OLHA A BÁRBARA

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OLHA A BÁRBARA!

O homem parece bastante alto. Mesmo sentado, ou antes, escarranchado sobre o cepo do ofício, como se fosse um burro, com as pernas uma para cada lado da montada e ambos os pés assentes no chão, de terra batida. A mão esquerda segura o catraço de pau de amieiro, enquanto a direita empunha a enchó e desce-a lá do alto, bem acima da cabeça, ferindo a madeira com vigor, em golpes repetidos e ritmados, até a tornar parecida com a base de um futuro tamanco. Este, então, é o homem dos socos. Meio careca, resta-lhe apenas cabelo à volta da cabeça, mas os pelos do corpo são tão abundantes, para compensar, que lhe sobem pelo peito acima e rompem a gola da camisa aberta, atingindo o pescoço como seara espessa, apenas contidos pela navalha da barba diária. Olho-o através do buraco de um nó da madeira da meia-porta e miro, alternadamente, os meus socos novos, novezinhos a estrear, que ontem mesmo estariam ainda naquelas mãos. Foi Nosso Senhor, ou então foi o padroeiro, que os arrancou dessas mãos e os pôs nas mãos algo trémulas do meu pai, que mos enfiou nos pés mal o dia ainda clareava (“Toma lá, meu menino, são os teus tamancos, que te prestem no bom caminho”). Maneiras que, informado da identidade do artista e da sua morada, aí venho eu, povo acima, lá do fundo do Eirô, ligeiro como passarinho, confirmar incrédulo a origem do meu primeiro calçado. Tenho quê, três anos, quatro? E espreito. O homem tem a careca muito vermelha, assim como a cara, a bem dizer, modos firmes e decididos, bruscos mesmo, posso afirmar, olhar esquinado e gesto de força. Baixa a enchó com violência, atacando a madeira com golpes certeiros e sucessivos, e acompanha o movimento com a cantilena que inventa na hora: Olha a Bárbara, olha a Bárbara, que formou a sua orquestra, e no dia do acordo vai fazer a grande festa.

Não vê mais nada, alheio a tudo, mesmo aos gestos da tarefa que executa, mecanicamente. Está ligado apenas ao que lhe vai na alma, ao turbilhão que lhe ferve no íntimo, coisa boa não há-de ser, julgando pela raiva que lhe explode na força do braço e na lenga-lenga que vai botando para fora: Com a sua simpatia a Simplícia guia a música, para a mala dos papéis vai a ti Maria Augusta.


Que é lá isso, a ti Maria Augusta sei quem é, mulher do Zé da Vinha, e a Simplícia também, senhora de si como só ela, mora aqui em baixo, na boqueira da Adega. Mas a Bárbara, quem será a Bárbara, que quero crer a destinatária dos versos e o alvo remoto da acrimónia que os encadeia? Encolho o corpo, protegido pela porta, assesto o olho no buraco da observação (não te mexas, Inácio), quieto como coelho na lura a que o furão tapa a saída. Não respiro sequer, interditado pelo rompante visível do artista, puto da vida e animado decerto por dois ou três copos de bagaço do mata-bicho. Cujo reata a cantoria: A Rosinha toca os pratos, a Chandola toca o bombo, as Cassianas as caixas, no Eirô é o maior estrondo.

Ora bem, estou com a minha gente, as Cassianas são as filhas do Cassiano, minhas vizinhas no Eirô, a Chandola sei quem é, mulher do Chandolo, como quem diz, do Colaço, podador encartado no Doiro, e a Rosinha também sei, não é mulher de ninguém, salvo seja, que tem diploma de solteira. Mas a Bárbara, a Bárbara, a quem o homem roga pela pele!... Não está completa ainda a cantiga, ao que vejo, porque depois de uma pausa pequena lá torna o homem de novo, com raiva, depois de encher o fole do peito: A Prazeres toca ferrinhos, a Idalina castanheta, a Jorgina saquisfone, a Rosalina a pandeireta. O Zé da Vinha é o juiz e o Leira delegado, os dois Barretos e o Pereira são os três advogados.

A que vem a cantoria, então, desconheço, mas hora foi em que me entrou na cabeça, nunca mais saiu nem se apagou, ficou lá gravada na tábua da memória, até hoje. Disse hoje? Pode ser. Porque hoje, nem mais, completo sessenta e três anos de vida neste vale de lágrimas. Donde se segue que, mais um menos um, sessenta anos me separam das cenas que evoco, não por capricho, nem por acaso. Na verdade, há dois ou três dias que fomos à vila, eu e mais alguns patrícios, dar uma ajuda à vizinha, a que resta aqui na quelha, que comprou há tempos a antiga casa do soqueiro, mas encontrou no registo da aquisição algumas dificuldades inesperadas. Coisas do dianho! O homem morreu, Deus lhe fale na alma, há um ror de anos, e foi-se depois a viúva, Laurinda, sendo a casa encabeçada então pela filha, Maria Bé, que foi quem veio assinar a escritura, acompanhada pelo homem. Ao meu ver, contudo, este não é casado com ela, apesar de ela estar divorciada há muito tempo, ainda em vida da mãe. Curioso é que a casa, segundo se vê


agora dos documentos e ao contrário do que sempre se pensou, a casa, vá-se lá ver, nunca pertenceu ao soqueiro nem à mulher, se bem que foram eles mai-los filhos que lá viveram sempre, desde que os vivos se lembram. De facto, segundo conta a vizinha compradora, é a Maria Bé que está no registo como dona, mas o seu direito não vem, como se pensava, de herança do pai ou da mãe, vem antes de uma escritura de doação com perto de sessenta anos, era ela ainda menor de idade. Bem, mas sendo ela menor à data da aquisição e divorciada ao tempo da venda recente, não devia haver nenhum obstáculo ao negócio, ou ao registo, tanto assim que o notário nenhuma dúvida teve em celebrar a escritura de compra e venda, a pedido da compradora. O problema é que alguém no registo resolveu caprichar no zelo e deu-se ao desfrute de averiguar, sem qualquer obrigação para tal, qual o regime de bens... do extinto casamento da vendedora, da Maria Bé, coisa que há poucos anos ninguém faria, por dar algum trabalho, mas que agora está ao alcance de um clique, com as modernices dos computadores e da informatização dos registos. Ora o caso, por azar, é que a Maria Bé foi casada em comunhão geral, donde o seu direito na casa comunicou-se ao marido, daí que a venda teria de ser feita por ambos os cônjuges, sob pena de ilegitimidade. A menos, minha senhora – diz o registo à compradora – que a D. Maria Bé mostre partilha do divórcio em como a casa ficou para ela. Consultada a própria, no entanto, logo a mesma acena que não, infelizmente a casa não entrou na partilha, ficou de fora, nem sabe já bem porquê. De Anás para Caifás, lá vai a compradora ao notário expor o berbicacho e postular, se a há, uma solução para o caso. Solução? – diz o notário, há sim senhora, vamos é ter que fazer uma escritura de justificação em que a senhora vai afirmar o seu próprio direito, explicando que o mesmo resulta da compra e que esta foi bem feita, só com a intervenção da mulher, porque – veja – ela divorciou-se há mais de vinte anos; por conseguinte, se apenas ela tem tido posse da casa, não o ex-marido, ela tem adquirida a casa por usucapião, nos termos gerais. Venha cá tal dia e traga três testemunhas para confirmar na escritura e o caso resolve-se. Eis como, rogado pela compradora e com mais dois vizinhos, lá vamos todos à vila para o efeito indicado. E é nesse rolo que vem ao de cima a história da... Bárbara, que o soqueiro imprecava, há tantos anos, na sua cantilena. Vamos lá a ver, com o documento na mão, confirmado por testemunho coevo que aqui podemos seguir quase à letra. A casa está registada em nome da Maria Bé, certo? Certo. E com base em quê, numa escritura de doação, está bem? Está bem. E quem fez a doação, quem foi doador na mesma, quem era ao tempo o dono da casa? Foi (era) uma tal Bárbara da Conceição, aí está (Olha a Bárbara, olha a Bárbara...), irmã da Laurinda, portanto cunhada do antigo soqueiro. O que se passou é que aquele nunca perdoou à cunhada que fizesse a casa à sobrinha, em vez de a fazer à irmã, o que representava uma dupla bofetada de ofensa e suspeita, quer no soqueiro, quer nos filhos, irmãos da donatária, ambos homens por sinal e mais velhos do que a beneficiária da doação. Ficou tudo entre mulheres, foi o que foi, e os homens ficaram a mamar no dedo, especialmente o artista dos socos, que doutra forma podia ser dono da casa, mas não foi, vivendo até à morte... na casa da filha. Daí a raiva à cunhada, que nunca lhe passou, e a


cantoria que ele inventou, por assim dizer, aproveitando a música duma canção muito em voga ao tempo : Olha a mala, olha a mala, olha a malinha de mão. Não é tua, nem é minha, é do nosso hidro-avião.

Os versos? Do soqueiro? Nos versos ele nomeava as pessoas que ele próprio considerava comprometidas na manigância, fosse porque a instigaram ou aconselharam, fosse porque a conheceram antecipadamente ou ajudaram a concretizá-la. Com muitas delas, aliás, já antes andava de candeias às avessas. A.M. 15.6.2012

__________________________________ >> Olha a mala (Celeste Rodrigues) - YouTube


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