Revista Cooperifa #1

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Foto: Jo達o Wainer


Editorial A literatura é dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Freqüenta os casarões, bibliotecas inacessíveis ao olho nu e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços. Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com Victor Hugo, mas não com os Miseráveis. Beija a boca de Dante, mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da cara do Quixote. É triste, mas A rosa do povo não floresce no jardim plantado por Drummond. Quanto a nós, Capitães da areia e amados por Jorge, não restou outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a morada da poesia. Assim nasceu o sarau da Cooperifa. Nasceu da mesma Emergência de Mário Quintana e antes que todos fossem embora pra Pasárgada, transformamos o boteco do Zé Batidão num grande centro cultural. Agora, todas às quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos os lados e de todas as quebradas vem comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos poetas sob a benção da comunidade. Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes, bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes, jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania através da poesia. Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou, a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura. O sarau da cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e se prostar de joelhos. Somos O poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o Rastilho da pólvora. Somos Um punhado de ossos, de Ivan Junqueira Tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto. Neste instante, neste país cheio de Machados se achando serra elétrica, nós somos a poesia. Essa árvore de raízes profundas regada com a água que o povo lava o rosto depois do trabalho. Por Sérgio Vaz


Foto: Jo達o Wainer



Uma visăo panorâmica e poética de um sarau que multiplica cidadania na Zona Sul de Săo Paulo arau da Cooperifa. Um sarau que não é bem um sarau: em um bar pessoas de todas as idades vão lá trocar informações poéticas sobre suas próprias vidas, sobre suas tristezas, amores e glórias. Uma cooperativa que não é cooperativa no sentido formal termo. Ali, o que vale, é quem está a frente é dar a mão para quem está atrás e trazê-lo consigo, uma ação entre amigos. Da periferia sim; mas aberto, como gostam de frisar na abertura, todas as quartas - sem falta, faça chuva faça sol - a partir das 21 horas em mais uma quebrada qualquer da Zona Sul de São Paulo, a todas as raças, credos, cores, classes e de todas as regiões da capital paulista, do Brasil e do mundo. Se bobear, até do sistema solar conhecido e desconhecido. Porque ali o processo é louco e o barato não é nada lento. Ali os sonhadores sonham juntos, misturam, e transformam os sonhos em realidade. Qual é essa realidade? A de cidadãos que são artistas, e pela arte constroem cidadania. Bemvindos a um universo muito particular de cultura e conhecimento: o nosso raio x do Brasil. “Povo lindo, povo inteligente, o sarau da Cooperifa de ontem foi uma noite lindo, como só a poesia pode oferecer. Não dá muito pra falar, pergunte as mais de 200 pessoas que estiveram em volta do sarau. dentro do bar não se andava, na rua não se podia andar. E pensar que toda essa gente maravilhosa foi lá só para ouvir e falar poesia”. Abro o blog de Sérgio Vaz, colecionadordepedras1.blogspot.com, e me deparo com essa descrição bonita do último sarau. Se Sérgio parece superlativo, não se enganem: se bobear, o que aconteceu naquela noite foi até melhor. Ou não: Sérgio, mais um “guerreiro” como o próprio gosta de chamar seus pares, é um dos pais da “criança” Cooperifa, nove anos de idade, e como todo pai, é zeloso do rebento e adora lamber sua cria. Recém ingressa no primário da vida, alfabetizada, o sarau tem o verbo afiado, próprio de vozes que se não estão nos livros, voam além da literatura manjada exposta por aí. Um grupo de amigos cansados do marasmo e da ineficiência do poder público para gerar cultura nos fundões do Brasilzão, fundou a Cooperifa em 2000, envolvendo artistas da periferia em atividades como exposições de fotografia e performances teatrais. E no princípio era o verbo, mas era também um galpão de fábrica abandonado em Taboão da Serra. Praças, bares, campos de várzea e lugares abandonados são os verdadeiros centros culturais da periferia. Da

escassez saem as melhores alternativas e soluções para o século 21 já assinalava o príncipe de ébano da geografia brasileira, Milton Santos. Ousar, lutar e vencer. De lá pra cá, aos trancos, bares e barrancos, chegou-se ao bar de José Cláudio Rosa (o Zé Batidão), em Piraporinha. Desde então, porto seguro da Cooperifa, onde todas as quartas, como gostam de frisar, o silêncio é uma prece. E aí reside outra lição mágica: escutar, quase sempre, é melhor do que falar. Entre um prato de boa comida, cerveja e refrigerante, risadas e afagos, surge um mundo novo. Parece festa. E é mesmo! Muito provavelmente a revolução não será televisionada e não será feita com armas. Talvez seja o silêncio, entrecortado por poderosas palavras que desencadeie um mundo novo, tal qual vislumbrado no coração generoso de cada poeta-cidadão da Cooperifa. Além de resgatar a auto-estima de seus participantes/ protagonistas, um dado imensurável e não passível de medição por estatísticas, há números que mostram o poder da informação traficada semanalmente na Cooperifa. Um documentário, uma coletânea com 43 autores (“Rastilho de Pólvora - antologia poética do sarau da Cooperifa”, 2005), um CD de poesia falada, “Sarau da Cooperifa” - livro e CD lançados pelo Instituto Cultural Itaú, cerca de 50 livros lançados por lá, uma mostra cultural realizada pela Cooperifa em parceria com outros grupos e instituições e mais de uma dezena de outros saraus acontecendo na cidade inspirados no seu irmão mais velho. Isso sem falar nas ações que inspiram Brasil afora. Não a toa a acadêmica Heloísa Buarque de Hollanda diz que “a Cooperifa é um dos fenômenos culturais mais importantes desses anos 00. (A Cooperifa) refaz não apenas o caminho antropofágico da poesia modernista e sua Semana de Arte Moderna, mas sobretudo recria agora, dono de sua voz, o grande quilombo da poesia paulista”. O que apresentaremos aqui na revista, são algumas das ações e datas especiais que o Sarau da Cooperifa realiza, além de seus protagonistas e outros eventos que enobrecem a cultura da periferia, como as rodas de samba e o Panelafro. Como dizem os poetas da Cooperifa ao abrir os trabalhos para o povo lindo, povo inteligente, “É tudo nosso! É tudo nosso!”


Foto: João Wainer

No frio da noite, a poesia aqueceu a periferia A chuva incessante torna o trânsito tradicionalmente moroso quase impraticável. Do Campo Belo até Piraporinha, passo duas horas dentro de dois ônibus. Graças aos deuses das letras, sento-me na segunda condu-ção e abro um livro. Poesia óbvio; Manoel de Barros, o poeta dos detalhes, das coisas simples e boas da vida. De frente para a igreja, ponto e referência para adentrarmos nas imediações do bar do Zé Batidão, olho para o morro. A brisa fria massacra meu joelho inflamado, a chuva torna-se mais fraca mas a temperatura cai vertiginosamente. “A garoa rasga a carne / é a torre de Babel”. Ladeira acima, lembro de Leonardo Villar carregando uma cruz no filme O Pagador de Promessas. Dramático? Pode até ser, mas estou próximo de um bar onde sonhos são sonhos, mas afetam a realidade. Na noite mais fria até então na cidade, qual não foi minha surpresa ao ver cerca de 150 pessoas ali prontas para declamar e ouvir poesia!? E ainda tinha jogo do Corinthians, novela e o frio pra desencorajar o mais aguerrido dos cristãos! Da última vez que frequentara o Sarau, a Dona Edite, uma das “estrelas” da Cooperifa, comemorava 80 anos. Sim, incautos leitores, 80 primaveras poéticas. É ela quem primeiro vai ao microfone. Sua ladainha poética, sem papel, tudo devidamente guardado na mente, cria um transe e eletricidade

no ambiente. Começara a alquimia. Eu já era um outro e todos ali eram um, nenhum ou cem mil. O rap se faz presente, vários MCs recitam suas letras, um declama a letra de Periafricania, didática e poética, do grupo Z´Áfrika Brasil, praticamente um hit das quartas-feiras. O Sr. Lourival, como não poderia deixar de ser, fala de amor. E é como eu digo, poesia conquista corações e que as novas gerações de garotos e garotas não se furtem de recitá-las a seus amados/as: versos surtem tanto efeito quanto beijos roubados. Um garoto de cerca de 10 anos, manda uma poesia de cordel a queima-roupa e mais uma vez, tá tudo ali decoradinho em sua cabeça. Outro recita um poema de Sérgio Vaz. Um frequentador perde a timidez e faz sua primeira leitura no sarau, trêmulo, emocionado. E emocionante. Só não chorei porque homem não chora, já dizia meu avô no interior de Minas. Isso porque ele não conheceu a Cooperifa, que fique bem claro! Jairo e Juliana, frequentadores assíduos, cooperiféricos aguerridos, comemoram o recente matrimônio. Ah, o amor!

então será! Wesley Noog puxa um Tim Maia em homenagem aos pombinhos, as mesas são retiradas, é festa na favela, quem quiser pode chegar, como diz uma canção do próprio Wesley. Todos estão de pé, alguns dançam, muitos cantam. Sorrisos no rosto. Despeço-me dos amigos e, ladeira abaixo, sinto uma lágrima furtiva de alegria, teimando em acompanhar as curvas sinuosas do morro. A cena é batida e até brega, mas a motivação é nobre. Do trajeto da volta guardo poucas lembranças. Naquele breve espaço de tempo no sarau, o céu se juntou com a terra e o espírito divino caminhou na periferia. Sem armas, sem guerra, sem repressão policial - porque isso não é filme ou noticiário de TV, é a vida para além dos estereótipos. Muito amor, muito amor. Sarau da Cooperifa Bar do Zé Batidão Rua Bartolomeu dos Santos, 797 Jardim Guarujá - Periferia São Paulo (11) 5891-7403/8358-5965 colecionadordepedras1.blogspot.com

Chegamos perto das 11 horas, a alma lavada, espíritos prontos para o combate da vida cotidiana. Porque viver é lutar,

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Fotos: Eduardo Toledo


ompetindo com as promoções nos cinemas às segunda-feiras, Cinema na Laje traz programação diferenciada e reflexão para o público - tudo permeado pela magia da pipoca, lanterninha e a noite bonita vista da laje do Zé Batidão. As luzes se apagam no bar do Zé Batidão. O frio cortante do inverno paulista castiga as quase 70 pessoas que ainda se ajeitam nas cadeiras quando o filme Peões, de Eduardo Coutinho, começa a ser projetado na tela fixada nas grades do boteco. Alunos de uma escola municipal são os principais convidados da noite, ao lado deles, poetas, jornalistas, publicitários, professores, motoboys, rappers e uma doméstica arregalam os olhos, se protegem como podem do vento para acompanhar mais uma sessão do Cinema da Laje. Nos 85 minutos seguintes o silêncio é uma unanimidade nada burra. O documentário relembra as greves dos metalúrgicos em 1979 e 1980, no ABC paulista. As histórias que brilham na tela refletem também a vida de muitas pessoas que estão ali, desta vez como espectadoras e não como protagonistas. Talvez as histórias relembrem um passado ainda presente, talvez conte a vida dos pais de muitos garotos e garotas que começaram a conhecer a verdadeira história brasileira, pelo menos a que mais se aproxima de suas realidades. O Cinema na Laje é mais um dos projetos pioneiros da Cooperifa. A cada 15 dias leva para o bar do Zé Batidão, para a periferia, para o boteco que ganhou status de polo cultural, filmes e documentários de qualidade que estão fora do circuito e não são encontrados com facilidades nas poucas locadoras que ainda resistem vivas à ferocidade dos downloads. Durante a projeção, os convidados ganham pipoca e o velho cinemão ganha vida com a presença do lanterninha, que ainda resiste, pelo menos no imaginário do Cinema da Laje, como uma das figuras mais importantes da noite. Quando as luzes voltam a se acender, as pessoas que sentaram ali já não são mais as mesmas, a transformação que a Cooperifa prega começou a acontecer. Para a aluna da 5ª série, Erika Maria da Silva, que ficou cinco anos parada, sem estudar, a volta aos estudos parece ficar mais fácil com os filmes. “Acho que a gente consegue ver melhor o que a professora fala na sala de aula. Sei lá, dá mais ânimo, sabe?” A mesma opinião é dividida pela professora Márcia Luck: “se você permanecer apenas no teórico, não conquista a atenção dos alunos”. O cinema sempre foi uma das artes mais fascinantes, que mais mexe com o ser humano. “As coisas precisam linkar uma com as outras, o que é debatido na sala de aula acaba sendo mostrado aqui, isso ajuda na compreensão”.

Longe de pensar em uma agenda interdisciplinar, Zé Batidão, dono do bar, conta que a ideia de começar com o projeto do Cinema da Laje surgiu após Sérgio Vaz olhar a laje do boteco que jazia solitária nos dias de sarau. “Isso aqui dá um cinema, um cinema na periferia”, relembra Zé, imitando a voz do poeta Vaz. “Quando ele coloca uma coisa na cabeça, é melhor sair da frente”, brinca sorrindo. O próximo passo era achar um parceiro para tocar o projeto. E aí entra a Paco Produções, de Taboão da Serra. Encantado com o projeto, Paco, o dono da produtora, topou na hora. Responsável pelos equipamentos, ele assistiu a todas as projeções e já viu muitas histórias durante esses dois anos de projeto. Segundo Paco, todos os filmes exibidos pela Cooperifa o emocionaram, mas um mexeu com ele. “Quando eu vi Falcão, Meninos do Tráfico aquilo bateu forte. Deu pra perceber que a plateia também se sentiu incomodada. Sabe, é aquela coisa que a gente não consegue ficar impassível diante do que está sendo exibido”. Outro responsável pelo projeto Cinema na Laje, o professor Márcio Batista, lembra que as salas de cinema hoje em dia, estão quase todas nos Shopping, inacessíveis para a maioria das pessoas. “Não conheço outro lugar na periferia onda são exibidos filmes e documentários. Não acho que somos um polo de resistência, mas sim uma semente que pode incentivar outras comunidades a começar algo parecido”. Márcio Batista define bem a intenção da Cooperifa. “O cinema é uma das artes mais críticas que existem, é onde se formam opiniões. Aqui despertamos nas pessoas coisas que elas nem sabiam que existiam, mas estavam lá, dentro delas”. Em uma terrível coincidência, as grandes redes de cinema elegeram às segundas-feiras, quando acontece o Cinema na Laje, como o dia do desconto. As salas dos Shoppings passaram a exibir neste dia, a preço de banana, blockbusters de Hollywood. Mas, pelo andar da carruagem, nem mesmo o HomemAranha dos cinemas será capaz de deter o poder da Cooperifa. * N. Do Ed.: Na realidade, há outros pontos de projeção de filmes nas periferias de São Paulo, como o Cinescadão no Jardim Peri Novo, Cinequilombo em Perus e o Cine Palmarino no Jabaquara, entre outros. O Cinema na Laje acontece a cada 15 dias sempre às 20h, uma parceria da Cooperifa, Paco´s Produções e Zé Batidão. Para mais informações sobre estes e outros projetos culturais, acesse www.colecionadordepedras1. blogspot.com

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Foto: Marcelo Min

Acima pĂşblico e abaixo encerramento da 2ÂŞ Mostra Cultural da Cooperifa no CEU Campo Limpo em 2009.


Quando você estiver lendo esta revista, terá acabado de acontecer a 3ª Mostra Cultural da Cooperifa. Uma semana cheia de eventos, que começou com chave de ouro com a apresentação de Fabiana Cozza e do Jairo Periafricania no CEU Campo Limpo. Dança, Literatura, Recreação, Cinema, música, e farta distribuição de livros infantis dão a tônica do evento. Neste ano, em especial, a programação foi voltada à formação de público e aconteceram em escolas públicas como CEU Campo Limpo, EMEI Clarice Lispector, Escola Pracinhas da FEB, Escola Profª Carolina Rennó, Escola Anna Silveira Pedreira, Escola Antônio Ággio, EMEF Mauro Faccio Gonçalves Zacarias e Escola Oliveira Viana. E também contou com a parceria do Centro Cultural da Espanha, Sesc Santo Amaro e os apoios solidários da Ação Educativa, Fundação Itaú Social e Ambev. E é bom se preparar: essa edição foi um aperitivo para as comemorações de 10 anos de Cooperifa em 2011. “Um povo que lê, enxerga melhor”. Só que a leitura, a vontade de ler, pode vir da música, do teatro, do cinema. Partindo dessa ideia e na esteira da já histórica “Semana de Arte Moderna da Periferia”, realizada pela Cooperifa em parceria com vários grupos da região. Tudo começou menor do que hoje, e teve como foco desde então a comunidade. Vieram ônibus de escolas, faculdades e de outras quebradas. E pra começar com chave de ouro, nessa primeira edição a Mostra recebeu a abertura da mostra de cinema africano “Africala”, que depois foi para a Cinemateca de São Paulo. O cineasta Jefferson De, o escritor Sacolinha e os grupos Záfrika Brasil e Teatro Mágico, por exemplo, participaram dessa edição. A segunda Mostra foi chamada, à vespera, pelo Portal Literal, de Virada Cultural da Periferia. Dessa vez, teve debate sobre a Lei Rouanet, show da incrível cantora Izzy Gordon, além das apresentações de danças, debates com escritores como Marcelino Freire, Xico Sá, Ferréz, Rodrigo Ciríaco, Márcio Batista e os maiores agentes culturais da periferia do Brasil, como Nelson Maca Blacktude (BA), Gutti Fraga (RJ) entre outros. Exibição de filmes, peças de teatro, danças e shows completaram a Semana. O evento foi importante para, mais uma vez, pontuar a periferia como uma referência cultural. Novamente, o Portal Literal na internet descreveu a segunda edição como “a Mostra é uma festa de aniversário que recupera a vocação da Cooperifa para os grandes eventos, com diversas manifestações culturais - teatro, títeres, poesia, encontro de saraus, shows musicais, exposições e debates. Tudo em plena periferia paulista”. Dos vários momentos marcantes das três edições da Mostra, um dos mais significativos aconteceu nesta última edição, quando duas escolas, a “Prof. Carolina Rennó” e “Antônio Aggio” se uniram para assistir uma edição especial do sarau da Cooperifa. Com a palavra, Sérgio Vaz: “Já disse antes e torno a repetir: os educadores são meus heróis e as escolas ainda são os melhores lugares para passar a infância e adolescência. E um analfabeto como eu sabe o quanto faz falta a educação. Nossa matemática é simples: escolas + Cooperifa = aprendizado. A gente tem muita nota vermelha no nosso boletim durante esses 9 anos de atividades poética na periferia paulistana, mas estamos fazendo a nossa lição de casa (...). Teoria sem prática não vale nada”.

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Parece uma figura de linguagem, mas o fato é que a Cooperifa colocou poesia no ar pesado e sujo de São Paulo: Poesia no Ar é o nome de uma das mais bonitas datas do calendário cooperiférico. Como se a beleza e a força da denúncia e dos poemas líricos que se avolumam dentro do Zé Batidão ganhassem asas e alcançassem as pessoas mais diversas pela cidade. Não é à toa que as fotografias são sempre tão lindas: em abril, numa noite de quarta-feira, a zona sul da capital paulistana presencia uma de suas mais bonitas noites. Em 2010, tudo aconteceu durante o feriado de 21 de Abril, data que relembra um dos mártires brasileiros, Tiradentes. Os balões de gás hélio são enchidos e soltos dentro do sarau, criando uma atmosfera toda particular de centenas de balões brancos que assistem aos diversos poetas que chegam ao microfone para recitar um poema, uma letra de rap, um repente, uma canção. Ao fim do sarau, lá pelas 22h30, começa-se a colocar os poemas, devidamente embrulhados em plástico, amarrados nos cordões dos balões. Pontualmente, às 23 horas, os balões são soltos na rua. A poesia está no ar. É sempre curioso observar as faces extasiadas, observando os balões dançarem ao sabor do vento no ar. Naquele momento, os que não são crianças, por um breve momento fabulam em seu íntimo roteiros fantásticos para cada balão. Na última edição, para sermos mais exatos, foram 500 balões soltos com a esperança que algum cidadão acorde com poesia em seu quintal ou na rua.

Foto: João Wainer

O intuito é espalhar um pouquinho da Cooperifa por aí, quase como uma dádiva e fazer com que a poesia ganhe novos ares, ou melhor, novos significados: como falamos de artistas-cidadãos, a poesia aqui se torna instrumento de cidadania.


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Foto: Jo達o Wainer


De todas as “invenções” da Cooperifa em seus 9 anos de existência, muito provavelmente o Ajoelhaço tenha sido a mais engenhosa e charmosa. Lembrando o Dia Internacional da Mulher, 8 de Março, nos últimos quatro anos os marmanjos presentes se ajoelham diante das mulheres presentes e pedem, pura e simplesmente, perdão. Mas vai além e chama a atenção e é, com certeza, uma das datas mais importantes do calendário da Cooperifa. “A galera da Cooperifa mais uma vez dá exemplo de inteligência, foi o que disse Renato Rovai, editor da revista Fórum, em seu blog. E foi além: “Na última quarta-feira, no dia 10, pelo quarto ano consecutivo, promoveram o Ajoelhaço da Cooperifa’. Quando os poetas e frequentadores do sarau pedem perdão às mulheres. E o fazem de joelhos. Sérgio Vaz, o agitador do sarau, explica que sabe que ‘não vai ser um simples pedido de perdão que vai apagar todas as injustiças a qual nossas guerreiras são submetidas’. Mas ao mesmo tempo diz que isso ‘não tem nada a ver com piada. É pura cidadania. Uma coisa é fazer um texto falando da importância feminina na vida dos homens, oferecer uma rosa no dia 8 de março. Outra coisa é aceitar o erro, pedir desculpas, ajoelhar-se’”. No site da revista Vice Brasil, o evento também foi tema em destaque e descrito com o bom humor ácido característico da publicação. “O Ajoelhaço funciona assim: depois do sarau no bar do Zé Batidão do qual participa uma galera da comunidade – organizado pelo Sérgio Vaz desde 2001 (sem qualquer apoio governamental ou de ONGs infestadas de europeus bonzinhos) e que junta gente branca, preta, fodidos, playboys, literatos e analfabetos –, uma vez por ano o pessoal agiliza esse pedido de perdão coletivo na semana do dia feminino. As mesas do boteco são recolhidas, toda testosterona é reunida num canto, e, sob uma torcida de genes XX bradando ‘Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha!’, todo malandro abaixa a cabeça e repete o poema em homenagem às presentes”. A força do evento e o simbolismo da atitude (para alguns pode parecer fácil, mas acreditem: muito marmanjo acha “humilhante” se ajoelhar diante das “damas Teresas” da Cooperifa ou de qualquer outro lugar para pedir perdão) fez com que Sérgio Vaz afirmasse “Tenho certeza que é uma das noites mais poéticas da periferia de São Paulo”, e, por fim, concluir refletindo sobre a parcela masculina da Cooperifa em seu blog: “Acho que a maioria dos homens que frequenta a Cooperifa, até pela história que a gente construiu, tem um perfil menos machista, e se ajoelham em respeito, porque sabem o quanto a mulher é humilhada no seu cotidiano. (...). Praticar o que se fala é o lema da Cooperifa. Sabemos também que é muito pouco, mas estamos aprendendo praticando”.

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Não é roda de samba, show de rap, baile funk ou culto evangélico. Não, parece que todos os estereótipos vigentes sobre grandes multidões na periferia se dissolvem no ar quando chegam nas imediações do Bar do Zé Batidão às quarta-feiras. Principalmente em dia de Chuva de Livros, que em sua terceira edição consecutiva em 2010, reuniu mais de 500 pessoas. E ainda há quem fale da falta de leitores no Brasil. Longe de negarmos as estatísticas oficiais (somos 95 milhões de leitores, o equivalente a 55% do total da população, segundo o Instituto Pró-Livro), mas na Cooperifa, como na canção de Caetano Veloso, acontece o “avesso do avesso”. Realizada no mês de agosto, a ideia é que nenhuma pessoa que compareça ao sarau saia sem um livro ou revista na mão. E não sai mesmo. Eu saí, por exemplo, com uma revista Fórum e um livro (mexicano!) de teoria social. E tem best-seller, Machado de Assis, Paulo Coelho, livro técnico, biografia de Che Guevara, Gandhi, livros infantis e, obviamente, muita poesia, dos livros de autores da Cooperifa até Shakeaspeare e Carlos Drummond de Andrade. Nesta terceira chuva foram mais de 700 livros, além de mais de 900 revistas “Caros Amigos, Fórum e TRIP”. Tudo isso doado por editoras, organizações e pelas próprias pessoas da comunidade. Notem: mais de 1 livro e revista por pessoa presente e dificilmente divulga-se estes números por aí. Como não cansam de dizer quem já foi ao sarau, ali se opera mágica. Na última edição, além do público cativo de todas as quarta-feiras, estiveram presentes professores e alunos das escolas Oliveira Viana (Jd. Angelina)” EMEF Carolina Renó (Guaravirituba), CIEJA (Capão Redondo), CEI (Pq. Santo Antônio) e um ônibus fretado pelo Projeto Jovens Urbanos de Guaianazes, extremo zona leste de São Paulo. Em poucos minutos foram entregues todo o material de leitura e concretizou-se aos olhos de quem estivesse presente uma das missões da Cooperifa: o incentivo à leitura. A Cooperifa se engrandece com essas ações e os organizadores prometem, em seu décimo aniversário de existência em 2011, atingir a marca de 1000 livros na próxima chuva de livros. Só que daí já não seria chuva, e sim tempestade.


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Foto: Jo達o Wainer


Foto: João Wainer

Grupo Espírito de Zumbi em frente ao Sarau da Cooperifa.


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A repórter Nina Fideles visita o Panelafro, um dos eventos mais significativos de manutenção da cultura afro em São Paulo, e conversa com alguns de seus protagonistas

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exta-feira, 20 horas. Casa de Cultura de M’Boi Mirim, Zona Sul de São Paulo. Ao som dos tambores africanos, o Grupo Zumbi dos Palmares recebe a comunidade da Vila Piraporinha e da região para mais uma festa do Panelafro. Aos poucos, as pessoas chegam e acomodam-se nas cadeiras para participar das atividades culturais realizadas toda última sexta-feira do mês. E o nome Panelafro é sugestivo. Por lá não tem panela vazia não. Ao final das atividades, é servido gratuitamente um prato típico afro-brasileiro. Baião de dois, feijoada, vaca atolada... O principal objetivo da celebração é promover e preservar os elementos da cultura afro-brasileira, seja na culinária ou nos ritmos diversificados herdados do povo africano e agregados à cultura do Brasil. É o afoxé, a capoeira, maculelê, côco, samba de roda, ijexá, ciranda, maracatu, bumbameu-boi... Ao longo dos anos, o Panelafro agregou também expressões culturais de diversos artistas da periferia de São Paulo e do Brasil, além de incorporar lançamento de livros e CDs. Em uma das edições neste ano, por exemplo, um grupo de Arcoverde (PE) se apresentou. Mesmo que o Panelafro exista há sete anos, as iniciativas do Grupo Zumbi dos Palmares começaram há muito mais tempo. Enquanto a Ciranda esquentava do lado de fora, o mineiro Jonas Barbosa, 48 anos, um dos fundadores, conta em uma prosa os desafios e vitórias que perpassam esta história. Arákùnrin, como é conhecido, tinha 23 anos quando começou a dar aulas de capoeira na Casa de Cultura. Realizou oficinas em escolas, frequentou atividades sócioculturais e, em 1994, fundou, junto com outras pessoas, o Grupo Zumbi dos Palmares.

“Na época em que o Grupo nasceu, o ritmo axé estava em evidência na mídia e pensamos em criar um contraponto, um centro de resistência, mostrando outro lado daquela mesma cultura. Ao invés de ficarmos criticando, resolvemos recriar”, afirma. Desde então, diversas oficinas foram e são realizadas. São aulas de percussão, dança afro e capoeira, além da montagem coletiva de espetáculos, como o Cor Raça e Página de Uma História. O primeiro envolve ritmos da dança afro com o maculelê (bailado com bastões ou facões); o segundo, com uma característica mais cênica, conta a vida de um negro escravo. Nestes 25 anos de trabalhos, Arákùnrin afirma que a integração com a comunidade é um dos focos principais. “Tem gente que vem de longe, vem do Embú, de Itapecerica. Fico muito feliz em ver crianças e senhores de melhor idade dançando, cirandando, participando deste nosso Palco-Terreiro”. E não somente a comunidade participa ativamente, outros movimentos culturais da região, como os poetas da Cooperifa, sempre estão presentes no Panelafro. Neste dia específico, Seu Lourival, conhecido pelas poesias dedicadas às mulheres, esteve presente e arrancou suspiros das moças com suas belas palavras.


O trampolim Arákùnrin enxerga nas oficinas realizadas a possibilidade de despertar o interesse nos jovens da comunidade e os faça enxergar além. E o ideal, o sonho de todos os envolvidos no Grupo Zumbi dos Palmares, se concretiza nas histórias de Geonilson Nascimento, o Geo, 28 anos, Ellen Cristina, 22, e todos os outros jovens hoje envolvidos e protagonistas no projeto. Geo sonhava em ser jogador de futebol, como a maioria da juventude nas cidades brasileiras. Mas seu plano mudou quando conheceu a capoeira. “Desisti do futebol. Percebi que era tudo uma ilusão. Quando entrei no Grupo, passei a sentir coisas que nem estava procurando. Eles me ensinaram a ter uma postura de vida totalmente diferente”, confessa.

Para Ellen, conhecer melhor a história a fez reconhecer e superar o próprio preconceito. “Quando eu via uma mulher de [corte de cabelo] Black Power na rua, eu olhava meio torto e depois percebi que tinha preconceito comigo mesma”, observa. Há cinco anos, quando ela participava do Panelafro nas sextasfeiras, foi convidada a praticar a dança afro. “Tudo aquilo, aquele terreiro aberto aos ritmos e diferentes culturas, despertou a minha curiosidade sobre a cultura afro e eu comecei a ler vários livros”, relembra. Enquanto existir espaços a serem ocupados, reuniões e encontros, Geo afirma seguir com força neste objetivo. “Se as pessoas percebessem as coisas ao redor, se unissem em um objetivo, seria mais fácil. O Panelafro pra mim é isso: uma reunião de família, da comunidade, em torno de uma coisa só”, defende. Segundo Arákùnrin, este início é o despertar, o trampolim para que estes jovens possam dar continuidade ao trabalho iniciado há 25 anos. E este é o meu ‘pagamento’, como ele afirma: “É muito prazeroso falar sobre a vida, amor, respeito, integridade, e passar isso para eles e com eles”. E se depender da força e da resistência do Grupo Zumbi dos Palmares, ainda teremos muitos Panelafros, oficinas, espetáculos e histórias para contar. É só chegar!

Foto: Divulgação

SERVIÇO: O que: Panelafro Onde: Casa de Cultura do e M’Boi Mirim (cpcmboi. blogspot.com) Av. Inácio Dias da Silva, s/n º - Piraporinha – SP/SP Infos: (11) 5514-3408 Quando: Toda última sexta-feira do mês, a partir das 20h.

Foto: João Wainer

Há doze anos atuando no Zumbi dos Palmares, Geo, hoje professor de capoeira na Casa de Cultura, conta que muita gente diz que eles deveriam parar de falar sobre chibata, escravidão, racismo. “Imagina!”, rebate, “parar de contar estas histórias seria perder a nossa raiz, perder a nossa identidade”.


Foto: João Wainer

O grupo Versão Popular, bom representante da evolução do rap da Zona Sul paulistana, tem sua carreira construída em paralelo à existência da Cooperifa, uma de suas fontes de inspiração.

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itmo e poesia. No rap, poesia é crucial, impossível a existência de um sem o outro. E a periferia é o lar por excelência do estilo, a área urbana que dá sentido às batidas. Assim, não é em nada estranho a existência de MCs ou grupos de rap que nutrem uma relação mais profunda e ativa com o Sarau da Cooperifa. O Versão Popular, é um dos bons casos de artistas “cooperiféricos” (veja outros nas páginas 34 e 35). Representando o extremo sul da capital paulista, o time é formado por Cocão (COHAB São Luís), DJ Zeca (Jardim Jangadeiro), Preto Will (Jardim Letícia), Kelly e Leandro (ambos do Grajaú), e acabam de botar na rua um CD muito bom, Quem Viu, Viu. O grupo não é propriamente novo: tá por aí desde 1999 mas foi nos últimos anos, como explica o MC Cocão na entrevista a seguir, que o grupo tomou forma. Não é leviano dizer que, assim como a Cooperifa foi crescendo em tamanho e importância no decorrer dos anos, o mesmo aconteceu com o Versão Popular. Cronologicamente: 2004, participação na coletânea Nossa Cara; em 2005 coletânea Franco Rimador e participação no livro de poesia Rastilho da Pólvora; 2006 foi a vez da participação no CD de poesia do Sarau da Cooperifa, lançado com apoio do Itaú Cultural; em 2008 foi a vez de participarem do livro de poesias Um Segredo no Céu da Boca e da mixtape Batalha das Quadras, projeto concebido por Mano Brown, apresentando novos nomes do rap, e que gerou polêmica por ser patrocinado pela Nike. Mas 2010,

é o ápice dessa caminhada: Quem Viu, Viu é um CD que representa exemplarmente a evolução do característico rap da Zona Sul paulistana, pesado e swingado. Nos créditos do trabalho, o nome de um dos maiores representantes da estética do rap zona sul, Erick 12, responsável pelos efeitos, arranjos e a arte gráfica do CD - as fotos são de João Wainer. O grande responsável pela produção musical é o próprio Cocão, que contou com a ajuda de Guilherme Araújo nas faixas “Isqueiro Faz Fogo”, “Vestindo a Camisa” e “Cada Um Tem Sua História”, DJ Kula na faixa “Prestenção”, e B. Valente nas faixas “Quem Viu, Viu” e “Novos Dias”. E o trabalho conta com participações de peso, como Sérgio Vaz, Wesley Nóog, Cleitom e, novamente, Erick 12 e B Valente. Confira abaixo o papo com Cocão.

Conta um pouco da história do Versão Popular, quando surgiu? O que te inspirou a montar um grupo de rap? O grupo Versão Popular (VP) surgiu em meados de 1999. Nesse começo, éramos apenas eu e o Leandro, eu era novo no bairro e ele morava já fazia dois anos por lá. As ideias se completaram e começamos a fazer uns raps, cantar nas quebradas, nas escolas, até na FEBEM. A convite dos Irmãos de Sangue, um grupo de rap da quebrada, nos abriram vários espaços e eu costumo falar que foi o Tadeu e a MK que nos mandaram pros palcos da vida. Foi um começo


emocionante. Antes de nos chamarmos Versão Popular, nos chamávamos Sentença Criminal, trabalhamos com esse nome por uns dois anos, mas não tinha nada a ver com nossa personalidade, daí mudamos para Versão Popular. Não tínhamos DJ fixo – uns manos que soltavam as bases para nós. Tinha o Guilherme, que era de outro grupo junto com o THG, faziam parte do Comando gueto, participavam com a gente em algumas letras. Guilherme não está mais entre nós, THG saiu do rap para fazer outros corres. Daí apareceu o Preto Will e a Kelly. Nos conhecemos em um cômodo alugado onde fazíamos alguns ensaios e produções. Os dois abraçaram a família e estão até hoje firme e forte com a gente. O DJ Zeca é primo do Leandro, chegou pra fortalecer em 2005. Está sempre armado de ideias que acrescentam nas apresentações. O moleque bom tá se equipando e completa o Versão Popular.

Como que a Cooperifa inspira o trabalho do Versão? A Cooperifa nos inspira na questão prática, da ação, do olho no olho. Enfrentar, fazer acontecer, não abaxar a cabeça, ter autoestima, abraçar os que estão próximos e acreditar que é possível. Acreditar no invisível, fazer o impossível no mundo, onde muitos duvidam do nosso trabalho, da nossa verdade, da nossa realidade. Assim reconhecemos que a Cooperifa nos dá total liberdade para ler o que quisermos e escrever o que vivemos, o que nossos olhos realmente enxergam.

verdade, por isso aconteceu. Firmeza.

Poetas ou rappers? Quais são seus ídolos, quem te inspira? E mais: hoje você se vê mais como poeta ou como rapper?

Sérgio Vaz: Acredite, agora eu sei o que é ter ídolos. Tenho vários, pela atitude, pelo trabalho, luta e pela amizade, música etc. Tenho pensamentos parecidos com o do Sérgio Vaz, sonhos, vontades... Muito do que ele diz, escreve e o que viveu condiz com a minha realidade, minha vida, minhas agonias. Poeta bruxo, nervoso, porrada, sincero e verdadeiro. E suas ideias me alimentam, para a luta diária, e creio que não só a mim. Ele é das ruas, patrimônio nosso! Mano Brown: músico, letrista dos séculos, faz o que deve ser feito. Pânico na Zona Sul, fez os hits da convocação, na minha opinião. Um mestre junto aos racionais MCs. Periferia, o povo: são os trabalhadores, a maior inspiração. Pra toda a eternidade.

O que os poetas da Cooperifa e a própria Cooperifa em si podem ensinar/ contribuir com o rap? Me vejo como poeta e como rapper, não tem como separar. Consigo ser as duas coisas ao mesmo tempo. Poesia é viver a vida e o rap é minha vida: Leandrão, Kelly, Preto Will e DJ Zeca.

Artista cidadão - a boa ideia do Sérgio Você participou do CD Batalha das Quadras Vaz. O que é isso exatamente? que o Mano Brown produziu. O convite Os poetas da Cooperifa, mais uma vez, tenho surgiu após ele ver você rimando na que dizer: são nossa fonte de inspiração e estar Cooperifa, certo? próxima dessas pessoas é gratificante, prazeroso. Isso mesmo, apenas eu do Versão Popular. Participei do CD Batalha Das Quadras, a convite do Mano Brown e levei o nome do Versão Popular - a letra é a cara do grupo. Dividi essa música com o B. Valente - também convidado pelo Mano Brown. E assim fiquei mais honrado ainda. Já trombava com o Brown em outro pião, em outros shows e pá, mas foi na Cooperifa que ele me ouviu declamando um rap, gostou da letra e falou “mano, vamos fazer uma instrumental loka, por a voz e ver no que vai dar”. Eu fiquei feliz pra caramba, não vou negar. A música que ele gostou foi “No Deserto”, que é do VP, com participação de Wesley Nóog e B. Valente e esse som já iria entrar em nosso disco. Mas depois ele me ligou e disse que tinha um novo projeto em mente e perguntou se eu tinha algo contra a marca Nike. Eu disse que não, o B. Valente também falou que não e assim fechamos a participação com outra música, “O que Tiver Que Ser”, que também entrou no disco do VP. O William Magalhães fez o beat, colocamos a voz e ficou bem loka. Ganhei um dinheiro legal, comprei minha máquina, investi na produção do Versão Popular, computador, caixas, programas de produção. Daí num parou mais. Foi mó honra trabalhar com Mano Brown, William Magalhães e toda a equipe Batalha das Quadras. Teve respeito e

A companhia, o amor, o respeito... essas são as maiores contribuições. O Versão Popular teve um grande aprendizado com essas pessoas e com esse movimento. Artista-cidadão, ideia loka de um bruxo. É estar nas quebradas, com o povo! Fala de igual, se aproximar das pessoas, ir até as escolas, conhecer realmente a quebrada, saber dos problemas, provocar mudanças e não mudar de bairro, para fugir dos problemas. A ideia é evoluir e nós, pessoas atuantes em nossas comunidades temos esse poder, coletivamente.

Saiba mais: versaopopular.blogspot.com

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Foto: Jo達o Wainer


O Circo

Márcio Batista Essas crianças não têm tempo com pipas, bonecas nem futebol São artistas do picadeiro de asfalto, entre o amarelo e o verde do farol Malabaristas da desigualdade social equilibram a vida numa pirueta, um salto mortal Comem fogo, cuspem bala na fala o fel o drama feito cordel

Garimpando Tudo

Em cena, ensaios da vida real, são assistidos com indiferença pelo respeitável público do sistema capital.

Casulo A terra cobre as pedras preciosas, o ouro a prata e o bronze, que mais cedo ou mais tarde acabam reluzindo nos pescoços e nos pulsos dos nobres, que para se protegerem da cobiça dos pobres, dão para a polícia o barato e pesado chumbo pra enfiar de preferência no tórax daqueles que por ventura venham crescer os olhos... E nesse corre-corre ganancioso, o mesmo chumbo usado contra o povo acaba nas mãos dos foras-da-lei, provocando o tal efeito colateral chamado olho por olho dente por dente... E assim os perecíveis humanos travam incessantes batalhas por coisas eternas que nunca vão ser de ninguém, que já estavam aqui desde que o mundo é mundo... Mas como a Mãe Natureza é justa tanto pros homens quanto pros besouros ou elefantes, vão-se os dedos e ficam os anéis; ouro e brilhantes pros próximos habitantes que não passam de figurantes nesse cenário planetário gigante...

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Quase todo dia Eu penso em escrever A poesia Que abra de vez O meu entendimento Que insufle o sentimento De igualdade, De justiça e de verdade Acordo Saio a rua e... Calamidade! O que tá acontecendo Com essa cidade? Com o mundo! Será que chegamos Tão no fundo? Pra que esse ódio Imundo Que plorifera nas capitais Através de industriais e estatais Que querem sempre mais, E mais e mais e mais Estendendo seus tentáculos No governo, no comercio, na comunicação Buscam doutrinar o povo Com novelas de televisão Que insuflam, sim Preconceitos Invejas e devassidão. Não quero ser puritano Acho a libertinagem legal Mas a manipulação é tão clara Que as vezes chega a pegar mal. Pois oferecem um mundo de sonhos Após os horrores do telejornal A novela é só um contexto Que serve de pretexto Para nossa alienação Temos ai futebol Cafeína ...praia e sol Para nossa satisfação Pois é satisfatório

Termos nosso território Livre dessas mazelas E ai que o Saddam morreu Com a corda no pescoço? Quem em Vigário chacinaram Homem, mulher e moço? E que aqui perto alguém tá jantando Um prato de sopa de osso? Vamos por ai pilotando Nosso estrito microverso Seguindo em falsa segurança E na hipocrisia imersos Um dia tudo vai ta diferente Quando eu da cama levantar Até chegar esse dia A dita “poesia” Vai ter que esperar

Insistência

Quase Todo Dia

Poeta Augusto

Lu Sousa Me desculpe: Por não saber agir pra poder atingir Um relacionamento perfeito E eu achar que faz parte, Pois nós temos defeitos. Me desculpe: Pelas vezes que foi jogar, Jogar com os amigos E eu achar que faz parte Jogar um pouco comigo. Me desculpe: Por reclamar sua ausência, Enquanto você Nem queria a minha presença E eu achar que faz parte, A minha insistência. Me perdoe: Se falei demais, Perturbei tua paz, Mas não vou te esquecer Jamais...


Desacredita Não

NSN (MANO PX E JB) Desacredita não, cola aê pra vê Aqui cabelo voa se não tiver um proceder A família tá unida aqui os guerreiros nato Persistir é comigo e sem boi pro fracasso Não abaixo a cabeça, sigo sempre avante Desconheço a derrota quero mais é revanche Junto com Jota B sigo sempre a risca Isso pros bicos é demais quando passo nem pisca Se liga tru, isso não é vida não A inveja continua arruinando os irmãos Tem o que fala pra caralho se diz o bandidão Foi o cerco fecha aê falhou na missão Aponto um pra mim tem três pro cê Cobiça não é conquistar então cê quer o que? Eu faço por ela e ela está comigo Entre becos e vielas eu ando tranquilo Conquistei, não tomei e isso prevalece Respeito é respeito defendo essa tese As pessoas que se vão a saudade batem a porta Lembrança de Tupac, Sabotage e Preto Jota Abençoado por Jesus pelo pão de cada dia Poder estar firmão agradeço a família Sou negro sempre negro desconheço meu limite Um dia será brindada a vitória dos humildes A minha cota eu quero em dólar e aí? O que que tem? No mundão cê vale, tiu, aquilo que cê tem Lealdade e respeito e o dom da transparência Estar vivo hoje em dia pra nóis é recompensa Se for pra somar vem com nóis demoro Negros sempre negros é os cachorros lokos Negros, negros, negros, negros Tá além de mim, você ouça por que pra crê Fusão cabulosa nóis tá nas pistas Tempos antigos tudo na bola de meia Os monstros aqui lutam e conquistam Salve a velha guarda malandragem ligeira Nação com malicia na calma analisa Boca aberta falador tem o cabelo penteado Nossa mente sabe o que mais precisa Atirar no espelho não trás resultado Agua comida dá energia ao homem Se nóis é tudo pobre isso não vira aliado Casa é o teto onde ele dormenergia Trabalho, dinheiro honesto, parceiro Inimigo é o sistema que quer nóis trancado Na precisão, disposição é ser ligeiro De dez de vinte de cinquenta é a meta Um bolo de cem tranquilidade completa Mais alerta é quem sabe que quirela esfarela Vira vapor se não souber lidá com ela Um carro é bom pra circular Vai rapidinho pra qualquer lugar Ter rolê cole quase tranquilo na quebrada Humilde tá no gesto a boca conto de fada O que tinha cem por cento já passou por aqui Nóis contra nóis não pode se reprimir Respeitar a criança, o idoso, a mulher Na sala de sua sala não neblina né? Pro xarope a colher doce amargo que ce qué? 27



E quando me olhas Com estes lindos olhos negros Dissolve toda minha revolta Assim desarma o guerreiro Constantemente ativo Tão frágil diante um lindo sorriso Desta mulher. Que com palavras me algema Me faz perder o caminho Cancelar vários esquemas Mostra me que a rosa Não tem somente espinhos Neste momento me perco No labirinto dos teus carinhos A fim de provar o tempero Que move o teu rebolado. Para mim é tarde... Pois já me vejo enfeitiçado Por você mulher.

Pingo D’Água

Olhos Negros

Sales de Azevedo

Valmir Vieira Terra de um povo sofrido Parece ter jeito não Muitas promessa e novenas Nem um pingo d´agua no chão Valei-me meu padim Ciço Ajudai Frei Damião Promessas e mais promessas Mas continua seco o Meu querido sertão Sem água sem alimento Está morrendo a criação Caem lágrimas dos meus olhos Aperta no peito o coração Tá tudo se acabando O povo tá migrando Do meu pedaço de chão Nem promessa nem novena Nem um pingo d´agua No chão

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Intensidade

Rose Dorea

TPM

Além do que devia SONHEI

Luciana Silva Tô de TPM... Sinto um ódio inexplicável Não me pergunte porque... Não sei responder... Nem ouse falar comigo ao menos que Você queira levar um grito Odeio me sentir assim É inconsciente... Não é que eu queira ficar desse jeito Mas eu fico, é fato. Tenho vontade de fugir Desaparecer, nunca mais voltar Pra ninguém me olhar Nem ousar me tocar. E ninguém me entende, que raiva Aliás, você não entende e continua me irritando Por favor, me deixe, vá para seu canto Antes que eu te mande para aquele lugar.

Além do que devia BUSQUEI Além do que devia SOFRI Além do que devia SENTI Além do que devia PENSEI Além do que devia FALEI Além do que devia GRITEI Além do que devia FRAQUEJEI Além do que devia FIZ Além do que devia AMEI Alem do que devia Aprendi que para sermos GUERREIROS TEMOS QUE IR SEMPRE ALÉM DO QUE DEVEMOS.


Moças Queridas

Sr. Lourival Moças queridas, eu quero incentivá Vocês pertencem a Cooperifa, com vocês eu quero adorar Nós tem pouca amizade, mais vocês vei-me emocionar Eu ofereço esta poesia, a vocês eu gostaria de abraçar. Moças queridas, eu fico em imaginação Vai aquele abraço e aperto de mão Porque vocês ficaram cravadas no fundo do meu coração Vocês são umas flores, eu queria ser um jardim Vocês todas bem perto de mim Eu sou seria tão feliz assim. Eu sonhei com estas moças que foi de admirar Mas estava na praia lá nas ondas do mar Ela falava venha comigo brincar Jogando areia em mim, querendo me cegar Novamente chamando: venha comigo brincar Jogando areia em meu olho querendo em cegar. Eu senti emoção comecei a soluçar E aproximei ao seu lado comecei andar Estas moças encontrou e fugiu do lugar A cinquenta metros aonde elas foi parar. Ai vem um barulho tão forte, eu fui acordar Foi o despertador dando o sinal Da hora de eu ir trabalhar.

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Rua

Evandro Lobão Tá na Chapelândia cadeia não é pra ninguém! Ai, jão: cadeia é pra homem si precisar troco até com zomi se moscar o chicote estrala o meu time é Corinthians se falar mal eu arrumo briga até pro espelho olho feio vivo rodeado de macho na nossa banca é pau no gato se pisar no meu pé vai conhecer Deus ou Lúcifer meto o louco meto o bico sou + mais sou o cara de subir o gás se mexer comigo descolo revólver, pistola ou até lança-míssil tendeu?

Amor Dissoluto

entendi meu Deus... homem sem mulher é um perigo.

De Lourdes No encantamento de um sonho se fez presente A embriagar-me com sua insolência amorosa Homem garbo, de inteligência viril. Em momentos de extrema frigidez Demonstrou-se forte, a tirar-me daquele abismo, Abismo que levaria-me à morte. Levantou-me das ruínas mais profundas Dos espinhos que entrelaçavam meu ser, Minha vida, minha estrada. No entanto, não passou de uma libertinagem Que afogou-me no mar negro, em que o desejo Tornou-se fraco, o qual dissolveu-me por inteira, Foi o veneno pro meu coração. Amor dissoluto que de mim, sugou a alma! Da lua sugou a luz! Do amor sugou-se tudo! Cadê eu? Morri!


Que Vantagem Maria Leva

F.I.N.O Du Rap QUE vantagem levou vai leva, por amar, por sofrer e viver por você POR deixar de ter sonhos e correr pelos seus E ficar com o fardo do ingrato adeus DONA das emoções,se entrega às razões MOVE o mundo, faz tudo mil e uma funções SAI cedo pra trabalhar, volta e cuida do lar e desconhece até o que é descansar AMANTE guerreira, fiel companheira DE sofrer preconceito ela é pioneira ESPINHA DORSAL da família,pelos seus se humilha DORMINDO em fila FILA de hospital de cadeia, de escola PRO seu fruto não morrer até pedi esmola ENTÃO me diz: que vantagem ela leva com isso? ENQUANTO sobe com as compras no elevador de serviço Que vantagem Maria Leva? Me diga Ioiô? me diga Iaiá? QUE vantagem levou, vai levar POR passar noites em claro te esperando voltar FOI tomar uma no bar e se esqueceu da hora EO rango ta la na mesa até agora ENQUANTO ela se preocupa com a vida que voa CRIOU o seus filhos e também os da patroa SE preocupa com estudo, emprego, saúde e beleza SUPERA toda dor e a tristeza, é forte por natureza É Tereza, é Leci, é Ivone, é Glória É Joana, é Pagu, é Lu, é Vitoria É deusa da história É ROSE, é Rosa, é Danila, é Camila DANDARA e Lauan, minhas filhas estrela que brilha REGINA, Barbina, Lucia, Neuza e Edite ELA tem o dom da vida e o amor sem limites

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F.I.N.O – Quarto Mundo Lembro quando vi pela primeira vez o F.I.N.O declamando na Cooperifa. Comentei como era boa a poesia dele e me disseram que ele tinha um disco recém-lançado. Comprei, óbvio. Um cara com um discurso tão firme e ao mesmo tempo auto-reflexivo, intimista: o álbum prometia se carregasse algo daquela leitura que fizera naquela noite. E a surpresa foi muito, muito positiva. “Formação de Inteligência Nacionalista Organizada, pode ser uma definição, ou simplesmente pela estrutura de seu corpo franzino, o apelido F.I.N.O”, é o que encontro na internet. Mas na realidade, Fino é processo de seleção de samplers e de batidas. Da primeira definição, o nacionalista se encaixa no sentido que a maior parte do material sampleado no álbum é retirado da nossa música. E de forma muito interessante: tudo é muito discreto, arquitetado de forma que valorize o conteúdo e as conexões rápidas e sagazes de ideias. Há uma evidente literariedade na composição das letras – e descubro na internet que há a inspiração na obra do escritor Herman Hesse –, e um vigor e destreza que lembram muito o melhor do rap conhecido como velha escola.

“Não existe vento favorável pra quem não sabe onde quer chegar” e “o homem só é feliz quando a si mesmo conhece”, rimas sábias do hit (seria em um mundo onde a música boa mandasse acima de qualquer coisa) “Hino do Vitorioso”, sintetizam uma forma de encarar o mundo que seduz por mimetizar a própria vida dos guerreiros “rapazes comuns” Brasil afora: se viver é lutar, então assim será. Há tempo pra refletir, a tempo pra curtir com os amigos, há o vinho e o jazz para relaxar e fugir da paranoia delirante do cotidiano. F.I.N.O sintetiza muito da ideia de artista-cidadão que encontra uma certa definição em famoso verso do Sérgio Vaz: “um sorriso no rosto e punhos cerrados”. Vale dizer que o MC não é exatamente um novato: em 1997 participou do grupo Conceito Real, e, já em carreira solo, havia lançado a demo Mochila de Rima e o EP O Som Do F.I.NO. O álbum Quarto Mundo foi produzido por DJ F-Zero, exceto duas faixas produzidas por Diamantee, e participações de Diego Luz, Rato e Alan Arcanjo.

www.myspace.com/finoquartomundo

Foto: João Wainer

Wesley Noog – Mameluco Afro-Brasileiro Pra mim, o carioca Seu Jorge é o samba soul man das multidões da atualidade. O paulistano Wesley Nóog é o samba soul man das comunidades da periferia. Simples assim. E isso fala, sobretudo, à índole do artista e menos sobre seu talento, que é exuberante como sua potente voz rascante. Assim como Caetano e Gil eram os tropicalistas “industriais” e Jards Macalé e Jorge Mautner eram os “artesanais”- o que não diminui a potência artística nem de uns nem de outros –, o que define o trabalho de Wesley é a comunicação direta e a preocupação em ser ouvido direto pela comunidade, sem a intermediação das rádios e quetais. Quem frequenta às quartas da Cooperifa e já viu Wesley soltando o vozeirão conclamando “É festa na favela / Quem quiser pode chegar / Chega no miudinho / Chega devagar” sabe que esses versos simples e diretos calam fundo e botam todo mundo pra balançar, criando a comunhão perfeita do silêncio como prece que permeia todo

o sarau e a festa funkeada da sonoridade de Wesley Nóog. E o cara domina o riscado: tá desde 1993 na estrada, com participações em grupos como Swing & Cia. e Estação Fankalha. Seu primeiro trabalho solo, Mameluco Afro Brasileiro, de 2008, sintetiza as predileções do artista que bota pra dialogar a soul e a black music estadunidense com o samba, afoxé, maracatu e ciranda, por exemplo. E, ao passo que brilha e é legítimo representante das comunidades periféricas, já se apresentou no exterior (na França, em 2009), ao lado de Gilberto Gil, Seu Jorge, Geraldo Azevedo e Natiruts, e seduziu o público no velho continente. O CD, disponibilizado gratuitamente na web pelo artista, alcançou números expressivos e garante que sua música chegue nos mais diversos cantos do planeta, mostrando sua visão pulsante da vida e da formação do nosso povo. Duvida? Ouça “Soul Assim”, “Nega Neguinha” e “Meu Batuque” e tire suas conclusões.

www.myspace.com/wesleynoog


Jairo Periafricania – O Sonho Não Envelhece “Frequentando o Sarau da Cooperifa descobri que era possível fazer arte” - essa é uma frase do jairo que vi em sua página na internet. Nada mais justo. Mas com certeza a Cooperifa também se agiganta com o guerreiro que era a voz e o cérebro do Periafricania, grupo de rap com nome inspirado no poema de Gaspar do Z’Áfrika Brasil, e que é presença certa nas quarta-feiras mágicas do Zé Batidão. Ou na contenção, conclamando os poetas ao microfone ou mandando bala com seus versos certeiros e inspirados. O Sonho não Envelhece, que de cara já traz a referência aos mineiros do clube da Esquina, é o título do primeiro disco oficial de Jairo Periafricania. Se o cara compôs versos antológicos sobre a Cooperifa, como “Uh, Cooperifa, meu quilombo cultural / É poesia, literatura marginal / no sarau,

não é por mal, o silêncio é uma prece / (...) / tem que saber chegar na quebrada / Só os verdadeiro fazem juz à caminhada”, o que se espera em seu trabalho solo e conhecendo sua caminhada é a fusão do ritmo e a poesia próprias do rap com o balanço da black music setentista e letras que falam por todo um movimento. Assim como Mumia Abu Jamal, o militante Pantera Negra preso injustamente pelo governo estadunidense, Jairo é mais uma “voz dos que não tem voz”. E essa voz é firme, distinta e sabe como chegar nas quebradas. O álbum tem 12 faixas inéditas com muita energia, contando com participações de Sérgio Vaz (Cooperifa), Crônica Mendes (A Família), Pop Black (Inquérito), Preto Will (Versão Popular), Martinha (Vila Fundão), Nicole, Paulo Saraiva, Bruno Eduardo, Thym Silva, Dj Edmilson e Mister Kreu. Como diz o Jairo, sua música tem “versos que só a poesia pode proporcionar. Sonhar e realizar. Viver e construir”.

www.myspace.com/jairoperiafricania

NSN – Sonhar É Bom, Conquistar É Melhor No fim da década de 1980, na auge do rap político nos Estados Unidos, Chuck D, líder/mito do Public Enemy, disse que “o rap é a CNN [maior canal de notícias dos EUA] do gueto”. Arte como informação. No Brasil, país das telenovelas, o rap acabou cumprindo o papel de cronista dileto da realidade. A informação vinha como crônica da vida de milhões que não se viam na TV. Se na TV a ficção era escapista, no rap as fronteiras entre ficção e realidade se confundem, reconfiguram o partido-alto que tratava das questões da periferia, dos deserdados, pesava bastante nas cores, estabelecia uma oposição de sentimento, de estilo de vida, de ambições entre os guerreiros/ manos e os habitantes “da ponte pra lá”. O NSN (Negros Sempre Negros), na trilha de grupos como Racionais MCs, Facção Central, Consciência Humana e Trilha Sonora do Gueto, constrói mais um capítulo dessa história com mais de vinte anos. O NSN foi formado em 1996 por JB, Mano PX e Leandrão. Todas suas intervenções no Sarau da Cooperifa, com o resto devidamente escondidos por máscaras (tal qual o Pavilhão 9 nos anos 90) ou com passa-montanha, criam uma atmosfera muito própria e marcante. Com os versos do grupo Alvos da Lei, “Mãos ao alto, mãos ao alto / Isso aqui é um assalto / eu tô roubando sua atenção,

mãos ao alto”, chegam chegando e roubam verdadeiramente a atenção dos presentes no sarau. Se a intervenção verbal deles em tudo lembra o rap gangsta típico da Zona Sul paulistana, a forma como surgem no espaço da Cooperifa carrega uma teatralidade muito interessante. E o disco Sonhar É Bom, Conquistar É Melhor também tem uma força muito característica e até espanta que não tenham ganho uma visibilidade maior para além da periferia Sul de São Paulo. Som direto, sem massagem, letras discursivas, fortes, bem construídas, vários momentos onde o rap (ritmo e poesia) dão lugar ao spoken word (palavra falada), cobrindo em toda a extensão da cultura afro prenhe em oralidade. A produção do álbum Sonhar É Bom...é um destaque a parte. As batidas são simples e secas, mas nos demais elementos, principalmente baixos funkeados como em “Já Foi O Tempo” e dão um balanço discreto mas que vão mantendo o clima do álbum, a faixa “Desacredita Não”, uma das mais impactantes, trabalha exclusivamente no recorte de um tema de jogo do console Playstation, remetendo diretamente às produções épicas do Facção Central. Em “Amor Ao Rap”, na produção oitentista típica do rap old school, uma homenagem ao passado e presente da cultura hip hop. Resumindo, trabalho forte, cheio de personalidade e que entra pra história do gangsta Zona Sul paulistano pela porta da frente.

www.myspace.com/nsnjb 35


A popularização dos saraus é um feito da periferia

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Por *Érica Peçanha do Nascimento

realização de saraus literários, em São Paulo, não é um fenômeno exclusivo das periferias, tampouco sua origem remete aos bairros que margeiam os centros econômicos e culturais. O que parece relevante, entretanto, é que este tipo de iniciativa, tão significativa na vida cultural paulistana, venha sendo retomado por ativistas periféricos no cenário contemporâneo. Os saraus tornaram-se importantes instâncias de circulação e legitimação de produtos literários de escritores da periferia, seja por meio da organização de coletâneas, ou ainda, pelos eventos de lançamento e comercialização de livros autorais. Mais do que continuidade, os saraus trouxeram frescor ao movimento de literatura marginal-periférica, com a ampliação de produtos e práticas que passaram a ser associados a ele, como a valorização da tradição oral, consumo de performances literárias, formação de bibliotecas comunitárias, aumento da produção escrita e do número de publicações (não somente livros, mas também fanzines, jornais, revistas e CDs de literatura). E a Cooperifa tem papel central nesse processo. Menos por seu pioneirismo em realizar saraus semanais, gratuitos, em horário posterior à jornada de trabalho e num boteco de periferia, e mais pela visibilidade que alcançou no debate público e na mídia alternativa e comercial. Em 2001, quando um grupo de amigos decidiu fazer do bar, que já era ponto de encontro de artistas amadores e profissionais de diferentes áreas, um local de divulgação de seus produtos artísticos, acabou por atenuar a carência de espaços de produção e consumo cultural numa região periférica e estabelecer um modelo bem-sucedido de promoção de saraus que se propagou com força na Grande São Paulo e em outras cidades do Brasil. A partir de então, dezenas de saraus literários multiplicaram-se em bares, escolas, centros comunitários, ONGs e até em equipamentos públicos localizados em bairros de periferia, cada um com sua particularidade: podem ser temáticos,

ter periodicidade quinzenal ou mensal, privilegiar aspectos relacionados à tradição afro-brasileira, ser frequentado majoritariamente por moradores do entorno ou por sujeitos de diferentes classes sociais. Mas em muitos deles é possível identificar certa ordem ou mesmo um tipo de ritual estipulado pelo Sarau da Cooperifa. A prece pelo silêncio durante as declamações, a inscrição prévia para os recitais, a preferência dada aos poetas assíduos, o espaço para esquetes teatrais, dança e música, o microfone aberto para informes de movimentos sociais e assuntos de cunho político. Esses saraus periféricos não são polos de formação de escritores profissionais, no entanto, permitem que crianças, estudantes, donas de casa, operários, entre tantos outros, assumam a identidade de poetas. Além disso, a regularidade de realização contribui para o reconhecimento da capacidade artística, de acesso a novas oportunidades profissionais e de interferência na realidade social por parte dos frequentadores. Embora nem tudo o que é produzido e performatizado nos saraus tenha intenção e mérito literário, ou atraia o mercado editorial, há que se perceber como positivo o estímulo ao interesse pela escrita como meio de expressão individual e coletiva, assim como valorizar os saraus como encontros comunitários para troca de ideias e fruição de bens culturais. Os saraus têm grande importância na história cultural de São Paulo. Já foram representativos da Belle Époque paulistana e marcados pelo condicionamento das classes dominantes nos primórdios do século XX. Porém, sua popularização, no limiar do século XXI, é sem dúvida, um feito da periferia. *Antropóloga e pesquisadora a produção cultural periférica. É autora de Vozes Marginais na Literatura (Aeroplano/Fapesp, 2009), livro que aborda a apropriação do termo literatura marginal por escritores da periferia e a importante cena literária que se estabeleceu nas periferias paulistanas.


Cooperifa fazendo amigos

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Por *Edurado Saron

oi numa conversa ocorrida no intervalo de um encontro de literatura que o jornalista Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Diálogos do Itaú Cultural, tomou contato com os planos do poeta Sérgio Vaz para o local onde ele mora, Piraporinha, zona sul de São Paulo. Sem pestanejar, Claudiney ligou para mim, então superintendente de atividades culturais do instituto, dizendo ter conhecido uma pessoa cheia de ideias para transformar a realidade da periferia paulistana. Uma delas era a criação de uma cooperativa cultural.

Isso foi há nove anos. De lá pra cá, o Itaú Cultural e a Cooperifa - a tal cooperativa - têm andado juntos em vários momentos, e o instituto contribuiu para que muitas ideias de Sérgio se tornassem realidade. Foi assim quando viabilizou a produção e o lançamento do livro Rastilho de Pólvora, em 2005, e do CD Sarau da Cooperifa, em 2006. Naquele momento, Sérgio já não era apenas um poeta, como na época do encontro com Claudiney. Ele tinha se transformado em um mobilizador cultural que reunia, toda semana, moradores de seu bairro e das redondezas no Bar Zé Batidão para ler e ouvir poesia, prosa e praticar o exercício da cidadania por meio da arte. É bom dizer que o Itaú Cultural também já não era o mesmo. O entusiasmo de Sérgio tinha contaminado, além de mim e do Claudiney, o Edson Natale, a Sonia Sobral e outros gerentes das áreas artísticas do instituto, que se engajaram nessa parceria e ajudaram a realizar mais sonhos do poeta, como o de trazer o Sarau da Cooperifa da zona sul para o centro da cidade. Foi assim que cerca de 50 poetas do grupo se apresentaram pela primeira vez na Avenida Paulista, aqui no teatro do instituto. O sucesso foi tanto que eles voltaram a participar de vários outros programas. E nós também fomos (e continuaremos indo!) ao Capão para acompanhar de perto, entre um gole de cerveja geladinha e uma garfada na generosa porção de carne assada com mandioca do Zé Batidão, o desenvolvimento desse movimento cultural. É por isso que temos orgulho de ter prestado muita atenção quando um poeta, há nove anos, nos contou seus planos. *Diretor-superintendente do Itaú Cultural

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No decorrer de seus noves anos de existência, a Cooperifa acabou por criar laços com pessoas das mais diversas regiões do país, de formações culturais/sociais das mais diversas. Heloísa Buarque de Hollanda é uma dessas pessoas. Aposentada em 2009 após quatro décadas de ensino e pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro e, além de sua atividade como jornalista, radialista, apresentadora de TV e diretora do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Heloísa tem uma larga história com a poesia. Em 1976, publicou a antologia 26 Poetas Hoje, que se tornou um verdadeiro marco cultural na história recente brasileira, apresentando o trabalho de Cacaso, Chico Alvim, Paulo Lins dentre outros para o Brasil todo. Em meio a toda essa prolífica atividade, encontrou tempo para comandar a ousada editora Aeroplano, tendo como eixo projetos editoriais alternativos, por onde lança a coleção Tramas Urbanas, que, com mais de 10 títulos, lançou o Favela Toma Conta de Alessandro Buzo e o

Cooperifa - Antropofagia Periférica, de Sérgio Vaz e o Traficando Conhecimento, de Jéssica Balbino - ambos autores presentes nesta revista. Recentemente, começou o projeto Universidade das Quebradas que, como explica em entrevista à Angelo Mendes Corrêa, é “um programa de extensão universitária que busca a troca de conhecimentos e culturas e se baseia na eficácia de uma ecologia dos saberes para a compreensão do mundo e da cultura contemporâneas. Assim, procuramos produzir novas formas de conhecimento, rompendo a unicidade e hegemonia do pensamento branco acadêmico”. Conversamos com Heloísa sobre a coleção Tramas Urbanas, questões de gênero, a Cooperifa e a poesia “marginal” do passado e a atual.

Revista da Cooperifa. Heloísa, gostaria que você dissesse - mais do que explicar a coleção Tramas Urbanas - o que a levou a optar por publicar tal coleção? Já foram mais de 10 livros e parece não parar...


Foto: Divulgação

Heloísa Buarque de Hollanda . Eu percebi claramente que uma cultura forte e criativa além de politicamente importante estava surgindo nas periferias, constituindo-se como uma das marcas da cultura do século XXI, e que a história dessa transformação deveria ser registrada. Até aquele momento, haviam matérias de imprensa, apresentações em seminários acadêmicos, pesquisas antropológicas, e mesmo algumas teses relativas ao tema. Mas a versão dos protagonistas desse quase levante cultural ainda não havia encontrado espaço para se expressar de forma mais ampla, de forma que circulasse por diferentes territórios sociais e culturais. Percebi nisso uma urgência, acelerei, e criei a coleção Tramas Urbanas.

Sua autobiografia começa com a seguinte citação de Susan Sontag: “Escrevo para definir a mim mesma – um ato de autocriação – parte do processo de tornar-se - Num diálogo comigo mesma, com escritores que admiro (...).” O que a geração mimeógrafo, de poetas como Chacal e Cacaso dos quais você foi companheira de caminhada procuravam definir para enfim tornar-se? E seguindo essa mesma lógica, e aqui com um olhar de pesquisadora e crítica, o que a literatura marginal procura definir? Realmente os Encontros tiveram um poder muito grande sobre minhas Escolhas e, portanto, sobre minha auto-criação. Na época do mimeógrafo, eu estava meio perdida, deprimida com a recente censura e com o tremendo anticlímax que foi o “golpe dentro do golpe” [refere-se ao acentuamento da repressão dos militares pósGolpe de 1964], que, naquela hora, era sentido como o ponto final do sonho revolucionário dos anos 1960. Por toda a parte, a gente assistia ecos

“Cooperifa sinaliza o horizonte de mudanças que este século pode estar prometendo. Me orgulho muito de poder acompanhar e ser atingida pelo efeitoCooperifa.” 39


do exílio de nossas lideranças, o silêncio nas universidades que havia sido o grande fórum politico estudantil bem pouco tempo antes, a total falta de informação na mídia, o chamado vazio cultural. Em meados de 1970, começamos a perceber que havia ainda vida inteligente na terra e no país. No teatro, no cinema, na música e sobretudo na poesia, começavam a surgir novas vozes ligadas à contracultura e que apostavam na liberdade e na criatividade. Foi esse input que recebi de peito e pulmões abertos e senti que havia um caminho de luta e de invenção que chamava a todos nós. Hoje, em pleno capitalismo selvagem e neoliberal, com a intolerância e o racismo radicalizado, e o desemprego e as desigualdades sociais e econômicas se acentuando no quadro da economia global, de novo, surgem novas vozes, agora vindas das margens com muita garra e talento e por aí encontrei novamente razões e novos espaços para entender, atuar e tentar transformar esse século que se anuncia enigmático.

Em sua autobiografia, Escolhas, fica latente sua preocupação com questões referentes ao feminismo/feminino. Relativo a esse ponto em específico, como vê a relação da literatura marginal (aqui entendendo literatura marginal nos termos do marco da publicação de mesmo nome da revista Caros Amigos) com essa questão? O rap e o funk, dois estilos musicais periféricos por excelência, assim como a literatura marginal, são comumente atacados como machistas/misóginos, por exemplo... Acho esse assunto importante de ser tocado. Não me sinto preparada para dar uma opinião que eu sinta como segura porque confesso que, apesar de ser necessário fazer isso logo, ainda não analisei ou mesmo examinei essas manifestações a partir de uma perspectiva feminista e política. Nesse caso, estamos falando de um retórica violenta e machista. Essa retórica é claramente um residual forte de relações de poder já em transformação entre homens e mulheres. E neste sentido, vejo até mesmo uma certa tendência a usar certas expressões e comportamentos sexistas já com um sentido meio pastiche, meio crítico. Outro ponto a ser observado é o lugar da mulher nas comunidades de baixa renda. A quantidade de mulheres chefes-de-família é grande e a mulher ganha um estatuto de mantenedora, de poder que caracteriza a figura matriarcal de um grande número das famílias de periferia. Esse poder que

as mulheres detém nesse contexto, relativiza de certa forma o lado machista das letras e danças funks. A ideia de cachorra não rola sem a ideia de força e de dominação subentendido. O grande problema em relação às mulheres que ainda persiste especialmente na periferia é a violência doméstica e a violência sexual que aí sim são representados de forma bastante agressiva nos raps e funks. Resumindo o que eu quis dizer é que realmente podemos ainda encontrar marcas nãocicatrizadas de uma visão sexista das mulheres nos raps e funks mas que, por outro lado, as funkeiras e as rappers, de certa forma, estão dando o troco quando usam essa linguagem caricaturalmente. Mas vou dizer uma coisa, para além das letras e intenções machistas, as mulheres de periferia estão mandando cada vez melhor e encontrando seu lugar com firmeza e competência.

Por fim, gostaríamos de saber qual sua avaliação da Cooperifa, o que ela traz de novidade, o que te interessa nela...

Me interesso pela Cooperifa porque me interesso por poesia. Onde tem poesia nascendo, eu vou atrás. E no caso da Coopeerifa encontrei algumas variáveis raras de serem achadas: a paixão pela palavra, o emponderamento pela palavra, a música e a sonoridade inseparáveis da palavra e um grupo de poetas, homens e mulheres, que estão descobrindo a mágica da poesia. Esse processo de descoberta se vê ao vivo nos saraus das quartasfeiras e irradia uma energia e uma potência que eu nunca tinha visto num movimento literário. E olha que eu venho dos anos 1960 e da poesia engajada “revolucionária” e passei pelos 1970 com a poesia marginal “vitalista”. Cooperifa sinaliza o horizonte de mudanças que este século pode estar prometendo. Me orgulho muito de poder acompanhar e ser atingida pelo efeito-Cooperifa.

Saiba mais: heloisabuarquedehollanda.com.br


SARAU PALMARINO Evento de iniciativa do núcleo Embu das Artes do Circulo Palmarino, corrente do movimento negro. Acontece todo último sábado do mês na periferia da cidade de Embu das Artes. A Atividade reúne músicos, poetas, dançarinos, ativistas culturais e pessoas da comunidade e da região. Sede Nacional do Circulo Palmarino - Rua Campos Sales, 12. Presidente Kennedy Embu das Artes. (11) 9840-7244 c/ Juninho/ 7656-8193 c/ Rodrigo. circulopalmarinoembu@yahoo.com.br; www. circulopalmarino.org.br SARAU POESIA NA BRASA Este sarau foi criado em julho de 2008 com o objetivo de produzir e divulgar arte e poesia dentro da comunidade da Zona Norte. Há, também, um espaço de expressão, discussão e reflexão, aberto a todos que queiram comungar da palavra. Todos os sábados, a partir das 19h. Bar do Carlita– Rua Professor Viveiros Raposo, 534 (em frente da escola E.E. João Solimeo). Brasilândia. Zona Norte. Entrada franca. (11) 9169- 9690. brasasarau@yahoo.com. br / http://brasasarau.blogspot.com

SARAU DO BINHO Esta atividade teve início em meados dos anos 90 com encontros mensais. Porém, desde 2004, acontece todas às segundas-feiras com microfone aberto para que os frequentadores possam expressar suas ideias por meio de diversas linguagens artísticas, principalmente a poesia. Todas as segundas-feiras, a partir das 21h. Bar do Binho – Rua Dr. Avelino Lemos Jr., 60. Campo Limpo, Zona Sul. Entrada franca. (11) 5844-6521. abcbinho@yahoo. com. saraudobinhoblogspot.com.br. PAVIO DA CULTURA Este sarau de poesias teve início em 2005 e virou tradição em Suzano e no Alto do Tietê. Realiza atividades culturais no segundo sábado do mês com o microfone aberto para que os presentes possam recitar poemas, músicas, cordéis, entre outras manifestações artísticas. Realização: Associação Cultural Literatura no Brasil e Prefeitura de Suzano. 20h. Centro Cultural de Suzano – Rua Benjamin Constant, 682. Centro. Entrada franca. (11) 7348-0400. .literaturanobrasil.blogspot.com sarau-da-ademar.blogspot.com

SARAU DA ADEMAR Tem o intuito de desmitificar a poesia e reconhecer os poetas locais, criando um espaço de cultura e integração na comunidade com encontros que acontecem desde de setembro de 2008. O microfone é aberto para comungar a palavra e outras manisfestações artísticas. Quadra - Rua Durval Pinto Ferreira s/n Altura do 3144 da Av Cupecê. Cidade Ademar, Zona Zul. (11) 8375-6371 c/ Lids. sarau-da-ademar.blogspot.com SARAU VILA FUNDÃO Teve inícío em novembro de 2009 com a meta de transformar o cidadão comum em um cidadão de pensamento crítico. As manifestações artísticas presentes no sarau são; música, poesia, teatro, literatura, dança, artes plásticas, entre outras. Todas as quintas-feiras 20h. Rua Glenn s/n Travessa da Av. Sabim. Próximo a estação de Metrô Capão Redondo. Capão Redondo Z/S. (11) 5821-8401/6440-1960 sarauvilafundao@ gmail.com www.sarauvilafundao. blogspot.com

SARAU ELO DA CORRENTE O Coletivo Elo da Corrente realiza encontros desde 2007, às quintas-feiras, exceto a última do mês, com o intuito de incentivar a leitura, recitar poesias e valorizar a arte da comunidade local. Bar do Santista - Rua Jurubim, 788-A. Pirituba, Zona Oeste. Entrada franca. (11) 3906-608 elo-da-corrente.blogspot.com SARAU DOS MESQUITEIROS Valoriza a cultura periférica dentro da escola para abrir as portas para a literatura, música, dança, graffiti, e teatro. Oferece também mesa de pintura, banca de livros para empréstimos e microfone aberto para a poesia. A partir das 18h. E.E. Jornalista Francisco Mesquita - Rua Venceslau Guimarães, 581. Próximo da Fábrica - Jd. Verônia/ Ermelino. Matarazzo, Zona Leste. Entrada franca. (11) 94576708. mesquiteiros@hotmail.com www.mesquiteiros. blogspot.com

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A

Ação Educativa tem o centro de suas ações na educação, obviamente. Onde entra o núcleo de Juventude, o que ele faz e mais: como uma instituição situada no centro expandido de São Paulo, como articula ações centro/ periferia? A Ação Educativa atualmente tem três áreas: educação, juventude e cultura. Juventude e Educação estão desde a fundação. O Programa de Cultura foi criado sob minha liderança no ano de 2007 a partir de um acúmulo de atuação e reflexão que vem desde 2001. O fato de estarmos no Centro tem tudo a ver com a periferia, já que possibilita um espaço de convergência de todas as periferias. Em nossa sede passam cerca de trinta mil pessoas por ano – quase três mil por mês, boa parte delas artistas da periferia que tem na Ação Educativa uma referência para encontros, fruição e produção artística, formação e articulações de redes e coletivos. Tornamo-nos Ponto de Cultura há um ano exatamente com essa proposta. Como surgiu seu interesse pela Cooperifa? Ou melhor: como chegou até ela? Lembro de uma entrega do Prêmio Cooperifa, creio que de 2008, onde você fez um discurso emocionante e marcante: lembrou que aquele prêmio não distinguia as pessoas e sim as incluía no projeto da Cooperifa... É verdade. Os prêmios em geral servem para distinguir as pessoas. O Prêmio Cooperifa não. Ele representa que você se torna um igual aos demais daquela comunidade. A honra é se tornar parte e não se destacar do grupo. Assim eu me sinto em relação à Cooperifa. Tinha informação sobre a Cooperifa desde 2003 quando o Sérgio Vaz foi participar de um debate na III Semana de Cultua Hip Hop. No ano seguinte ele voltou à Ação Educativa para participar do lançamento de um livro do Alessandro Buzo. Até que em 2005 eu fui ao Sarau. A partir de 2006 comecei a ir com mais frequência. Apoiávamos a publicação de livros cujos autores frequentavam o Sarau. Fazíamos o lançamento lá e também na Ação Educativa. Certa vez, o Sérgio Vaz me disse que a Ação Educativa era a maternidade da literatura da periferia. Por conta desse apoio recebemos o Prêmio Cooperifa naquele ano. Em 2007, criamos a Agenda Cultural da Periferia, publicação regular, mensal com tiragem de 10 mil exemplares que circula gratuitamente em toda a região metropolitana de São Paulo. No guia a Cooperifa sempre teve destaque. Naquele ano apoiamos a Semana de Arte Moderna da Periferia, grande evento liderado pela Cooperifa. No ano seguinte, criamos uma parceria forte por meio da qual

realizamos a Mostra Cultural da Cooperifa, evento que se encontra em 2010 na sua terceira edição. Enfim, foram muitos projetos, ações e parcerias ao longo de quatro anos de intensa relação. Como avalia a Cooperifa como um todo no cenário cultural da cidade e como a Ação Educativa enquanto organização se relaciona com a mesma? Dado o caráter inovador de política cultural desenvolvido pela Cooperifa, você acha que há ligação direta com o momento que o país como um todo vive? A Cooperifa é como aquela planta que nasce na fresta do muro de cimento. Num lugar onde moram mais de 400 mil pessoas e não tem nenhuma biblioteca pública, um grupo de poetas fazem de um bar seu ponto de encontro para cultuar a leitura e a literatura. É mais do que inusitado; é mágico. A energia que rola todas as quartas-feiras no bar do Zé Batidão é algo único. Conheço muitos saraus, mas nenhum tem a mística que a Cooperifa tem. É um ritual, uma liturgia. É interessante como o rigor, a disciplina e a convergência de valores e pensamentos que reinam na Cooperifa não lhe tira o frescor do romantismo, da irreverência e da transgressão que sempre está presente nas poesias e performances dos poetas. A Cooperifa tem tudo a ver com o momento das políticas públicas da cultura hoje existentes no País. Ações como o VAI - programa da prefeitura de apoio a projetos culturais de jovens e os Pontos de Cultura do Governo Federal tem na Cooperifa uma inspiração e um modelo para sua implementação. A Cooperifa ajuda e muito para a afirmação da cultura de periferia como um movimento estético consistente dentro da cultura urbana contemporânea. Para além do fenômeno sociológico que ela representa, há ali uma inovação de linguagem, um movimento literário cuja importância será debatida durante muito tempo nas salas das universidades. Palavras finais. Não tenho informação de que haja um Sarau que, sendo semanal, regular, tenha tanto tempo de existência. Talvez a Cooperifa seja o único que completa 10 anos assim tão forte. Temos que saudar este acontecimento com a grandeza que ele merece. Um movimento que é coletivo na sua essência, mas que é liderado por uma mente brilhante que é o Sérgio Vaz, a um só tempo criador e criatura da Cooperifa. Viva!


Foto: Monica Cardim

Cooperifa: Acrescente uma pitada de poesia na sua vida!!! Jairo, Sérgio Vaz, Lú Souza, Márcio Batista, Rose e Valmir Vieira.

Quando encontrei Sérgio Vaz pela primeira vez foi no meu escritório, a pedido de Antonio Eleílson, da Ação Educativa, pouco tempo depois do Centro Cultural da Espanha ter iniciado as suas atividades em São Paulo. A Cooperifa me encantou desde o primeiro momento, não apenas pelo carisma individual de Sérgio Vaz, poeta e agitador cultural que lidera o projeto, senão pela própria essência da proposta, que não depende de uma vontade só, mas da sua capacidade de articulação de sonhos e do amor pela literatura. Esta entendida não como bem individual, mas como algo a compartilhar com as pessoas que fazem parte do cotidiano do bairro, as quais demonstram uma vontade de agir frente às carências culturais e sociais da periferia de uma grande cidade como São Paulo de forma construtiva e lúdica, porém profunda e com potencial transformador. Assim, não poderia deixar de celebrar com enorme alegria os 9 anos de sua existência, hoje um fenômeno cultural que ocupa, por direito próprio, um espaço que até então se encontrava praticamente vazio na zona sul de São Paulo. O CCE_SP virou parceiro da Cooperifa por ocasião da sua I Mostra Cultural, em 2008, e desde então vem apoiando o evento, que acaba de celebrar a sua terceira edição com o maior sucesso. Entendemos que se trata de uma iniciativa de grande relevância para a cultura da cidade como um todo e que beneficia e faz crescer os indivíduos, tanto das comunidades que a rodeiam quanto de bairros mais distantes e, até mesmo, de outras partes do Brasil, como Santa Catarina e Rio Grande do Sul, por exemplo, para onde Sérgio Vaz levou um pouco da sua literatura e uma amostra de tudo o que representa a Cooperifa. Por isso, celebramos não somente a capacidade criativa do projeto, mas também a capacidade de articulação e capilaridade que permeia diversas instâncias da sociedade. Para mim, que levo tantos anos atuando no setor cultural, é sempre um momento especial e de alegria ser testemunha da visível felicidade nos olhares e sorrisos dos freqüentadores dos saraus, sessões de cinema, oficinas e Mostras, reconhecer quão importantes são aqueles momentos de cumplicidade experimentados durante a leitura de um novo poema, de um texto de hip hop, ou outra manifestação qualquer que chame atenção para a vida em comum. Aliás, escutar Sérgio Vaz ou qualquer outro colega da turma pedindo silêncio e respeito para a declamação de um texto transforma o espaço em um ambiente quase

Por Ana Tomé*

sagrado e faz com que cada indivíduo, buscando o seu próprio silêncio, abra espaço para a entrada do novo, do desconhecido e aprenda, com a prática do respeito, a apreciar a diversidade, a voz do outro que fala porque deseja se manifestar, porque tem algo para dizer e tem direito a ser escutado. Os participantes todos, sejam eles criadores ou platéia, recolhem-se nesse silêncio para permitir a passagem de uma nova mensagem. Ali, ninguém quer ser melhor que ninguém; todos querem apenas um espaço para compartilhar idéias e expressar suas visões de mundo, seus desejos mais íntimos, suas crenças, esperanças e ideologias. Nesse espaço, aprende-se muito e se estimula a leitura, a educação e o desenvolvimento humano. Fiquei, também, encantada com o programa da III edição da Mostra Cultural da Cooperifa, recém realizada de forma paralela em diversos bairros da zona sul de São Paulo, porque foi ainda mais fundo na questão da criação de platéia através da educação, a qual é trabalhada tangencialmente em todas as atividades da Cooperifa. As escolas públicas e CEUs da periferia, que este ano se somaram à celebração cultural, não somente receberam uma porção generosa de artes em todas as suas variedades, realizadas por artistas profissionais, mas também viraram cúmplices, já que alunos e professores participaram ativamente na qualidade de atores. Estes montaram seus próprios espetáculos de teatro, música, dança, entre outros, colocando-se no papel de espectadores e, ao mesmo tempo, protagonistas do evento, o que contribui com o fomento das suas habilidades criativas e o sentimento de pertencimento, além de favorecer o gosto pelas artes e o desenvolvimento pessoal. A Cooperifa, então, já se tornou uma agenda em São Paulo, que recebe gente de todas as tribos e classes sociais. Suas ações valorizam a sociedade civil e se convertem em um grande palco para a manifestação espontânea da educação e do respeito à diversidade. É um privilégio para nós trabalhar em conjunto com essa iniciativa. Parafraseando Sérgio, permitam-me finalizar com um: parabéns povo lindo, povo inteligente!!!!

*Diretora do Centro Cultural da Espanha/AECID em São Paulo

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Foto: João Wainer

A jornalista e agitadora cultural Jéssica Balbino conta como o exemplo da Cooperifa lhe inspirou a agir localmente, em Poços de Caldas (MG), e foi registrado no livro Traficando Conhecimento.

Cooperifericamente mágico

A

Cooperifa consegue fazer minhas noites melhores porque as poesias e textos que lá declamamos enchem a periferia de saber, iluminação e esperança”. Essa foi minha resposta para um concurso lançando pelo poeta Sérgio Vaz há um ano no blog Colecionador de Pedras. Baseado na pergunta “Qual foi sua noite inesquecível na Cooperifa?”, ele daria um livro para o autor da melhor resposta. Apesar de nunca ter estado fisicamente no sarau mais famoso das quebradas do Brasil, respondi a pergunta, tentando esclarecer como, mesmo a uma distância geográfica de mais de 300 quilômetros, a Cooperifa consegue influenciar minha vida, transforma minhas noites em poesia e meus dias em esperança. Me faz desejar mudança e trabalhar com atitude para criar oportunidades. Cooperifa é escrita, poesia pura. É amor e saúde. É paz e alma. É efervescência cultural. É tudo isso em energia que flui por fotos, depoimentos, vídeos e do olhar de quem frequenta, ou já foi, mesmo que uma única vez. É esperança, alma lavada, chuva de conhecimento, enxurrada de palavras. Respeito pela comunidade, que pode e faz poesia, música e cultura. O barulho do som dos tiros foi substituído pelas palmas que ecoam vielas adentro, aplaudindo a comunidade, que corajosa,

declama, diante do microfone, a poesia das lamúrias e alegrias do dia-a-dia. Assim posso resumir um pouco do que o quilombo cultural da periferia representa e o curioso é que digo isso sem nunca ter botado os pés, fisicamente, no Bar do Zé Batidão onde acontece, semanalmente, o famoso sarau. Porém, longe da fama e dos holofotes é que, há pelo menos seis dos nove anos de existência da Cooperifa que eu acompanho, por meio do passaa-passa de informações do gueto, a existência de um local mágico e sonho, acordada ou dormindo, que estou lá, me embriagando com as poesias feitas por pessoas iguais a mim.

DESTAQUE

Inspirada pela Cooperifa, minha atuação vai além dos livros, e passa por pequenos saraus em oficinas e workshops, caixinhas poéticas distribuídas ao acaso nas ruas e quebradas de Poços de Caldas. Com a mesma urgência que surgiu a Cooperifa, surgiu também o projeto Cultura Marginal. Agora, 365 dias depois, quando o sarau completa nove anos no Bar do Zé Batidão, posso estar não apenas presente, como também lançando o meu


livro “Traficando Conhecimento” num espaço de cultura feito para isso. Nada melhor para exprimir o que esses quase 3,3 mil dias do que o livro, produto desse quilombo cultural, que por meio do tráfico de informações pela internet, revistas e cartas, fez crescer em mim a vontade de mudar a minha quebrada. Entre livros abertos, as palavras voam pelas páginas e se cruzam pelas esquinas, onde dão sentido e poesia à vida de quem vaga pelas noites frias e vazias. Assim, tento trazer o sarau e as ações cooperiféricas para minha realidade. Um exemplo é o nascimento do meu livro, sobre o projeto Literatura Amplificada – Leia (anteriormente chamado de Passa Livros), que leva cultura e conhecimento aos locais mais afastados e carentes de Poços de Caldas de forma voluntária, presenteando as crianças, jovens e adultos com exemplares de romance, literatura policial, livro-reportagem e principalmente literatura periférica. Inspirada pela Cooperifa, minha atuação (também como agitadora cultural), vai além dos livros, e passa por pequenos saraus em oficinas e workshops, caixinhas poéticas distribuídas ao acaso nas ruas e quebradas

de Poços de Caldas. Com a mesma urgência que surgiu a Cooperifa, surgiu também o projeto Cultura Marginal, e, filho cooperiférico, assume essa postura diante do gueto e pratica, sem qualquer receio, o tráfico de conhecimento. Cidadãos de qualquer raça, sexo, ou credo. Cidadãos marginais fazem parte da Cooperifa, que hoje, nove anos depois de ter sido criada, sai do limite físico do Zé Batidão e conquista corações por todo Brasil, seja através de visitas, internet ou mensagens. Faz o coração sorrir e o povo ter acesso ao que foi negado sempre: cultura. E, como diz o Renan Inquérito “se a história é nossa, deixa que nóis escreve”. *Jéssica Balbino é jornalista, escritora, agitadora cultural e blogueira (www. jessicabalbino.blogspot.com) apaixonada pela Cooperifa, mesmo à distância.

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Esta reportagem é uma das mais bonitas e significativas sobre o sarau da Cooperifa. Eliane Brum entendeu como poucos o que se passa no Zé Batidão e nos pareceu óbvio compartilhar este belo texto em nossa primeira edição. É tudo nosso!

O SARAU DA COOPERIFA – Por Eliane Brum*

N

inguém entra no boteco do Zé Batidão impunemente. Sai de lá transformado pelo que viveu - ou melhor, sai de lá transtornado. O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda cada um de nós - e muda o Brasil. Centenas de pessoas, identificadas por algo que vai muito além de uma referência geográfica, a periferia, reunidos depois de um dia de trabalho duro para ouvir e fazer poesia. Simples assim - e uma revolução sem um tiro. Não é sempre que a gente testemunha a história em curso, percebe o instante exato em que o mundo balança. A Cooperifa é isso, um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada, enquanto os carros passam velozes pelo asfalto, lá no outro lado do rio, indo e vindo do mesmo lugar – mas com uma pressa... Na Cooperifa, toda quarta-feira, o tempo pára. E quando a gente vê, meio no susto, já passam das onze horas. Quando alguém pega o microfone para declamar uma poesia que escreveu, é seu destino que recria, é seu lugar no mundo que reinventa. Quando “o povo lindo, o povo inteligente” da periferia se apropria das palavras, é da História que passa a tomar conta. Naquele palco sem degrau, cada um bagunça a ordem das coisas – e bagunça com um instrumento que por 500 anos anos foi privilégio da elite do país. Bagunça pela palavra escrita. A ponto de a periferia virar centro sem deixar de ser periferia. E quem diria, depois de tanta bala perdida, que seria pela poesia que a ordem das coisas seria ferida de morte? Pela primeira vez, há uma geração de escritores identificados pela origem periférica no Brasil - e que se definem como “periféricos”. Parte deles começou a escrever na Cooperifa, lançou seu primeiro livro no boteco do Zé Batidão. A Cooperifa escreveu - escreve - vários capítulos dessa história. Inspirou dezenas de saraus de poesia Brasil afora, sua pipa no céu virou farol. Mas a Cooperifa é isso - mas é mais. É um espaço para todos, sem hierarquias nem julgamentos. Pega o microfone quem tiver algo a dizer em forma de poesia. Cada um será ouvido em silêncio e aplaudido no final. Porque foi lá na frente e se expressou, do seu jeito, da forma que lhe foi possível. E o que tinha a dizer só podia ser dito por ele. E o que deixou de dizer será uma falta no mundo.

Ao garantir um lugar no microfone, a Cooperifa desmente os que tentam nos fazer acreditar todo dia, que somos substituíveis, descartáveis, comuns. A cada quarta-feira, no boteco do Zé Batidão, é reeditada a garantia de que cada um é insubstituível, único, extraordinário. Lá dentro há palmas de verdade, do tipo que deixa as mãos ruborizadas, há assobios entusiasmados, mas nenhuma vaia. Não há cochichos ridicularizando um e outro, sussurros pelas costas. Lá há choro, há riso, mas não há exclusão. Por isso a Cooperifa é quente mesmo quando faz frio. E é por isso que na Cooperifa se fala da violência, da desigualdade, mas também se fala de amor. E ao falar de amor entre becos e vielas de concreto, esgoto escorrendo pelas rachaduras, a Cooperifa é ainda mais insubordinada. Porque ninguém esperava que periféricos escrevessem - e se tivessem essa ousadia, muitos apostariam apenas na dor. E assim um pedaço da vida continuaria exilada, roubada. Fora. Na Cooperifa não se censura a vida. Nem as palavras, os temas. Não se espera do poeta que faça apenas denúncias, dispare frases engajadas, lance versos encharcados de ideologia. Na Cooperifa há quem fale de dor de corno e de moça bonita. Há quem fale de corpos úmidos, de gozo, nudez e sexo. De saudade e de desencontro. E há quem fale de ódio, de rancor, de vingança. E há quem fale de tudo isso junto, porque a vida tem um pouco de tudo. E há quem pegue o microfone só para recitar Fernando Pessoa. Ao acolher todas as palavras, a Cooperifa garante, a cada quarta-feira, um lugar para todos os sonhadores. Simples assim. E abala as placas tectônicas do centro. Porque na Cooperifa o que cada um descobre quando entra tímido, meio desengonçado, se sentindo um tanto apartado das letras, é que pela palavra escrita - seja ela de amor, de gozo ou de fúria “nóis é ponte e atravessa qualquer rio”. * Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios, como o Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Líbero Badaró, Sociedade Interamericana de Imprensa e Rey de España. Em 2008, recebeu o troféu especial da ONU em reconhecimento ao seu trabalho jornalístico na área de Direitos Humanos e na defesa da Democracia.


Foto: Monica Cardim Foto: Jo達o Wainer


Foto: Jo達o Wainer


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