“ALIADOS”

FOTO FELIPE

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Brasil por duas semanas consecutivas. O assunto despertou controvérsias e até uma divisão da opinião pública. Muitos diziam ser golpe de marketing. Outros consideravam o relacionamento uma utopia. Inevitavelmente fomos alvo da má fé de profissionais da imprensa que distorceram informações, disseram inverdades e caluniaram. Mas, felizmente entre os profissionais da imprensa há pessoas idôneas, competentes, que exercem a profissão com imparcialidade. E, diante de tudo isso, o mais importante é que nosso relacionamento se mantinha inabalável. Aquela fase difícil só foi superada porque o nosso amor foi verdadeiro. Lutamos com cumplicidade contra as críticas, o preconceito, a hipocrisia, as armadilhas, as intrigas, as inverdades, a discórdia, a inveja, enfim, os testes. O sistema famigerado encurralou o Dexter e eu de tal forma que quase nos forçava a voltar a ser o que éramos: um perigo para a sociedade. Imagine só como foi difícil administrar essa catástrofe em nossas vidas. Foi difícil nos conformar porque sabíamos que não tínhamos cometido erro. Nesse período descobri em Simony, uma beleza interior grandiosa, solidária, amiga, leal, enfim uma mulher de fibra, que estava lado a lado comigo em qualquer situação. E, um pouco antes do fim do ano, fiquei sabendo que ela estava grávida. A notícia nos deixou felizes e apreensivos ao mesmo tempo. Chegou mais um Natal. Outro Ano Novo atrás das grades. Inevitavelmente, caí numa tremenda nostalgia. Meu pensamento voltou-se para a Simony e para a minha família. Muitos lamentos por não poder estar ao lado deles. Senti agonia quando os fogos de artifício começaram a explodir no céu. Dei um giro de 360 graus na cela e fitei os meus companheiros cabisbaixos. Nesse momento peguei minha Bíblia, dobrei meus joelhos, fiz uma oração com bastante fervor a Deus. Pedi ao Criador para tocar, confortar os corações de meus entes queridos e que Ele nos abençoasse com paz, saúde e sabedoria para enfrentarmos nossa árdua caminhada. Só assim consegui dormir mais aliviado e esperançoso com o ano vindouro.

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Chegou o ano novo e com ele muitas expectativas. No início de 2.001, Simony foi a mais uma consulta periódica de pré-natal e felizmente, acabou a nossa grande curiosidade. O Dr. Luiz, ginecologista, revelou que o sexo de nosso filho era masculino. Quando soube da notícia, comemoramos com sorrisos, afagos, abraços e muitos beijos extras em sua barriga. Simony e eu pressentíamos que seria homem. Quando estava com dois meses de gestação, ela teve um sonho e foi algo sobrenatural: foi revelado o sexo e o nome de nosso filho. Quando ela me contou o fato fiquei surpreso e aceitei de bate - pronto. Ryan é o nome do nosso primogênito.

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FOTO JOテグ WAINER

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– CAPÍTULO 11 – Radiografia do barril de pólvora ma semana de esperança. - Mó expectativa. Felizmente chegou o tão esperado dia de visita. O dia de visita é sagrado para o preso. É quando se mata a saudade e encontramos quem amamos. Até o mais cruel dos bandidos se arruma, sorri e fica bem barbeado. Quem é flagrado olhando para visita alheia, é penalizado pelos próprios presos no fim da tarde. Dependendo da gravidade, a sentença pode ser até a morte com golpes de estiletes. Só sei que para quem não recebe visita o relógio anda em câmera lenta e para quem está acompanhado as horas voam. Na Casa de Detenção era permitido que cada preso recebesse até dez visitas. Amanheceu. Mais um domingo ensolarado. Parecia que iria fazer um calor daqueles. Era um lindo dia de verão. Dia 18 de fevereiro de 2.001. Às 6h o S.R. levantou enquanto todos ainda estavam aparentemente dormindo. Tomou uma ducha e fez a barba embaixo do chuveiro. Logo em seguida eu levantei. Junto com S.R acordamos o Careca e pedimos para que ele tirasse as roupas do varal. Em seguida jogamos almofadas para acordar o Dexter, que reclamou: “Ta loco, hein mano!” Procurei não me atrasar. A Simony chegava cedo e eu não queria dar canseira. Pensei no meu amor. “Tá acabando a água mano. Mas eu não vou deixar vocês na mão. Vou encher o balde pra ninguém ficar falando”, exclamou o Careca!

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Tomei banho e me vesti rapidinho. Olhei no relógio e me espantei: “Nossa, já são 7h20! Vou descer a milhão. Se pá ela já tá entrando.” Assim que cheguei à porta da esperança, avistei meu amor na radial. Fui ao encontro em passos rápidos. Beijei-a e peguei as sacolas que estavam muito pesadas para uma mulher grávida carregar. Fomos caminhando e eu perguntava: “Como está o meu Ryan? Como você passou a semana? Tava morrendo de saudades!” Simony, ainda ofegante respondeu: “Nossa amor, a cada dia que passa, minha barriga pesa mais. Nosso filho está enorme. Ele já tem 23 centímetros. E são só cinco meses de gravidez. Vai ser um meninão!” “Graças a Deus. Que venha com muita saúde.” Chegamos às escadas, rumo aos andares do P7. O funcionário do controle de visitas íntimas liberou nossa entrada mediante a apresentação da carteirinha. Subimos até chegar à cela. Ela entrou, sentou no banco de concreto, pediu um copo d’água e depois se deitou na minha jega. Após nossa troca de confidências e de colocar os assuntos da semana em dia, passamos o tempo nos amando. Às 12h30 a sirene tocou. Comentei: “Estranho, se pá ta tendo uma fuga, porque a sirene só toca nessas ocasiões.” No mesmo instante Dexter deu vários socos na porta, em voz alta me chamou e disse: “Afro-X preciso falar com você truta, mó responsa.” Rapidamente vesti a bermuda e fui ver o que o meu parceiro queria. Ele falou mais ou menos assim: “Jão, uns caras tomou a cadeia agora. Só que é na democracia, segundo eles. Não sabia como dar a notícia para a Simony. “Amor, sabe aquela sirene que tocou agora há pouco? É o seguinte, os caras tomaram a cadeia. É o início de uma rebelião. Vai dar tudo certo. Pense em Deus porque Ele está conosco”.

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Tentei acalmá-la. Mesmo apreensiva, ela me disse: “Eu confio em você. Por favor, fica perto de mim” Nesse momento chegou o S.R. e duas visitas batendo na porta e dizendo: “Tru o barato é loco! Os caras já tomaram todos os pavilhões e se pá todo o sistema ao mesmo tempo.” O Dexter estava com as suas visitas e a sua mina. Preocupado com as outras visitas que aguardava foi correndo ver se tinham chegado. Notou que não havia mais nenhum funça no portão do P7 continuou seguindo sentido o P2. O portão da Divinéia já estava trancado a sete chaves e um montão de funcionários armados do outro lado. Mesmo assim Dexter perguntou: “Aí, chefe, e as visitas que tão na Divinéia, vão entrar?” Amedrontado com o auê, o funça respondeu dizendo que as visitas que não tinham entrado não entrariam mais. Aliviado, Dexter voltou pela radial e encontrou com um menino de mais ou menos seis anos, que chorava muito pedindo pela mãe. O Dexter parou e perguntou onde a mãe dele estava. Entre soluços e lágrimas o menino apontou o dedinho para o portão da Divinéia e disse: “Minha mãe tá ali naquele portão!” “Então tá bom. Sua mãe já, já, vai entrar. Fica calmo e presta atenção. Quem você veio visitar?” “O meu padrinho.” “Onde é que ele tá, que eu vou te levar lá.” “Ele tá no nove. Lá no fundo”, disse o menino em prantos. Dexter pegou o garoto no colo e apressadamente foi até o P9, onde trombou alguns conhecidos. O pivete, mesmo no desespero, soube dizer o local em que ficava a gaiada do seu padrinho. O mano não sabia o que fazer para agradecer a solidariedade. Enquanto isso, Simony, que estava faminta, pediu para eu esquentar a comida. Esquentei a caldeirada de frutos do mar e servi com arroz, purê e salada de brócolis. Na TV, o programa Domingo Legal, apresentado por Gugu Liberato, transmitia ao vivo a paralisação que acontecia na Dita e em outros presídios.

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Nesse momento, S.R. desceu com o Dexter para ver como estava o clima lá embaixo. Quando retornaram perguntei: “Como tão as coisas?” “O bagulho tá loco, mano. Tá tumultuado”, respondeu Dexter. “Mas o barato não era pacífico, na democracia?” “Mas você tá ligado mano. Rebelião na paz?”, falou S.R. “Por que o tumulto?”, questionei mais uma vez. “Por causa das gritarias dos ladrões, que tentavam controlar a situação. As visitas estão apavoradas. Veja só, visitante de preso não é criminoso. Deve ter mais de 4.000 visitantes, com mais 7.000 mil presos são quase 12.000 mil pessoas prestes a serem explodidas no caos. Subi as escadas e ao chegar ao quinto andar, me deparei com um verdadeiro paradoxo. Duas crianças de mais ou menos seis anos brincando alegres e sorridentes. Caminhei em silêncio e minha angústia foi aumentando. Elas nem me notaram, pura inocência de dois anjinhos que estavam no inferno”, concluiu S.R. No xadrez, todos nós assistíamos o Domingo Legal. Foi quando o apresentador pediu no ar para que a Simony e eu déssemos um sinal de vida. Nos deslocamos até o campo do P9. Chegando lá alguns presos escreveram com cal o nome da Simony no chão no campo para identificar a nossa posição. Quando avistamos o helicóptero do SBT sobrevoando a Casa de Detenção acenamos com uma toalha branca. Em seguida retornamos para a cela. Depois de alguns minutos que estávamos no xadrez, ouvimos alguns disparos e em seguida uma sessão de tiros. Pareciam ser de fuzil devido aos estampidos. O eco nos fazia pensar que estava bem próximo. A adrenalina foi à milhão. Temi pela vida da minha mulher e meu filho, pela vida de todos os visitantes e de meus parceiros de cela. Nessa hora milhões de coisas passaram pela cabeça. Até que seria o fim da linha, mas eu não podia demonstrar fraqueza. Tinha que ser forte e tranquilizar o pessoal. A primeira coisa que fiz foi pedir para que todos ficassem calmos e acreditassem em Deus. Ao ouvir tiros, uma das visitas do Dexter subiu correndo para

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a jega de cima e impressionado com o que viu pela ventana quase sem voz falou: “Nooossa, truta mó desgraça! Os coxinhas da muralha sapecaram um monte de caras. Tem uma pá caído lá em baixo e muito sangue escorrendo!” A sessão de tiros continuou, pedi aos visitantes que se escondessem no canto da parede, temendo uma bala perdida. O águia preto da polícia sobrevoava os pavilhões com seus atiradores de elite que miravam para as celas. Em seguida a cena é reprisada na TV mostrando toda a covardia, despreparo emocional e a execução sumária. Os presidiários que estavam no pátio externo do P4 tentavam uma negociação com a tropa de choque que estava do lado de fora na Divinéia. Intransigentes, não queriam conversa. Esboçavam reações tentando embocar para dentro da prisão. De repente, um PM deu um disparo para intimidar. Os presos se assustaram e saíram correndo. Nessa hora, três militares e um policial civil à paisana começaram a atirar de cima da muralha com a maior frieza na direção dos presos que estavam no P4. Eles viraram sentido P7 e correram de costas procurando abrigo. Alguns presos foram atingidos pelas costas. Eles estavam todos desarmados. Foram cenas de terror, desespero, agonia, pânico e gritaria. Parecia um filme de guerra, só que real, sem cortes, sem dublês e sem balas de festim. Nos bastidores da guerra, um mar de sangue escorria. Tico do Guacuri foi um grande guerreiro e colocou a vida em risco. Em meio ao conflito arrastou um dos quatro baleados. Eles caíram próximos um ao outro, mais precisamente ao redor do portão do P7. Tico correu no pátio externo se esquivando dos tiros e chegou próximo ao Sabugo que agonizava no chão que com muita dificuldade acenou a mão, tentando falar alguma coisa, mas a voz não saía, sua respiração era bem lenta. Tico do Guacuri socorreu Sabugo cuidadosamente. Com o movimento, o detento baleado começou a jorrar sangue por debaixo do braço esquerdo. Tico ficou impressionado ao ver esguichar tanto san-

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gue. Desesperado saiu arrastando o ferido pelo pátio externo do P7. Deixou o corpo no chão, na entrada do pavilhão e tentou abrir caminho. Devido ao tumulto na gaiola, uns queriam descer do segundo andar, outros queriam subir, com medo de serem atingidos pelos tiros. Tico gritava: “Olha os manos baleados. Olha os manos baleados! Sai da frente!” Entre empurrões e gritos alguns ajudaram a arrastar Sabugo até a enfermaria do pavilhão. Outros presos traziam o Tio Carioca, que também agonizava, vomitava sangue e tremia. Comovido Tico falou que ainda tinha esperanças, mas a enfermaria não tinha recurso algum. Juntamente com os presos Jorge e Neilton – que trabalhavam como enfermeiros do pavilhão –, colocaram Sabugo e o Tio Carioca nos carrinhos de servir as refeições e saíram arrastando. Vendo todo o pavor e desespero, os policiais não paravam de atirar. Os manos continuaram empurrando os carrinhos até o portão da Divinéia, para que os baleados fossem levados para um Pronto Socorro. Detalhe: apesar dos dois estarem gravemente feridos, ainda estavam vivos! Mais tarde soubemos da triste notícia: saldo negativo de quatro mortos. Quando foram arrastados, os baleados deixaram um rastro de sangue em todo pátio externo do P7. Esse episódio entristeceu e ao mesmo tempo revoltou a todos. Tio Carioca era vizinho do 509-E e faltava apenas um mês para o vencimento da sua pena. Sabugo tomou dois tiros: um no coração e outro na perna. A condenação era de cinco anos e já havia cumprido quatro de reclusão. Que loucura! Poderia ter sido qualquer um de nós! A partir daí o que era pacífico ficou louco. Um clima de tensão e nervosismo se instalou nos pavilhões. Foi deprimente ouvir os choros das crianças querendo ir embora, mulheres e senhoras com crises de desmaio e olhares de desolação. A tropa de choque aproveitando a “deixa” ameaçava embocar com visita e tudo; e os caras pelo rádio amador revidavam: “ Se embocar, vamos matar todos os reféns!”

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Revoltados com as mortes dos companheiros, alguns presidiários queriam subir os funças. Outros pediam paciência. Havia um impasse. As autoridades cortaram a água e a luz. Os líderes da rebelião dividiram os 20 funcionários reféns entre os pavilhões e colocaram seis deles amarrados entre as barreiras com madeiras e botijões de gás nas três entradas de acesso para a cadeia. A situação preocupava, pois a paralisação tornou-se a maior rebelião da história do sistema prisional brasileiro. Simultaneamente, 28 mil presos de 29 presídios do estado de São Paulo se amotinaram exatamente às 12h30. No dia seguinte o fato exigiu uma reunião extraordinária para conter o conflito. Em todos os presídios havia visitantes, entre eles crianças, adultos e idosos. Conclusão: O governador em exercício, Geraldo Alckmin, junto com o ministro da Justiça, José Gregori, o coordenador de assuntos penitenciários Nagashi Furokawa, o secretário da segurança pública de São Paulo, Marcus Petreluzzi e o comandante geral da polícia militar Rui Cezar Mello, estavam irredutíveis quanto a atender as reivindicações impostas. Os presos pediam a transferência de cinco integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) para a Casa de Detenção. Eles tinham sido transferidos para a Casa de Custódia, o Anexo em Taubaté. Se o governo recuasse e fizesse o acordo, a opinião pública cairia matando. Então o governo anunciou que conteria as rebeliões e acabaria com os celulares nas prisões. Que ironia, né? Se existem celulares nas prisões, é porque são levados pelos próprios funcionários. Nesse caso a questão seria combater a corrupção. Até um cego enxerga que celulares não são os principais responsáveis para organização de rebeliões. Dizer isso é simplesmente subestimar nossa inteligência. Por trás dessa problemática, as autoridades no Brasil aplicam soluções paliativas. No início de 2009, a população carcerária brasileira era de 447 mil presos, segundo estudo realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Destes, 191.949 estavam à espera de julgamento. O número equivale a 42,9% do total. Estes dados de-

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monstram que nunca houve interesse em desafogar o sistema prisional. Não há informatização do poder judiciário, o que resulta na lentidão de análise dos processos criminais. Enquanto isso, os presos aguardam em celas abarrotadas e na ociosidade. Não há o que fazer além de esperar. E aí, infelizmente, o ditado se torna verdadeiro: “mente vazia, oficina do Diabo”. O preso está sob a tutela do Estado, isso quer dizer que o mesmo deveria garantir uma vida digna e oferecer condições para a ressocialização do encarcerado. Mas, apesar do custo mensal, entre R$ 1.300 e R$ 1.600, que sai do bolso do cidadão para manter cada preso, pouco é feito. Caía a tarde. A rebelião deixou destroços, pessoas feridas e até mortas. Teve choro, angústia e muito sangue no chão. Foi um dos dias mais tristes de nossas vidas. Mas mesmo diante do infortúnio, minha mulher e eu nos mantínhamos unidos. A queda de braço prosseguia, a tropa de choque ditava uma nova ordem: só liberariam os visitantes após a soltura dos funcionários que estavam sendo feitos de reféns. Os presos que lideravam a rebelião relutaram dizendo que não aceitariam a ordem e afirmaram que soltariam 30 visitantes e um funcionário a cada 30 minutos. Não era o acordo esperado, a tropa de choque não poderia entrar nos pavilhões com os visitantes saindo. A noite chegava e com ela pairava no ar um clima sinistro. O cansaço físico e mental era aparente e a tendência era que o clima ficasse mais tenso a cada hora. Já passavam das 22h e os nervos cada vez mais à flor da pele. Completavam quase dez horas de ansiedade. Parecia uma morte lenta e dolorosa. É muito difícil descrever o que sentíamos. Em silêncio eu orava a cada instante pedindo proteção à Deus para que não acontecesse o pior. A pressão era imensa, mas a fé e a vontade de viver nos confortavam. Fiquei muito preocupado porque Simony continuava comigo lá dentro e se a rebelião durasse muito tempo o estoque de alimentos que tínhamos não daria para o dia todo. Nessa hora deu mó aperto no coração. Todos visitantes se alimentaram. Depois,

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resolvemos nos isolar com nossos familiares. Pensei em como estariam nossas famílias lá fora. Peguei o celular e liguei para minha mãe, mas foi em vão. Não consegui fazer com que ela ficasse mais calma. Em seguida a Simony fez contato com a mãe dela. Era um dia de terror e tínhamos uma tarefa quase impossível: tranqüilizar nossas famílias. Minha mãe reuniu a todos e juntos fizeram uma oração. A mãe da Simony fazia uma corrente com seus entes também. Aproveitamos e ligamos para o nosso empresário e ele fez um contato com o senador Eduardo Suplicy e o doutor Ariel de Castro Alves que prontamente solidarizaram-se juntamente com outras pessoas dos Direitos Humanos e seguiram para o Carandiru a fim de intervirem nas negociações. O senador chegou com a comitiva por volta das 5h e foram peças chaves para o fim da rebelião. Depois de uma noite tenebrosa, amanhecia no Vietnã. A tropa de choque estava doida para invadir. Queriam sanar logo o problema, porque acreditavam que ao controlar o motim no maior presídio do Estado, conseguiriam enfraquecer as outras rebeliões simultâneas. Antes mesmo do sol raiar bateram agressivamente na porta chamando: “Afro-X, Dexter. Mó responsa, irmãos!” Levantamos rapidamente para ver o que estava pegando. Era um dos líderes da rebelião pedindo para que ajudássemos nas negociações. Ele acreditava que nossa participação seria importante porque tínhamos o respeito dos presos e também da diretoria da Detenção. “Por favor, dá essa força pra nós!” O Dexter se propôs a ir até lá e eu fiquei para cuidar das nossas visitas. Caminharam com destino ao pátio externo do P2. Lá o sururu estava formado. Nem os presos e nem a diretoria queriam ceder. No meio do caminho, já no final da radial, um preso disse ao Dexter que o Senador Suplicy já estava na Divinéia conversando com o comandante do pelotão do Choque. Dexter

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atravessou o portão do P2 e avistou o diretor-geral da Casa e um funcionário em uma conversa nem um pouco amigável com alguns presos bem próximo ao portão da Divinéia. Dexter pediu licença e cumprimentou todos. Foi quando o diretor-geral exclamou: “Me falaram uma coisa e eu vou te perguntar. O que você falar pra mim é o que eu vou acreditar! Disseram que você e o Afro-X, em companhia da Simony, guentaram o P2 com uma arma de fogo, é verdade?” “O senhor sabe que isso é mentira. O nosso princípio é o rap. O senhor conhece nossa diretriz e sabe que nossa corrida é pela paz e pela vida. Tanto é que tô aqui na intenção de ajudar, acabar com toda essa agonia da visita e de todos nós também. Sei que o senhor acredita em nós!” Com um ar de desconfiança, o diretor-geral do presídio respondeu que acreditava em Dexter. Dexter conversou com os presos e se ofereceu para intermediar as negociações com a diretoria em prol da paz. Naquele exato momento o senador atravessou o portão da Divinéia sentido pátio externo do P2. Dexter o avistou e foi ao encontro dele, estendeu a mão e cumprimentou dizendo: “Muito obrigado, senador, por ter vindo para nos ajudar e evitar que acontecesse o pior. Os caras tão querendo entregar a arma e falaram que só entregam na mão do senhor. O 509-E e a Simony pedem também, encarecidamente, que vossa excelência e os Direitos Humanos acompanhem a blitz do Choque nas celas, porque tememos que os nazistas entrem e matem um montão de gente!” Após o senador dar a certeza de que acompanharia a blitz, Dexter passou a idéia para os presos e seguiu para o P9 no intuito de passar o salve ao restante dos responsáveis pela paralisação. Com muito custo todos chegaram a um acordo e entregaram a arma para o diretor-geral, na presença do Suplicy. Ufa, que alívio. Foram mais de 24 horas de suplício, no campo de concentração. Dexter trouxe a notícia que as visitas poderiam

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sair que o senador queria falar comigo e com a Simony. Sem hesitar nos aprontamos e saímos. Havia uma fila enorme. Todos estavam abatidos, famintos e alguns até em estado de choque. Passamos pelo pátio externo e vimos um rastro enorme de destruição: muito sangue ressecado no chão, mesas e cadeiras de madeiras queimadas e muito lixo espalhado. Parecia que havia passado um furacão. Prosseguimos pela radial com destino ao pátio externo do P2. Quando atravessamos o portão avistamos o senador Suplicy conversando numa banca de presos. Chegando próximo, estendi as mãos para cumprimentá-lo. Minha mulher cumprimentou-o também com um sorriso. Juntos agradecemos pela preocupação e ele educadamente nos respondeu: “Não há o que agradecer. Só queria que acabasse tudo bem!” Quando tudo acabou, nossa sensação era de que tínhamos ressuscitado. Graças a Deus superamos aquela terrível experiência. Por volta das 10h, me despedi de Simony com um abraço apertado e um beijo afetuoso. Passei a mão na barriga dela e disse: “Vão com Deus, você e meu filho!” “Amém. Se cuida, tá?” Ela virou em direção ao portão da Divinéia. Antes de atravessálo deu mais uma olhada para trás. A tristeza era nítida em seu rosto. Acenei e ela apertou os passos. Na saída, ouvi uns putos do Choque a atacando com palavras de baixo calão. Foi um absurdo. Não respeitavam nem o sofrimento das pessoas. Os funças a colocaram na ambulância, para evitar o assédio dos jornalistas, e seguiram para o Pronto Socorro. Lá, um dos seguranças particulares já a esperava. Ela entrou no carro e foi para casa. O senador Suplicy permaneceu no pátio externo conversando com alguns presos e deu a palavra de que só arredaria o pé depois da blitz do Choque. A saída dos visitantes do Carandiru só terminou por volta das 15h da segunda-feira. O choque, ainda em forma, queria embocar para a blitz, mas os funcionários da casa estavam exaustos para acompanhá-los. Mesmo contra von-

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tade, o pelotão de Choque teve que aguardar até outro dia. Para mim, a palavra de um homem vale muito. Já admirava o senador Suplicy, agora admiro muito mais e sei que é um homem de palavra, íntegro e prestativo. Enquanto permaneceu o impasse do Choque entrar ou não para revista, o senador e o deputado federal Fernando Gabeira, acompanhados de advogados dos Direitos Humanos, como o Ariel de Castro Alves, permaneceram a noite inteira de prontidão no Carandiru e continuaram até o desfecho da blitz. Na terça-feira, às 7h, acordamos com os cachorros latindo. Rapidamente levantamos, subimos na jega de cima e da ventana ganhamos o movimento. O choque já estava em marcha acelerada, subdividido em grupos. Um deles entrou pelo P4. Outro veio pela radial. Parecia que iriam embocar no P7, mas quebraram à esquerda e foram sentido P9 ou P8, pois o caminho dava acesso aos dois pavilhões. Já passavam das 15h quando os policiais entraram no P7. Subiram as escadas na maior sede. Ao pisarem no quinto andar, teve início a sinfonia satânica. O som dos cachorros latindo se misturava com a gritaria dos carrascos. Eles batiam com brutalidade as coronhas de suas armas nas portas de ferro. Ordenavam que todos ficassem de cuecas e ajoelhados. Assim seguiram abrindo cela por cela. Estavam chegando perto do meu xadrez. A adrenalina já tinha ido à milhão. Os gritos histéricos ecoavam e se perdiam na galeria afora. O clima lembrava um filme de terror. Fazia parte da tática essa pressão psicológica e entre um monte de asneira gritaram: “Onde fica o 509-E? O capitão Conte Lopes mandou a gente visitar vocês!” Da última vez, os brutamontes com cérebros de ameba, zoaram tudo. Essas terríveis experiências deixam seqüelas. Conheci alguns sobreviventes que ficaram chapados, traumatizados, devido ao Massacre de 1.992. A cada barraco que entravam perguntavam quem eram o Afro-X e o Dexter. Ninguém falava nada e isso aumentava a ira dos PMs. Chega-

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ram em frente de nossa cela dando a entender que na 509-E tinha só elementos de alta periculosidade e que ofereciam risco de vida à eles. Nós estávamos fortemente trancafiados, de cueca, ajoelhados, com as mãos na nuca e com a principal arma, a inteligência. Enquanto isso, os policiais usavam escudos, coturnos, capacetes, coletes, metralhadoras, bombas de gás lacrimogêneo e cachorros treinados. É, realmente oferecíamos extremo perigo de vida à eles! Chave no cadeado. Era chegada a nossa hora! Abriram a porta com as metralhadoras em punho, engatilhando e gritando ao mesmo tempo: “Vai ladrão. Vai, Zé. Sai um por vez. Antes de sair abaixa a cueca e agacha; vai rapidinho e corre agachado. Demorô!” O primeiro a sair foi Dexter. Fez tudo que ordenaram, quando foi sair tomou uma escudada na cara com tamanha força que bateu a cabeça na quina do batente da porta, atingindo o supercílio, fazendo um corte. O melado desceu na hora. Mesmo assim, Dexter saiu agachado no meio dos PMs. O Careca foi o segundo e conseguiu se esquivar. O S.R. foi muito ligeiro conseguiu se livrar. Fui o último a sair da cela e quando cheguei à galeria tomei várias coturnadas na canela que ficaram roxas. Permanecemos cerca de 40 minutos ajoelhados e enfileirados. Meu joelho doía, dilatava, mas se nos mexêssemos os policiais zoariam a gente em dobro. Sem contar que bateriam em todos que ali estavam e falariam que alguém “deu milho”. Depois de muita canseira, nos mandaram voltar para as celas agachados, correndo no corredor polonês. Quando entramos, a cela estava irreconhecível, de cabeça pra baixo, um verdadeiro pandemônio. Parecia que tinham jogado tudo no liquidificador e batido. Isso porque o diretor do pavilhão acompanhou a blitz. Essa é a vida boa que leva o presidiário, como dizem muitos na televisão! Mas o que eles não dizem é que só no estado de São Paulo, 78% dos presos não concluíram o ensino fundamental e 8,2% são analfabetos. Os números são bem maiores que a média da população estadual, que aponta que 52% das pessoas não têm o

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ensino fundamental e 7,2% não sabe ler e escrever. O que ninguém diz, é que 54% destas pessoas presas são jovens com idade entre 20 e 29 anos. E a maioria não poderá mudar a história. Os dados são referentes à pesquisa Retratos do Cárcere, realizada pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e divulgada em maio de 2006. Naquele ano, só em São Paulo havia 144.630 pessoas encarceradas, segundo dados da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Seis anos antes, quando eu era mais um número dentro do sistema prisional paulista, havia outras 92.185 pessoas na mesma condição. O episódio prova, mais uma vez, que é o sistema que está falido e não o ser humano...

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– CAPÍTULO 12 – Vaso ruim de quebrar uinta-feira, 15 de abril de 2001. Era cerca de 7h, quando acordamos assustados com os gritos do S.R. que dizia: “Olha o Choque, manos! Olha o Choque, manos!” Despertamos já na adrenalina. “Outra vez esses putos?”, reclamei. Ligeiramente pulamos das jegas para não sermos pegos de surpresa. Na madrugada quase não conseguimos dormir. Tinha mó bolão de funças andando pelas galerias do prédio, feito cães farejadores, com marretas, ponteiros, quebrando as caixas elétricas do lado de fora das celas, onde ficavam as fiações. Estavam à procura de flagrantes e assim permaneceram até altas horas. A cadeia amanheceu fora do seu ritmo normal. Silenciosa, fúnebre. Sentindo esse clima, corri até o guichê, olhei para a galeria escura, fria e sem nenhuma alma viva. Na tarde do dia anterior, depois da abertura das trancas, o “jornal da pedra do preso” difundia a notícia de que a cadeia amanheceria trancada. O motivo ninguém sabia dizer. Mais um dia de veneno. Querem nos matar aos poucos. Reduziram a quantidade de alimentação que nossos familiares depositavam no jumbo e ainda distribuíram apenas 300 senhas naquele dia. Na semana anterior, minha mulher teve que chegar à fila do jumbo às 2h para conseguir depositar o meu aproximadamente às 7h. Um absurdo! S.R. estava na jega de cima, ganhando o movimento da Divinéia e anunciou pasmo:

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“Ih manos. Os vermes já tão embocando no pavilhão!” Vendo a reação do S.R., pulei na jega de cima para me certificar do fato. Quando olhei pela ventana vi que o céu estava cinzento. Poucas aves voavam no céu. Os raios do sol despontavam com timidez. Na Divinéia, parte do pelotão ainda estava em posição, com seus cães assassinos. Havia também muitos funcionários da Casa, inclusive o diretor-geral, com sua inconfundível vestimenta: uma camisa social azul-celeste, calça preta e sapatos pretos. No céu, acima da Divinéia, o mosquito de ferro dava rasante. Os policiais pareciam ninjas, todos de preto com fuzis e uma ponto 50 apontada para as ventanas das celas. Em seguida, três bondes azuis e brancos da COESP (Coordenadoria dos Estabelecimentos Prisionais de São Paulo) entraram pelos portões da Divinéia. Manobraram e estacionaram de ré, encostando no portão de ferro que dava acesso à radial, em frente ao P6. Em questão de segundos o Choque estava no quinto andar. Meu Deus, tudo de novo! Desta vez estranhamos porque não ouvimos abrir os cadeados das celas. Pensamos até que iriam passar batido, quando de repente um bando de PMs parou em frente ao nosso xadrez, com as armas em punho e engatilhadas. Um PM colocou bruscamente a metralhadora no guichê e esbravejou: “Vai ladrão! Todos de cueca e de joelhos no fundo da cela! Vai, filhos da puta. Demorô!” Em voz alta cantaram o nome completo do Dexter. Quando ele se apresentou, colocaram a micha no cadeado, abriram a cela, com várias armas apontadas para nós e ordenaram: “Vai, ladrão, rapidinho, abaixa a cueca, agacha, levanta sai da cela. Só você vem com a gente!” Senti vontade de reagir, mas estava de mãos atadas. Me senti um inútil. Sequestraram meu truta e eu não pude fazer nada. Fiquei por alguns segundos pensando naquela cena covarde. Não sabia o que pensar. Minha mente rodopiava. Fiquei desnorteado e desesperançoso. Sem hesitar subi na jega de cima para, pelo menos, ver onde

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estavam levando meu parceiro. Logo vi vários presos enfileirados, somente de cuecas, com as mãos para trás e cabeça baixa. Aos poucos iam entrando nos bondes. No meio das dezenas de presos avistei o Dexter. Corri no mocó, tirei o celular rapidinho, liguei para a Simony e pedi para que ela ligasse com urgência para o advogado. Algo me dizia que eu também iria de bonde, por isso deixei meus contatos, escritos na caixa de sapatos. Minha intuição não me traiu. Minutos depois, chave no cadeado. Senti um aperto no coração. Um arrepio. Quando a porta abriu, o diretor e mais ou menos uns dez capangas anunciaram: “Cristian, coloque uma calça rápido que você também vai de bonde!” Pedi para levar minhas coisas, mas disseram que meu tempo havia se esgotado. Ligeiramente vesti uma calça da casa, coloquei uma camiseta e o meu tênis molhado, despedi dos companheiros e saí na fé, escoltado pelos funças. No caminho até a Divinéia notei que a cadeia toda estava trancada. Enquanto andava, analisava a frieza dos robôs que me escoltavam. Me senti como uma mercadoria descartável e sem valor. Mesmo assim, mantive a cabeça erguida, com a coragem e a dignidade para recomeçar. Quando atravessei o portão do P2 rumo a Divinéia, em conjunto vários funças voltaram a atenção para mim. Olhares de menosprezo, murmurinhos, sorrisos de satisfação e os mais recalcados praguejavam: “Até que enfim. Agora já era o 509-E! Vai cantar rap lá em Venceslau!” Muitos deles ganharam CDs, pôsteres, camisetas do 509-E. Presentearam os filhos e familiares. Nossa recompensa foi tãosomente a ingratidão. Segui com o bolão de robôs me escoltando, firme sem dar ouvidos ao bombardeio de asneiras dos invejosos. Mais adiante, os policiais do Choque me mediam dos pés à cabeça, me rogando mau-agouro. Achei que me jogariam em alguns daqueles bondes estacionados, mas quebramos à direita e fomos parar na GPM. Deram uma geral e me jogaram numa gai-

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ola imunda no mesmo local. Quando entrei no corrozinho fedorento encontrei o Dexter só de short, com as costas cheias de vergões, pela surra de cassetetes dada pelos covardes do Choque. Ao nos vermos, reagimos com surpresa e alegria. Nos abraçamos e agradecemos à Deus. Até ironizamos para amenizar o sofrimento: “Aí, truta te sequestraram também?” “Pensou que ia se livrar de mim, hein.” Alguns minutos depois, lamentamos e comentamos como nos trataram feito bicho. Não aprontamos nada grave, para que nos mandassem de bonde daquela maneira. Nem nossos pertences deixaram levar. Mó esculacho. Um camburão velho, de cores preto e branco, com o escapamento estourado, poluindo todo o ambiente encostou na Divinéia. Um funcionário abriu o corró. Com uma lista, ordenou para saírem quatro presos por ordem de chamada. Todos foram novamente revistados, escoltados e enfileirados até a traseira do camburão. O motorista abriu o tampão. Antes de sermos colocados no chiqueirinho, fomos algemados e entrelaçados uns aos outros. Meu braço destro ficou preso ao braço esquerdo do Dexter e meu braço esquerdo, ao braço destro de um outro preso. O chiqueirinho era dividido em duas partes por um chapão de ferro. Cada uma tinha 60 centímetros de largura por 1,20 metros de comprimento e 90 centímetros de altura. Jogaram nós três amontoados de um lado. Do outro lado ficou um preso com deficiência física nas pernas e um par de muletas. Com estupidez, o motorista bateu a grade, colocou o cadeado e fechou o tampão. Ouvimos as portas dianteiras abrindo. Depois, foram batidas com violência. O motorista ligou e acelerou a viatura que se locomoveu por alguns metros. A viatura parou. Abriram os portões da Divinéia. Em poucos segundos, o carro se deslocou alguns metros. Ouvimos abrir os portões da ratoeira, destino portaria central. Mais uma vez, o carro se movimentou. Os últimos portões foram abertos e a sirene da viatura foi acionada. O motorista acelerou a

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charanga que fazia um barulho fora do comum. A fumaça impregnava e nos sufocava. Dentro do chiqueirinho o calor era insuportável. O suor escorria intensamente, chegando a encharcar minha camiseta. Aquele cubículo escuro, de pouca ventilação causava fobia e muita agonia. O oxigênio era escasso. Respirávamos com dificuldade. Nessa tortura física e mental, o camburão com a sirene ligada seguiu a milhão no trânsito ultrapassando os sinais vermelhos. Rapidamente pegamos uma estrada. Calculo que o percurso deve ter durado uns 40 minutos. Em um dado momento, a viatura reduziu a velocidade e pegou um caminho à direita. Subimos uma ladeira, que só percebemos que era de terra por causa da poeira. Graças a Deus chegamos à portaria da Penitenciária II de Franco da Rocha. A viatura parou no estacionamento. Pensamos que a sessão de tortura havia acabado. Estávamos enganados. Os policiais militares resolveram almoçar. Pagaram mó raiva, porque a parte traseira do camburão ficou exposta ao sol escaldante. Fritávamos feitos ovos na frigideira. Depois de muita canseira, os funças voltaram do almoço. Entraram na viatura no maior falatório. Bateram as portas. Logo em seguida a viatura foi ligada. Ouvimos portões se abrindo e o camburão se moveu para dentro do presídio. As escoltas desceram. A chave foi colocada na fechadura do tampão traseiro. Quando a porta abriu fomos surpreendidos pela claridade e um golpe de ar que serviu de lenitivo para nos reanimar. O motorista abriu a grade do chiqueirinho estupidamente e ordenou que descêssemos. Quando pisamos em terra firme suspiramos aliviados. Os brutamontes soltaram as algemas que deixaram marcas aparentes em nossos pulsos. Na sequência os funças da Casa fizeram outra chamada e nos separaram. Três funcionários de aparência jovial pediram, educadamente, para que os acompanhássemos até a inclusão. Um deles nos perguntou: “Nossa, onde estão as coisas de vocês? Não trouxeram nada? O que será que vocês aprontaram?”

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Com indignação, respondi: “É, chefe. Nós também não sabemos. Fizeram mó patifaria com a gente. O senhor pode ter certeza. A gente é da paz. Nosso dia a dia vai mostrar.” Sem dizer nada, balançando a cabeça o funça abriu a cela e pediu para entrarmos. A cela de mais ou menos 25 metros quadrados era muito fria. Não existiam janelas. Apenas duas ventanas próximas ao teto, de aproximadamente 15 centímetros por 1,3 metros na parede do fundo. O ambiente tinha duas jegas beliche de concreto. O banheiro ficava ao fundo e um cano servia de chuveiro. Depois de algumas horas fomos chamados um por vez para fazer a inclusão. Lá deixamos os pertences não permitidos na casa. Em seguida nos deram um kit preso que continha: 1 prato de plástico, 1 colher de plástico, 1 caneca de plástico, 1 gandola cor padrão (camisão bege), 1 colchão usado, 1 aparelho de barbear, 1 creme dental, 1 escova dental e 1 sabonete. Não precisei de calça. A que eu vestia era da cor permitida. Fomos encaminhados para o controle e perguntaram se eu já tinha matrícula no sistema. “Sim chefe, tenho. Minha matrícula é 117.187.” Nesse momento tive uma péssima recordação de quando estive preso naquele local. Época de muito sofrimento. Setembro de 95, Penitenciárias de Presidente Bernardes foi lá que me deram essa matrícula. Os anos passarão, mas nunca essa ferida cicatrizará. Depois preencheram nossa ficha cadastral com os dados pessoais. Por último, a fotografia em preto e branco, com uma plaqueta que continha a data de inclusão, artigo e condenação. Todos passavam por essa burocracia. Por volta das 15h30, fomos requisitados para falar com o diretor-geral da penitenciária. Ao entrar na sala, nos deparamos com dois homens. O diretor-geral era Adevaldo Ferreira de Souza. Ele era branco, de estatura mediana, sotaque interiorano. O outro homem era o diretor de disciplina. A recepção foi cordial, ambos nos cumprimen-

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taram com um aperto de mão, olhos nos olhos e com um tom sarcástico o diretor-geral disparou: “Então, são vocês o famoso 509-E? Quem é o Afro-X e quem é o Dexter?” Nos apresentamos. O homem balançou a cabeça prosseguiu nos interrogando: “Vocês devem estar sabendo do BO de que estão sendo acusados. Ou melhor, o Dexter. Fui informado que durante a rebelião o senhor estava andando com uma PT-380 pra cima e pra baixo. Mas não interessa o que fizeram no passado. O que importa é o presente, na minha cadeia as coisas são diferentes!” Esperamos o diretor concluir o raciocínio para então, Dexter retrucar: “Mas, doutor, isso é uma grande injustiça. Realmente surgiu esse comentário, mas ninguém provou nada. Se fosse para jogar fora nosso objetivo, teríamos fugido quando estávamos saindo pra fazer shows. Nas 156 saídas tivemos inúmeras chances de fuga, só que em nome do objetivo, do futuro e da confiança de várias pessoas, suportamos as tentações, humilhações... e em busca do ideal não fugimos. Tenho fé que nenhum boato irá atrasar nossa meta. O principal é que minha consciência ta tranquila!” Pedi licença e, convicto, complementei o raciocínio do parceiro: “Não precisamos provar nada pra ninguém, a não ser pra gente mesmo. Sei que na condição de presidiários temos um grande desafio. Passamos pelo fundo do poço, estamos aos poucos provando que o ser humano quando tem oportunidade é capaz de se regenerar.” “Agora quero sinceridade de vocês. Qual o envolvimento dos dois com o PCC?” Em conjunto respondemos: “Nenhum! Nosso partido é o rap. É óbvio que temos uma grande coletividade com a população, entre eles alguns membros do PCC. Veja bem, doutor, nosso grupo nasceu na prisão e nossas músicas relatam o dia a dia dessa massa no qual eles fazem parte.”

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Satisfeito, o diretor concluiu o assunto impondo suas regras: “Bom, já disse à vocês, o que fizeram no passado não me interessa. O importante é o presente. Caso queiram ficar em minha casa, terão que abdicar algumas coisas. Esqueçam as saídas para shows. Outra coisa, imprensa nem pensar. Odeio a mídia. Aqui é uma prisão de disciplina. Se preencherem o lapso temporal mando embora. Dou minha palavra de homem. No ano passado mandei 500 presos para rua como benefícios. Dou a escolha à vocês. Se quiserem ficar tenho minhas exigências.” Era como uma queda de braço. Tínhamos que raciocinar e tomar decisão coerente. Só tínhamos duas opções: A primeira, era ficarmos juntos e acreditarmos nas promessas do homem. A segunda, era irmos separados de bonde para outras prisões. Naquela altura do campeonato, a primeira alternativa parecia mais lógica, já que tínhamos voltado à estaca zero. Teríamos que conquistar o espaço e a confiança novamente. Na mesma sintonia, olhamos um para o outro e apostamos todas as fichas na primeira opção. Voltamos para cela da inclusão e poucas horas depois pagaram três presos, que chegaram de bonde da penitenciária de Avaré. Por volta das 18h30, os faxineiros serviram a bóia. Eu estava sem fome, preocupado, sem saber se meus entes receberam a notícia de que Dexter e eu tínhamos sido transferidos. O diretor se propôs a avisá-los, mas a incerteza queimava milhões de neurônios. Mesmo sem apetite, fui ver o cardápio: arroz papa parcialmente cozido, feijão aguado. De mistura, picadão de carne cozida com batata e cenoura. Nenhum tempero. Parecia comida para doente. O gourmet deixou a desejar na gororoba. Dei umas duas ou três garfadas e joguei fora. A noite caiu. Deitei na jega para refletir. Queria ficar só. Estava empapuçado de trocar idéia. O cansaço dominava meu corpo. O dia foi estressante. Dormi rapidamente. Às 5h acordamos com o carcereiro batendo no guichê para fazer a última contagem da noite. Cochilei de novo até as 7h30, quando fizeram outra chamada. Nessa contagem era obrigatório

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que respondêssemos vestidos e em pé. Por volta das 10h, um funça – que mais parecia um jagunço – ordenou que arrumássemos rapidamente nossos bagulhos. Fomos levados para o RO (Regime de Observação). Logo chegamos ao setor de disciplina e vigilância. O RO era constituído de pequenas celas. À direita, avistei algumas celas com presos do MPS (Medida Preventiva de Segurança), o chamado seguro. São os presos que infringiram as regras internas do crime. Outra chamada e abriram as portas de ferro. Num tom grosseiro ordenaram para que entrássemos. Fui pago na cela de número 24 e o Dexter na cela 26. Fiquei perplexo com o tamanho da cela – 3 metros de comprimento por 2 de largura E já havia dois moradores. O cheiro de mofo impregnava. Acho que lá dentro a temperatura era de uns 40o graus. Existiam apenas duas ventanas para ventilação. A janela era lacrada com um vidro transparente e grades de ferro do lado de fora. No canto esquerdo, no fundo da cela, um buraco na parede na altura da cintura servia de torneira e chuveiro. A água e a descarga eram controladas pela boa vontade dos funças. Embutido no chão, um vaso sanitário que mais parecia um bueiro. Ao lado direito uma jega de cimento. Nesse momento senti um calor subindo dos pés até a cabeça. O ódio transpareceu em minha face. Tive que fazer um grande esforço para me acalmar. Com traje usual do país das calças beges, entrei no cubículo sem luxo ou conforto, mas fui acolhido com o maior respeito pelos companheiros que já estavam lá. Nunca esquecerei as palavras de apoio: “A gente não tem nada, mas o que tem aqui é tudo nosso.” Eram o Eliel, de Francisco Morato, e o Marrom, de Itapira. Eles estavam há 20 dias no veneno, cumprindo castigo porque foram pegos na blitz com faca. Esse tipo de contravenção é considerado grave. Durante seis meses ficariam na reabilitação e não poderiam pleitear nenhum benefício. Conversa vai e conversa vem, não me reconheceram. Só fo-

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ram juntar as peças do quebra-cabeça quando o Dexter me ligou pela ventana para saber se estava tudo pela ordem comigo. Nessa hora, com um gesto de admiração Marrom falou: “Cê tá brincando. É você que é o Afro-X do 509-E?” “Pode crê. Sô eu mesmo mano!” Eliel nos elogiou: “Nossa, comprei o CD de vocês em 2000, quando tava no mundão. Independente do lugar é mó satisfação conhecer você. O som de vocês é mil grau. Num tô nem acreditando!” “É nóis, rapaz. Infelizmente viemos nos trombar aqui nesse inferno, mas a tendência é melhorar. Se Deus quiser logo mais nos encontraremos num show qualquer.” “Tem uns artistas que só porque gravou um CD, menospreza as pessoas e se acha o tal, melhor que os outros.” Incisivo, respondi: “Não me considero artista, trampo com arte. Não gosto deste rótulo. Não sou melhor que ninguém, estou no mesmo barco. A simplicidade cabe em qualquer lugar e situação.” Por alguns minutos, o papo até amenizou o sofrimento. Depois, caímos na maldita monotonia. Fizemos vários castelos, relembramos tempos bons e de uma hora para outra o silêncio tomou conta do xadrez. Cabisbaixo, sentei na jega, olhei para mim e para minhas vestes. Vi um verdadeiro farrapo humano com barba por fazer, debilitado e desesperançoso. Os dois guichês da porta permaneciam constantemente lacrados. Só abriam na hora de servir a bóia. Mais parecia um sepulcro de mortos-vivos. Tomar ducha apenas uma vez por dia. O boi causava náuseas. As moscas brigavam pelo espaço nas fezes e urina. A tristeza e a agonia tomaram conta de mim. Sentia vontade de chorar, mas não saíam as lágrimas. Mesmo estando rodeado de três caras, me senti o mais solitário dos homens. Mó neurose. Em meu subconsciente, foi travada uma luta entre o bem e o mal, mas lá no fundo algo me dizia que jamais poderia me entregar aos sentimentos ruins. Enrijeci meu coração, minha prioridade era sobreviver.

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Há alguns meses eu seguia a risca meu ritual de jejuar por 12 horas diárias, a conselho de minha mãe. O corpo espiritual fica mais desprendido e consequentemente mais apto para buscar um contato íntimo e profundo com Deus, que é Espírito. Durante o jejum, o espírito fica mais à vontade, os desejos da carne são aniquilados pela força de Deus. Para os cristãos o jejum é considerado oração mais fervorosa do que a feita com os lábios, porque nela há gemidos inexprimíveis da própria alma humana, em busca de benefícios. Consegui muitas bênçãos através do jejum. Eu buscava orientação na Bíblia Sagrada. Nela está contido o sumo da sabedoria: “E quarenta dias foi tentado pelo diabo e naqueles dias não comeu coisa alguma, terminados Ele teve fome (Lucas 4.2). Era o primeiro final de semana em Franco da Rocha. Aos poucos fui me adaptando na esgotante rotina: quatro contagens, duas refeições. A paciência e a fé foram relevantes para o êxito dessa missão. Amanheceu uma linda segunda-feira de outono. Os primeiros tímidos raios do astro-rei já refletiam com intensidade e invadiam o xadrez pelas ventanas. Eu estava com um bom pressentimento. Eufórico, permaneci deitado, só castelando e esperançoso. Quando o funcionário bateu na porta, abriu os guichês e cantou minha matrícula. Senti um alívio tremendo. Pressenti que os caminhos estavam se abrindo. Nossa mente é igual a um aparelho de rádio, em que sintonizamos as freqüências. Assim, os bons e os maus fluídos dependem de nós. Em princípio passamos no teste, mas nossa missão, ainda era reconquistar a confiança. Além do Dexter e eu, saíram do RO outros 15 presos que foram subdivididos nos três raios da penitenciária (pavilhões 1, 2 e 3). Uma revista rigorosa foi feita. A cadeia tinha apenas dois anos de inauguração. A radial era uma galeria ampla e extensa. Todos entravam e saíam por ela. Era o único e principal acesso para todos os raios e setores de trabalho, como enfermaria, lavanderia, FUNAP, escola, biblioteca, cozinha, controle geral, setor de segurança e vigilância e a sala dos advogados.

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Muitos funcionários fizeram nossa escolta pela radial até o raio em que moraríamos. O Dexter, eu e mais alguns detentos atracamos na gaiola do raio 1. O clima era aparentemente normal. Uns jogavam futebol, muitos andavam em volta da quadra, outros faziam exercícios físicos, alguns costuravam bola. Aliás, cada bola pronta rendia R$ 1 ao preso, sem contar a remissão de pena (a cada três dias de trabalho, o preso ganhava um de remissão na pena). O bonde chamou a atenção e vários presos curiosos vieram nos recepcionar. Nessa hora, o Luizinho - um mano firmeza total, que conhecemos na Dita - colou na grade junto com outros manos: o Marquinhos, o Belo, o Paulinho, o Magaiver, o Vô, o Tóta, o Gordinho, o Nego de Itu, o Júlio, o Gringo, o Verdão entre outros. A recepção foi daquele jeito. A rapa nos acolheu de maneira amistosa. Como um bom aliado, Luizinho se prontificou em nos dar toda assistência necessária. O mano tinha ótimas lembranças, referências de adianto e correria da gente. Para quem chega é muito importante um apoio, pois os obstáculos no recomeço são inúmeros. O “salve” dele foi mais ou menos assim: “E aí tios, tão firmão? Infelizmente a gente tá se trombando aqui, mas se Deus quiser vai melhorar. É tudo nosso. Vocês vieram para o lugar certo. Tão indo um monte de cara de liberdade!” Ainda na gaiola o carcereiro nos perguntou a matrícula, nome completo e o nome dos pais. Por fim anunciou os números das celas em que seríamos distribuídos. Ao pisar no raio em silêncio, mais uma vez pedi proteção ao nosso Criador e confiante dei início à minha nova caminhada. Em vista do Carandiru a nova arena era minúscula. A população total da Casa era de aproximadamente 881 presos. No raio 1 eram 88 celas, sendo 44 do lado ímpar e 44 do lado par. Cada lado era dividido em dois andares com 22 celas cada. As alas pares e ímpares eram divididas por uma quadra de futebol society. A população total do raio 1 era de 249 presos. As celas dos setores de faxina, jumbo, correspondência,

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esporte, judiciária, manutenção e barbearia fechavam às 19h30. Os barracos dos detentos comuns, que não constituíam os setores de trabalho, trancavam às 17h. A construção era padrão em todos os raios, com uma diferença nos raios 2 e 3 denominados fundão.Existiam no fundão apenas 51 celas, porque os barracos eram maiores contendo seis jegas. Lado par era constituído por 25 celas e o lado ímpar 26 celas, composto por dois andares, sendo que o lado par continha 12 celas embaixo e 13 celas em cima, e o lado ímpar com 14 celas embaixo e 12 celas em cima. A quadra de futebol society, como no raio 1 fazia a divisão dos dois lados. Para ser vaso ruim de quebrar, acreditei piamente que só os fortes sobrevivem.

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“LIBERDADE” FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 13 – A lei é para todos, mas a justiça é para poucos

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primeira contagem era pontualmente às 7h30. Na sequência, às 8h, os funças abriam as 88 celas do raio 1. A falta de estrutura era nítida. As vagas nos setores de serviço e na escola não eram suficientes para o contingente dos três raios, por isso a maioria dos presos ficava na vadiagem. As opções de lazer da rapa eram jogar futebol, praticar musculação com pesos inadequados e improvisados (com garrafas de plástico), jogar pingue-pongue numa mesa caindo os pedaços ou andar em volta da quadra society. Todas as atividades externas das celas eram monitoradas por um circuito interno de câmeras (estilo Big Brother). Às 17h trancavam a maioria das celas. Logo em seguida ocorria a segunda contagem do dia. Após a troca de plantão, às 18h30, sem falta efetuavam, mais uma contagem. Ver aquele quadro diariamente me dava agonia. Os dias pareciam eternidade. Os personagens e os figurantes eram sempre os mesmos. Vez em quando “cantavam” uma liberdade. Muitas vezes, quando estava deprimido, olhava pela ventana para espairecer, mas o visual era imutável. Por entre as grades, eu avistava o alambrado, a linha de tiro, a muralha, a guarita. Dentro desta guarita ficava um PM passa fome empunhando um fuzil 762, com ódio por estar de castigo nos vigiando. Ele ficava à espreita de uma deixa para treinar tiro ao alvo e estraçalhar miolos. Lá longe, além das muralhas, existia um aglomerado de montanhas formando pela Mata Atlântica. Essa viagem pela natureza não se prolongava muito, pois logo voltava para a mesmice da fortaleza de concreto e grades. Em questão de dias caímos na esgotante rotina da vida sedentária e do presídio de segurança máxima Nilton Silva II, apelidado pela massa de Franco II. Estávamos no mês de março. Dentro de poucos dias Simony completaria seis meses de gravidez. Fui “obrigado” a apelidá-la de barriguda. Mas ela ficou uma grávida bonita, saudável e sem ganho de peso excessivo. Graças a Deus nosso bebê estava muito bem. Os batimentos cardíacos eram perfeitos, o desenvolvimento físico sur-

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preendia, conforme ultrassom. Minha maior emoção foi quando vi, pela primeira vez, ele mexer na barriga dela. Parecia conhecer minha voz. Eu chegava bem pertinho da barriga e falava: “Cadê o bebê do papai?” Ryan atendia ao chamado e se mexia. Era muito bom ter esse contato. O médico ginecologista, Luís Salvoni, orientou que era muito importante essa proximidade tanto do pai como da mãe. O bebê, instintivamente, absorve esse amor, que é essencial desde o período da gestação. Além de ser o símbolo de nossa aliança, Ryan também se tornou o principal escudo de defesa para Simony contra todas as maledicências. À noite eu deitava a cabeça no travesseiro, refletia sobre nossas vidas. Ficava orgulhoso e ao mesmo tempo espantado diante de tamanha coragem e dedicação. Desde quando vetaram nossas saídas, Simony não faltou a uma visita sequer, apesar dos incidentes, percalços, dor de cotovelo e provocação de invejosos. Todos os domingos ela acordava às 4h. Às 4h50, já estava em frente ao presídio. Encarava uma fila para conseguir entrar às 8h. Geralmente ela conseguia, pois era sempre uma das primeiras visitas a chegar. Um fato que me deixava profundamente aborrecido, era saber que eu tinha outro filho, o João Pedro, e não o conhecia. Estava proibido e impossibilitado de ter contato com ele. Esse foi o pior castigo. Fiquei sabendo que ele havia nascido pela TV. Na época, pedi para minha mãe tentar uma aproximação. Foi inútil. Sei que o rompimento de uma relação é complicado. Um lado sempre fica mais magoado. O fato de eu ter me separado antes do nascimento do bebê não justificava aquele tipo de vingança. A criança não tem nada a ver com os problemas dos pais. Também acho a chantagem emocional um jogo desleal, em que o maior prejudicado é tão somente o filho. Ainda hoje não o conheço. Tenho muita fé em Deus que esse drama em minha vida seja efêmero e que um dia possa dar todo o amor para o meu filho. Mesmo com todos os desacertos e adversidades, Simony e eu estávamos otimistas e esperançosos de que ganharíamos o benefício pleiteado pelo meu advogado – o semi-aberto –, amparado pelo artigo 112 da Lei de Execução Penal nº 7.210 de 11 de julho de 1984.

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Art. 112- A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinado pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão. Parágrafo único - A decisão será motivada e precedida de parecer da comissão técnica de classificação e do exame criminológico, quando necessário. O regime semi-aberto é menos rigoroso e a execução da pena é em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. O semiaberto dá direito ao interno sair no período diurno para trabalhar e regressar à noite. Em abril de 2.001 nossa espera já durava sete meses. A ansiedade não era para menos. Faltavam menos de dois meses para o tão esperado nascimento de nosso filho. Mesmo diante desse impasse e da morosidade da justiça, Simony e eu estávamos convictos que eu teria o benefício do semi-aberto, devido ao lapso temporal. Na ocasião eu já cumpria mais de um terço da pena. O exame criminológico era favorável pela equipe técnica, pela diretoria e ainda a minha evolução com o trabalho musical na reintegração social. Todos esses requisitos, indiscutivelmente, preenchiam os adjetivos e subjetivos exigidos na lei 7.210 da Execução Penal. Mesmo com todo o nosso otimismo e os critérios exigidos favoráveis, ainda assim o inesperado aconteceu: o semi-aberto pleiteado foi indeferido pelo juiz da comarca de Franco da Rocha. Simony e eu ficamos frustrados com a decisão. Que absurdo! Isso foi um tremendo balde d’ água. Ficamos desorientados com o nocaute. A partir daí, minhas possibilidades de estar na rua para ver o nascimento de meu filho eram quase nulas. Sem ter a quem recorrer, sem mais nada a fazer, nos abraçamos dividindo o sofrimento e juntos, choramos. Não é preciso ser bacharel em direito para enxergar arbitrariedade ou perseguição. O juiz alegou que eu tinha indícios de personalidade exibicionista, agressiva e narcisista. Contesto usando as próprias palavras do meritíssimo: “Apesar dos técnicos terem concluído pela possibilidade de progressão, acredito que os indícios de personalidade exibicionista, agressiva e narcisista, teriam que ser detectados pela equipe técnica. Ou juiz também é psicólogo?

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O juiz alegou que o fato do reeducando exercer atividade artística não é suficiente para possibilitar a progressão ao regime intermediário. Acredito, piamente, que o meu envolvimento com a música tenha sido fundamental para minha recuperação e perspectiva futura, porque está mais que comprovado que o sistema carcerário não regenera ninguém. Penso que esse tipo de comportamento exemplar deveria ser reconhecido e apoiado pelas autoridades. A teoria diz que o trabalho, disciplina no cárcere, é imprescindível para reintegração social do reeducando e eu cumpria com meu dever. Para negar o benefício, o meritíssimo se apoiou ainda em uma dúvida criada por ele mesmo de que o meu interesse em estabelecer um relacionamento familiar não era verdadeiro. Nas palavras dele: “Diante do histórico de relacionamentos amorosos frustrados, inclusive com gravidez, o reeducando não se mostra suficientemente preparado para possibilitar a progressão ao regime semi-aberto.” Para mim, o argumento foi absurdo. Minha vida particular diz respeito somente a mim. Ou será que o número de relacionamentos que tive tem algo haver com os crimes que cometi? Por mais que eu tente, não sou perfeito e nem as pessoas que me rodeiam. As questões em pauta eram o julgamento dos requisitos para galgar o semi-aberto, baseado no lapso temporal, o exame criminológico e a atividade laborterápica. Independentemente da nitidez dos meus argumentos para o deferimento do benefício, minha intuição ainda diz que tinha algo por trás, bem mais além do que o que levou ao indeferimento pleiteado para o semi-aberto. Enfim, a lei é para todos, mas a justiça é para poucos. O julgamento é diferenciado para quem tem poder aquisitivo. Cadeia não vale para políticos sujos e corruptos, só para pobres, nordestinos e negros nesse país de impunidade. Sei que um erro não justifica o outro, mas a desigualdade é inafiançável. Vivi boa parte de minha vida tentando provar algo para as pessoas, e nessa incansável luta cheguei à conclusão que não consigo ser perfeito”. “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” (Salmos 30:5).

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– CAPÍTULO 14 – Papai, Mamãe tô chegando

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uas semanas após passarmos pelo revés do indeferimento de meu beneficio, Simony me fez uma surpresa maravilhosa. Trouxe minha filha Hemelly Lawryn, de 2,6 anos para me visitar. Fiquei muito orgulhoso ao revê-la. Estava linda! Trancinha no cabelo, calça bailarina, mini-blusa, botinha de couro e o mais importante, estava saudável. É impressionante como as crianças se desenvolvem tão rapidamente. Minha filha nasceu no dia 27 de outubro. Tão pequenininha e já demonstrava traços de personalidade marcante. Sem mais, nem menos soltou a tagarela, falou de tudo, que estava com saudades de mim, que o Ryan que estava na barriga da Simony, era irmão dela. Fiquei impressionado e admirado quando ela cantou a música Caixa Postal, do CD da Simony. Minutos depois, no rádio, tocou um pagode do Jorge Aragão e repentinamente ela começou a dançar. Entusiasmado brinquei: “Filha, agora só me falta você arrumar um namoradinho. Vê direito, hein? Ta deixando seu pai de cabelos brancos!” No mesmo instante, peguei-a no colo, distribui vários beijos, afagos e abraços. É tão bom sentir-se amado. Acredito que minha filha sentia essa ausência, a presença da figura paterna. Em silêncio lamentei a inevitável distância. Fiquei muito satisfeito com o comportamento civilizado de Simony e minha ex-mulher Luciana, que deixaram a rivalidade, o orgulho e até a indiferença de lado para focar apenas no bem-estar da minha filha. Também fiquei muito contente quando Simony me entregou uma carta escrita pelo meu sobrinho e afilhado Jeron, de 7 anos. Fiquei lisonjeado com as singelas palavras que diziam: “Te amo titio, volta logo. Beijos Jeron”. Chegava o mês de maio e com ele contagem regressiva para o

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nascimento do meu Ryan. O clima era de muita ansiedade e expectativa. As consultas de pré-natal passaram a ser quinzenais. Por precaução deixamos tudo pronto para sua chegada. O design dos móveis de seu quarto era arrojado, modelo exclusivo, com decorações e papéis de parede na cor branca com detalhes azulturquesa, sem perder a característica infantil e angelical. Graças a Deus, Ryan foi bastante presenteado com todos os itens de um enxoval. No primeiro dia de junho, Simony foi a mais uma consulta de pré-natal. O médico deu o diagnóstico sobre o último mês de gravidez. O ultrassom constatou que pelo desenvolvimento do bebê era conveniente que o parto fosse cesariana. Ryan media 46 centímetros e pesava 3,2 quilos. O parto estava previsto para o dia 17 de junho. Meu coração disparou quando recebi a notícia. O tão esperado dia estava bem próximo. Faltavam apenas duas semanas. Percebi que Simony estava muito sensível, e com um barrigão enorme. Mais uma segunda sem lei passou com alguns atritos, acertos de conta, buxixos e todos os fatos corriqueiros da ilha. A noite fria caía. A impressão que eu tinha era de que o inverno seria rigoroso. Mas, o mais triste era enfrentar a ducha de água fria, que infelizmente fazia parte da rotina da penitência. Na noite de segunda-feira, Simony não dormiu bem. Cochilava, acordava. A sensibilidade estava à flor da pele. O barrigão incomodava. Ela não tinha posição adequada para dormir. O bebê mexia demais. Nostálgica, levantou às 5h23 da manhã, pegou papel, caneta e resolveu me escrever para desabafar, pois as cartas se tornaram o passaporte de nossos pensamentos, sentimentos e emoções. Por volta das 14h de 5 de junho de 2.001, uma terça-feira, Simony começou a sentir dores fortes na barriga em intervalos de dez minutos. Antes de tomar qualquer providência, aguardou alguns minutos para se certificar que não era alarme falso, mas as dores não cessavam. A instrução do médico foi que ela tomasse algumas gotas de analgésico e anotasse os horários que sen-

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tisse dores. Mandou que fosse para casa repousar, porque dentro de meia hora, retornaria a ligação para saber do seu estado. Simony seguiu a risca a orientação e dirigiu-se para casa. Passados os minutos estipulados pelo médico, ele retornou a ligação e soube que ela não havia melhorado. Pelo contrário, o intervalo das dores diminuiu de dez para cinco minutos. Nessas alturas Simony já estava apavorada. O médico pediu que ela fosse ao hospital e maternidade Israelita Albert Einstein, na capital. Assim que ela pisou no saguão da maternidade as dores se tornaram insuportáveis. O bebê mexia como nunca. Estava ofegante e sentindo muita falta de ar. Ela foi colocada em uma cadeira de rodas e levada para o centro obstétrico. As enfermeiras mediram os batimentos do coração do bebê. Constataram as contrações com o exame de toque que mostrava cinco dedos de dilatação. Era chegada a hora do parto. Dentro de poucos minutos, o ginecologista chegou ao hospital. Nesse momento o nervosismo estava estampado no rosto da mamãe de primeira viagem. Enquanto terminavam os preparativos para o parto, Simony pegou o celular e ligou para sua mãe em Araraquara. Em seguida para minha mãe, em São Bernardo do Campo. As vovós ficaram em estado de frenesi. Largaram tudo que estavam fazendo. Avisaram o pessoal e se dirigiram para o hospital. O relógio marcava 21h27. Estava encerrado o momento sublime do nascimento do nosso Ryan que foi esperado com muita ansiedade. A natureza agiu com perfeição, apesar de Ryan nos surpreender e antecipar 12 dias sua chegada. Ele nasceu com 3,21 quilos e 49 centímetros. Ao vê-lo, Simony entrou num estado de êxtase. Os olhos lacrimejaram e as lágrimas caíram. Acredito que não existam palavras suficientes para descrever aquele momento único. Dar à luz era realização do sonho de Simony. Mais importante era ver que Ryan era saudável, perfeito. Seus dotes de mãe se fizeram presente. Com palavras suaves e afeto, conseguiu acalmar o choro do filho. Instintivamente Ryan reconheceu sua genitora, parou de chorar e ficou apenas soluçando. Em Franco II nenhum fato novo aconteceu. Escrevi até as 23h.

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Exausto encerrei minha atividade, paguei uma ducha gelada, deitei na jega, peguei o controle remoto, mas a TV só sintonizava a Globo e o SBT. Como não encontrei nenhuma programação interessante, peguei minha Bíblia, fiz minha oração habitual e fui dormir. No dia seguinte, assim que a tranca foi aberta, um funça foi logo me parabenizando pelo nascimento do Ryan. A notícia me deixou atônito. Causou surpresa e desconfiança ao mesmo tempo. Respondi dizendo que a notícia era falsa, porque a previsão era que meu filho nascesse em 17 de junho. Ele insistiu dizendo que assistiu na televisão na noite anterior. Ainda assim, eu não quis acreditar, por causa da maneira que ele me deu a notícia. Mesmo não levando muito a sério o fato perturbou minha mente. Saí da cela fui até a caixinha do correio colocar uma carta. No caminho, vários presos me felicitaram. Nesse instante de dúvida passou para preocupação. Não era possível que todas aquelas pessoas estivessem enganadas, pensei. O que fazer? Voltei em passos apressados para a cela. Desnorteado liguei o rádio de pilha e a televisão ao mesmo tempo a fim de saber notícias. Não sabia o que fazer para conter a adrenalina. Impaciente comecei a andar para lá e para cá dentro da cela. Foi quando, felizmente, a locutora Sandra Groth, da rádio 105 FM, confirmou o nascimento de meu filho e acabou de vez com a minha terrível dúvida. No início fiquei radiante com a notícia, mas depois fui tomado pela angústia por não saber nada de concreto. Me senti inválido por não estar ao lado de Simony em um momento tão glorioso. Olhei ao meu redor: só eu e as paredes da cela. Cabisbaixo, cheguei a derramar algumas lágrimas. Felizmente Deus ouviu meus lamentos. Minutos depois o diretor-geral pediu falar comigo na sala dos advogados. Entrei na sala vazia. Logo em seguida, foi a vez do diretor entrar. Ele me cumprimentou com um aperto de mão. Pediu para que eu sentasse. Aquele suspense me causou temor. Meu coração batia forte. Assim que sentei, o diretor-geral foi direto ao assunto. Perguntou se já sabia da notícia. Respondi que soube pelo rádio, mas sem detalhes. Como ele também era pai entendeu a minha preo-

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cupação e sem hesitar me parabenizou e com palavras tentou me acalmar. Ele já sabia que as possibilidades do juiz autorizar minha ída à maternidade eram nulas. Maldito sistema. Não tive o prazer de presenciar o nascimento de nenhum de meus três filhos. O diretor geral fez uma gentileza que nunca vou esquecer. Pegou o telefone que estava em cima da mesa, discou um número e me passou o aparelho. Ao ouvir a voz rouca do meu bem, abri um sorriso de contentamento. A satisfação foi mútua. Simony não escondeu o ar de entusiasmo com o telefonema inusitado. O diretor-geral saiu da sala e permitiu que eu continuasse a conversa. Sem rodeios indaguei como os dois estavam. Radiante, Simony respondeu que estavam bem. Eram tantas curiosidades que não sabia por onde começar, mas a conversa tinha que ser breve. Perguntei se o Ryan era parecido comigo. Bem humorada, ela descreveu as características do nosso filho. Disse que ele era lindo, com o cabelo pretinho e tinha a minha cara. Falou quanto pesava, quanto media e a hora do nascimento. Romântica, disse que a distância não impedia de estarmos sempre juntos. Ela me fez o pai mais feliz do mundo. Simony encerrou a conversa dizendo que Ryan estava recebendo muitas visitas de nossos familiares e também de artistas. Disse que nossas mães estavam disputando o espaço para ver quem o pegava mais no colo e que provavelmente teria alta no sábado. Assim, no domingo, levaria nosso filho para eu conhecer. Quando desliguei o telefone, senti o maior alívio. Aquela semana parecia ser a mais longa de todas. Eu não conseguia dormir direito. Não sentia fome. Em meus castelos ficava tentando imaginar como era sua fisionomia, o corpinho, a cor do meu filho. O que eu mais queria era pegá-lo no colo. O tão esperado final de semana chegou. No sábado pela manhã quando a tranca foi aberta, o jornal do ladrão e alguns funcionários comentavam que minha mulher, meu filho e a produção do Gugu pousariam de helicóptero em frente da penitenciária. Em princípio o rumor me causou dúvida. O assédio da imprensa foi driblado: Eles subiram de elevador até o heliporto, embarcaram na aeronave

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com destino a Penitenciária II de Franco da Rocha. Quando o funcionário me avisou da visita inusitada meus batimentos cardíacos aceleraram. Deu até tremedeira nas pernas. Me vesti rapidamente. Fiquei apreensivo e impaciente com a demora, devido a algumas burocracias da Casa. Fui liberado depois de 20 minutos. Que alívio! Um funça seguiu na frente escoltando, quando saí da gaiola do raio I, avistei no final da radial, próximo a entrada da inclusão estavam as câmeras, holofotes e filmadoras do SBT que focalizaram cada detalhe, cada reação e meus passos rumo ao encontro memorável. Foi uma sensação indescritível, um prazer inenarrável ver Simony com meu filho no colo. Meus olhos brilharam como diamantes. Deus sabia de nossas necessidades e o que se passava em nossos corações. De braços abertos apertei os passos e fui ao encontro dos dois, num clima de euforia, sorrisos e lágrimas, beijei e abracei meus amores. Em seguida, finalmente peguei meu bebê no colo para dar-lhe a bênção e as boas vindas. Fiquei encantado com o Ryan. Graças a Deus nasceu saudável, comprido e cabeludo. Era impressionante como se parecia comigo. Herdou da mãe apenas algumas características como a boca, o queixo, as mãozinhas e o sorriso cativante. Ele dormia tranquilamente feito um anjinho. Não dava a mínima para o “coruja” que o estava bajulando. Como Ryan não queria acordar, fui obrigado a despertá-lo. Levantei-o com as duas mãos até esticar os braços. Foi emocionante vê-lo abrir os olhinhos, espreguiçar, fazer um biquinho de reprovação e uma careta igual a minha quando acordo. Meu ego ficou enaltecido com aquele pedacinho de gente tão inocente, tão vulnerável e tão dependente de nós. Apenas um gesto do bebê foi suficiente para que a mamãe soubesse que era hora da amamentação. Foi emocionante ver aquela cena e inesquecível aos olhos e coração. Em silêncio agradeci muito a Deus pela dádiva da vida do meu filho. Família é o alicerce do homem!

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“OBRIGADO VOCÊS POR V OCÊS EXISTIREM” FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 15 – Assim meu coração não aguenta

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sonho de liberdade virou realidade. Fui contemplado com o regime semi-aberto após quatro meses do indeferimento. Mais uma tarde chegava a Franco I. O sol descia no horizonte feito uma gema de ovo. Após a tranca das celas, os companheiros e eu conversávamos, reclamávamos da burocracia, morosidade e também da demora para o julgamento dos benefícios pleiteados, quando de repente um mano que estava na campana exclamou: “Mano, o funça tá subindo aqui pra galeria com uns papel na mão.” Corri para ver, foi quando o funcionário parou em frente a cela e cantou meu nome completo. Meu coração disparou. Estava com um bom pressentimento e realmente era a luz brilhando no fundo do túnel. Ganhei o semi-aberto. A partir daquele momento, os minutos, os dias, as semanas, enfim todo o tempo começou a ficar mais longo. Não conseguia mais comer direito. Mal dormia. Só pensava na rua. Na minha mente mó castelo, sonhos, planos, anseios, projetos e perspectivas para a tão sonhada liberdade. Fui transferido para o semi-aberto de Franco da Rocha em novembro de 2.001 e recebi a oportunidade de saída temporária para as festividades de fim de ano. Glória a Deus. Lembro como se fosse hoje. Na noite de 14 de dezembro nem consegui dormir por causa da ansiedade. Por volta das 6h os primeiros raios do sol reluziam e anunciavam um dia lindo daqueles de verão. Depois de todo o procedimento de chamada, seleção e conferência, quase 90% do contingente de 1.500 presos saiu para as ruas do mundão, com retorno previsto para 5 de janeiro de 2.002. Do lado de fora, Simony me esperava com nosso filho Ryan no colo. Quando os avistei, apertei os passos e logo cheguei ao carro. Peguei meu filho no colo e o beijei muito. Seguimos rumo

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ao bairro de Higienópolis, na capital paulista. Aproveitei muito bem os 15 dias com a minha família. O tempo passou voando e me deparei com a tristeza do retorno à penitenciária. Tive momentos extremamente prazerosos no convívio familiar, o luxo da minha casa, meu colchão macio, enfim coisas simples do dia a dia que muitas vezes não damos valor. Entristeci ao pensar que teria que enfrentar tudo de novo: regras, pressões psicológicas, maldade, humilhação, perigo, sofrimento, descaso... todos esses sentimentos negativos que queria esquecer e apagar de vez da minha memória. Dos males o menor, aquele processo era o primeiro passo rumo à vitória. Em abril de 2.002 fui transferido para cumprir o semi-aberto na Chácara Belém 1, na zona leste de São Paulo. A expectativa para minha liberdade era enorme, pois já preenchia o lapso temporal e os requisitos exigidos pela LEP (Lei de Execuções Penais). Fiquei frustrado, a condicional foi negada. Realmente Deus escreve certo por linhas tortas. Fui apresentado à dois advogados criminalistas, Regis de Oliveira – que também exercia o cargo de deputado federal e Moacir Tutui – um japonês simpático, especialista em defesa oral, promotor aposentado. Junto com a minha advogada, eles desenvolveram a defesa escrita e oral para pleitear o benefício indeferido no Supremo Tribunal. Ganhei a condicional no supremo, com apenas um voto contra. Em 11 de julho de 2.002, rotineiramente acordei às 5h. Fiz minha oração habitual. Fui ao banho, me vesti e me preparei para sair do semi-aberto para o trabalho. Estava de bem com a vida, feliz e otimista. Parecia pressentir algo de bom naquela manhã. Quando fui pegar minha carteirinha de trabalho estava bloqueada para saída, logo questionei o funcionário que fazia a liberação dos presos do semi-aberto que tinha trabalho externo. “Que tá pegando, chefão? Cadê minha carteirinha de saída? Não vai dizer que esqueceram de mim? Dando uma risada irônica o funça respondeu levando na esportiva: “Epa, péra lá, muita calma, ladrão! Aqui não tá especificando

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o motivo, cê aprontou alguma? Só pode ser resultado de algum benefício ou exame que você tem que fazer.” “Tenho o benefício de condicional, que graças a Deus já está ganho. Só pode ser liberdade chefão, tenho convicção!” Naquela altura do campeonato, nada poderia tirar minha paz e a certeza da vitória. Mas confesso que fiquei um pouco ansioso e eufórico. Não via a hora de acabar aquele pesadelo que já durava 7,5 anos. Perdi praticamente toda a juventude atrás das grades. Os momentos finais no cárcere foram os de maior reflexão em toda a minha vida. Tinha uma imensa responsabilidade de não errar de novo, principalmente de não decepcionar á Deus pela a oportunidade. Tinha que lutar contra o preconceito por ser ex-presidiário, ser exemplo para os meus filhos, familiares e fãs. Meu maior desafio era dizer ao crime: Nunca mais. Logo saí da viagem com um grito de um preso que indagou: “E aí, rapaz? Tá chapando? Tem uma ligação da sua senhora lá no orelhão do pátio externo, corre lá, meu.” Corri até o orelhão, a Simony já estava mó tempão na linha e logo foi dando a melhor notícia do dia, em ritmo de muita comemoração e entusiasmo: “Parabéns, você ganhou sua liberdade, você é um homem livre!” Por segundos fiquei sem fala. Que felicidade! Deu mó tremedeira nas pernas, dor de barriga, nem acreditei que estava acordado e gaguejando perguntei: “Mas é quente mesmo essa notícia? Como você sabe?” “Falei com os advogados logo cedo e a papelada da condicional já foi despachada do Fórum. O alvará de soltura já está aí desde ontem a tarde. Falei também com o diretor e ele me disse que essas coisas são meio burocráticas mesmo, entendeu?” “Ah, então é por isso que ontem quando cheguei do trampo, ouvi uns funças comentando que iria ter várias liberdades hoje. Então tá. Deixa eu fazer uns corres aqui pra ver essa parada. Depois comunico o horário pra você vir me buscar. Beijão querida, fui.” Desliguei o telefone e apressei os passos rumo ao portão principal. Bati na grade e chamei o funcionário responsável. Ainda

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bem que era plantão limpo e logo veio o chefe. Esse funcionário era a maior figura. Usava óculos Ray-Ban na cara, calça jeans quase caindo, barrigona gigante para fora da camiseta branca, colete preto de agente penitenciário. Andava sempre em passos de tartaruga. Depois de muita dificuldade o figura chegou para falar comigo. Trouxe uma boa notícia, mas demorou um pouco porque era gago. Disse para eu me aprontar que por volta das 13h buscaria todos os reeducandos que tinham ganhado o benefício. Ufa! Era difícil conter a adrenalina. Olhei no relógio que marcava 9h30. Liguei para Simony e pedi que ela estivesse na portaria do presídio às 15h30. O trâmite de qualificação para evitar fraudes e fugas consistia em conferência da documentação enviada pelo Fórum (alvará de soltura), planilha de impressões digitais do beneficiado, questionamento dos dados pessoais, comparação com as fotos da pasta cadastral, comparação com a assinatura de entrada na prisão e assinatura na cópia do alvará de soltura. Tudo isso levava tempo. Somente depois, o preso estaria parcialmente livre. Porque a condicional é um benefício muito delicado e cheio de requisitos à serem cumpridos, qualquer infração mínima pode levar de volta à prisão, na estaca zero. Depois de quase uma eternidade, minha hora chegou. A despedida dos companheiros de sofrimento e dos funcionários do pavilhão foi rápida. Com sorriso no rosto desejei boa sorte a todos. Mesmo assim um pessimista falou para eu tomar cuidado para não voltar. A felicidade era tanta que ignorei o invejoso e segui para o “abre-te, Sesámo”. A cada portão que abria meu coração acelerava mais. Habitualmente já transpiro muito, mas naquele dia o suor descia sem cessar. Um funcionário acompanhava três reeducandos e eu. Coitado, ele falava sozinho. Eu estava longe dalí. No meu castelo, em silêncio, orava e agradecia a Deus. Era só alegria, que sentimento bom. Logo adiante, avistei a Simony, meu filho Ryan, a babá e nosso segurança. Vi também outras pessoas ao redor que não conhecia. Alguns paparazzi com suas câmeras de filmagens e fotografias. Apertei os passos. Deixei o funça para trás. Era uma tar-

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de ensolarada, com um céu azul lindo. Os pássaros voavam, pareciam comemorar a dádiva comigo. Cheguei bem próximo do último portão de acesso para a rua. De longe, o funcionário que estava comigo acenou com a cabeça em sinal de positivo para que o outro liberasse a saída. Naquele momento me senti um pássaro saindo da gaiola, dei um grito de liberdade. Abracei e beijei a Simony. Peguei meu filho levantei bem alto, cumprimentei a todos. Não consegui impedir que as lágrimas de felicidade rolassem. Sobrou um tempinho para as fotos, entrevista rápida. Logo seguimos rumo a Alphaville. No banco de trás segurei na mão da Simony, fui curtindo o meu filho e a paisagem. Abri o vidro do carro senti a brisa agradável no rosto. Olhava aqueles carros em alta velocidade na marginal meus pensamentos voavam. Numa tarde de verão eu estava em casa curtindo o meu bebê, quando meu celular tocou e recebi uma ligação ilustre. Era meu parceiro, Netinho de Paula, que fazia um convite: “Nego, é o seguinte, tô com um projeto de vanguarda, que vai fazer a diferença na TV brasileira e ao mesmo tempo oportunizar nossa raça que é tão descriminada e não tem espaço por direito. O projeto consiste num seriado chamado Turma do Gueto. Ele irá retratar o dia a dia das comunidades mostrando o paralelo que a sociedade desconhece e também seu lado bom. Vários talentos anônimos irão participar. Será exibido pela Rede Record e 70% do elenco será de manos das periferias. Então, gostaria de fazer um convite para você e a Simony somarem conosco. O que acha da idéia?” “O projeto é fantástico. Parabéns. Só que não sou ator, mas a gente aprende. Da minha parte tá tranquilão, tô envolvidão. Agora preciso falar com a patroa pra ver o que ela acha, ok? Aí dou um retorno e marcamos uma reunião.“ “Negrão esse é o momento, você tem que fazer parte dessa história. Te aguardo, fica com Deus, tamo junto”. Assim que desliguei dei a notícia para a Simony, que curtiu muito a idéia do projeto e aceitou de bate pronto.

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A novidade das gravações do programa se misturou com a ansiedade sobre o nascimento de mais um filho meu com Simony. Desta vez, uma menina. Nosso sonho de ter um casal estava se realizando. O tempo não pára. Logo chegaram as últimas semanas de gestação. Era maravilhoso falar com o rosto colado na barriga da mãe e sentir a reação. Na manhã de 13 de maio de 2.003, começou o corre-corre. Acionei o médico e seguimos ás pressas rumo ao Hospital Maternidade Albert Einstein, no bairro do Morumbi. Já na maternidade, conheci o rei do futebol, o Pelé. O negrão é mó simpatia. Ele estava acompanhando o filho Edinho, que também aguardava o nascimento da filha. Simony estava tranquila e não era mais marinheira de primeira viagem. Fui convidado para ficar numa ante-sala. Levei uma filmadora portátil para registrar um dos momentos mais sublimes que meus olhos iriam presenciar. Uma enfermeira me trouxe um kit que continha uma calça com elástico, um camisão verde clarinho, um forro para o tênis, uma touca e uma máscara que cobria a boca e o nariz. Nervoso, comecei a andar de um lado para o outro e a roer as unhas. Parecia que iria demorar. Olhava de segundo em segundo para o relógio e quando faltavam 25 minutos para o início do parto a enfermeira me chamou. Nesse momento fui tomado por uma tremedeira nas pernas, até senti um friozinho na barriga, então peguei a filmadora e segui a enfermeira. Tenho pavor de hospital porque o ambiente me faz recordar alguns episódios tristes da minha vida. Perda de alguns amigos e ainda quando sofri um atentado. Fui baleado nas costas e permaneci por 15 dias internado sendo oito na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Tudo aconteceu na noite de 20 de agosto de 1.994, poucos meses antes de eu ser preso pela primeira vez. Eu estava em casa quando três caras armados com revólveres calibres 38, 32 e 22 bateram palmas. Eles queriam se vingar de uma briga que eu tive dias antes com um amigo deles em um baile. Ao chegar ao portão, eles já estavam com as armas em punho. Instintivamente pulei sobre um destes homens. Durante a luta,

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houve vários disparos, mas não consegui tirar a arma das mãos do cara. Neste momento, um dos comparsas do sujeito disparou com a arma calibre 22 nas minhas costas. Deus me livrou da morte e de ficar numa cadeira de rodas. Mas desta vez, a minha visita ao hospital era por um bom motivo. Entrei no centro cirúrgico da maternidade à procura da mamãe e da princesinha. Me mantive firme. Com a mão esquerda acenei cumprimentando a junta médica e com a mão direita meio trêmula segurava a câmera e filmava tudo o que podia. Entre a junta médica, toda aquela parafernália de aparelhos e luzes avistei Simony. Ela estava pálida e abatida, mas soltou um sorriso maroto. Aquilo foi como injeção de ânimo. Passei a filmadora para um enfermeiro continuar a cobertura e me posicionei na frente da mesa de cirurgia. Aparentemente, para um leigo como eu, era tudo muito simples. Tinha que ter estômago para ver a cena. Quando a nega saiu do quentinho da barriga para o mundão frio de ar condicionado artificial abriu um berreiro. Fui chamado para cortar o cordão umbilical. Não sabia se acudia minha filha ou se cortava o cordão. “Vamos, Cristian. Temos que comemorar o nascimento da Aysha.” A parte mais fantástica foi quando o médico levantou a Aysha que chorava muito e deu em minhas mãos. Quase tive um “troço” de tanta emoção. Fiquei com um olhar fixo admirando a obraprima. Esqueci de tudo naquele momento. Só sai do transe com a enfermeira querendo o bebê para fazer os procedimentos pósparto. A Aysha era perfeitinha, chorava demais e para que ela ficasse mais calma, coloquei bem pertinho do meu rosto, dei um beijinho e falei no ouvidinho dela: “É o papai amor, calma meu bem, é o papaizinho.” Instintivamente ela parou de chorar. É claro que me emocionei. Mais uma vez as lágrimas de felicidade caíram. Aqueles momentos estão eternizados na minha memória. Deus concluía mais um projeto em minha vida, proporcionando uma das maiores experiências que um homem pode ter que é o nascimento de seu filho.

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“A VID A NÃO É UM VÍDEO-GAME” VIDA

FOTO FELIPE

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– CAPÍTULO 16 – Falhei na missão

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u não estava preparado para o sucesso, portanto fadado ao fracasso. Tudo começou quando a soberba subiu à cabeça. O meu mal foi pensar que o sucesso era eterno. Me tornei uma pessoa arrogante e insuportável. Esqueci que o segredo do sucesso é a humildade. A vida me ofereceu grandes oportunidades e ao invés de agarrar com unhas e dentes, fiquei olhando para trás e uma fila imensa tomou minha vaga. Minha moral estava em alta, baixei a guarda e a empolgação se uniu à vaidade excessiva. Sem perceber, confundi todos os valores. Hoje em dia é tão difícil furar o bloqueio, ser bem-sucedido, ganhar dinheiro, ter a sonhada estabilidade financeira. É dificilíssimo construir uma carreira sólida. Mas é muito fácil perder tudo num piscar de olhos. Quando percebi meus erros achei que era tarde demais, que o sol já tinha se posto e o tempo passado. Ou era apenas o começo de uma nova história? Em 2.005, eu passava por uma boa fase. A situação financeira estava equilibrada e eu colhia os frutos do meu trabalho. O primeiro CD do 509-E vendeu cerca de 90 mil cópias. Dexter e eu ficamos conhecidos no Brasil todo. Fizemos muitos shows e viagens. Era um momento de alta na nossa carreira musical. Estávamos divulgando o segundo álbum 2002 depois de Cristo. Por um descumprimento contratual por parte da gravadora Atração Fonográfica, rescindimos o contrato. Infelizmente comecei a perder a essência da família, inverti valores que são sagrados. Minha família ficou em segundo plano. Acreditava que o meu sucesso era apenas resultado do meu

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próprio esforço, sendo que os méritos são de Deus. O ditado popular prevalece: quer conhecer o homem, dê poder à ele. Podemos ter dinheiro sim, mas nunca deixar que ele seja nosso dono. Estava me sentindo o rei da cocada preta, com fama, dinheiro e poder. Eu não reconhecia que precisava de ajuda. Tinha mania de maquiar as coisas, fazer vistas grossas e dizer que estava tudo bem. Tudo indo de vento em popa materialmente, mas em casa não exercia a figura de pai. Era omisso, um péssimo marido, péssimo irmão, péssimo filho, um colega e não um amigo. Começaram as crises no casamento e no grupo 509-E. A pressão psicológica era muito grande eu não tinha estrutura para lidar com o sucesso, a grana, o glamour, o assédio, as tentações. Minha postura era sempre de um homem durão, mas, na verdade eu estava fragilizado com tudo aquilo. Desde a minha saída da prisão, a comunicação com o Dexter ficou abalada. O sistema também tinha interesse no fim do grupo, pois nosso discurso tocava na ferida dos poderosos, já que denunciava a ineficiência do sistema. Eles não querem a solução desse caos para não perderem as chances de desvio das verbas astronômicas. Na prática, está comprovada a falência do sistema. Não há interesse algum de que pessoas sejam recuperadas. Prova disso são os presídios brasileiros onde seres humanos são jogados. Negaram minha entrada na prisão para ver o Dexter. Minha exposição na mídia se transformou em uma relação de amor e ódio. Algumas matérias saíram destorcidas. Achavam que Dexter e eu fomos presos juntos e com a mesma condenação; e por isso questionavam por que eu havia saído e meu parceiro não. Muitos achavam que eu tinha a chave da cadeia e estava fazendo corpo mole para soltá-lo! Apostavam ainda que meu casamento com a Simony fosse por interesse, puro marketing. A verdade é que quando a conheci, o 509-E já tinha vendido 60 mil cópias, com exposição nos principais veículos de comunicação. Como se não bastasse, corria o boato de que fiquei rico e abandonei o meu parceiro Dexter na cadeia. Infelizmente existem

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pessoas que perdem tempo praticando a maldade para atrasar a vida dos outros. Os medíocres fomentavam inverdades, envenenando o Dexter que estava enclausurado, fragilizado e com perspectiva remota de saída. Analiso também que o 509-E causava muita inveja, ciúmes por se tornar uns dos ícones do movimento Hip Hop em menos de um ano de carreira. Era o preço da fama. Envolvidos nesse jogo começamos a bater de frente um com o outro. Tolerância zero. Muito estresse. Hoje vejo que tanto eu quanto o Dexter tivemos culpa para o fim do 509-E. O principal motivo foi o nosso orgulho. Um grupo é igual a um casamento ou uma família. É muito difícil uma convivência a dois, ainda mais sendo dois líderes. Em uma tarde de maio de 2.005, recebi um telefonema do Dexter que me deixou desnorteado. A triste notícia decidia de uma vez por todas acabar com nossa parceria no 509-E. Ele não deu explicações. Mas não era apenas um grupo, era muita coisa envolvida, um conjunto de sonhos, amor, dedicação, ideologia, luta, conquista, projetos, fãs. Estava tudo isso indo por água abaixo. O que mais me deixou magoado foi saber que várias pessoas já tinham conhecimento dessa decisão antes de mim. Fiquei indignado, mas o pior ainda estava por vir. Saí como vilão da história, traidor, desonesto. A pior coisa do mundo é ser responsabilizado por algo que você não fez, mas a arapuca estava armada e eu caí. O coração do homem é terra desconhecida. Era aquela fase que tudo dava errado. Uma avalanche de desgraça me assolou. Em casa, vivíamos um período de muitas brigas, às vezes por coisas banais. Sei que todo casal passa por momentos difíceis, mas na hora do nervosismo um dos dois tem que ceder. Sem dar o braço a torcer comecei a sair constantemente para a balada para me distrair e encontrar os meus “amigos”. Isso só piorava a situação, chegava e já era dia. Vinham mais discussões, trocas de ofensas. O afeto foi acabando e o amor esfriando. Íamos empurrando com a barriga por amor aos nossos filhos. Mas chegou uma hora em que ficou impossível refazer o nó desatado.

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Eu, que me sentia um super-homem, me vi na rodovia Castelo Branco parado, sem rumo, chorando igual criança, sem meu maior patrimônio: a família. Fiquei sem horizonte. Não passou muito tempo, a tentação veio me visitar. Os falsos amigos diziam que a vida era assim mesmo e me arrastavam para mais uma balada. Começaram a pipocar ligações das piriguetes. As putas descobriam o número do meu telefone. Comecei a achar que a saída estava numa boa transa, num copo de bebida ou até mesmo num baseado. Acreditava que a droga aliviaria a pressão. Mas na real, era tudo ilusão. O 509-E me deu vários privilégios: dinheiro, família, fama, carros, prestígio, vantagens, fãs, shows por todo o país. O dinheiro mal administrado foi à raiz de todos os males. Tudo o que eu tinha conquistado passou como um vento. Fiquei na rua da amargura. Voltei a morar hora com o meu pai, hora com a minha mãe. Fiquei meio perturbado, tive sintomas de depressão, dormia demais para fugir da realidade, queria ficar sempre sozinho, achava que não tivesse mais amigos. Pensei muito em suicídio. Ainda tinha uma arma guardada e várias vezes ficava olhando para ela a fim de apertar o gatilho na cabeça, achando que minha vida não teria mais jeito e nenhum valor. Estava na lama, no fundo do poço. Só e sem saída! De carro importado passei a andar de trem e ocupar o último vagão. O pior era ser reconhecido e ainda ter que dar autógrafos quando alguém admirado falava bem alto e chamava a atenção dos outros passageiros: “Afro-X? Você é o Afro-X? Pode me dar um autógrafo?” E daí já sabe, todos que me conheciam se aproximavam para falar comigo. Eu ficava constrangido, não me via mais como o ídolo do 509-E. Meus “amigos” do meio artístico nem atendiam aos meus telefonemas. Uma realidade que a mídia desconhece, nua e crua como um soco fulminante no estômago, reagi tentei lutar, mas não deu, com o tempo perdi as forças e então me vi nocauteado pela vida.

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“SOUL LIVRE”

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– CAPÍTULO 17 – A Virada

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s momentos difíceis que eu atravessava eram consequência das minhas atitudes e erros. A vida nos permite aprender pelo amor ou pela dor. Aos poucos descobri que enquanto há vida, há esperança. Toda aquela prova foi importantíssima para o resgate de valores que eu havia perdido e o entendimento do projeto grandioso que Deus tinha reservado para mim. As coisas acontecem com muita rapidez do lado de cá. Eu paguei o que devia junto a lei dos homens. Foram 7,5 anos de reclusão ou 2.737 dias preso. Essa eternidade atrás das grades foi um grande aprendizado. Percebi que não havia interesse algum do sistema em recuperar o grande contingente de internos do qual eu fazia parte. Depois de todas as perdas veio a desilusão. Como Salomão, percebi que “todas as coisas debaixo do céu, são vaidade”. Faltava algo e eu saía à procura. Precisava preencher o grande vazio que me assolava. Mesmo tendo o costume de fazer as minhas orações, precisava de um encontro verdadeiro com Cristo. Um dia, minha mãe fez um convite: “Filho, vou te levar à um lugar que irá te fazer muito bem e mudará a sua vida.” “Mas onde é esse lugar que eu procuro e não encontro. Será que existe mesmo?” Por alguns instantes desconfiei do convite, mas tinha que dar crédito diante da voz mansa que falava ao meu coração. Fiz a barba e me arrumei ainda meio desanimado. Lembro que era

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uma linda manhã. No caminho, fiquei imaginando que lugar seria aquele que minha mãe insistia tanto em me levar. Quando me dei conta, estava entrando em uma grande igreja e logo senti algo prá lá de especial, uma forte presença. Eu realmente estava em um pronto-socorro espiritual. Sentei e ouvi atentamente todos os acontecimentos no templo. Um jovem pastor pregava a Palavra com muita ousadia. Afirmava, com convicção, que Jesus estava naquele lugar. Falavam de um Deus de amor, esperança, restauração, promessas e vitórias. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó que me faria viver maravilhas como eles viveram, coisas que meus olhos não viram, meus ouvidos não ouviram e nem jamais subiram ao coração de homem algum. Uns cantavam, outros choravam, aplaudiam, levantavam as mãos e adoravam dando glória em voz alto. Tudo aquilo era novo e estranho, mas eu também estava sendo envolvido pela Shekinah – a Glória de Deus. Algumas pessoas me reconheceram e eu sabia no íntimo que desejavam meu encontro real com Jesus. Queriam que eu saísse curado pelo poder de Deus. Eu, que criticava os crentes, dizia que nunca pisaria numa igreja evangélica e tinha convicção de que os cultos não passavam de encenação e que pastor era tudo ladrão, estava lá. Era agosto de 2.005. Ao final da reunião o pastor perguntou se algum dos presentes queria aceitar Jesus Cristo, propondo um desafio de mudança. Hoje, compreendo muito bem essa proposta, a melhor que já recebi em toda a minha vida. Levantei da cadeira, impulsionado por uma força que eu não conhecia e fui até o pastor. Minha mãe chorava compulsivamente. Ela sabia que aquele era o primeiro passo para a minha mudança definitiva. Foi um momento “mágico”. Só quem vive compreende. Em minha vida experimentei muitas sensações, mas aquela de encontrar a Jesus Cristo foi ímpar, inigualável, a melhor. Fiquei mais leve, o aperto em meu coração foi afrouxado e me senti livre. A felicidade ressurgiu. Eu sei que Jesus também me chamou e fico feliz por ter ouvido o chamado em tempo. Ainda pos-

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so viver dias para o louvor da Sua glória, salvando vidas, sendo um instrumento de Deus para estabelecer a Sua vontade na terra. As coisas velhas já passaram e tudo se fez novo. O passado serve apenas como referência para o presente. Tenho prazer em viver, pois fui curado da depressão que me assolava e me fazia desejar a morte. Comecei a compôr músicas de maneira diferente. A renovação surtiu efeito no meu semblante, na maneira de falar e em minhas atitudes de tal forma que as pessoas reconheciam a transformação. Hoje, vivo para o louvor d’Ele. O meu prazer é ganhar vidas através do Evangelho transformador. Enxergo que o mundo precisa conhecer Deus, assim como eu precisei conhecê-lO um dia. Desde que iniciei minha caminhada com Cristo coisas novas começaram a acontecer. Depois de 15 dias da minha conversão, eu estava em um culto e recebi, por intermédio de uma profetiza, um recado de Deus. E só quem tem fé poderia alcançar. O Senhor disse que eu faria uma viagem para ao Exterior. Era preciso de um milagre para que isso acontecesse. Eu precisava romper quatro obstáculos: ter autorização do juiz e do ministério público, ter autorização da policia federal, ter permissão do consulado americano, ter permissão da Imigração. Tudo isso me fazia pensar no impossível. Corri atrás das permissões necessárias e tive sucesso absoluto. Incrível, incrível. Quando entrei no avião eu nem acreditei. Feito um bobo, cumprimentava a todos dentro da aeronave. Era o milagre concretizado. Passei 30 dias em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Fiz um intercâmbio cultural. O lançamento do videoclipe da música O Regenerado aconteceu em Manhattan. Conheci personalidades da Old School do Hip Hop. Com Cristo somos mais que vencedores. Tudo que perdi está sendo restituído. Hoje tenho a amizade dos meus filhos, o acesso a eles é legal e ao mesmo tempo espontâneo. Trabalho com afinco para realização de todos os meus projetos sócio-culturais e tudo que pretendo conquistar. Fiquei mais inspirado, comecei

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a compor músicas para o meu primeiro CD gospel e continuo minha carreira solo como rapper, “Das ruas pro mundo.” Em abril de 2009, concluí o cumprimento dos sete anos da condicional, colocando fim aos 14 anos que fui condenado sem nenhum ato que desabonasse a minha conduta. Reconquistei minha cidadania. Sou livre, um homem livre. Graças a Deus essa experiência no crime teve um final feliz, porque aprendi o segredo para me esquivar das armadilhas do sistema e só assim desenvolvi uma estrutura para vencer a estatística alarmante dos quatro Cs (Crime, Cadeia, Cadeira de rodas ou Cemitério). É necessário fazer algo urgente em prol da tão sonhada mudança. Convido você para este desafio: Qual personagem você desejou ser ao concluir a leitura desse livro? Se um dia você me encontrar em algum lugar, lembre-se: O meu passado ficou para trás. Exatamente em 23 de abril de 2009, foi cumprida a pena total de 14 anos e meio de reclusão. A história continua. De vitória em vitória!

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– DIALETO –

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prisão adotou seu próprio dialeto. Muita gente não tem noção, mas tais gírias usadas no nosso dia a dia são extraídas da prisão. Um exemplo muito usado é a expressão “sangue bom”. Ela foi levada para as ruas e posteriormente a linguagem tomou conta das telinhas. Botes - enquadro da polícia Burra - cama de concreto Cabrito - carro, moto ou caminhão, roubado ou furtado Calça jega - calça bege com elástico na cintura, uniforme padrão do sistema carcerário Cantiga de grilo - papo furado Cara - indivíduo Carrinho de pagar bóia - carrinho de servir as refeições Carteirinha de íntima - carteirinha de identificação com foto da esposa de detento para visita íntima conjugal dentro da cela Castelo - devaneio Cavalo - piloto de fuga Chapando - ficando louco Chiqueirinho - compartimento na parte traseira da viatura onde os presos são levados Coban - banco Coxinha - apelido dado aos policiais militares Dar guela - deixar notar, ser percebido Da hora - legal Demorô - que passou da hora Dar milho - errar ou deixar a desejar. Documento quente – documento autêntico

A chapa tá quente – os nervos estão exaltados, pode rolar confusão A milhão - agitado, a todo vapor Amarelo – local para onde é levado o preso que está de castigo. A cela fica isolada e não recebem raios solares, o indivíduo fica com uma cor amarelada por causa da falta de sol. Área - bairro Artigo 12 - tráfico de drogas Artigo 155 - furto Artigo 157 - assalto a mão armada Artigo 121- homicídio Até umas horas – por muito tempo Atracar – chegar Atrasalado – pessoa que atrapalha a vida de alguém BO – boletim de ocorrência, desacerto ou situação difícil Banca - turma Bandeco - marmita Barato – legal, coisa Baseado - cigarro de maconha Bode - dormir Boeiro - preso que serve as refeições Boi – banheiro Boia- comida Bolão - muitos Bolo podre - aglomerado de gente perversa Bonde - transferência

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Jega - cama de concreto Jornal da Pedra do Preso – os comentários, as fofocas Jumbo - alimentação que alguém envia para o preso Justiceiro ou juju - matador de aluguel ou quem mata ladrão KGB - preso que trabalha junto com a polícia Lagarto - laranja ou preso que assume os atos do outro Lei dos 30 - por mais alta que seja a pena, a legislação brasileira permite somente o cumprimento de 30 anos de reclusão Ligar - contar algo Mano - amigo ou irmão Marrocos - pão Matraca - ferramenta confeccionada pelos presos para furar concreto, metralhadora Melado - sangue Mereça - mixaria Mesclado - cigarro de maconha com crack Mil grau - coisa admirável Mina - mulher ou namorada Micha - chave Mó - maior ou muito Mó lua - maior calor Morô? – entendeu? Mosquito de ferro - helicóptero da polícia Mula - brincadeira Mulei - brinquei Nóia - dependente de drogas O cavalo marchô - deu certo Onça - funcionário P2 - Pavilhão 2 P4 - Pavilhão 4 P5 - Pavilhão 5 P6 - Pavilhão 6

Duque 13 – estuprador, condenado pelo artigo 213 do código penal É mato – vários, diversos É nóis - estamos juntos em qualquer situação É quente - é verdade. Exú - indivíduo endiabrado Família - parceiros ou companheiros que estão lado a lado em qualquer situação Faxineiro - indivíduo que faz a faxina e tem voz ativa na prisão Fazer a boa - ganhar muita grana Feio na foto - prejudicado Firmão - estar bem de saúde e com paz de espírito Firmeza total – tudo bem, tudo certo Fita – local, produto, situação. Exemplo: “você vai naquela fita?”, que significa “você vai naquele lugar?”. É usado como código. Ir de bode – ir dormir Fura- fuzil Funça - funcionário Fundão - último ou lugar periférico Gaiada - ambiente ou lugar. Gambé – policial Ganso – espião da polícia que mora na quebrada, fofoqueiro Garrafinha - projétil de fuzil Goma - casa GP - guarda penitenciário Güentar – enquadrar H - fazer média Hiena - pessoa que deseja o mal para os outros Ilha - cadeia Ir pro arrebento - ir para o tudo ou nada Jaca – bunda, nádegas Jack - estuprador

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Rato de mocó - preso que furta outro preso Recursista - preso que presta serviços judiciários aos outros presos Roubadinha -plano para enganar alguém Rodo - rasteira Rua 10 - galeria isolada do fundo de qualquer andar, lugar onde ocorriam os acertos de contas Sair quente - ir na disposição Salve - saudação Sangue- bom - um cara respeitado Sem palavras - ato de agradecer Seqüestrado - indivíduo que infringiu as regras do crime e está aguardando o debate para saber qual será sua sentença Sete Galo – moto de 750 cilindradas Súbir o gás – matar Sururu – confusão Tatu - túnel embaixo da terra Testar a febre - testar a paciência Tia - corda confeccionada com lençol Tiozinho - idoso Treta - briga Triagem - novato Trinco com a favela - agradecer favor ou ajuda Truta - aliado Um duque – R$ 200 Um galo – R$ 50 Uma pá - um monte, vários Veneno - raiva ou ódio Verme - polícia X – xadrez X9 – dedo duro, cagueta, delator Zé povinho - ralé Zica - azar ou indivíduo que se mete constantemente em confusão Zomem – polícia

P7 - Pavilhão 7 P8 - Pavilhão 8 P9 - Pavilhão 9 PS - Pronto Socorro Pá – talvez, tal Pagar de pá – se sentir o tal Pagar ducha - tomar banho Pagar mó madeira - grande admiração Pagar sapo - tentar impressionar alguém Pai do mel- o cara Pano da hora - roupa de grife Passarinho - informante da polícia Patrício - conterrâneo ou da mesma cor Pé de breque - otário, sem futuro Pé de porco – vigia ou segurança de agência bancária Pedalar - andar Pedra - crack Pegar de orelhada – falar muito Penita - penitenciária Pião – andar, dar uma volta Piolho - cara experiente Pipa - bilhete Pregadas - golpes de estilete Presunto - cadáver Quebrada - bairro Quebrar as pernas - decepcionar Quieto - lençol estendido em volta da jega para privacidade Quiaca - briga RA - regime aberto Rachar o coco - sol escaldante. Radial - rua de acesso a todos pavilhões Rapa - rapaziada Rastro no crime - falha em sua trajetória Rato - polícia

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ACESSE: www.afro-x.com.br/ex-157

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