O lenço do sangue

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O LENÇO DO SANGUE

O que faz o tempo! Afasta-nos das coisas (do passado), volatiliza o presente, atira-nos sem remissão para o futuro, mata-nos a breve trecho, e entretanto degrada-nos, rouba-nos a vista e a memória (e o ouvido, o tacto, o cheiro), leva-nos família e amigos (mãe, pai, companheiros)... O que faz o tempo! Mete-nos uma fotografia à frente dos olhos, dizendo que é de 1958 e tomada em Santiago de Compostela, o pórtico célebre da catedral por trás, e à frente uns quantos galfarros, quatro mais novos agachados em baixo, quatro mais taludos em pé, no meio um clérigo incógnito à primeira vista – um director espiritual, diríamos? – que a legenda tardia identifica como sendo o Dr. Mendes de Castro, no momento em que referencia igualmente a identidade dos jovens, dos dobrados e dos erectos. Não se reconhecia ninguém, à primeira vista – lá está, o tempo! – e afinal é tudo, ou era – lá está, o tempo – gente conhecida. Certo que a ampliação, escassa, da foto também não ajudava, mas quase custa a crer que o primeiro exame não tenha reconhecido o eminente professor de moral (Religião e Moral, pontuava o currículo, que nós alunos traduzíamos por Religião Imoral...). Ou os pupilos, do Artur Marques, à esquerda, ao Zé Pinto, à direita, passando pelo Melo, ainda sem bossa de inspector mas com as mãos filadas no Malheiro, até bater no Nando, distante por enquanto dos páramos da Second Life. Imagens que me passais pela retina, porque não vos fixais? – pergunto com Pessanha. Ó seca – (é), claro – ó seca infausta das aulas de Religião e Moral, em que a postura austera do professor não deixava os miúdos divertir-se. Seca idêntica à do Canto Coral, também da responsabilidade de um clérigo, aliás cónego da sé – o Cónego Noronha – mas onde a geografia da sala, com os alunos de pé, agrupados por vozes, assim como o perfil um tanto aluado do cónego e a sua idade provecta, permitiam algumas brincadeiras e jogos florais. Dá-se que o filho-do- meu-pai era desafinado, definitiva e irremediavelmente desafinado, a despeito de as avós terem a seu tempo cumprido o rito antigo, de esmagarem no fundo duma cabaça o primeiro piolho que lhe encontraram na metouta, o que a tradição garantia ser o segredo de bela voz, melhor ouvido e de um futuro musical. Mas alguma coisa correu mal e o resultado não podia ser pior: mouco para a música (e para as más palavras), e quanto a voz, assim tipo cana rachada (da Índia, como a que a professora lhe fungava pelas orelhas abaixo, na escola, antes de entrar no liceu). Disse liceu? E disse Moral, Canto Coral, as duas disciplinas – obrigatórias, como todas, mas sem notas – leccionadas por sacerdotes da Católica? Disse Dr. Mendes de Castro (doutor, dizíamos, porque o era, além de padre), disse Cónego Noronha? Mas não disse do lenço. Dá-se que, além de desafinado, o filho-do-meu-pai soltava-se-lhe o sangue com alguma frequência, ou porque tivesse muito, ou porque os vasos não aguentassem a pressão. E Nosso Senhor mandou que, naquele dia, fosse acontecer logo na aula de Canto Coral, cujo evento depois de tapado no nariz com o lenço de assoar o interessado levou ao conhecimento do Cónego, com algum espalhafato, já se vê, espreitando ali uma janela de oportunidade para


escapar à chatice da aula. E meu dito, meu feito, ao aperceber-se da sangueira, logo o Cónego acedeu por gestos e ademanes a que o sinistrado desinfectasse dali, ou seja, que abandonasse a sala. Estava descoberta a pólvora, quero dizer, um sistema prático e fácil de escapar às aulas de canto, bastava ir junto do professor, um lenço a tapar o nariz, umas manchas de sangue como prova indiciária, e aí vai o aspirante a mal sucedido cantor a caminho dos recreios ou da alameda fronteira ao liceu. Uma vez, duas vezes, três vezes... o sistema foi testado na prática, livrando o seu criador de outras tantas aulas, uma aula, duas aulas, três aulas... de Canto Coral. E porque não, perguntou-se o dono do lenço, em certo passo, porque não replicar o truque sistema em outras aulas de utilidade não manifesta, as de Moral, por exemplo? Clérigo por clérigo, são todos ministros da mesma igreja e sócios da Santíssima Trindade, o Dr. Mendes de Castro há-de ser o próximo a ser enganado. E assim foi. Ou melhor, era para ser... Porque burlado, afinal, foi o burlador, em hora pouco inspirada. Levanta-se com estrépito da carteira, o lenço a tapar a narigueta e a mão segurando o lenço, encaminha-se para o professor e faz-lhe sinal da pretensão de sair da sala, para atalhar aquela emergência, que estava, vamos dizer, ali à vista de todos. Bem, o Dr. Mendes de Castro é que não foi na esparrela. Ou porque fosse mais esperto do que o cónego, ou porque a geografia da sala limitasse mais as possibilidades do actor do que a sala de Canto Coral, ou ainda porque o sangue do lenço – custa dizê-lo – estivesse já um pouco seco e descorado (foi isso, de certezinha!), o professor na hora nem hesitou, filou directamente a orelha do espertalhaço e vá de lha torcer, da esquerda para a direita, como os ponteiros do relógio, num movimento de rotação que não pressagiava nada de bom para o pavilhão auricular, obrigando o proprietário, para aliviar a pressão, a girar a orelha e com ela a cabeça e com esta o corpo no mesmo sentido do estorcegamento. Correu mal, em suma. Da aula não se livrou o coitado, nem do severo correctivo. Mas tomou ali lição para sempre, de como atenuar o puxão de orelhas, modo rotativo: rodar, rodar sempre, a orelha>a cabeça>o corpo, à medida que rodar a mão do puxante. Lição para a vida. A.M. 15.6.2012


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