BANDEIRAS - Projeto Experimental da Famecos 2013/2

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EDITORIAL

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s reportagens desta revista não mostram causas defendidas em mastros. A dificuldade em reconhecer as bandeiras que motivaram os protestos de junho de 2013 nos levou a procurar por convicções que não costumam aparecer nas ruas. Diferentemente das razões difusas que geraram um sentimento único de levante, aqui são expostas crenças singulares que dificilmente levantariam multidões. São bandeiras que guiam vidas, seja na opção por um estilo de vida hippie, uma cultura importada ou um turismo inusitado. Tentam melhorar o mundo com pequenos gestos, em prol da doação de órgãos, meios de transporte alternativos ou divulgação de causas em

telas de cinema. Também são bandeiras questionáveis e polêmicas, no caso de quem acredita na prostituição ou na magreza extrema como ideais de felicidade. Se há quem acredite, cremos que valha a pena explicar. Para não esquecermos das manifestações populares, mas na tentativa de fugir do óbvio, um viés econômico das mobilizações é lembrado em nossas primeiras páginas. Ainda em meio à ressaca das análises exaustivas sobre os protestos, nossa única pretensão é dar mais espaço a assuntos menos frequentes nos grandes veículos de comunicação. Ao final do curso de Jornalismo, esta revista reflete nosso esforço em experimentar pausar as notícias, fugir dos releases, buscar segundas e terceiras opiniões.

1) Jéssica Barcellos [editora]; 2) Bibiana Borba [repórter]; 3) Guilherme Fernandes [repórter]; 4) Katherine D’Ávila [repórter]; 5) Alexandre Elmi [professor]; 6) Priscila Leal [fotógrafa]; 7) Airan Albino [editor]; 8) Marina Teixeira [editora]; 9) Laura Martins [repórter]; 10) Eduardo Schiefelbein [repórter]; 11) Bruna Suptitz [repórter]; 12) Luíza Pozzobon[repórter]; 13) Anna Veiga [fotógrafa]; 14) Bruna Lodi [repórter]; 15) Ingrid Flores [repórter]; 16) Fábio Canatta [professor]; 17) Matheus Wink [editor]; 18) Helena Lukianski [repórter].

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor Joaquim Clotet Vice-reitor Evilázio Teixeira Diretor da Famecos João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Avenida Ipiranga, 6681 Prédio 7 - Porto Alegre - RS - Brasil www.pucrs.br/famecos Dezembro de 2013


CAUSAS 008 Economia de junho Manifestações de junho trouxeram diversas bandeiras para rua, impulsionadas por causas econômicas.

018 Ficar maluco beleza Os malucos de estrada mantêm o gosto pela rua, pelo artesanato e pelas viagens.

028 Longe (perto) de casa Jovens viajam e trazem como bagagem, para usar no cotidiano, a cultura do país visitado.

036 O negócio é pedalar O aumento do uso de bicicletas em Porto Alegre influencia o comércio local.

044 Mais relaxume, por favor Guia inusitado apresenta lugares com melhor custo-benefício para comer e beber na Capital.

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052 “Faço porque gosto” O universo de prostitutas que defendem a profissão como atividade digna – e prazerosa.

062 Sou Luciana Com medo de perder a história da Rua Luciana de Abreu, moradores se reúnem contra demolição de casas de 1930.

072 Um homem, mil vidas O sucesso dos transplantes de órgãos pode ser associado a um discreto e importante trabalho.

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082 Código livre Após quase três décadas, o software livre ganha espaço na rotina dos internautas brasileiros.

090 Contra a própria carne A celebração da anorexia e da bulimia como estilo de vida se assemelha a uma seita suicida.

102 Memória em cartaz Cinema reconstrói momentos políticos e mobiliza diretores para contar histórias.


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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA



“Fui às ruas

em busca de


mudanças

reais” Letícia Mazzoncini, questionando os reflexos do crescimento econômico em sua realidade


ECONOMIA DE JUNHO Texto: Guilherme de Oliveira

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m junho de 2013, o Brasil foi sacudido por uma onda de protestos que levou milhares de manifestantes às ruas. Foram semanas de uma espécie de levante juvenil e popular que se avolumou rapidamente, demonstrando um grande vigor, até então desconhecido pela geração atual. Os acontecimentos sucederam-se com rapidez, trazendo à memória grandes mobilizações da campanha “Diretas Já!”, quando as multidões exigiram o restabelecimento do regime democrático no país, depois de 20 anos de arbítrio. Desta vez, o leque dos manifestantes era mais amplo, com estudantes, trabalhadores e aposentados que se uniram para cobrar seus direitos e exigir mudanças, juntando novamente distintos setores da sociedade civil para compartilhar a vontade de mudar a realidade brasileira. O mundo olhou surpreso para a crise política no Brasil. São mais conhecidos os motivos que levaram as pessoas a protestar na Grécia ou na Espanha, os quais vivem uma profunda crise econômica. Mas, por que há problemas em países prósperos ou que, ao menos, passam por um período de rápido desenvolvimento, como a Turquia e o Brasil? Uma das explicações apresentadas está no sistema capitalista, modelo

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Foto: Caroline Ferraz | Editorial J


“Ocupamos as ruas em junho por melhores condições de trabalho, qualidade de vida e também para conscientizar a população de que o motorista e o cobrador não têm nenhum benefício com o aumento da passagem.” Ilon Oliveira, cobrador da Carris

econômico adotado pela maioria dos países do globo. O capitalismo não é um processo simples e hoje sua principal característica é a hegemônia em nível internacional. Apesar de ter múltiplas facetas, a tendência geral é direcionada à expansão do mercado e à atrofia dos espaços públicos. Isso leva a uma espécie de encurralamento das grandes massas numa espécie de panela de pressão que, quando explode, também o faz de uma maneira globalizada. De acordo com artigo do filósofo esloveno Slavoj Zizek, publicado no Blog da Boitempo, “deve-se ressuscitar o bom e velho conceito marxista de totalidade – neste caso, da totalidade do capitalismo global. O capitalismo global é um processo complexo, que afeta diversos países de maneiras variadas, e o que unifica tantos protestos em sua multiplicidade é que são todos reações contra as múltiplas facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global atual é direcionada à expansão do reino do mercado, combinada ao enclausuramento do espaço público, à diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento do funcionamento autoritário do poder político.” Atrofia da mobilidade urbana A realidade concreta que se pode observar é que todas as médias e grandes cidades, onde se concentra a maioria da população mundial, estão literalmente parando, perdendo a sua mobilidade urbana. A indústria automotriz hoje é a locomotiva que puxa todos os outros vagões da sociedade industrial. E, embora seja redundante, é necessário reafirmar que, se essa locomotiva parar, seus vagões também pararão. Por isso é que se vê os diferentes governos, dia após dia, dando incentivos fiscais para dinamizar cada vez mais este setor da economia. No caso do Brasil, o estopim das primeiras manifestações foi a questão do transporte urbano, tanto no que diz respeito ao preço como à qualidade dos serviços. É evidente que há problemas sérios nessa área que é uma concessão pública. Não há quase nenhuma fiscalização quanto à qualidade do trabalho dos permissionários e as planilhas de valores que baseiam o aumento anual da tarifa. Ao mesmo tempo em que o país, com seu crescimento econômico ainda que relativo, proporciona uma certa mobilidade

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social com milhões de pessoas saindo da parte de baixo da linha da pobreza e outros tantos alcançando a chamada classe média, a população sentiu que essas movimentações estavam sendo tolhidas pela atrofia cada vez mais acentuada de sua mobilidade geográfica. Daí por que a questão do transporte urbano tenha emergido como a ponta do iceberg da crise social e de suas erupções vulcânicas. Entre os que participaram das manifestações para exigir um transporte público melhor, estava o cobrador de ônibus da Carris Ilon Oliveira. O depoimento dele revela que existe uma desconexão entre o aumento das passagens, com a melhoria do serviço prestado e as condições de trabalho dos rodoviários: “Ocupamos as ruas em junho por melhores condições de trabalho, qualidade de vida e também para conscientizar a população de que o motorista e o cobrador não têm nenhum benefício com o aumento da passagem e que somente os empresários, donos das empresas de ônibus, lucram com o aumento da tarifa.” A crise é global No contexto mais geral, o Brasil tem de ser analisado no âmbito de suas peculiaridades e de seus parceiros de estágio de desenvolvimento, os chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). É inegável que esse grupo de nações protagoniza uma transformação e um deslocamento do eixo central das economias modernas. Enquanto economias mais avançadas acrescentaram 160 milhões de empregos não agrícolas entre 1980 e 2010, os países emergentes acrescentaram 900 milhões. As exportações de mercadorias aumentaram de 16% o PIB (Produto Interno Bruto) global, em meados de 1990, para 27% em 2008, com destaque absoluto para a China. O crescimento do comércio foi seguido pelo aumento da venda de matérias primas, com elevação de preços que proporcionaram bonança para o Brasil e a Rússia, em termos relativos. A média de crescimento da América Latina (7,42%), a partir de 1994, foi superior à média mundial. Mesmo assim, devido à natureza global do sistema, a crise econômica dos países ricos também afeta os estados emergentes. De acordo com o pensador chileno Jaime Osório, professor da UNAM (Universidade Nacional do México), o capital estrangeiro


Fotos: Caroline Ferraz | Editorial J

Em 20 de junho, mais de 5 mil pessoas reuniram-se nas ruas do centro da capital gaĂşcha. AtĂŠ a chuva inspirou os cartazes no protesto Bandeiras

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“Por viver a realidade de uma educação sucateada, reformas que mais precarizam do que de fato modificam a nossa situação, além de presenciar tamanha desvalorização de professores e funcionários, fui às ruas em junho.” Letícia Mazzoncini, estudante

Protestos em Brasília foram siginificativos, pois a cidade representa o principal alvo das manifestações: os políticos brasileiros

é um dos atores privilegiados na reestruturação da economia dos hoje países emergentes. O Investimento Estrangeiro Direto (IED) destas regiões passou de 14,9% do total mundial em 1990 para 37,8% em 2006. A venda de grandes empresas públicas também contribuiu para o aumento do IED no período. O Brasil tendo, além disso, a seu favor, um enorme mercado interno e relações diferenciadas com outras economias (América do Sul e Ásia), constitui uma economia privilegiada pelo IED. É um tanto paradoxal que, no mesmo período em que um padrão econômico voltado para os mercados externos está em curso e atinge importantes realizações, as condições gerais de vida e trabalho da maioria da população, assim como serviços básicos como saúde e educação no Brasil, assistam a uma drástica precarização.

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Pleno emprego, sem qualidade de vida A estudante do Instituto Estadual Professora Gema Angelina Belia Leticia Mazzoncini aderiu às manifestações de junho por não ter visto em sua escola reflexos do crescimento econômico: “Por viver a realidade de uma educação sucateada, reformas que mais precarizam do que de fato modificam a nossa situação, além de presenciar tamanha desvalorização de professores e funcionários, fui às ruas em junho em busca de mudanças reais e mais investimento na educação e no nosso futuro.” Com a estudante, também estava se manifestando a auxiliar de enfermagem no Hospital Femina Cristiane Correa, demonstrando que a insatisfação não era restrita à precarização da educação: “Cuidamos da saúde e não temos saúde devido à sobrecarga de


Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom | ABR

trabalho e carga horária excessiva para dar conta do atendimento à população. Falta investimento na saúde e comprometimento dos gestores quanto as definições prioritárias da aplicação desse dinheiro que vem dos impostos e que não são poucos.” Um dos principais motivos, de acordo com Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã – associação sem fins lucrativos –, está no pagamento da dívida pública. Já faz algum tempo que o país resolveu nacionalizar a sua gigantesca dívida externa que, agregada aos débitos internos previamente existentes, resulta com que quase a metade do Orçamento Federal de 2013, exatos 42%, esteja destinada ao pagamento da dívida contraída pelo Tesouro Nacional. Nesse contexto, e separando do orçamento federal todo o custeio da máquina pública, sobram apenas percentuais residuais para os investimentos sociais, produzindo-se aí um déficit que serve de combustível instantâneo e cria um espaço

propício para grandes e violentas convulsões populares. Outro fator que pode fornecer indícios sobre o DNA da crise atual é o fato de que o Brasil é eminentemente um exportador de “commodities” (mercadorias com preços universais) e matérias primas em geral, mas não tem conseguido agregar quase nenhum valor às riquezas que exporta. O resultado mais lucrativo do processo de industrialização fica com os asiáticos, principalmente os chineses. Nesse contexto, e no quadro da mobilidade social existente hoje no Brasil, grandes contingentes da classe média emergente, embora vivendo num ambiente de quase pleno emprego, mas de baixíssima qualidade, sentem-se profundamente frustrados com a lentidão de sua ascensão social. Não vendo um futuro claro e próximo no horizonte imediato, extravasa as suas frustrações em manifestações de rua. x Bandeiras

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA



“Não conseguia me

ENCA IXAR. Gosto é da rua”

Daniele Fagundes, lutando por uma vida fora do sistema




FICAR

MALUCO BELEZA Texto: Katherine D’Ávila Fotos: Anna Veiga

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s ladrilhos da Praça da Alfândega ganham panos que expõem brincos, colares de pedras, pulseiras feitas com cordões coloridos, enfeites como filtros dos sonhos e outros objetos artesanais. Os responsáveis por esses materiais são os malucos de BR ou de estrada. Eles vivem do seu trabalho manual e têm o costume de viajar para cidades do Brasil e do exterior sem compromisso. Outra característica marcante desse grupo é a opção de não seguir os padrões da sociedade. Até hoje ainda são confundidos com hippies, grupo que se proliferou nas décadas de 1960 e 1970. Os hippies guiavam-se pelo amor livre, a paz de espírito e a fé. A história deles tem origem em Bethel, cidade próxima a Nova Iorque, quando jovens se reuniram para cantar e demonstrar o sentimento que mais desejavam naquele momento: a paz. A partir do episódio, ganharam mais adeptos e começaram a se expandir, mas sua manifestação incomodou alguns políticos e parte da sociedade, o que, consequentemente, reduziu o número de pessoas com esse ideal, devido à repressão que sofreram. Algumas características dos hippies, como o estilo de vida, são semelhantes a dos malucos, mas eles não gostam de serem denominados assim. “Hippie é coisa dos anos 1960, que não existe mais”, declara Diego Moreira, 29 anos. “Ninguém da nossa galera cumprimenta o outro falando ‘e aí, hippie’, a gente fala ‘e aí, maluco’”, explica. O motiBandeiras

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Diego Moreira foi assaltado algumas vezes, mas não se abate com isso

vo do estereótipo é a falta de conhecimento da população sobre a vida do artesão que viaja vendendo seu material. Outra reclamação do grupo é a comparação entre eles e os ambulantes. “Muitas vezes sou confundido com camelôs, mas não gosto, sou artista de rua”, afirma Moreira. O maluco elabora seus artefatos com cuidado e delicadeza. “Cada peça é única”, conta Moreira. Quando alguém se aproxima de seu pano, ele faz questão de contar a história da pedra que está fixada nos cordões coloridos. Para ele, isso valoriza seu trabalho. Na juventude, passou por muitos episódios ruins. Envolveu-se com drogas e rebelou-se contra a família, mas atualmente tem outros princípios e dá mais valor ao que faz. “Hoje estou no caminho certo. Podia estar no fundo do poço, se não tivesse me dado valor. Se tenho tudo isso, é graças ao meu trabalho”, destaca. A importância dada ao ofício é característica marcante dos malucos. Moreira afirma: “As amizades que tenho são por causa do trabalho. Tudo é pelo meu trabalho”. Fugir da vida de Pardal O artesanato impulsiona as viagens, a convivência e o conhecimento de diferentes culturas. Porém, os artesãos apresentam uma fragilidade financeira e social muito grande, é o que afirma Alfredo Meneghetti, economista da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul e professor da PUCRS. “Eles estão em um ambiente vulnerável, sem condições necessárias para desenvolver negócios”, diz. O economista ainda destaca que, mesmo que o lucro seja grande, eles não conseguem ter a proteção útil, como fundo de garantia, contas bancárias e outras obrigações que os trabalhadores têm, pois é um trabalho informal. As viagens também fazem parte do estilo de vida desse grupo. A maioria pega a estrada com o objetivo de vender seus produtos e adquirir experiência. A última vez em que Moreira saiu da cidade foi em julho deste ano, quando visitou o Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude. Daniele Fagundes, 48 anos, também é maluca e sempre gostou de viajar. Além das pessoas, adora as pedras diferentes dos lugares que visita. A próxima rota que está planejando com seu marido é para a Argentina, onde


“Ninguém da nossa galera cumprimenta o outro falando ‘e aí, hippie’, a gente fala ‘e aí, maluco’.” Diego Moreira, maluco de BR assumido

encontra seus materiais preferidos. Porém, atualmente, se considera uma pardal, que, na linguagem deles, significa pessoa que não viaja. “Hoje vou e volto mais rápido”, acrescenta. Daniele vive de seu trabalho desde os 22 anos. Iniciou duas faculdades na juventude, a de Jornalismo e a de Artes Cênicas, e já passou em um concurso público de um banco. Nada disso a agradou: “Não conseguia me encaixar, gosto é da rua”. A maluca prefere não saber como será o próximo dia. “Amanhã posso estar em outra cidade, muito longe daqui. A liberdade de viver assim é tudo”, ressalta. O sociólogo Hermílio Santos, doutor em Ciência Política e coorFamília viaja pela América Latina

denador do Centro de Análises Econômicas e Sociais da PUCRS, afirma que esse grupo não escolhe viver integralmente na sociedade. “Eles não se agregam completamente nesse esforço para seguir objetivos normais, como estudo e trabalho. É um grupo que não incentiva o acúmulo de riquezas e materiais”, completa. Pelo ar ou pela terra Pegar a estrada de carro, Kombi e até carona sempre foi normal para a malucada. Atualmente, esse costume já está sendo trocado por avião. Segundo Daniele, antigamente era muito comum ir para outras cidades com pessoas desconhecidas, mas afirma que agora é um hábito perigoso. Na próxima viagem, ela vai trocar


Daniele leva seu trabalho para outros lugares, viajando de Fusca

seu Fusca azul por passagens aéreas. “Com o carro só dá para ir pertinho. Para lugares distantes, prefiro ônibus ou avião”, diz. Já Moreira tem um sonho: viajar de carro pelo país, conferindo as estradas e as paisagens. Uma família que não troca seu transporte terrestre é a de Marcius da Silva Rodrigues, 34 anos. Sua mulher, Danusa, suas filhas, Brida e Papoula, e o amigo Gérson Araújo, viajam em uma Kombi por toda a América do Sul. O veículo é pintado com indicações de capítulos e versículos da Bíblia, além de ter coladas em seus vidros fotos de outras pessoas que conheceram pela estrada. A Kombi, chamada Emanuel, é muito bem cuidada, pois serve como uma casa para o grupo. Diferentes da sociedade Vivendo como nômades, uma das preocupações é o local para passar as noites e descansar. As opções para isso são campings, casas de amigos ou pessoas que conheceram ao chegar à cidade, além de moradias abandonadas ou até mesmo a rua, essas duas últimas também chamadas de mocó. Dani, como prefere ser chamada, conta que já dormiu em uma caixa de geladeira em uma das suas idas a Santa Catarina. Quando Moreira foi para o Rio de Janeiro neste ano, passou as noites no apartamento de um veterinário. Ele se hospedou no local todo o tempo em que ficou na cidade. O maluco ajudava nas tarefas domésticas em troca de abrigo e hoje mantém contato e amizade com o anfitrião. Na Cidade Maravilhosa, chegou com apenas R$ 4 no bolso, mas no mesmo dia conseguiu R$ 200 vendendo seu artesanato para uma menina. “Nessa ida para o Rio de Janeiro foi a vez que mais vendi na minha vida”, ressalta. Um dos cuidados que quem vive do artesanato precisa ter é com a segurança dos seus materiais. Moreira já foi roubado mais de uma vez, mas não vê isso como um problema. “Se eu for roubado hoje, basta ter um arame e um alicate que recomeço”, explica Com o material, ele elabora anéis e vende pelo preço que a pessoa quer pagar. Assim junta dinheiro para comprar novos utensílios. O gosto pelas viagens e pela arte também se reflete na música. O


Gerson Araújo não se arrepende de ter a Kombi Emanuel como lar

maluco gosta de tocar violão entre os amigos e seus artistas preferidos são Raul Seixas e Renato Russo. Segundo o sociólogo Hermílio Santos, a malucada optou por não estar integrada. “Esse grupo segue caminhos paralelos daqueles esperados pela sociedade, como cursar uma faculdade ou trabalhar de carteira assinada”, afirma. Daniele e Moreira participaram de ações contra o sistema neste ano. Ela esteve com o marido em algumas manifestações no mês de junho. Ele luta pela moradia e vive em um prédio ocupado na rua Caldas Júnior, no centro da Capital. De acordo com Dani, o maior desejo desse grupo é viver o mais distante possível do sistema, além de ter um lugar para expor o seu trabalho. x

Dicionário maluco

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Hippie: pessoas que fizeram parte do movimento de contracultura dos anos 1960 e 1970 Pinta: usado para se referir a alguém Maluco: pinta que vive do artesanato, tem o hábito de viajar e não integra a sociedade Manguear: usar de artifícios para obter o que se deseja Mocó: lugar para dormir, esconderijo Pano: local onde os malucos expõe seus trabalhos na rua Pardal: maluco que não viaja


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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA



“Pertenço a esse

lugar.

É complicado de expressar” Renata Galvão, adotando um novo lar em algum ponto do mundo



Renata Galvão | Arquivo Pessoal

Colo de mãe foi o que Renata Galvão encontrou e compartilhou em um orfanato na África do Sul

LONGE (PERTO) DE CASA Texto: Bruna Lodi

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iajar e voltar para o país natal traz aprendizados e experiências na bagagem de quem o faz. No entanto, quando o amor à primeira vista pelo país acontece, a volta pode ser um tanto dolorosa, mesmo que cheia de novas informações, costumes e hábitos capazes de mudar a vida de quem viaja. É o que mostram as histórias de quatro pessoas, que visitaram quatro países de culturas diferentes. Islândia Os olhos de Pedro Salassié, 27 anos, brilharam pela Islândia quando ele ainda era menino. Ele era daquelas crianças que adorava folhear revistas de turismo e atlas. Dessa maneira, descobriu um país de que mal se ouvia falar, conhecido também como Terra do Gelo. Encantou-se pelas belas paisagens, mas lembra que a informação que mais lhe chamou atenção foi a de que o país possuía somente uma rodovia. A partir desse primeiro contato, iniciou-se, então, uma mudança na vida de Salassié. A Islândia é como uma segunda casa para ele. Na verdade, pode-se dizer que ele considera o pequeno país com pouco mais de 300 mil habitantes como um lar. A primeira vez na Islândia foi sugestão dele à família, que iria viajar para conhecer a Escandinávia. Perto de pousar no aeroporto de Keflavik, a cerca de 30 quilômetros da capital Reykjavík, ele se encantou com o que via. “Mãe, estamos pousando na Lua”, recorda Pedro. Hoje, boa parte do seu tempo ele dedica ao portal (islandiabrasil. com.br) sobre tudo o que se relaciona com o país e também um blog, onde é possível encontrar notícias da Islândia em português. Salassié recorda que um dos lemas do povo islandês é: “Trabalho para viver, não vivo para trabalhar”. A paixão pelo país foi tanta que, além do site e blog, passou a trabalhar especificamente como agente de viagem da Islândia. “Definitivamente, o que mais fez e faz parte dessa integração na minha vida foi a necessidade de fazer mais pessoas conhecerem esse lugar encantador e ter aberto a agência Islândia Brasil, prestando consultoria, tirando dúvidas dos brasileiros que para lá vão e também comercializando pacotes, passeios e tudo mais”, conta. E ainda destaca: ‘’A Islândia não é trabalho para mim, é prazer, diversão e paixão acima de tudo e assim sempre será”. No país, contribuiu fazendo

trabalhando voluntário no Jardim Botânico de Reykjavik. Ele conseguiu unir o trabalho com a paixão e viaja todos os anos para a Islândia. Desde então, quando pensa em outros destinos, é algo que dura por minutos, pois acaba sempre comprando passagens para o aeroporto de Keflavik. Para falar da população islandesa, ele não poupa elogios. Organização, racionalismo e nacionalismo são algumas das características que destaca. Para ele, o povo islandês sabe que realmente é diferente do resto do mundo: “Desde não terem sobrenomes [é feita a junção do nome do pai, da pessoa acrescentando a palavra filho (a) ao final, son para homens e dottir para mulheres], serem os pioneiros em muitas coisas na política, serem um país sem Forças Armadas e com tantos contrastes naturais – e nenhum contraste social. As coisas por lá acontecem de forma easygoing, nada com pressa nem pra ontem’’, conta Pedro. Os aprendizados são aplicados no dia a dia. O agente de turismo trouxe alguns hábitos: “Nos dias de frio aqui da Serra Gaúcha, sempre uso meu lopapeysa, o tradicional suéter de lã islandês, tomo meu brennivín, a “cachaça” de lá, e sempre cozinho um dos pratos mais tradicionais do país, o plokkfiskur, que é feito com peixe”. Embora as pessoas falem bastante inglês na Islândia, Pedro optou por estudar a língua nativa, considerada difícil porque nunca sofreu nenhuma alteração depois da chegadas dos vikings. A Islândia é conhecida também pela música. Na capital ocorrem festivais que contam com mais de 200 bandas, dentre elas Sigur Rós e Bjork, uma das artistas mais famosas da Terra do Gelo. Porém, Pedro conta que a música islandesa não é a sua favorita, o que surpreende muita gente. África do Sul A estudante de Jornalismo Renata Galvão, 23 anos, largou a vida no Brasil por amor à África do Sul. A paixão surgiu quando, aos 12 anos, ela sonhava em ajudar crianças carentes. No último ano da faculdade ela se inscreveu para uma vaga em um estágio voluntário na revista The Big Issue South Africa. Em questão de dois dias, uma entrevista por Skype foi realizada e logo fo chamada para trabalhar na revista. Dois meses depois, Renata embarcava para a cidade que mudaria sua vida. Foram cinco meses estagiando na revista que trouxeram para a estudante não Bandeiras

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“A Islândia não é trabalho para mim, é prazer, diversão e paixão acima de tudo e assim sempre será.” Pedro Salassié, agente de turismo

somente a experiência como jornalista, mas também um aprendizado de vida. “Como repórter, escrevi muitas matérias, incluindo investigativas sobre escravidão e tráfico de pessoas. Eu aprendi e sofri muito, pois entrevistei e entrei em contato com histórias de pessoas que realmente precisavam de ajuda”, conta. Com isso, ela se apaixonou também pelo povo sul-africano que, apesar de inúmeras dificuldades, são todos solidários uns com os outros. Além de repórter, ela conseguiu conciliar a sua antiga paixão em ajudar crianças carentes. “Ajudo um orfanato em Khayelitsha (uma das favelas aqui da Cidade do Cabo). O orfanato de Qaqambani é minha verdadeira paixão”. A primeira vez que Renata visitou o local, estava doente. Logo que a conheceu, Mama Sylvia, responsável por criar diversas crianças, sentiu que ela estava com febre e a acolheu em casa, fazendo chá de gengibre. “Ela me deu exatamente o que eu precisava naquele momento: colo de mãe. Eu, uma estrangeira adulta que ela nunca tinha visto na vida. Aquele dia eu pude sentir de forma branda o que uma criança em risco sente ao chegar na casa de Mama”, diz Renata. Surpresa e reconfortada com tanto carinho e solidariedade, a estudante criou o projeto “Casa para Mama”, cujo objetivo é juntar fundo para criar um novo lar para as crianças. Por situações como essa, Renata se viu rodeada de pessoas boas, que a motivaram e a fizeram acreditar e abraçar a África do Sul. Ela conta que no Brasil não se encontrou como pessoa, mas que no país se sentiu realizada, tanto na vida pessoal quanto na vida profissional: “ Sou irritante de tão feliz que sou na África. Pertenço a esse lugar. É um sentimento complicado de expressar”. Por isso, decidiu permanecer no país. A cultura africana é algo que a fascina. Lá, falam-se onze línguas e cada povo tem o próprio costume, idioma e até os sotaques em inglês acabam sendo diferentes um dos outros. O que chama atenção da estudante é o processo de iniciação do povo xhosa. “Meninos entre 12 e 17 anos da cultura xhosa ficam confinados no meio do mato durante o verão. Lá eles precisam sobreviver (mas tudo acontece com a supervisão e ajuda de adultos da tribo) e é onde acontece o processo de circuncisão. É só depois deste

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processo que eles são considerados homens”, conta Renata. Para ilustrar o processo de absorção da nova cultura, Renata diz que se adaptou à maneira como eles comem o abacate: “No Brasil nós comemos com açúcar e aqui eles colocam sal e comem com salada ou sanduíche. Adoro torrada com abacate e sal”. Além disso, ela passou a jantar às 18 horas, como fazem os sul-africanos. Atualmente, ela é tradutora e continua escrevendo para The Big Issue, além de contribuir para o site Ópera Mundi do UOL e também com projetos pessoais envolvendo outros jornalistas. Irlanda Mesmo as pessoas levantando a bandeira de cada país, há outras maneiras de se apaixonar por outros lugares e mudar a vida por meio da experiência vivida. É o caso da estudante de jornalismo Manoela Tomasi, 22 anos. A paixão pelo país dos seus sonhos – a Irlanda – começou em 2006. Manoela fazia aulas particulares de inglês com um professor chamado Kornel Bator, que já havia morado em diversos lugares. Com o hábito de contar histórias dos países em que viveu, ele sugeriu que Manoela conhecesse a Irlanda e que caso ela fizesse, acabaria se apaixonando pelo lugar. A ideia de conhecer o país permaneceu na cabeça dela pelos três anos seguintes. “Em 2009, quando consultei os preços, a Irlanda foi também a mais em conta, sorte a minha. Fui pra lá em agosto de 2009 e voltei em julho de 2010. Foram os melhores 11 meses da minha vida até então’’, conta a estudante. Manoela não consegue definir um único motivo pelo qual o país se tornou inesquecível na sua vida. Para ela, foi um conjunto de fatores. Dentre eles, a animação dos irlandeses, a facilidade de viajar pela Europa e o baixo custo para viver com qualidade. Outro motivo que marcou a vida da estudante nos onze meses que passou no país foi a amizade. Quando morou lá, trabalhou como babá e ainda mantém o contato com a família: “Todas as vezes que vou pra lá eu passo na casa deles para um almoço ou jantar”, recorda Manoela. A experiência de conhecer e se encantar pela Irlanda fez com que ela se empenhasse para morar novamente fora do Brasil. “Eu me inscrevi para uma bolsa do Ciência sem Fronteiras na Holanda, pois no meu edital não tinha opção Irlanda”, conta a estudante


Manoela Tomasi | Arquivo Pessoal

Assim como Manoela, Luciana Ferreira também conseguiu uma bolsa do governo para estudar um ano da faculdade em outro país. A paixão da publicitária e estudante de Engenharia Ambiental, de 32 anos, é a Alemanha. Em 2011, durante 14 dias, percorreu o país com mochila às costas, tempo suficiente para que ela mudasse a sua vida. Ao retornar ao Brasil, decidiu botar no papel como seriam seus próximos meses: economizar, aprender a língua e passar alguns meses na capital alemã. No início de 2013, a futura engenheira embarcou para Berlim para estudar a língua. Concorreu e conseguiu a tão sonhada bolsa do programa Ciência Sem Fronteiras para estudar um ano em Munique. Um dos maiores aprendizados que carregou na bagagem na primeira vez que voltou foi o hábito de fazer tudo a pé e a pontualidade nos compromissos. Segundo ela, o povo alemão é hospitaleiro e educado. Além disso, Luciana se sente segura no país, sensação essa que ela não consegue ter no seu país natal. Outra grande paixão dela é a cerveja alemã, mas ela lamenta quando compara os preços das bebidas com o Brasil: na Alemanha, a cerveja custa menos que água. Os costumes dos alemães também impressionam a estudante. “Lá não existe jeitinho, todos são iguais. Não há tratamento especial para idosos. As pessoas são muito ativas, praticam muito esporte. A educação das crianças também é muito diferente. Crianças com seis anos, indo para a escola sozinhas, de metrô, bicicleta. É um país muito menos paternalista”, ilustra Luciana, que acaba sempre evidenciando as diferenças entre Alemanha e Brasil. Essas pessoas vivenciaram culturas totalmente diferentes das suas. E, assim, se apaixonaram pelo lugar estranho onde foram viver. Viajar, sair da zona de conforto e encarar uma nova realidade foram atitudes que fizeram com que os quatro crescessem e, a partir disso, levantassem a bandeira do país que escolheram como segundo lar. x

Pedro Salassiê | Arquivo Pessoal

Alemanha

Luciana Ferreira | Arquivo Pessoal

que vive atualmente em Amsterdam. Ela admite que mesmo amando a cidade, a sua grande paixão ainda é a Irlanda, onde, por sorte, sua irmã mora. Dessa maneira, ela consegue visitar o país com frequência para matar as saudades.

Manoela, Pedro e Luciana em viagem aos países pelos quais são apaixonados: Irlanda, Islândia e Alemanha, respectivamente

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA




“A BICICLETA NÃO É UMA TENDÊNCIA, É, SIM, UMA REALIDADE” Eduardo Macedo, em defesa do ciclismo


O NEGÓCIO É

PEDALAR Texto: Helena Lukianski Fotos: Priscila Leal e Helena Lukianski

B

asta olhar as ruas de Porto Alegre para perceber que cada vez mais pessoas optam pela bicicleta como forma de mobilidade urbana. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Importação e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios (Abradi), estima-se um potencial de crescimento de 8 milhões de unidades ao ano. Como consequência, o comércio que gira em torno de seu uso se expande. Na Capital, o aumento do interesse por um meio de transporte mais sustentável também é visível em números.

O relatório final do Plano Diretor Cicloviário Integrado de Porto

Alegre, finalizado em 2008, prevê a implantação de cerca de 400 quilômetros de ciclovias, embora atualmente estejam concluídos apenas 15 quilômetros. Em 22 de setembro de 2012, foi inaugurado o Bike PoA, implantado pela Prefeitura de Porto Alegre em parceria com o sistema SAMBA. Em 24 de outubro de 2013, o site do serviço de aluguel de bicicletas contabilizava 226.178 viagens de bike feitas pelos usuários, representando uma média de 17 mil percursos realizados por mês.

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Cada vez mais pessoas trocam a velocidade dos motores pela tranquilidade dos pedais de bicicleta


“Quem compra um carro de R$ 30 mil acredita que a sua vida vale mais.” Eduardo Macedo, ciclista

Aproveitando o crescente entusiasmo pela bicicleta, Tássia Furtado, Silvia Pont e Isadora Lescano inauguraram a VULP no dia 14 de junho de 2013. Situada na Rua Miguel Tostes, 845, a VULP serve café e lanches veganos e possui uma mini-oficina no estilo faça-você-mesmo, como define Isadora, com ferramentas para reparos simples que os clientes podem usar. Foi Tássia quem teve a ideia inicial de abrir um lugar que fosse uma mistura de loja e café, no estilo dos existentes em São Paulo e em outras cidades do mundo. “O foco é a cultura da bicicleta”, explica Isadora. O local vende acessórios para ciclistas, com especialização em marcas nacionais e gaúchas. Ali, é possível encontrar peças básicas, mais específicas para uma fixed gear (bicicleta mais minimalista e sem marcha), pois a ideia não é concorrer com as lojas que vendem equipamentos para modelos mais arrojados. O projeto da VULP começou a ser desenvolvido no final de 2012, conforme Isadora. Formada em Jornalismo, ela ainda trabalha na área, como freelancer, mas gostou da ideia de abrir um espaço mais focado em seu estilo de vida. O cardápio do local é quase totalmente vegano, possuindo apenas um item de origem animal: o leite integral. Essa opção existe porque a idealizadora acredita que a VULP foi criada para ser um ambiente para todos, sem radicalismos. “Vem muita gente que não pedala, todo mundo é bem-vindo”, diz. Um dos frequentadores é Igor Schwab, que trabalha desde 2011 na Pedal Express LTDA, uma empresa que faz telentregas usando bicicletas. Esse tipo de serviço é bastante comum na Europa, mas ainda está se desenvolvendo em Porto Alegre. A Pedal, que funciona como uma espécie de cooperativa, conta atualmente com uma equipe de 11 ciclistas. Fundada em 2010, a empresa inicialmente tinha uma sede na Rua Lopo Gonçalves, no bairro Cidade Baixa. Atualmente, a Pedal possui apenas sede virtual. A cada dia, um dos funcionários faz o serviço de central, usando um telefone móvel. “Essa pessoa atende aos telefonemas, anota os pedidos no nosso sistema, organiza e vai encaminhando para os ciclistas”, explica Schwab. O grupo se reúne cerca de duas vezes por mês para organizar uma tabela com os dias de trabalho de cada um dos integrantes.

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Eles costumam entregar principalmente documentos, mas as mochilas especiais comportam até cinco quilos. Como o serviço é feito pedalando, a área de abrangência das entregas é limitada e dividida em três zonas: Zona A, que inclui os bairros Centro e Cidade Baixa; Zona B, que vai do Menino Deus até São Geraldo e Zona C, limitada ao sul pelo bairro Cristal e ao norte pelos bairros Navegantes e Passo D’Areia. A leste da cidade, a Pedal realiza entregas até os bairros Petrópolis e Partenon. As condições de trabalho, devido à falta de educação dos motoristas, também são bem piores do que nos países mais desenvolvidos. Os acidentes são frequentes. Schwab, que trabalha desde 2011 na Pedal, reclama da falta de respeito: “O estresse do trânsito é a pior parte”. De acordo com ele, as ciclovias de Porto Alegre só são interessantes para quem usa a bicicleta como lazer. Além da pista ser escorregadia para quem pedala rápido, por causa do tipo de tinta que foi usado, a ciclovia acaba limitando demais os espaços dos ciclistas, que são ainda mais hostilizados quando pedalam nas ruas. O ideal, conforme explica, seriam as ciclofaixas, que integram a circulação deles com o trânsito. Eduardo Macedo, um dos sócios da empresa Gaúcha Bike, também acredita que as faixas exclusivas seriam mais viáveis. Para ele, nem as cores da ciclovia fazem sentido. “O padrão mundial é verde, vermelho é atenção”, explica. Em sua percepção, as ciclovias são feitas para os carros e não para os ciclistas. A Gaúcha Bike, localizada na Avenida Protásio Alves, 371, é uma loja de bicicletas que, além de acessórios, funciona como oficina. Eduardo continua o negócio iniciado por seu pai, Arthur Macedo, em 1937. A Macedo Bike, oficina de bicicletas, ficava localizada nos fundos da casa da família. Para expandir os negócios, e por ter pesquisado onde estava a maior parte de seu público, ele resolveu reabrir a empresa num ponto mais central da cidade. Eduardo não gosta que a bicicleta seja vista como um modismo: “Não é uma tendência, é uma realidade”. Na sua visão, o aumento do número de ciclistas na cidade está relacionado com uma mudança de mentalidade, pois as pessoas querem qualidade de vida. Ele cita um exemplo: um trajeto da Zona Sul até a Gaúcha


Enquanto a VULP oferece não só uma loja, mas também um espaço para a troca de ideias sobre bicicletas, a Gaúcha Bike funciona como oficina

Bike, que pode durar de 45 minutos até uma hora de carro ou de ônibus, dependendo do engarrafamento, costuma levar apenas 20 minutos de bicicleta. No entanto, ele não tem uma visão romantizada: “A solução para a mobilidade urbana é um sistema de transporte público de qualidade”. Além disso, a falta de respeito dos motoristas no trânsito é um problema sério na vida dos ciclistas. Tanto Macedo quanto Schwab foram atropelados o mesmo número de vezes: quatro. Em seu último acidente, Eduardo quebrou a clavícula. Aos 25 anos, ele conta que perdeu seis amigos ciclistas em tragédias no trânsito. “Uma coisa muito triste é a impunidade”, lamenta. Com a falta de educação por parte de muitos motoristas, andar de bicicleta acaba sendo uma atividade que exige atenção constante: “Tem que se policiar e cuidar dos outros”. Macedo acredita que parte dos motoristas não leva os ciclistas a sério porque associa a bicicleta à infância: “Quem compra um carro de R$ 30 mil acredita que a sua vida vale mais”. Infelizmente, essa lógica parece fazer sentido para alguns motoristas. O dia 25 de fevereiro de 2011 ficou marcado como a data em que Ricardo Neis acelerou seu carro contra ciclistas em Porto Alegre, atingindo 17 pessoas. O grupo estava reunido para o encontro do Massa Crítica, movimento que existe no mundo inteiro e que não possui líderes. As imagens chocantes do atropelamento ganharam repercussão internacional. Por sorte, não houve vítimas fatais.

Para Eduardo, o ponto positivo do trágico acontecimento foi a visibilidade que as questões envolvendo os ciclistas e o trânsito em Porto Alegre ganharam. Ele calcula que, nos últimos dois anos, a sua empresa teve um crescimento de público de 300%. Apesar de todos os percalços que os ciclistas enfrentam, não há dúvidas de que a cultura da bicicleta está se fortalecendo em Porto Alegre e contribuindo para a expansão dos negócios relacionados a esse meio de transporte mais sustentável. x

80 milhões 8 milhões de bicicletas circulam atualmente no Brasil

de novas unidades devem surgir no país a cada ano

216 mil

400

viagens foram feitas pelo serviço Bike Poa

quilômetros de ciclovias planejados para a Capital

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA




“A gente busca o

melhor custo-benefício” Giovani Groff, por um estilo de vida livre de regras


MAIS

RELAXUME, POR FAVOR Texto: Ingrid Flores

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e revistas e sites sobre gastronomia o mundo está cheio. O que ainda não estava no mapa, ao menos em solo gaúcho, é a espécie de anti-guia culinário nada luxuoso criado por seis jovens publicitários de Porto Alegre. O Relaxume Guide, como o nome sugere (ou quase), é um projeto que traça um roteiro pouco convencional de lugares para comer e beber, gastando o mínimo na Capital e nas demais cidades por onde os membros do grupo passarem. Foi em torno de uma mesa de bar, durante um dos encontros mensais do grupo de amigos, que a ideia começou a tomar forma. Felipe Porto, 30 anos, Giovani Groff, 28, Julio Mendez, 36, Pedro Menezes, 27, Rafael Barcellos, 37, e Ricardo Barcellos, 35, resolveram dar início a uma busca por estabelecimentos econômicos e com ambientes interessantes. O que era para ser uma estratégia de negócio para a Copa do Mundo de 2014, com a ideia de mostrar a verdadeira cidade (leia-se não-turística) para os visitantes estrangeiros, acabou se tornando um guia turístico para os próprios moradores locais. “Todo mundo tem aqueles lugares em que vai sempre. Com o Relaxume, a gente incentiva as pessoas a irem a locais nos quais jamais pensariam em entrar”, ressalta Ricardo Barcellos. Tratamse de botecos dos mais simples, lancherias com opções baratas e ao mesmo tempo generosas, restaurantes com pratos básicos e a preços amigos do bolso. “A gente busca o melhor custo-benefício. Um meio termo entre ambiente agradável, cerveja barata e um lanche bacana”, explica Groff. O seis participantes visitam estabelecimentos no papel de consumidores comuns. Escolhem as opções que mais lhes interessam no cardápio – quando existe um –, experimentam, fazem anotações e geralmente conversam com os proprietários e os consumidores do local. Segundo Groff, as informações são reunidas naturalmente. “Nem sempre a gente precisa ir falar com os donos. Eles nos veem com um bloquinho e uma caneta e já vêm conversar. São pessoas que sempre têm várias histórias para contar”, ressalta. As informações que eles coletam viram publicações muito bem

-humoradas no site do projeto (www.relaxume.com.br), assim como posts nos perfis do Facebook, do Twitter e do Instagram. O conteúdo traz os principais dados pelos quais um consumidor em potencial poderia se interessar, em depoimentos originais e divertidos. Os posts não tentam embelezar o aspecto de um xis ou de um cachorro-quente, mas sim fazer pareceres honestos sobre o que é servido, o espaço, a higiene (ou a falta dela), os frequentadores e os diferenciais descobertos apenas por quem vive a experiência de ir nesses lugares. O desapego com a formalidade (caso reste alguma dúvida para os leitores) fica completamente evidente com os depoimentos sobre as condições dos banheiros, ilustrados por fotos, e sobre o efeito que os alimentos causam no organismo no dia seguinte ao consumo, seção que eles chamam de “Nível de churriu”. O investimento para 2014 acabou se tornando o projeto paralelo dos publicitários, que deixaram a lucratividade em segundo plano por enquanto. Eles criaram camisetas com o selo Relaxume, venderam e acumularam um caixa inicial. O grupo assegura que não quer benefícios dos estabelecimentos que frequentam e que muitas vezes os proprietários oferecem os lanches de cortesia, mas eles negam. “Agora, se tiver alguma empresa interessada em nos bancar, a gente pode conversar. Seria interessante ter o patrocínio de um antiácido ou papel higiênico”, brinca Rafael Barcellos. Uma parceria com a revista Void foi um dos grandes impulsionadores do projeto, pois foi com o prazo de três meses para compor um guia repleto de opções ao melhor estilo relaxume que a equipe realmente colocou em prática a pesquisa e a produção de conteúdo. Mais do que o site e as redes sociais, o Relaxume Guide ganharia uma estreia impressa, em uma edição especial da publicação. “Tínhamos a ideia de lançar um guia físico e a Void foi uma espécie de teste”, revela Pedro Menezes. Com objetivos mais alinhados, o Relaxume ganhou seis seções distintas. Elas são divididas entre lugares para comer, beber, relaxar, onde não ir e participações de personalidades. Desta categoria já participaram jornalistas gaúchos como Paulo Brito e Alice Bastos Neves, além do músico Carlinhos Carneiro e o autor do blog Destemperados Diogo Carvalho. “Primeiro pensamos em Bandeiras

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As imagens desta reportagem fazem parte da coleção de fotos que o coletivo Relaxume Guide publica no Instagram


“Incentivamos as pessoas a irem a locais nos quais jamais pensariam em entrar.” Giovani Groff Vivendo a experiência

levar pessoas com a cara do Relaxume, mas também tivemos experiências muito bacanas escolhendo personalidades menos prováveis, como foi o caso da Alice”, conta Groff, enfatizando que escolheram a jornalista justamente por ela apresentar um estilo elegante e delicada – o oposto do grupo. O guia conta ainda com uma categoria especial, na qual são publicados reviews de lugares fora de Porto Alegre. Cidades da serra e do litoral gaúcho são as principais escolhas da equipe Relaxume. Entre os principais pratos dos jovens estão lanches como xis, cachorro-quente, pastel e algumas variações de cada um desses itens, sempre acompanhados da bebida oficial do grupo: a cerveja. “Podemos dizer que uma unha com fungo manuseando o teu pão recheado de carnes sem procedência garantida sobre uma chapa imunda é só um detalhe. Faz parte do encantamento do lanche”, brinca Rafael Barcellos. O grupo conta que os pratos mais estranhos com os quais depararam são versões reinventadas dos lanches comuns. “As mais bizarras certamente são as misturas que a galera inventa, tipo cachorro quente doce, xis com borda e por aí vai”, conta. Ao serem questionados a respeito da saúde, já que o cardápio da equipe não é exatamente o que uma nutricionista recomendaria, eles afirmam tomar algumas medidas para equilibrar o estilo de vida, como pedalar, fazer exercícios na academia, praticar ioga, etc. “Eu malho regularmente para poder tomar minha cerveja tranquilo, não simplesmente por estética”, assegura Groff. O lifestyle livre de regras e repleto de comidas nada saudáveis parece ser uma afronta, ainda que bem-humorada, à crescente geração saúde. Entretanto, os membros do grupo surpreenderam-se com tal indagação, certificando que a brincadeira não foi criada para criticar um estilo de vida, mas sim para estimular os porto-alegrenses a desfrutar de uma gastronomia despida de critérios estéticos e com garantia de satisfação. Unindo opiniões, o grupo consegue definir o que é preciso para que uma comida ou um lugar tenha, de fato, o autêntico espírito Relaxume. “Tem que ter um bom tempero e carisma, não pode ter o nome gourmet, o óleo tem que ser reutilizado, o chapeiro tem que ser ninja, o cheiro é de fritura e as pessoas de verdade. Os pratos têm que ser feitos de buenas, sem atucanação e sem ingredientes ou temperos com nomes complicados”, resumem. x

Após entrevistar a equipe do Relaxume Guide, faltava apenas viver a experiência de ir a algum dos lugares recomendados no guia. Resolvi, por motivos de autopreservação nutritiva, escolher um nome mais conhecido na cidade, a lancheria Speed, que fica no bairro Cidade Baixa. Na publicação do guia em julho de 2013, a equipe afirma: “Temos certeza de que o ser vivo que ainda não comeu um speedão não manja nada dessa parada chamada VIDA”. Decidi então saber um pouco mais sobre essa história de estar vivo. Confesso, porém, que não sou exatamente adepta do estilo “óleo reutilizado” que os publicitários definem como o encantamento dos lanches com o melhor custo-benefício. Sendo assim, resolvi levar comigo uma vítima gastronômica, o amigo Samuel Reginatto, frequentador antigo do estabelecimento. Ao chegarmos, pedimos o básico, um xis salada. O preço não rendeu grandes elogios, já que os valores populares foram substituídos pela mesma faixa das demais lancherias da redondeza (R$ 10,00), e o tal custo-benefício revelou-se apenas razoável. Em compensação, o xis chegou rápido à mesa, após ser montado na chapa, que fica bem à vista dos clientes. Reginatto (a vítima) deu as primeiras mordidas e logo concluiu: “Eles perderam um pouco o ‘sabor da chapa’, mas ganharam qualidade, porque o xis parece bem menos gorduroso”. Eu, que se não fosse em nome do jornalismo provavelmente não teria conhecido o sabor daquela especiaria, resolvi experimentar. Dado o meu cardápio recente, munido apenas de saladas, fui obrigada a confessar que o amontoado de ingredientes com cheiro de gordura pareceu a melhor refeição possível naquele momento. Não houve nenhuma consequência marcante no meu organismo nas horas seguintes. Na saída, senhores bebendo suas cervejas em plena segunda-feira e conversando alto, saindo de suas mesas e unindo-se em grupos ainda maiores. Foi então que eu entendi o que os rapazes do Relaxume Guide querem mostrar às pessoas. Posso não ser fã de cachorro-quente de origem indefinida ou xis bacon, mas percebi que a simplicidade é quase sempre a melhor opção do cardápio. Bandeiras

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA



“DE PERNAS E

CORAÇÃO

” ABERTOS Monique Prada, pelo fim do preconceito com profissionais do sexo



“Acaba sendo sempre difícil para a família, pois são sempre julgados como os culpados por minha escolha”, afirma Lola


“FAÇO PORQUE GOSTO” Texto: Maria Luíza Pozzobon

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uas histórias que ilustram felicidade e realização pessoal de uma forma diferente. ***

Quem vê Gabriela Natália Silva na rua talvez não imagine que a moça é uma p... professora. Sim, a jovem é formada em Letras pela Universidade Federal de São Carlos mas, de fato, optou por seguir outra área para se sustentar – e se divertir. Aos 21 anos, Lola Benvenutti ficou famosa por gritar aos quatro cantos que é acompanhante porque gosta. Simples assim. O diploma na mão, o carinho dos seus alunos e o preconceito da sociedade não foram empecilho para transformar o sexo em profissão. Lola não tem enormes seios siliconados, tampouco glúteos avantajados. Sua pele alva coberta por tatuagens, cabelos negros com a lateral raspada e uma mecha branca que orna a moldura de seu rosto lhe dão um ar diferente das musas de Carnaval, mulheres-fruta ou figuras do tipo. A mistura de menina do rock rebelde com certo ar angelical de sua juventude combina com seu pseudônimo, referente à famosa Lolita criada pelo escritor russo Vladimir Nabokov. O sobrenome

Foto: Arquivo Pessoal

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“As pessoas buscam o que não encontram em suas vidas e isto vai muito além de sexo. Trata-se de carinho, afeto, um ombro amigo, alguém que saiba ouvir e valorizar.” Lola Benvenutti

Benvenutti também é sugestivo: uma variação de “bem-vindo”, em italiano. A meninice une-se ao sex appeal de uma fetichista assumida e a uma coragem pouco usual no meio das garotas de programa. Como a maioria das trabalhadoras da classe, Lola enfrentou a resistência dos pais e de algumas amigas ao optar pela carreira e a exposição na mídia. “Acaba sendo sempre difícil para a família, pois são sempre julgados como os culpados por minha escolha”, lamenta. Porém, ela ergueu a cabeça e refez sua vida em São Paulo: “Tive que recomeçar do zero. Sem casa, sem nada. Sair da zona de conforto me transformou em uma empresária, que vende sexo das mais variadas formas e para distintos públicos”. Sua virgindade foi perdida antes mesmo do despertar de sua adolescência e seu gosto pelo ato a fez pensar na possibilidade de precificar os encontros. “Oficialmente, comecei a me prostituir com 20 anos, embora anteriormente já tivesse feito algumas incursões por este universo. Sempre saí com pessoas, a única diferença é que passei a cobrar”, revela. Durante seu período de docência, Lola chegou a fazer programas com alunos – mas garante que todos eram maiores de idade e agendaram as saídas. De acordo com a acompanhante, o fato de as pessoas não encararem a profissão de maneira positiva é resultado de séculos de marginalização daquelas que atuam no ramo, além da crença de que só se entra nesse mundo por falta de opção. A realização que afirma ter transparece de forma natural e serena. “Costumo dizer que o feminismo está também em ser dona do seu próprio corpo e decidir o que fazer com ele. Se cobrar por sexo não me afeta negativamente e me traz benefícios, qual o problema?”, questiona. A falta de receio em expor sua vida é equivalente à enxurrada de julgamentos como “nossa, largar a docência para ser garota de programa?” que costuma ouvir. “Na verdade, as pessoas se equivocam quando tocam nesse assunto. Não é que eu tenha me desiludido com a educação e usado a prostituição como maneira de exorcizar minhas frustrações docentes. Só fiz uma escolha

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que, naquele momento, me pareceu em maior conformidade com o que buscava”, justifica-se. Lola admite ter adorado graduar-se em Letras e lecionar, tanto que está com projetos para voltar a dar aulas – só que desta vez para prostitutas que não puderam concluir seus estudos. Ensinar, aliás, é com ela mesma. Atende homens, mulheres, casais e até transexuais, sem preconceitos. “Geralmente, combinamos previamente os fetiches, desejos e vontades de cada um”, revela. Ao afirmar que sempre busca algo que lhe encante nos clientes (mesmo que não façam seu tipo), ressalta que nunca recusou programas em função de aparência física – apenas propostas que não tinham a ver com seu trabalho. Beijo na boca? Considerado essencial. Sexo sem preservativo? Nem com exames de sangue. “Alguns oferecem mais dinheiro para transar sem proteção, mas não considero essa possibilidade. Trata-se de uma atitude de altíssimo risco”, pondera. E a relação com pessoas compromissadas? Também não é problema. “Acredito que a monogamia seja um modelo ultrapassado. Em algum momento da vida, acabamos sentindo vontade de transar com outras pessoas e isso não quer dizer que não gostamos daquele/a com quem estamos. É só um desejo de variar, sentir outras experiências. Creio que, quando esse sentimento de posse nos relacionamentos acabar, as pessoas serão muito mais felizes e livres”, defende. A jovem ainda acrescenta: “Sou uma pessoa muito do bem. Nunca desejei estragar um casamento, um namoro. Torço sempre para que quem me procurou volte feliz para casa e cuide bem do parceiro. Não sou uma destruidora de lares, ao contrário – faço a manutenção de muitas relações”. *** É preciso esquecer a ideia da fascinação promovida apenas por atributos físicos. Muito mais do que medidas atraentes, lábios substanciais ou olhar penetrante, Monique Prada, acompanhante de luxo em Porto Alegre, seduz com palavras. A conquista acontece pela defesa da visibilidade, da desmitificação do seu


Lola atende sem preconceitos e defende que cada cliente tem seu encanto

Foto: Arquivo Pessoal


Monique Prada defende a prostituição como profissão digna

Foto: Arquivo Pessoal


“Quem é a prostituta, afinal, se não uma mulher que arrisca e se expõe a todo o tipo de risco por conta de sua vida profissional peculiar, promíscua e desregrada? O que tenho a temer? O que pode ser pior do que deixar tudo isso que vejo, que sinto, que me encanta, passar em branco? O que pode ser pior do que a invisibilidade e a perda da identidade? Que pecado maior do que não dividir com vocês as coisas interessantes que tenho visto? Cá estou, então, de pernas e coração aberto, para o que der e vier.” Monique Prada em seu blog A Cortesã Moderna ofício, do direito de ser quem quiser. Administradora de sites, blogs e perfis nas redes sociais, é uma webcelebridade com mais de 13 mil seguidores no Twitter, onde costuma posicionar-se em relação a preconceitos, machismo ou falsos moralismos que costuma ouvir. “Eu gosto mesmo é de escrever. A prostituição me dá o sustento e algum tempo livre para cuidar da vida e produzir minhas histórias”, afirma. Ela é uma mulher como várias outras – apesar de boa parte da sociedade não concordar com esta afirmação óbvia. Mãe, ex-esposa, trabalhadora e independente, a diferença talvez esteja na escolha do sexo como profissão, sustento e (por que não?) deleite. “Ouço muita gente perguntar ‘se tu gostas de sexo, por que cobras?’ Talvez não consigam associar trabalho a prazer, ou liguem o sexo a algum tipo de sacrifício”, declara. Sobre a resistência em encarar a atividade como uma prática digna, Monique acredita ser perda de tempo rebater determinados argumentos intolerantes. “Somos vítimas de um sistema que nos suga, no qual todos, sem exceção, vendem seu tempo a baixo custo pra manter uma vida medianamente agradável. Alguns nem gostam tanto do que fazem quanto eu gosto do que faço”, defende. Seus textos e comentários expressam, explícita ou implicitamente, uma mistura de angústias e verdades sobre a sua rotina – da prostituta à dona de casa. A profissional conta que saiu de casa jovem para morar em um apartamento cedido pelos pais. Porém, com grandes compromissos e responsabilidades que outras áreas de atuação não supriram, segundo sua opinião, optou por este ramo. “O apoio da minha família se restringia a um local para morar, sempre com ameaças e uma relação nada tranquila. Com filho pra cuidar e desejando me livrar desta pseudo-dependência, comecei a fazer programas”, revela. Casou-se duas vezes, com um parceiro do ramo e outro não. Agenciou outras meninas e, agora, retomou suas atividades. “Me atrai o sexo, o prazer e ainda ser remunerada por isso. Me afeta a falta de reconhecimento da minha atividade como digna”, resume. Antes até mantinha duas identidades e buscava se expor menos. Hoje liberta de máscaras,

considera-se sem medos. Mesmo em relação aos programas, sente-se relativamente protegida devido à sua conduta. “Agendo encontros diretamente em motéis, e eu considero isso bem mais seguro do que sair para sexo não pago com alguém que conheci na balada”, aponta. Os encontros são somente com homens, com duração, preço e regras pré-estabelecidos. “Pedidos ou fetiches que não me atraem simplesmente recuso. Um cliente que não tenha me satisfeito ou me agradado num primeiro encontro jamais consegue agendar um segundo. Procuro também não trabalhar nos dias em que não estou inspirada para o sexo”, confessa. Todo o esforço de um cortejo casual parece não agradar Monique – o que naturalmente torna ainda mais honesta a sua rotina. “No sexo pago ou com hora marcada, você pula o momento da conquista. Talvez para a maioria das pessoas isso seja mais prático e verdadeiro. Sinceramente não me vejo entabulando uma paquera, virtual ou pessoalmente, na qual precisaria agradar, conquistar, e depois levar pra cama. Prefiro que simplesmente me chamem. Temos sexo, temos prazer e cada um de nós volta para casa mais tranquilo... Por que não fazê-lo?”, explica. *** Desde que o mundo é mundo Quem disse que prostituta não pode ser feliz fazendo o que faz? Estas duas histórias ilustram uma realidade pouco imaginada por quem, minado de preconceitos, julga o ofício sem ao menos tentar encará-lo como o que de fato é: comum, presente na sociedade e clássico. Isso mesmo: clássico. Não falamos em exploração, abusos, pedofilia ou qualquer parte obscura que o sexo pode envolver. A questão é torná-lo, de forma digna e longe de hipocrisias, um meio de sustento como qualquer outro. É clichê falar que se trata da mais antiga das profissões, mas, Bandeiras

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de fato, os relatos existem desde os primórdios. Há registros de cortesãs não marginalizadas na Grécia Antiga e em tempos babilônicos, quando os homens dedicavam oferendas às prostitutas tidas como semi-divindades. Elas significavam fertilidade, diferenciavam-se das esposas dóceis e submissas, além de manter posicionamento social e independência no agir. Até mesmo a marcante personagem bíblica Maria Madalena seria uma (porém, “arrependida”, como dizem). Acredita-se que a idealização começou a desmoronar com o surgimento da burguesia. A atividade passou a ser considerada proibida, relegada à periferia e, a partir de então, a visão negativa só foi agravada. Com a epidemia de HIV, as profissionais ficaram novamente em evidência, sendo acusadas como responsáveis pela disseminação do vírus junto aos homossexuais masculinos e usuários de drogas endovenosas. Discriminação e preconceito, porém, deram forças para que movimentos surgissem em defesa das meretrizes. No Brasil, a constante violência policial contra estas mulheres originou em 1987, na cidade do Rio de Janeiro, o 1º Encontro Nacional de Prostitutas, organizado por um dos nomes mais importantes da categoria: Gabriela Leite. Discutir o reconhecimento público da profissão e resgatar a cidadania das profissionais do sexo era a principal perspectiva. A partir daí, vários outros Estados mobilizaram-se para formar suas associações, debater problemas regionais e integrar a Rede Brasileira de Prostitutas. Prostitutas – e cidadãs Uma das principais responsáveis pela luta por direitos da categoria, ela defendia que “prostituta não é só mulher da cintura para baixo” ao criticar a opinião da sociedade. Quando passava pelas escadarias de um bordel perto da Universidade de São Paulo, onde estudava Ciências Sociais, Gabriela Leite encantou-se com o charme daquelas mulheres – e decidiu, então, tornar-se uma delas. A sua história não se perde em meio a tantas outras: após enfrentar diversos casos de desrespeito e abuso, em especial da polícia, resolveu lutar por si mesma e pelas colegas. Foi militante, fundou a ONG Davida e se posicionou contra a ideia de vitimização das garotas de programa, ao alegar que não devem ser julgadas como atuantes pelo famoso – e defasado – princípio da falta de opção. Idealizadora da grife Daspu, cujo nome é uma provocação contra a maior loja de artigos de luxo do

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país, Gabriela faleceu em outubro de 2013 vítima de câncer e seu nome, referência no meio, tornou-se projeto de lei para regulamentação da profissão no Brasil. Em uma batida policial no final dos anos 1980 na Praça da Alfândega, localizada no centro de Porto Alegre, outra personagem começou a fazer diferença. Naquele dia, não correu como suas colegas. Ficou algemada por uma tarde, e enfim percebeu que deveria lutar pelos seus direitos e pela união da categoria. Nilce Machado é presidente do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) e atua na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e no incentivo à autoestima das profissionais do sexo como ela. Nilce chegou a participar de uma campanha do Ministério da Saúde com o slogan “Sou feliz sendo prostituta”, porém a campanha foi imediatamente retirada do ar e culminou na demissão do seu idealizador – Dirceu Greco, diretor do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das DSTs, AIDS e Hepatites Virais do Ministério. Mesmo com as dificuldades, ela acredita em avanços como a conscientização para o uso do preservativo, que não apenas diminuiu a propagação de doenças, mas também reduziu o número de abortos. x 2/6 - Dia Internacional da Prostituta

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Com coragem, o silêncio foi rompido em Lyon, na França, dia 2 de junho de 1975. Cerca de 150 prostitutas decidiram denunciar a discriminação que enfrentavam e ocuparam a igreja de Saint-Nizier para protestar contra multas e detenções em nome de uma guerra contra o rufianismo (ato de aproveitar-se da prostituição alheia). Além de terem colegas perseguidos e assassinados sem julgamento, elas tinham seus filhos e maridos acusados de se beneficiarem dos lucros obtidos por meio do trabalho.

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A população local e a própria diretoria da Igreja ofereceram apoio ao ato, transmitido a todo o mundo pelos veículos de comunicação. A ação disseminou-se por outras cidades francesas e, no dia 10 do mesmo mês, as ocupantes do templo religioso foram brutalmente expulsas pela polícia. Fonte: www.redeprostitutas.org.br


“Estava lendo, de intrometida, o Ask (site de perguntas) de uma amiga, e a pessoa questionava: ‘você acha que é libertador uma mulher PRECISAR se prostituir, levar cuspidas e pisadas, transar com velho babão?’. Gostaria de registrar que, primeiramente: PRECISAR trabalhar, TODOS precisamos. Todos. Tenho certeza de que a imensa maioria de nós não trabalharia se fosse possível viver de nada, ou se pudéssemos viver de herança. Há pessoas que gostam de seu trabalho. Outras, não. Eu gosto do meu trabalho. Nele, faço os meus horários. Conheço pessoas incríveis. Conheço pessoas nem tão incríveis mas educadas. Volta e meia, conheço pessoas mal educadas, grosseiras. Mas, enfim: conheço pessoas, e gosto de conhecer pessoas. Sim, eu poderia atuar em outra área onde igualmente conhecesse pessoas e não precisasse fazer sexo com elas. Mas eu GOSTO de sexo, e eu GOSTO MUITO de ser paga para fazer algo que me agrada. Eu nunca recebi cuspidas ou pisadas. Por pior que fosse o menino de cama, eu nunca fui destratada. Não cobrar por sexo não me livraria de ter a má sorte de ser destratada por um parceiro eventual. Quanto à expressão “velho babão”, eu a rejeito. Entendo as pessoas de mais idade como merecedoras de prazer e aptas para sexo consensual. É de um preconceito incrível a expressão. Na minha profissão, tive a oportunidade de conviver com velhos muito mais jovens do que estes jovens preconceituosos. Eu vou ser velha um dia. E vocês também. Eu espero viver em um mundo em que o direito ao prazer, ao carinho, à felicidade, não nos seja negado por jovens caretas...” Monique Prada em seu Facebook


# REPORTAGEM FOTOGRテ:ICA

U O S A N A I C LU :

Fotos

ila Prisc

Leal




A

s bandeiras levantadas por grupos normalmente pedem mudança. O movimento Sou Luciana quer preservação. A Rua Luciana de Abreu é pequena, tem apenas cinco quadras. Se estende por 550 metros da Rua Engenheiro Álvaro até a Avenida 24 de Outubro. Para os moradores do Moinhos de Vento e outros que mantêm um vínculo afetivo com o bairro, ela é mais do que um pequeno percurso que leva à movimentada Padre Chagas. É uma extensão de casa, um pedaço de história. As árvores que a cercam fazem sombra, deixando os raios de sol passarem por suas folhagens, iluminando a rua. Construções de 1930 dão ares históricos, que o bairro incorporou como uma identidade charmosa e atrativa, tanto para porto-alegrenses quanto para turistas que se aventuram pela Capital. A possibilidade de que o casario fosse demolido pela Incorporadora Goldsztein, para dar lugar a um edifício de 16 andares, fez jovens, idosos, mães com filhos, estudantes de Arquitetura e moradores irem ao seu “quintal”, pedir simplesmente que as coisas ficassem como estavam. Trava-se uma batalha judicial, sem solução defnitiva até o fechamento desta edição, que envolve Ministério Público, a empresa e a Associação Moinhos Vive. Para a população ligada sentimentalmente às casas, a possibilidade de manter apenas a fachada - o que chegou a ser cogitado - está longe de ser suficiente, já que permaneceria o risco de perder o céu e o sol na querida Luciana de Abreu.

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“SEMPRE GOSTEI DE AVANÇAR EM

NOVAS ÁREAS” Luiz Fernando Jobim, um soldado da doação de órgãos



Luiz Fernando Jobim, 70 anos de idade e quatro décadas dedicadas à carreira médica


UM HOMEM, MIL VIDAS Texto e fotos: Bruna Fernanda Suptitz

U

m trabalho sem o qual a realização de transplantes não poderia acontecer. Ou até aconteceria, mas sem a garantia de que o organismo do receptor aceitaria a nova condição, o que poderia fadar ao fracasso o processo cirúrgico. Quando o estudo sobre a compatibilidade genética ainda não era tema das aulas de Medicina no Brasil, um jovem recém-formado na área decidiu que através dele a técnica seria desenvolvida por aqui. Em uma sala do Laboratório de Imunologia do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, o chefe da equipe fala sobre sua vida profissional. Ainda em pé, Luiz Fernando Jobim, 70 anos de idade e mais de 40 anos de carreira médica, mostra os quadros dispostos nas quatro paredes do ambiente e começa a contar a história do seu trabalho a partir deles. São fotos de equipes que realizaram expedições e pesquisas e certificados que garantem a qualidade do trabalho. Orgulhos de quem se dedica a fazer e mostrar o melhor que pode ser. É neste lugar, que parece uma sala de aula em tamanho menor, com cadeiras e uma lousa num dos cantos, onde Jobim fala do que fez nas últimas quatro décadas e como as decisões pessoais interferiram na sua carreira. Bandeiras

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“Os transplantes estavam muito na moda porque os americanos tinham começado a realizar os primeiros procedimentos.” Luiz Fernando Jobim

O trabalho é nobre, e o Brasil reconhece sua importância. Referência mundial em transplantes, com 95% das cirurgias dessa natureza realizadas pelo SUS, o país é responsável pelo maior sistema público de transplantes do mundo. A informação é do Ministério da Saúde, que divulgou, no segundo semestre de 2013, um levantamento otimista para quem defende a causa: o número de transplantes de órgãos dobrou no país nos últimos dez anos, passando de 7.500 em 2003 para 15.141 em 2012. Buscar a garantia de que o órgão a ser transplantado será bem aceito pelo organismo do paciente faz parte da rotina de Jobim desde 1977, quando participou do corpo médico responsável pelo primeiro transplante de rim em Porto Alegre. Alguns anos mais tarde, em 1984, seu trabalho foi fundamental para a realização do primeiro transplante cardíaco bem sucedido no país, na capital gaúcha. Para este marco se desconsidera um procedimento anterior cujo paciente não se adaptou à nova condição do organismo e morreu em seguida. A diferença entre os dois casos foi o trabalho que Jobim realiza com testes de compatibilidade genética. Com isso é possível identificar, antes mesmo da cirurgia, se o organismo do paciente pode receber o órgão que será doado. A possibilidade de trabalhar com transplante de órgãos, novidade no início da década de 1970, surgiu alguns anos antes e chamou a atenção de Jobim para o estudo sobre o tema. “Eu sempre gostei de avançar em novas áreas, e no Brasil ainda não se faziam transplantes”, lembra. Desde então, pelo menos 1.600 procedimentos renais desta natureza passaram pela avaliação da equipe, que não mantém contato com os familiares, sejam do doador ou do receptor. Isso porque o trabalho é realizado em um laboratório, tendo como único material de análise a identificação genética dos envolvidos no processo. A tipagem genética de quem precisa de um órgão consta em um cadastro como registro numérico. A partir das características do doador, é possível saber se o organismo que irá se submeter ao transplante terá condições de se adaptar à nova condição. A maneira como a prática é desenvolvida viabiliza a garantia de que o resultado indique quem mais precisa

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passar pelo procedimento. Inicialmente, Jobim seguiu a mesma carreira do pai, que à época era reitor da UFRGS. Imunologista e microbiologista, Homero Só Jobim foi o responsável por iniciar o trabalho de transfusão sanguínea no Rio Grande do Sul e, embora não tenha sido essa a motivação para a escolha do filho, não há como traçar um paralelo entre o trabalho que o pai realizava e o que ele faz hoje. Homero quis que o herdeiro se tornasse um profissional reconhecido pelo trabalho que ele também realizava e dizia que a imunologia era a área do futuro. Em uma viagem ao Rio de Janeiro, falou sobre Jobim para dois conceituados imunologistas, Antônio Oliveira Lima e Clementino Fraga Filho, que o convidaram para conhecer o trabalho que realizavam. Ao pai, Jobim disse que não queria trabalhar com isso. “A alergia não tem cura, e eu queria curar as pessoas”, recorda. Recebeu então uma correspondência de Lima dizendo que, na Medicina, só as cirurgias e os antibióticos curam. “Na carta ele disse que o resto não tem cura, mas melhora a vida das pessoas. Eu achei isso brilhante, o Oliveira Lima era espetacular, então decidi aceitar o convite.” No Rio, trabalhou com Fraga Filho na Santa Casa de Misericórdia. “Ele me perguntava sobre o que eu queria aprender naquele dia, eu respondia com o conteúdo e ele me dava aulas particulares sobre diversas coisas”, conta Jobim, sobre o tempo em que esteve na companhia do médico. Porém, mesmo tendo a oportunidade de permanecer na capital carioca, decidiu voltar ao Rio Grande do Sul e aceitar ser o responsável pela criação do serviço de imunologia do Clínicas. Mas logo que assumiu, realizou uma viagem internacional, que definiu o rumo da sua carreira profissional – trabalho que realiza até hoje. Em uma palestra a que assistiu no Rio de Janeiro sobre transplantes, demonstrou interesse pelo tema e recebeu o convite de um médico americano para estudar compatibilidade genética em uma Universidade do Texas, nos Estados Unidos. “Os transplantes estavam muito na moda porque os americanos tinham começado a realizar os primeiros procedimentos com rins e fígado”, explica. Com a equipe de imunologia já formada, aceitou a proposta e ficou lá por um ano. De volta ao Brasil, criou um grupo para pesquisar


Sempre que possível, a equipe de Jobim elabora o próprio equipamento de pesquisa.

na área dos transplantes. Ele pondera, contudo, que talvez seria melhor ter ficado no Rio de Janeiro. Isso porque, como Lima não tinha filhos, ofereceu a Jobim a oportunidade de assumir uma clínica de imunologia já estruturada. Ele diz que poderia ter feito o mesmo trabalho com a compatibilidade genética em hospitais do Rio, porém o desejo do pai em vê-lo trabalhando em Porto Alegre interferiu na decisão. O período em que passou nos EUA foi de grande importância para o desenvolvimento das pesquisas de Jobim. Ao retornar à Capital, o médico trouxe na bagagem um kit com anticorpos, que os pesquisadores norte-americanos concederam a quem estava iniciando o trabalho na área. Com a técnica em mãos, os transplantes que consideravam as características das pessoas envolvidas se tornaram realidade não só no Hospital de Clínicas como, aos poucos, expandiram-se também para outros centros médicos do país. Com a equipe formada para realizar o trabalho de tipagem e pesquisa de compatibilidade genética, Jobim se dedicou a descobrir aqui novos métodos de aplicação do conteú-

do. Para ele, essa postura estimula o desenvolvimento acadêmico e pode também gerar uma economia que favorece o investimento em material. Desde o retorno da Universidade do Texas, até 1992, os testes eram realizados por meio do estudo de anticorpos do doador e do paciente que receberia o órgão. Jobim recorda que, antes da internet, os pesquisadores trocavam entre si cartas com informação sobre as características dos anticorpos. O que um descobria era repassado aos demais. “Como os meninos que trocam figurinhas”, fala, rindo da associação. Joice Merzoni tem 30 anos e há pelo menos dez convive com Jobim. Ainda durante a graduação em Biomedicina, buscou estágio com o médico, sendo selecionada por ele para fazer parte da equipe. Depois de formada, passou em concurso para atuar no laboratório. Instigar os colegas a buscar o novo é uma das principais características que Joice identifica nele. “Jobim é uma pessoa visionária, está sempre além do seu tempo”, destaca a biomédica. Bandeiras

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Acima, Jobim e parte do atual time de pesquisadores; ao lado, registro do primeiro transplante de rim feito pelo mĂŠdico


“Jobim é uma pessoa visionária, está sempre além do seu tempo.” Joice Merzoni

Essa visão levou o médico a inovar mais uma vez ao substituir o método de testar a compatibilidade, no início da década de 1990, por uma técnica que aprendeu na Inglaterra, a qual utiliza o DNA do paciente para analisar suas características genéticas. O convite para estudar por um período na Europa surgiu em uma partida de golfe aqui no Brasil, quando comentou com um médico inglês a vontade que tinha de estudar em Londres. “Ele me perguntou: ‘Por que não Oxford?’, e eu respondi com ‘Isso é um convite?’. Ele me disse que sim, então fui.” Jobim viajou em 1990 e ficou no país por um ano. Recorda que também dessa vez teve a oportunidade de fixar residência onde estava estudando e trabalhar na mesma área dos transplantes. Mas, da mesma maneira que aconteceu quando antes precisou definir os planos para o futuro, a família interferiu na decisão. Desta vez, os filhos foram o motivo para Jobim voltar ao Brasil, pois eram pequenos e não concordaram em morar em outro país.

estados como o Rio Grande do Sul a zerar a fila de espera formada até o início deste ano. O oposto é encontrado em relação ao transplante de medula óssea, no qual a possibilidade de encontrar um doador compatível fora do núcleo familiar é muito rara. Ainda assim, cerca de mil testes de compatibilidade desse tipo de transplante já passaram pela avaliação de Jobim.

A mesma metodologia que aprendeu aos 30 anos é aplicada hoje nos testes de compatibilidade genética realizados pela equipe que o especialista segue comandando no Hospital de Clínicas. O corpo médico, que ele considera ser atualmente muito mais qualificado em relação ao início do trabalho, conta com 20 profissionais com doutorado na área. Para Joice, isso é reflexo da capacidade que Jobim tem de buscar o melhor que cada um pode oferecer. “Ele consegue ver nas pessoas onde elas conseguem melhor se encaixar”, comenta. A pesquisadora diz manter uma boa relação com o médico, que é vaidoso quando fala do orgulho que tem pelo trabalho.

A avaliação das equipes que atuam em organizações de procura por órgãos no Brasil aponta que mais de 50% das famílias consultadas, ao perder um ente, são favoráveis à doação de órgãos. Este é o maior índice de aprovação do mundo. Além do trabalho de instituições públicas que tratam do tema, a divulgação de quem acredita na importância do gesto para salvar vidas é um dos elos responsáveis para formar a corrente que garante os dados positivos apresentados em relação à realização de transplantes no país. Outro elo é encontrado no trabalho de Luiz Fernando Jobim. A causa nasceu de uma curiosidade e é mantida pelo interesse em desenvolver o melhor e em conhecer novas áreas. Quem precisa passar pelo procedimento tem assegurada a tranquilidade de saber que, nos bastidores do processo, está uma pessoa que se orgulha por ser responsável em devolver vida ao organismo de alguém que é grato pelo que foi feito. Mesmo sem ter o reconhecimento esperado. Mesmo sem saber a quem ajudou. x

O entusiasmo transparece quando fala dos transplantes já realizados. Jobim destaca que o mais fácil de se obter resultado positivo é o de córneas. Como essa parte do corpo não é vascularizada, a chance do receptor criar anticorpos é quase nula. Isso levou

Das coisas que o médico mais se mostra arrependido é o fato de não ter seguido em um ramo da Medicina pelo qual nutria grande apreço. O desejo por ser cirurgião plástico foi abandonado por um motivo que ele agora considera bobagem. “Eu achava que a plástica era uma arte, e como eu não sabia desenhar, deixei de lado”, conta. Hoje Jobim sabe que desenhar não é um requisito para atuar na área e fala que se arrepende de não ter arriscado. “Gosto de trabalhar com tudo, mas o interessante da cirurgia é que o médico trabalha sozinho”, comenta.

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FRASES DE JUNHO POR PRISCILA LEAL



“NERDS

DETERMINADOS A APRENDER E A COMPARTILHAR” Luiz Rauber, aprofundando-se no software livre



CĂ“DIGO LIVRE Texto: Eduardo Schiefelbein

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o momento em que o ativista Richard Stalmann, em janeiro de 1984, deixava o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) para se dedicar exclusivamente ao projeto GNU, um sistema de software livre que originaria a Free Software Foundation (Fundação Software Livre), a era digital deixou de andar sempre em linha reta para ganhar novos caminhos. No ano seguinte, o mesmo Stalmann popularizou o conceito de copyleft, um mecanismo legal para proteger as modificações e formatar diretrizes de distribuição de software livre. Mais tarde, em 1991, o estudante finlandês Linus Torvalds resolveu ousar. De forma totalmente independente, criou o projeto Linux, que se combinava perfeitamente com o GNU, iniciando assim o primeiro sistema operacional completo a partir do software livre: GNU/Linux. Passadas praticamente três décadas desse o início do novo cenário tecnológico, hoje quando se fala em software livre automaticamente se fala em liberdade. Ou melhor, em quatro liberdades: a de executar um programa, a de modificar um programa para adaptá-lo às suas necessidades a partir do código-fonte, a de redistribuir cópias e a de distribuir versões modificadas do programa. O professor do curso de Ciências da Computação da Universidade Regional Integrada (URI/RS), Luiz Henrique Rauber Rodrigues, 27 anos, é daqueles obcecados pela liberdade e pelo compartilhamento de dados. Aos 17, entrou em um curso de informática para aprimorar seus conhecimentos em Excel. Nele, ouviu comentários sobre um tal de Linux. “Ouvi algo chamado Linux que as pessoas mais inteligentes usavam e me interessei”, conta. Mas o interesse, em um primeiro momento, não foi muito duradouro, já que Rauber esteve distante do software livre por um tempo. Nos dois anos seguintes, o suporte exclusivo para Windows das máquinas da URI/RS, onde mais tarde concluiria seu bacharelado em Ciências da Computação, o afastou de qualquer contato com o software livre. Porém, o ano de 2007 serviu para recolocar o sistema operacional no caminho de Luiz Rauber. “Resolvi me aprofundar e fui no Fórum Internacional do Software Livre

(FISL) e me senti realmente em casa ao ver os nerds determinados em aprender, estudar e compartilhar”. O interesse pelo software livre foi tanto que motivou Rauber a iniciar um projeto de pesquisa em Nanociências (estudo que têm por meta a compreensão e o controle da matéria em escala nanométrica) na área de Bioinformática no Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), em Santa Maria/RS. Ativista do movimento Software Livre e também Consultor em Gerenciamento de Projetos, Rauber vê a “ideologia do conhecimento” como um atrativo às pessoas aderirem aos movimentos pró Software Livre. “Sempre existiram aquelas pessoas com capacidade técnica e identificadas com a ideologia do compartilhamento. O que se observa agora é que essas mesmas pessoas estão se ligando às comunidades e projetos, seja por satisfação pessoal ou por interesse coletivo”, cita o ativista, exemplificando o seu próprio caso. No entender de Rauber, cada vez mais as empresas observam positivamente a atuação dos movimentos favoráveis à liberdade de software. “A ação junto às comunidades de software livre promovem uma imagem positiva profissionalmente em um curto espaço de tempo, pois a atuação voluntária e técnica cativa as empresas”, opina. Porto Alegre recebe há 14 anos o Fórum Internacional do Software Livre, o Fisl, um dos maiores e mais importantes eventos de tecnologia da América Latina, criado a partir da motivação de pesquisadores e ativistas pelo conhecimento compartilhado. O ativista e membro do Fórum Gabriel Galli destaca o envolvimento cada vez maior de pessoas dentro dos movimentos sobre o software livre: “Pessoas mais técnicas podem se identificar mais com a necessidade de segurança, já os mais ligados à cultura em questões de copyleft. Só que assim como o movimento LGBT e o movimento negro, que pregam a igualdade, o movimento de cultura livre também tem elementos que convergem, e isso cresce a cada ano”. A crescente adesão do público ao Fisl é diretamente proporcional com as ações de implementação do Governo Federal. Criado em 2003, com a missão de promover a capacitação em software livre


Imagens: Flickr (CC) / “lamenta3” / “wstryder”


“Assim como o movimento LGBT e o movimento negro, que pregam a igualdade, o movimento de cultura livre também tem elementos que convergem.” Gabriel Galli

dos técnicos e gestores de TI, o Comitê Técnico de Implementação de Software Livre (CISL) fez um balanço, no final de 2012, sobre o recadastramento dos representantes dos órgãos federais, no que consta que, atualmente, o comitê conta com 308 membros inscritos de 147 órgãos governamentais. Isso tem efeito direto no bolso do consumidor. Em 2008, por exemplo, o governo economizou em torno de R$ 380 milhões com a utilização de software livre. Gera economia e também gera lucros. Quando uma plataforma de software livre se populariza, naturalmente mais pessoas precisarão de suporte, de treinamento, de ajuda na hora de instalá-lo. E ninguém melhor que o próprio programador para auxiliar nessas informações valiosas. Além disso, outra forma de renda através do software livre é por meio da publicidade que um bom produto pode alcançar. Tecnologia a Serviço da Segurança

por objetivo garantir mais segurança para o governo brasileiro. Em dezembro de 2013, o Expresso V3 já será instalado em alguns ministérios em Brasília, e até o fim de 2014 o projeto é que se estenda a todo o governo federal. Não se descarta que, no futuro, o novo e-mail atinja a casa de todos os brasileiros. No mundo, as agências de inteligência têm dedicado um tempo significativo para tentar quebrar a criptografia da The Onion Router (TOR), uma rede criada pelo software de mesmo nome e que tem como objetivo tornar anônimos os internautas em suas navegações na grande rede. Porém, o sucesso não está sendo alcançado. Para Galli, esse é um exemplo da importância do software livre em casos de segurança: “Só quando o código do programa for plenamente auditável poderemos garantir que não se está enviando informações para outros locais. Essas notícias de que a NSA tentou quebrar a estabilidade do TOR e não conseguiu é um exemplo”.

Em agosto de 2013, o Palácio do Planalto agitou-se com o vazamento dos casos de espionagem por parte dos Estados Unidos, via Agência de Segurança Nacional. Para Marcelo Azambuja, doutor em Sistemas de Informação e Coordenador do curso de Sistemas de Informação da Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT), o software livre é uma ótima válvula de escape para que se evite novos transtornos. “Embora os casos de espionagem comentados não sejam propriamente em PCs locais, e sim no tráfego de internet e informações de usuários, não há dúvida que em softwares abertos seria quase impossível ter códigos espiões escondidos sem que alguém perceba e divulgue amplamente”, entende.

A gratuidade é destacada como maior vantagem dos softwares livres, mas ainda não tem sido suficiente para atrair totalmente as empresas privadas a usar o Linux e do BrOffice em substituição ao Windows e ao Office. Mesmo aqueles usuários acostumados a utilizar os programas da Microsoft, estão mais próximos do software livre do que imaginam. Azambuja entende que esse usuário convencional, que pega o computador para dar uma olhada no fim de semana, está se beneficiando sem saber. “Mesmo esse usuário que usa, por exemplo, Windows ou MacOS, quando acessa um site ou faz uma compra pela internet, está em boa parte das vezes usando o software livre sem saber, o que mostra o avanço nesses anos todos. Então ele é beneficiado de outra forma”, salienta.

O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) trabalha para encontrar soluções para casos como esse. Como ponto de partida, criará o Expresso V3, que se trata de um e-mail de tecnologia nacional, totalmente baseado em software livre, que tem

Segundo ele, o banco Banrisul é referência, uma vez que muitos dos terminais de autoatendimento possuem o logotipo do Linux (o Tux) como fundo de tela dos terminais, isto é, são computadores com software livre. x Bandeiras

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA




“Eu me via magra, mas queria mais” Gabrielle Tosi, anoréxica em recuperação, na batalha contra a doença


CONTRA A PRÓPRIA

CARNE Texto: Bibiana Borba Fotos: Priscila Leal

M

anter-se forte é o desafio diário para alguém que já acreditou que suportar a fome significava ter o controle da própria vida. As palavras, hoje tatuadas nos pulsos como um lema de superação, também são a lembrança de uma bandeira silenciosa e doentia, protegida pelo anonimato da internet. Stay Strong é uma das frases de inspiração repetidas em fóruns, sites e blogs Pró-Ana e Pró-Mia – defensores da anorexia e da bulimia. “Ficar forte tinha o sentido de não comer, de fazer mais exercícios pra emagrecer. Eu tatuei pra transformar numa coisa boa. Queria me lembrar que a minha vida vale mais do que um corpo, uma doença, um julgamento”, diz Gabrielle Tosi, 22 anos, em recuperação da anorexia desde 2010. Uma simples pesquisa no Google leva a milhares de páginas nas quais os transtornos alimentares são celebrados como estilo de vida. Fotos de modelos e atrizes excessivamente magras estampam os murais chamados de thinspiration – inspirações magras. As dicas compartilhadas vão desde listas de desculpas para evitar almoçar com a família até técnicas para esconder a comida – nas mangas das roupas, nos cabelos ou até mastigando e depois cuspindo tudo no vaso de plantas mais próximo. Para evitar consequências como desmaios, perda de

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Foto: Arquivo pessoal / Gabrielle Tosi

De palavras de apologia à anorexia e à bulimia, a frase tatuada nos pulsos de Gabrielle Tosi se transformou em lema de recuperação da doença

cabelo e interrupção do ciclo menstrual, surgem sugestões de remédios e vitaminas acessíveis. Para manter o hábito de “miar” (induzir o vômito depois de comer), o conselho é tomar CocaCola em vez de escovar os dentes, já que a reação do creme dental com o ácido do estômago pode acelerar o desgaste dos dentes. A dedicação dessas meninas – e também meninos, em menos de 10% dos casos – espanta até mesmo os especialistas acostumados a reconhecer os sintomas da doença. “É uma frustração constante para nós profissionais, na tentativa de tratar alguém que boicota a própria saúde”, relata a psicóloga Ieda Dorfman, uma das fundadoras do programa de transtornos alimentares do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e da clínica Atendimento Multidisciplinar de Anorexia e Bulimia (AMAB-RS), em atuação na área há mais de dez anos. São vários os relatos de pacientes com risco de vida que conseguem burlar o tratamento para evitar o ganho de peso. A mãe de um adolescente não entendia como o filho emagrecia, até descobrir que os tubos de uma cama de metal foram usados durante meses como esconderijo de alimentos. Uma menina de 14 anos,

já internada para recuperar peso, foi flagrada fazendo abdominais na cama do hospital para perder as poucas calorias repostas por uma sonda. A anorexia nervosa é o transtorno psiquiátrico que mais leva à morte. O coração tenta compensar a ausência de alimento com a aceleração dos batimentos. Aos poucos, o esforço do corpo em equilibrar a falta de energia pode levar à falência múltipla dos órgãos. Sobreviver a um caso grave da doença significa lidar com reflexos como arritmia cardíaca, osteoporose, alteração do funcionamento dos rins e do fígado, entre outros. Em crianças e pré-adolescentes, a desnutrição pode ter consequências irreversíveis no crescimento e no desenvolvimento intelectual. Tratar um distúrbio alimentar começa pelo esforço em reverter a visão da doença como uma bandeira pelo paciente. A estimativa dos médicos é de que, mesmo entre aqueles que se consideram recuperados depois de um período de tratamento, ao menos um terço voltará a ter recaídas. A comida se torna uma inimiga ou, no outro extremo, uma amiga na qual o apoio exagerado pode levar à compulsão seguida de tentativas de compensação. Bandeiras

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O corpo deposita a tristeza “Eu sabia que estava magra, mas queria emagrecer mais, porque queria mostrar pros outros que eu conseguia ser mais do que eu era. Descontava minha tristeza através daquilo”, conta Bruna Caselani, 15 anos, recém liberada de um tratamento de dois anos contra a anorexia nervosa. Com apenas 13, a estudante porto-alegrense chegou a pesar 33 quilos, com 1,60 metros de altura. Da fase de negar qualquer crítica sobre o corpo até admitir que a tristeza ficava ainda maior, a menina precisou contornar sentimentos de rancor com os pais e os próprios colegas de escola. “Eu achava que olhavam pra mim porque eu estava bonita, mas eu chamava a atenção por estar muito magra”, percebe hoje. Quando começou a assumir o exagero, passou a usar blusas e calças sobrepostas para evitar os olhares.

A mãe incentiva a filha a começar uma nova dieta, por saber que não vai vê-la voltar a ter uma rotina normal enquanto não emagrecer. “Ela tenta me ajudar e diz que acha que eu aprendi a lição e não vou exagerar”, justifica. Paola promete retornar a um cardápio com menos de 500 calorias na próxima sexta-feira, “porque segunda é o dia internacional de gordos começarem dietas”. O codinome, usado para preservar sua identidade nesta reportagem, ainda é a forma de comunicação em um fórum Pró-Ana que administra na internet, depois de ter outros dois sites tirados do ar (evitar apologia a práticas nocivas à saíude é uma das regras de alguns servidores). Mas jura que, hoje, não quer voltar a ficar doente. “É só uma forma de ter alguém pra dividir tudo isso, se sentir menos sozinha”, garante. Vidas destruídas

“Depois tu não consegues mais parar, se torna um vício e dá prazer ao mesmo tempo em que machuca por dentro. A gente se sente vencedor por conseguir não comer”, reflete. Ainda em meio à fase de transição da adolescência, a terapia com apoio da família parece ter estimulado Bruna a enfrentar as inseguranças. “Um dia eu já estava mal no hospital e me dei conta de que não conseguia nem levantar pra ir até o banheiro, porque ficava tonta. Aí vi que tinha que mudar”, lembra.

A maioria prejudica o próprio corpo, mas algumas chegam ao extremo de colocar a vida de um filho em risco. O dilema é compartilhado por Anna Karolina* em publicações diárias sobre a gravidez de cinco meses no Facebook. “Depois de uma semana sem comida, almoçar com os amigos é o melhor”, publica, localizando um restaurante. Ao comentário de uma amiga preocupada com a gravidez, responde: “Tô grávida sim, mas com o mundo desabando sob meus pés eu não conseguia comer”.

A doença domina a vida

O perfil na rede social mostra fotos da bela advogada paulista de 29 anos em eventos, interações com amigos e colegas de trabalho. Ela não esconde, porém, que os transtornos alimentares fazem parte dessa rotina social. Com histórico persistente de anorexia e ciclo menstrual irregular desde a adolescência, Anna não imaginava que um dia fosse conseguir engravidar. Apesar de celebrado, o bebê trouxe o pânico de ultrapassar os míseros 50 quilos.

“Decidi que vou voltar à terapia. Sinto que preciso muito. Mas o interesse principal é pegar a receita pra tomar Prozac, que é uma maravilha pra deixar de sentir fome”, confessa Paola Carriello*, 33 anos, em entrevista pela internet. Há mais de dez meses ela não sai de casa, no interior do Paraná, a não ser para comprar cigarros. Tem a anorexia e a bulimia como parceiras desde os 13. Formada em Enfermagem, parou de trabalhar há cinco anos por causa da depressão. O peso, que já oscilou dos 40 aos 85 quilos com 1,63 metros de altura, hoje está próximo dos 60. Foram três internações por anorexia, a última em 2011. “Eu meio que tenho orgulho, apesar de saber o mal que já me fiz. Fora a vergonha que sinto por ter engordado, que é um fracasso”, admite. Em casa, os pais e o irmão, além do namorado, que a visita diariamente, sabem do histórico com os transtornos alimentares.

O conflito emocional não foi relatado ao obstetra, mas distorções em alguns exames do pré-natal denunciaram a gravidez de risco. A jovem tem alteração do ritmo cardíaco, causada por deficiência prolongada de potássio – uma das consequências a longo prazo da alimentação precária. “Cheguei a ser aconselhada a tirar o bebê, mas agora me colocaram em observação e me deram uma dieta rígida de engorda”, lamenta, ressaltando já estar 5 quilos acima do peso anterior. Bandeiras

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Carta de Ana

Trecho de texto criado por defensoras da anorexia:

Eu vou estar lá, quando você acordar de manhã e correr para a balança. Você fica enjoada quando vê tanta banha nesse seu estômago, e sorri quando começam a aparecer seus ossos. E eu estou lá quando você pensa nos planos do dia. Sou eu quem está fazendo esses planos, pois agora meus pensamentos e seus pensamentos estão juntos como um só. Eu te sigo durante o dia. Na escola, quando sua mente sente vontade, eu te dou alguma coisa para pensar! Recontar as calorias consumidas do dia. Elas são muitas. Eu vou encher sua cabeça com pensamentos sobre comida, peso e calorias. Pois, agora, eu realmente estou dentro de você. Eu sou sua cabeça, seu coração e sua alma. A dor da fome, que você finge não sentir, sou eu dentro de você! Logo, eu não vou estar te dizendo o que fazer com comida, mas o que fazer o tempo todo! Sorria, se apresente bem. Diminua esse estômago gordo, droga! Deus, você é uma vaca gorda! Quando as horas das refeições chegarem, eu vou te dizer o que fazer. Quando eu fizer um prato de alface, será como uma refeição de rei! Empurre a comida! Faça uma cara de cheia, como se você já tivesse comido! Se você comer, todo o controle será quebrado. E você quer isso? Ser de novo aquela vaca gorda que você era? Eu te forço a ver uma revista de modelos. Aquele corpo perfeito, magro, dentes brancos! E eu te faço perceber que você nunca será uma delas. Você sempre será gorda, e nunca vai ser tão bonita quanto elas! Quando você olhar no espelho, eu vou distorcer sua imagem, e te mostrar uma lutadora de sumô, mas, na verdade, existe apenas uma criança com fome. Mas você não pode saber da verdade, pois se você souber, você pode começar a comer de novo e nossa relação pode vir a cair, e me destruir! Bandeiras

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A vida continua, com uma voz na cabeça “Às vezes me pergunto se eu realmente estive anoréxica ou se foi só um monte de gente metendo isso na minha cabeça. Eu me via magra, mas queria mais porque achava bonito”. Essa é a lembrança de Gabrielle Tosi sobre os mais de três meses em que passou internada em dois hospitais de Porto Alegre, depois de emagrecer 10 quilos em poucos meses – de 56 para 46, com 1,70 metros de altura. Ela teve a sorte de receber ajuda logo no início do problema, depois de consultas com uma nutricionista, duas psicólogas e uma psiquiatra. Só pôde voltar para casa depois de chegar aos 60 quilos e ter o comportamento aprovado como “boa conduta”. A estudante reconhece o começo do distúrbio como um período de dúvidas sobre a faculdade, aos 19 anos. Pensava em desistir do curso de Farmácia, mas não sabia que outro rumo seguir. A falta de objetivos acabou levando à obsessão por perder peso, mesmo já sendo magra. “Minha teoria é de que eu não tinha mais controle sobre nada na minha vida, e o meu corpo foi a única coisa que eu percebi que podia controlar. Me sentia segura com isso”, avalia. Para Gabrielle, hoje estudante de Design na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o tratamento com medicamentos é uma segurança para se manter tranquila em relação ao fantasma da anorexia. Passados três anos da internação, ela admite que se incomoda com os 53 quilos atuais, mas não quer voltar a encarar o corpo e a comida como antes. “Eu como bem, como bastante até. Às vezes vem uma voz chata na cabeça, mas eu espanto ela”, brinca. A tatuagem não chega a esconder a cicatriz de um “A” em um dos pulsos – marca da época em que cravou a palavra FAT (gorda) na própria pele. A punição é inconsciente Lâminas de depilação, tesouras, prendedores de cabelo e até clipes de papel precisam ser mantidos fora do alcance dos pacientes em tratamento da anorexia. “Nunca me cortei pra me matar. É algo pra sentir dor, se auto punir. Tu achas que merece sofrer”, reflete Gabrielle. Fazer cortes na própria pele é um dos sintomas característicos dos distúrbios alimentares, mais do que em qualquer outra doença psiquiátrica. A psicóloga Ieda Dorfman confirma que a maioria dos pacientes

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que se auto-mutilam, mesmo em casos mais graves, não tem o suicídio como objetivo. “Nos parece que se cortar é uma forma de colocar a dor para fora. Nem mesmo a recusa da comida é uma tentativa de se matar”, analisa. “Elas não querem morrer mas, quanto mais doentes, mais perto da morte, negam ainda mais a doença”, observa. Por isso, o desafio dos médicos é identificar a origem psicológica que leva à doença física. Depressão, ansiedade e transtorno obsessivo-compulsivo são algumas das doenças concomitantes mais frequentes – embora não seja possível saber se são causas ou consequências do conflito com a comida. Ao menos, ao contrário da anorexia, existem remédios psiquiátricos específicos que ajudam a reverter os outros problemas. O que pode matar, afinal, é o corpo doente, mas o que mantém o distúrbio é o desconforto emocional. Como qualquer outro transtorno, cada caso de anorexia ou bulimia é resultado de um histórico de fatores de influência da sociedade e de contextos familiares específicos, além de, possivelmente, algum componente genético. “A anorexia é o sintoma de um problema emocional que não está sendo tratado. Não tem causa única, mas sim bio-psico-social”, examina a especialista do Hospital de Clínicas. Em geral, de acordo com ela, são meninas extremamente inteligentes, perfeccionistas, bem sucedidas nos estudos e na vida profissional e que, mesmo assim, têm problemas sérios de auto-estima e dificuldade de se sentirem aceitas em grupos sociais. Relações conturbadas com outra figura feminina na família também são recorrentes. “Ver a mãe ou uma irmã excessivamente preocupada com a aparência pode ser um desencadeador. Ou o contrário, quando a menina tem medo de se tornar obesa como a mãe”, diz Ieda. O ideal de beleza pode ser inspirado em pessoas de verdade, em páginas de revistas, mas acaba se transformando em algo inatingível. Não significa que qualquer pessoa que fizer uma dieta rigorosa vai se tornar obsessiva mas, à medida que a alimentação é restringida, maiores são as chances de a fraqueza física colaborar para uma imagem distorcida do corpo. “Elas conseguem ver que outras estão magras, mas não se enxergam magras”, nota a psicóloga.


“Depois tu não consegues mais parar, se torna um vício e dá prazer ao mesmo tempo em que machuca por dentro. A gente se vê vencedor por conseguir não comer.” Bruna Caselani, liberada do tratamento contra anorexia

Uma seita ou um grupo de apoio? Apesar da racionalidade e dos detalhes científicos para planejar dietas e acelerar o metabolismo, a comunidade Pró-Ana e PróMia se parece em muito com uma religião extremista, uma seita quase suicida. Orações, cartas e músicas oferecem “alma, coração, estômago e todas as funções do organismo” à Ana – a anorexia personificada em uma mulher. Mia é a bulimia, que aparece como uma alternativa (ou uma deusa) compensatória para atingir os objetivos da Ana. As conversas entre meninas e meninos que almejam a magreza extrema traçam dietas em parceria, competições pelo menor número de calorias diárias e apoio àqueles que fracassam nas metas – sempre com frases que incentivam a não desistir. Vistas de fora por qualquer pessoa em sã consciência, são trocas doentias. Mais de perto, ao perceber o nível de dependência entre os integrantes das discussões, é inevitável questionar se não seria pior se tantas pessoas estivessem sozinhas. Em estudo de caso de uma rede Pró-Ana/Mia espalhada por blogs e comunidades do Orkut, em 2005, a jornalista Raquel Recuero apontou aspectos que tornam o grupo muito similar a outras redes virtuais “inocentes”. “As garotas afirmam sentirem-se isoladas porque são diferentes. Com a internet, conseguem criar uma rede social de suporte e apoio, que contribui para que mantenham contato e ajudem-se mutuamente”, observa a professora e pesquisadora da UCPEL (Universidade Católica de Pelotas). A ajuda mútua, alega Anna Karolina, já a fez desistir de cortar a pele da própria barriga por raiva dos quilos acrescidos pela gravidez. Uma mensagem desesperada levou a comentários do tipo “pensa na vida que tem aí dentro”. Já para Gabrielle, acessar sites que costumava frequentar até dois anos atrás significa perceber a recuperação como um crescimento pessoal. “Eu só me considerava uma pessoa querendo emagrecer no meio de um bando de gente anoréxica. Não percebia que eu fazia parte”, conclui hoje. Cada vez mais casos, cada vez mais cedo O que mais assusta é que a preocupação com a aparência tem se manifestado mesmo antes da puberdade. Em 2002, quando foi criado o grupo de tratamento específico para transtornos alimentares no CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a maior parte dos pacientes tinha

entre 13 e 19 anos. Hoje, é frequente receber meninas de 12, dez e até nove anos de idade. A equipe do Clínicas admite no máximo 12 pacientes em tratamento simultâneo, com idade de até 19 anos, para o acompanhamento de oito especialistas – psicólogos e psiquiatras que adotam diferentes linhas de terapia, nutricionistas e um clínico geral. A recuperação leva, em média, de um ano a um ano e meio, embora a maioria continue com recomendação de psicoterapia e uso de medicamentos. As terapias familiares e em grupo são consideradas fundamentais para tratar as causas ambientais da doença. Em relação aos fatores sociais, a responsabilidade do mundo da moda pelo padrão de beleza doentiamente magro é criticada, ao menos, desde o início da década de 1960. Para a professora de Ética e Antropologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Maria de Lourdes Borges, a boneca Barbie, criada em 1959, representa essa mudança de ideal do corpo feminino. Comparada às medidas de uma mulher real, a Barbie teria 1,75 metros de altura, 76 centímetros de busto, 53 de cintura e 78 de quadril – proporções praticamente inatingíveis, mesmo para as modelos de passarela. A professora, especialista em filosofia do feminismo, destaca que a boneca da empresa Mattel evoluiu, da época em que representava apenas uma dona-de-casa branca norte-americana, para ser fabricada em diferentes etnias e profissões já consideradas masculinas, como astronauta e piloto de Fórmula 1. “Não evoluiu, no entanto, na concepção do padrão de beleza”, constata. Movimentos de repercussão na mídia, como a campanha da marca de cosméticos Dove pela real beleza, são apontados como importantes mudanças na cultura da chamada ditadura da magreza. Na Europa, a Espanha é o primeiro país a não admitir modelos com Índice de Massa Corporal (IMC), a proporção entre peso e altura, abaixo de 18 – nível mínimo para manter a saúde. Grandes revistas internacionais como a Elle, eventualmente, estampam fotos de modelos plus-size no lugar das tradicionais “padrão cabide”. A ironia é que, para os estilistas, uma mulher de manequim 40 – mais magra do que a média de qualquer país ocidental – é considerada plus. x * Alguns nomes foram alterados a pedido das entrevistadas Bandeiras

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FRASES DE JUNHO POR ANNA VEIGA




“Defender uma causa não o torna melhor ou pior cineasta” Carlos Gerbase, professor e diretor de cinema


A animação francesa Persépolis retrata a história de uma menina que cresce no Irã, durante a Revolução Islâmica

MEMÓRIA EM CARTAZ Texto: Laura Martins

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OI-CODI do Rio de Janeiro. Sexta-feira Santa, 6 de março de 1970. Um militar diz: “Você vai ser torturada como um homem, como Jesus Cristo”. Após três meses de inúmeros choques elétricos, afogamentos, simulações de execução, dias sem comida, queimaduras pelo corpo, unhas arrancadas, espancamentos por diversos homens e horas pendurada em ‘pau de arara’, Vera Sílvia Araújo de Magalhães saiu da Polícia do Exército em uma cadeira de rodas, impossibilitada de andar, com 37 quilos e muito ferida, direto para uma audiência no Supremo Tribunal Militar. Com outros 40 presos políticos, ela foi trocada pelo embaixador da Alemanha no Brasil, Ehrenfried von Holleben. O chefe das seções de tortura era o psiquiatra Amilcar Lobo, que enchia a prisioneira de remédios para que ela perdesse a sensibilidade do corpo e a noção do tempo.

A história da ex-guerrilheira e ex-militante da Dissidência Co-

munista da Guanabara e do MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro) é retratada no longa-metragem A memória que me contam, de Lúcia Murat, dedicado à Vera Sílvia Araújo de Magalhães. Ela foi a única mulher a participar do sequestro do embaixador norte-americano no país, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. A gaúcha, radicada no Rio de Janeiro, é a imagem de uma mulher que lutou pela sua pátria, pela liberdade, por mais consciência e por amor. Sacrificou a sua vida ao acreditar que o mundo pode ser melhor. Em nome dos mesmos ideais, Lúcia levou a história para o cinema. O filme se passa em um cenário contemporâneo, sem uma narrativa tradicional, no qual a personagem principal (Ana) é fruto da imaginação dos outros personagens. A narrativa trata sobre o Bandeiras

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presente, a partir de lembranças de um grupo de amigos nos anos 1960, todos guerrilheiros, que resistiram à ditadura. Para eles, o passado era presente. “Estas pessoas sobreviveram em um Brasil durante a ditadura militar, quando torturas e assassinatos eram práticas institucionais. Diferente também é a sua participação na sociedade brasileira hoje. Entre os sobreviventes, muitos encontram-se no governo, outros têm uma presença importante no debate intelectual”, explica Lúcia, sobre o contexto de criação e motivação de sua produção. Outro filme que ajuda a entender o contexto político dos anos 1960, que motivou o trabalho da cineasta, é Que bom te ver viva, de 1988. Primeiro longa-metragem de Lucia, a produção estreou internacionalmente no Festival de Toronto e revelou uma diretora dedicada a temas políticos e femininos. Nele, há depoimentos de mulheres torturadas durante a ditadura, que se intercalam com cenas ficcionais. Entre muitos prêmios, o longa foi escolhido como melhor filme do júri oficial, do júri popular e da crítica no Festival de Brasília de 1989. “Quando fiz este trabalho, a ditadura ainda era muito presente. Eu me lembro que recebia telefonemas com ameaças por ter feito o filme. Tinha muito medo. O Brasil lida com o seu passado de uma maneira muito longa, as coisas não são resolvidas rapidamente”, observa Lucia. A atriz principal do longa é Irene Ravache, que também participa de A memória que me contam. “Irene me falou, na época, que tinha medo que ninguém ia sair de casa para ver esse filme. O seu receio era em relação ao costume do público brasileiro, que só está interessado no que seja mais fácil de entender, em filmes engraçados e sem reflexão. Contrariamente, o que acaba acontecendo com esse mesmo público é que ele sai vazio do cinema, mesmo por ter passado por momentos divertidos”, comenta Lucia. A diretora sente que existe um público cada vez maior disposto a refletir. O cinema militante, como o de Lucia, é um dos objetos de trabalho da crítica de cinema e jornalista Jaqueline Chala. Seus diretores prediletos são conhecidos por produções engajadas, como Ettore Scola. Chala defende que ele “se comunica com o público de uma forma profunda e consegue ser agudo na crítica social

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da sua produção”. Para a jornalista, outro cineasta que merece destaque neste contexto é o grego (naturalizado francês) CostaGravas. Aos 80 anos, o autor de Z, Estado de Sítio, Missing e, sua última obra, O Capital, faz um cinema reconhecido pela militância política, contra a imprensa sensacionalista e que investe no tema contra a ditadura. Especialista em análise cinematográfica, Chala acredita que um bom filme pode passar por causas politizadas e continuar sendo atrativo. “Quando o enredo é bom, a pessoa sai modificada da sala de cinema, pois o fato de assistir a um filme já transforma este indivíduo, independentemente do que a obra defenda”, conclui Jaqueline. Para o professor de cinema e diretor Carlos Gerbase, tanto documentários como filmes de ficção podem ser divididos entre aspectos políticos e artísticos. Ele cita como exemplo dessas duas características o curta-metragem de Jorge Furtado Ilha das Flores. “O fato da pessoa defender uma causa não o torna um melhor ou pior cineasta. É simplesmente uma posição ideológica. Ser político ou ideológico pode ser para algumas pessoas uma condição muito importante na obra de arte. Mas eu não acredito que seja uma posição sem a qual a obra perca o seu sentido. São dois campos de análise diferentes: o campo estético e o político. O político é defendido por alguns cineastas desde o começo da história do cinema. Um exemplo são os filmes soviéticos da década de 20”, explica Gerbase. No mesmo campo político citado por Gerbase, está o longa de animação Persépolis, baseado no romance gráfico autobiográfico homônimo da diretora iraniana Marjane Satrapi. A autora é interpretada pela personagem chamada Gabrielle Lopes, uma garota de oito anos que vive no Irã e sonha em se tornar uma profeta para salvar o mundo. Querida pelos pais e adorada pela avó, ela acompanha os acontecimentos que levam à queda do xá (termo que significa título de nobreza dos monarcas) no seu país. O filme inicia na nova República Islâmica, cujo regime político controla como as pessoas devem agir. A menina é obrigada, por exemplo, a usar véu, um dos fatos que a incentiva a tornar-se uma revolucionária. A obra mostra como é viver sob repressão e de que forma isso influencia na vida das pessoas.


No caso do jornalista e professor Marcos Antônio Villalobos, cinema é hobby. Na sua juventude, militava na Anistia Internacional, com o objetivo de ajudar vítimas do regime militar (1964-1985). Esse é um dos fatos que marcou sua vida durante o período de exceção no Brasil. Desta forma, Villalobos acreditava que poderia provocar mudanças sociais fazendo apenas a sua parte. “Tem uma metáfora que ilustra a minha vida. É aquela história antiga do passarinho em um incêndio na floresta e que leva no seu biquinho uma gota de água para apagar o fogo, mesmo que não seja possível. Mas ele está fazendo a sua parte. E é assim que me sinto. A minha parte é o mínimo”, brinca. Há décadas, o jornalista faz trabalhos com a temática dos direitos humanos. Os documentários Atletas versus ditadura: geração perdida e Histórias de una vida hermana foram os mais recentes, em parceria com o jornalista Marcelo Outeiral. As produções venceram a 2ª Muestra de Documentales en Derechos Humanos em Montevideo e Punta del Este, no Uruguai. Atletas versus ditadura trata de casos de esportistas que foram sequestrados e mortos pela ditadura militar da Argentina. A outra produção conta a história de vida do ativista dos direitos humanos Jair Krischke, presidente e fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Villalobos já produziu e dirigiu sete documentários. “Faço documentários por tesão. Na verdade, é como uma forma de missão. Trabalho nisso para dar voz a pessoas desconhecidas. A minha ideia é vender uma mensagem, não o meu nome”, afirma. Ele acredita que, expondo as questões da ditadura na América Latina, pode ajudar na construção da cidadania e evitar que todo o sofrimento ocasionado naquela época se repita. Villalobos diz que não se considera um documentarista, porque “tem muita gente que ganha dinheiro com isso, mas eu não. Pelo contrário, eu gasto a minha própria renda para produzir esses materiais e não tenho apoio financeiro de ninguém”. x

“Estas pessoas sobreviveram em um Brasil durante a ditadura militar, quando torturas e assassinatos eram práticas institucionais. Entre os sobreviventes, muitos encontram-se no governo, outros têm uma presença importante no debate intelectual.” Lúcia Murat, cineasta Bandeiras

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