A criança que morreu sorrindo

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INFORMAÇÕES SOBRE O PROJETO O Acervo Eletrônico de Cordéis do Behetçoho é uma iniciativa que pretende dar consequências ao conceito de (com)partilhamento dos artefatos artísticos do universo da oralidade, com o qual Behetçoho e Netlli estão profundamente comprometidos.

INFORMAÇÕES SOBRE A EQUIPE A equipe de trabalho que promoveu este primeiro momento de preparação e disponibilização do Acervo foi coordenada por Bilar Gregório e Ruan Kelvin Santos, sob supervisão de Edson Martins.

COMPOSIÇÃO DA EQUIPE Isabelle S. Parente, Fernanda Lima, Poliana Leandro, Joserlândio Costa, Luís André Araújo, Ayanny P. Costa, Manoel Sebastião Filho, Darlan Andrade e Felipe Xenofonte


VALERIANO FELIX DOS SANTOS

A CRIANÇA QUE MORREU SORRINDO



Santa Bárbara – California Um recorte de jornal Divulgou no mundo inteiro Um fato fenomenal Eduardo, uma criança Morreu sorrindo, afinal!

Mas, por que morreu sorrindo Uma criança inocente? Por se liberta da vida Para o qual nasceu doente; E viveu para morrer Com sete aninhos somente! Quando Eduardo nasceu Era um menino mimoso; Filho de pai brasileiro, Um diplomata famoso Que por cujo nascimento Ficou repleto de gosto!


Com pouco tempo, porem Eduardo adoeceu; Com leucemia no sangue Um comentário teceu Dizendo que seu martírio Foi a sorte que lhe deu! Desarmou a junta médica Que já sabia seu mal E por isso garantiu Um desfecho, então, fatal; Mas Eduardo sorriu Como coisa natural!

Como seus pais e os médicos Não disseram seu estado, Embora se lamentassem Pela sorte de Eduardo, Este disse: -para a morte Eu já nasci preparado!


Não quero que se lamentem Como sendo desventura; Eu estou contaminado Por um mal que não tem cura; Mas por que ficar tristonho Se tenho a vida futura? É difícil de dizer, Muito mais acreditar; Vou embora desta vida Pois não vim para ficar; A gente só vem ao mundo Tendo em vista um novo lar! Vou morrer, renascerei Para uma vida sadia; Pois o mundo se renova Cada noite e cada dia; A providência divina Gera, muda e propicia!


É tão sábia a lei divina Que não esquece ninguém; Tanto orienta o que vai Quanto apadrinha quem vem; A meta do seu trabalho É a verdade e o bem!

Direis com pranto na voz Que Deus é mau e injusto; Vê morrer com leucemia Quem podia ser robusto; O desespero da mãe Não lhe cora ou causa susto!

Mudo e surdo, indiferente Não ouve a prece e o grito Que como um trovão de dor Estremece ao infinito! Contra a Deus que tudo pode Muita coisa se tem dito!


Esse modo de pensar Me parece natural; Porém Deus é sempre justo Diante de qualquer mal; Por detrás do sofrimento Sempre existe um cabedal! O fenômeno sem causa Um absurdo seria; Bem assim a própria vida Quando em erro tripudia; Mas a morte cura tudo Num instante, num só dia!

Então tudo recomeça Sem remorsos nem pesares; A consciência ferida Se refaz em novos lares; Então vemos quando Deus Tem poderes singulares!


Eu vou morrer muito breve, Nada me pode salvar; A medicina divina Só na morte, em novo lar, Tem recursos que na terra Não se pode utilizar! O sofrimento que causo De muito fora previsto, Quando desci para a vida Nesse corpo que me visto, Aceitei o que por bem Não recuso nem desisto!

Não fique triste mamãe Nem chore tanto, papai; Pois quem parte deste mundo Sabe por certo onde vai; Não é qual gota de chuva Que nunca sabe onde cai!


A renovação consiste No morrer e renascer; Na longa escala do tempo Ensinar e aprender; Eis a bondade divina Dispensada a cada ser!

Criaturas mutiladas, Suas vis aberrações São na morte transformadas Em escalas, ascenções... Quais fagulhas que pudessem Se fazer constelações!

O celerado, o vadio, O criminoso, o tarado Sá depois de ter morrido Analisa o seu passado; Vem ao mundo em sofrimento Para ser purificado!


Ninguém ascende na vida Se não passar pela morte; O soberbo nasce fraco E o fraco nasce forte; Caminhando lentamente Para a estrela da sorte!

A nova vida começa Como uma rosa em botão; A aste que se faz flor, E a flor que faz grão; Multiplica e apetece Com sabor de raro pão!

A morte nos deixa livre De conforme a consciência Pois a vida é como um posto Simplesmente de emergência; Tudo quanto se padece É missão e penitência!


Neste mundo há quem não pode Passear pelo jardim Fica retido no leito Sem atinar com que fim; Vendo pai e mão que choram, Tenho tirado por mim! Devo cobiçar saúde E a vida deste mundo? A morte promete mais Onde não há vagabundo; Onde o coração da gente É mais ordeiro e fecundo!

Por acaso em outras vidas Não fiz mesquinho e vulgar? Não fiz o crime nas águas Como uma fonte jorrar? Acaso será injusto Se devo tanto, pagar?


O hoje nunca será Tão melhor quanto amanhã; Carneiro se vaidoso Costuma ficar sem lã; Ninguém planta pedregulho A espera de maçã!

Neste mundo ninguém faz Um bem sem compensação; Ou o mal que não lhe venha Trazer velada aflição; Nenhum crime fica impune Qualquer que seja a razão! Um criminoso que foi Neste mundo condenado Pagou a parte do mundo Mas está endividado Perante a corte divina No dia que for chamado!


E vem pagar neste mundo O crime que praticou Carregando a mesma cruz Que seu rival carregou; Sentirá na própria pele O tormento que causou! O cego que não enxerga Um dedo além do nariz Deve ter sido um antanho Um alguém muito feliz; Via de mais os defeitos Agora não vê nem diz!

O caolho que nos causa Até profunda clemência Pode ter sido, quem sabe, Reverendíssima, eminência; Só via pela metade As verdades da Ciência!


O coitado Zé perneta Que manqueja se caminha Foi noutras vidas passadas Um manhoso coroinha; Só que chutava quem dele As simpatias não tinha! Aquele sujo mendigo Foi um rico cidadão; Batia de mão aberta Em quem lhe pedisse pão; Renasceu pra viver Com sua cuia na mão!

Do mesmo modo o maneta Que não pode trabalhar; Vive sentado na rua Em constante mendigar; Antigamente só tinha Aquela mão pra roubar!


Aquela mulher que chora Tendo ao colo o filho morto Vestindo trapos nojentos, Sem alimento e conforto; Em outras vidas passadas Vivia fazendo aborto!

Aquela mulher feiosa Que não para de gritar Palavrões na via pública... Fazendo todos corar Ontem não ficou defeito Que lhe escapasse o zombar! Mané Bicho do Boteco Que não para de beber; Vive as quedas na rua Sem ter nada pra comer; Outrora vendia tudo Que pudesse corromper!


Aquela mulher demente De que todos fazem pouco; Fica despida na rua Parecendo um pé de coco; Outrora por ser bonita Faz um homem morrer louco! Aquela viúva triste Cuja dor estoura o seio Com saudade do marido Que teve um destino feio Esqueceu que antigamente Tomava marido alheio!

Aquele senhor da praça Que cresceu de mais a pança Tem a barriga tão grande Como quem vai ter criança Outrora negociava E roubava na balança!


Aquele ser desprezível Que faz jeitinho na mão; Fala fino e se sacode Servindo de gozação; Foi manchete em outras vidas Que se dizia machão! Aquela moça horrorosa Que tem boca de canoa Quem a vê de muito perto Não vê cara nem coroa; Outrora por vaidade Só andava rino a toa!

Finalmente não existe Um defeito, uma doença Que não seja do passado A sua amarga presença; É o efeito da causa Pois o crime não compensa!


Muita gente tem da morte Um conceito muito antigo; Uma bruxa impiedosa Trazendo a morte consigo; Corta o pescoço da gente Como quem cortasse trigo! Porém a morte é um anjo Usando um lindo avental; Vem cautelosa e sutil, Receosa e maternal; É ela quem nos transporta Para um berço de cristal! Embalando mansamente Com materna candidês; O anjo da morte canta Como nossa mãe o fez, E aí a gente sente Que é criança outra vez!


Nenhum vivente que morre Não se depara nos céus Com a cara carrancuda De Jeová, nosso Deus; Nenhum conselho de guerra Vai julgar os feitos seus!

O livro que a morte lê Com voz baixa ao nosso lado Vai exibindo roteiros Conforme cada pecado! Então para o lugar certo Cada qual é destinado! O descrente vem ao mundo Pra nascer como cristão; O soberbo também vem Pra nascer com mansidão; O preguiçoso renasce Pra fazer calos na mão!


Eis a mulher vaidosa Nascendo humilde, gentil; Se foi má filha ou má mãe, Partirá desse perfil; Aceitará neste mundo Roteiro de dores mil! Se foi um homem cruel, Um debochado sem luz, Virá pregando evangelho E sofrer o que faz jus Ninguém será redentor Sem carregar sua cruz!

Sendo a vida evolução E também experiência Não há quem possa furtar-se De tão justa obediência; Para remissão da culpa Eis a eterna ciência!


É verdade que por vezes No seio de cada povo Nosso roteiro é quebrado Como quem quebrasse um ovo; Mas a morte faz com que Recomecemos de novo! Como meta derradeira Se procura a perfeição; Essa a vontade de Deus Nesta ou naquela missão; Ele quer que o vagalume Chegue a ser constelação

- É impossível! – Direis, Ninguém irá tão além; Eu também tive meu fraco, E já duvidei, também; Mas hoje estou consciente, Nenhum mal supera o bem!


Mas que faremos depois Desses tantos ir e vir? Que compensação teremos Nos limites do porvir? Viveremos tão somente Para a glória de servir!

E como o grande trabalho s Se estende por anos mil Em vidas que estão por vir Como vem março e abril, Cantemos cheios de gosos Uma canção pastoril! Um multidão de galáxias Povoando o infinito; Várias delas são formadas Da terra bruta ao granito; Serão pisadas por nós Neste roteiro bendito!


Tenho plena consciência Do que fui e do que sou; A doença que me mata Em nada me perturbou; Ei de cumprir palmo a palmo O que Deus determinou! Soubesse cada vivente O quanto custa viver Em comparação à morte Que leva consigo o ser Teria desprezo à vida No momento de morrer!

Não se grudava com ela Como verme ao lodaçal; Como quem não quer sair Das garras do pantanal; Troca a estrela do bem Pelo fantasma do mal!


Pois quero morrer agora Porque sei que a morte é bela; Desligue o meu oxigênio E na mão me ponha a vela; Que para sair da vida De certo preciso dela!

Fica-te mundo tristonho, Adeus exílio de dor; Até breve vida ingrata, Vou em busca de outro amor; Quero dormir mansamente Nos braços do criador! Adeus leito de amargura, Hospital de solidão, Já não podem devorar-me Como enorme multidão Essas coisas que me roem Devorando o coração!


Ó morte deusa divina Vem acolher-me nos braços; Rompe com golpes certeiros Esses grilhões, esses laços; Quero voar livremente Na vastidão dos espaços!

Guardem bem minhas palavras São palavras de conforto; Estou saindo da vida Como um barco sai do porto; Mas não digam pra ninguém: - o nosso filho está morto! Porque morto estive quando Fui na vida acorrentado Nesse sangue peçonhento, Moroso, frio e pesado Mas agora me liberto Das correntes do passado!


As correntes que me prendem Se derretem como cera; Finalmente a morte amiga, Minha amiga e companheira Vem chegando mansamente E se pôs a cabeceira!

Eu ouço a voz muito mansa Dessa visão de cristal Dizendo: - vamos meu filho Caia fora deste mal; Há luzes nos céus imensos Nesta manhã boreal!

Voemos que nem as pombas Que pelos céus vãos aos pares; Em cima não há limites Nem tormento, nem pesares; Há orquestrações sutis, Apetitosos manjares!


Eu sinto tocar de leve Nas minhas faces geladas Como as mãos de minha mãe Duas mão aveludadas; Puxam-me, rançam dum saco Cheio de frutas bichadas! Uma cantiga discreta Como uma fonte a fluir Vai aumentando a cadência; Com deleite me fez rir; Vejo por detrás dos montes As auroras do porvir!

Leitores meus, meus amigos, A nobreza de morrer Talvez não seja sorrir, Como quem rir de prazer; Mas aceitar com ternura O que possa acontecer!


Quanto a mim, um trovador, Miss達o nobre que me coube Rogo a Deus que me conduzas E satan叩s n達o me roube; Um dia saiba morrer, Esse que viver n達o soube. FIM



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