DESAFIOS - Ora di Diritu

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DESAFIOS ORA DI DIRITU


TÍTULO

DESAFIOS

ORA DI DIRITU

AUTORES

AUGUSTA HENRIQUES CLEUNISMAR SILVA ILSA SÁ JOÃO RIBEIRO CÓ MALAM GOMES SAMBU SAMANTHA FERNANDES SAMBA TENEN CAMARÁ YASMINE CABRAL ZECA JANDI ESTUDOS REVISTOS POR

FÁTIMA PROENÇA / ACEP LAUDOLINO MEDINA / AMIC LUÍS VAZ MARTINS / LGDH MIGUEL DE BARROS / TINIGUENA E COMENTADOS POR

FATUMATA DJAO BALDÉ HIGINO CARDOSO NELVINA BARRETO SÓNIA POLÓNIO REVISÃO GRÁFICA

ACEP CRIAÇÃO GRÁFICA

ANA GRAVE PAGINAÇÃO

PATRÍCIA OLIVEIRA PRÉ-IMPRESSÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO

GUIDE ARTES GRÁFICAS APOIO FINANCEIRO

UNIÃO EUROPEIA CAMÕES - INSTITUTO DA COOPERAÇÃO E DA LÍNGUA EDITOR

ACEP

[ASSOCIAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS], LISBOA, PORTUGAL

© ACEP | NOVEMBRO

2015

| ISBN

978-989-8625-10-6

DEPÓSITO LEGAL N. Esta publicação foi elaborada com o apoio da União Europeia e do Camões, I.P.. O conteúdo do mesmo é da responsabilidade exclusiva dos autores e dos promotores, e em nenhum caso pode considerar-se como reflectindo o ponto de vista dos financiadores.


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APRESENTAÇÃO

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DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU AGRADECIMENTOS UM CONVITE À REFLEXÃO SOBRE OS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES A MULHER É A FORÇA MOTORA DA ECONOMIA GUINEENSE! O QUE OS NÚMEROS MOSTRAM E O QUE ESCONDEM OS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU: O QUE DIZ A LEI? SAPU TA KUME SI LABUR? O QUE AS MULHERES SABEM E COMO EXERCEM OS SEUS DIREITOS ECONÓMICOS VOLTA DI MUNDO U RABU DI PUMBA? PROGRESSOS E SONHOS NA CONQUISTA DOS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES PELAS MULHERES DA GUINÉ-BISSAU, PARA QUE NENHUMA PORTA SEJA FECHADA, NA ECONOMIA E NA POLÍTICA! CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES, APONTAMENTOS FINAIS GLOSÁRIO ACRÓNIMOS BIBLIOGRAFIA 20 HISTÓRIAS DE VIDA

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CAUSAS SOCIAIS E CULTURAIS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO QUADRO JURÍDICO EXISTENTE 171 NOTA INTRODUTÓRIA 173 VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES: PERCEPÇÕES, CONCEITOS E PROBLEMATIZAÇÕES FACE AO CONTEXTO GUINEENSE 178 ABORDAGEM METODOLÓGICA 180 CAUSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU 202 ANÁLISE DO QUADRO LEGISLATIVO DE PROTECÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES 217 LIÇÕES APRENDIDAS 220 RECOMENDAÇÕES 171

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACRÓNIMOS

231 231 235 242

AS DIFERENTES FORMAS DE TRÁFICO DE CRIANÇAS NA GUINÉ-BISSAU AGRADECIMENTOS INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO REVISÃO DA LITERATURA E DEBATES SOBRE A VIOLAÇÃO E TRÁFICO DE CRIANÇAS: O CASO DAS CRIANÇAS TALIBÉS, CONFIAGE, ENTRE OUTROS 250 DIMENSÃO E TIPOLOGIA DO TRÁFICO DE CRIANÇAS NA GUINÉ-BISSAU 275 CONCLUSÃO 277 RECOMENDAÇÕES ESTRATÉGICAS 281 BIBLIOGRAFIA 283 ACRÓNIMOS 285 ANEXOS 309 309 311 334 345 351 357 362 366 367

QUADRO LEGAL DOS DIREITOS HUMANOS INTRODUÇÃO VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES TRÁFICO DE CRIANÇAS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES CONFORMAÇÃO E EFETIVAÇÃO DAS NORMAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS CONCLUSÃO RECOMENDAÇÕES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS


ORA DI DIRITU - É TEMPO DE DIREITOS -

é o desafio que a Associação para a Cooperação Entre os Povos, a Associação dos Amigos da Criança, a Liga Guineense dos Direitos Humanos e a Tiniguena - Esta Terra é Nossa! se propuseram levar a cabo no actual momento político da Guiné-Bissau. O projecto Pelos direitos das crianças, das mulheres e dos detidos: influência política, advocacia e sensibilização, financiado União Europeia e co-financiado pelo Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, procura contribuir para melhorar a situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau, através da co-responsabilização dos actores públicos e privados pelo seu respeito efectivo, num ambiente de mudança ao nível político e das formas democráticas de governação. Nesse sentido, procura influenciar o quadro legislativo e político para a promoção e protecção dos direitos humanos no país, apresentando propostas concretas de políticas, leis e planos de acção. Como ponto de partida, é importante conhecer de forma mais detalhada a situação real dos direitos humanos, nomeadamente dos direitos das crianças e das mulheres, na Guiné-Bissau para, a partir desse diagnóstico, identificar necessidades, discuti-las com outros; e depois elencar um conjunto de recomendações à sociedade civil, aos responsáveis políticos e a outros actores com relevância e responsabilidade para o cumprimento efectivo de todos os direitos humanos no país. Este quarto volume da colecção Desafios, da Casa dos Direitos, reúne assim três estudos que traçam o diagnóstico dos direitos das

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mulheres e das crianças na Guiné-Bissau, bem como uma resenha do enquadramento legal desses mesmos direitos, e que servem de ponto de partida para as restantes actividades do projecto. O primeiro estudo diagnóstico apresenta uma análise comparada dos direitos económicos das mulheres em diferentes regiões do país, atendendo às diferentes práticas, segundo a origem étnico e religiosa, o contexto de meio urbano ou rural e a própria situação social das mulheres. Por sua vez, o segundo diagnóstico, também sobre as mulheres, traça as causas culturais e sociais da violência contra as mulheres e os desafios que enfretam para efectivar o quadro jurífico actual. O terceiro diagnóstico é dedicado às crianças e às diferentes formas de tráfico infantil - interna e externamente ao país -, incluindo formas subtis, como são as diversas formas de trabalho infantil. Por fim, o último texto deste volume apresenta o endramento legal dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau, nos domínios anteriormente diagnosticados e também dos Direitos Humanos em geral, e procura encontrar respostas aos desafios ligados à efectivação e à concretização dos instrumentos relativos aos Direitos Humanos, incluindo as normas nacionais e internacionais. Bissau, Novembro de 2015


DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU Augusta Henriques, Ilsa Sá e Samantha Fernandes

AGRADECIMENTOS

Um agradecimento especial, fraterno e solidário a todas as mulheres guerreiras que encontrámos, que nos deram do seu tempo, partilharam suas experiências, suas vidas connosco. Essas bravas mulheres que não aceitam mais o lugar de “flor” decorativa onde muitos lhes querem acantonar, mas também não querem ser laboriosas e agressivas “abelhas”. Mulheres que lutam para alimentar, educar, dar saúde e futuro digno aos seus filhos e filhas, valendo-se dos talentos que têm, munindo-se da sua imensa coragem, quebrando preconceitos, reivindicando o direito a um lugar e uma voz na sociedade guineense, em dignidade, com serenidade, para que nenhuma porta lhes seja fechada, na economia e na política! Um obrigado também a todos aqueles que, de uma forma ou outra, facilitaram este trabalho disponibilizando-se a ajudar onde e para o que lhes solicitámos. E são muitos! Agradecemos particularmente às nossas mães e avós, com quem aprendemos

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o valor do trabalho enquanto principal meio de produzir riqueza. Elas nos ensinaram a acreditar que as mulheres têm capacidade e direitos ao produto do seu trabalho. Elas nos inspiram a lutar para erigir esses direitos na nossa sociedade e a não aceitar ser descriminadas. Porque o futuro da Guiné-Bissau só será de paz e de progresso quando se conseguir vencer a cultura “machista” onde a razão da força impera sobre a força da razão, quando não for tolhido à mulher guineense sua voz e seu lugar na economia e na política! Bissau, Junho de 2015 As autoras


UM CONVITE À REFLEXÃO SOBRE OS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU Que as mulheres são o pilar sobre o qual assenta a economia das famílias na Guiné-Bissau é algo que é do conhecimento de todos. O que a lei guineense diz sobre os seus direitos económicos e como vela pelo seu respeito? O que as mulheres pensam, o que sabem e como exercem os seus direitos sobre o fruto do seu trabalho? Que progressos e retrocessos têm feito na persecução destes direitos? Qual o futuro com que sonham para as suas filhas? O presente estudo pretende trazer ao público os muitos olhares e as muitas vozes de mulheres guineenses que trabalham, geram riqueza, sustentam suas famílias no interior do país e na capital, lançando um convite à reflexão e ação sobre políticas e práticas transformadoras favorecendo progressos efetivos na caminhada dos guineenses para uma sociedade onde as mulheres usufruem e gozam na plenitude dos seus direitos económicos. Este estudo, que realizámos em forma de diagnóstico participativo, inscreve-se no quadro do projeto “Ora di Diritus – Pelos Direitos das crianças, das mulheres e dos detidos: influência política, advocacia e sensibilização”, uma iniciativa conjunta da ONG portuguesa ACEP (Associação para a Cooperação entre os Povos) e as suas congéneres guineenses AMIC (Associação dos Amigos das Crianças), LGDH (Liga Guineense dos Direitos Humanos) e Tiniguena - Esta Terra é Nossa, levada a cabo sob a coordenação da Casa dos Direitos, graças ao financiamento da União Europeia

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através do Instrumento Europeu para a Democracia e os Direitos Humanos (IEDDH) e da Cooperação Portuguesa. No âmbito desse projeto foi prevista a realização paralela de 4 estudos/diagnósticos visando fornecer informações mais precisas sobre: 1) O tráfico de crianças e suas diversas formas; 2) As causas culturais e sociais da violência contra as mulheres e avaliação da aplicação das leis mais recentes de proteção; 3) Os direitos económicos das mulheres; 4) O quadro legislativo específico de promoção dos Direitos Humanos e sua aplicação no país. A Tiniguena ficou encarregue do terceiro estudo e para o efeito elaborou os Termos de Referência e afetou os recursos humanos que julgou pertinente. Para melhor “olhar” e “sentir” esta problemática, optou-se por constituir uma equipa de facilitadoras declinada no feminino, conjugando gerações, competências e experiências. Tal abordagem permitiu um cruzar de olhares podendo enriquecer as análises e as propostas a fazer no âmbito do presente trabalho. A equipa do estudo ficou sob a coordenação de uma sénior (Augusta Henriques) assistente social com quatro décadas de experiência em animação e desenvolvimento comunitário e integrando duas jovens com competências específicas na área jurídica (Samanta Fernandes) e social (Ilsa Sá), ambas trabalhando com vários grupos juvenis e todas as três empenhadas na emancipação das mulheres. Em função das necessidades constatadas e para facilitar informações e entrevistar grupos específicos, fez-se recurso pontual a técnicos e animadores do sexo masculino dominando as questões do género, da Tiniguena ou de organizações parceiras (DIVUTEC, COAJOQ) ativas nas zonas e temáticas do estudo. Para a redação do relatório, que foi partilhado entre as três consultoras, as histórias de vida, assim como os capítulos 1, 4,


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5 e 6 foram redigidos por Augusta Henriques, o capítulo 2, por Ilsa Sá e o 3 por Samantha Fernandes. As conclusões e recomendações constantes no capítulo 7 foram escritas pelas três. Atendendo o pouco tempo e orçamento limitado disponíveis, acordou-se em fazer o diagnóstico com base numa amostragem minimamente representativa da diversidade étnica e cultural, de regiões e de tipo de atividades onde as mulheres estão mais presentes ou lhes trazem grandes benefícios. Foram privilegiadas as iniciativas de pequena e média dimensão que contribuem mormente para a segurança alimentar das famílias e estão mais ligadas ao sector informal. A fim de capitalizar a experiência da organização encarregue do estudo, a Tiniguena, este incidiu sobre as suas principais zonas de intervenção no interior (Zona Verde e Zona II na Região de Quínara, ilha Formosa na Região de Bolama/Bijagós), para além de outras partes do país onde há tradição e/ou iniciativas pertinentes de reforço do empreendedorismo das mulheres, em particular no Leste (regiões de Gabu e Bafatá) e no Norte (região de Cacheu), assim como na capital, Bissau. Houve a preocupação de encontrar grupos organizados de mulheres, tais como associações e agrupamentos e grupos não organizados que realizam atividades económicas tanto em tabancas das mais pequenas, isoladas ou longínquas no mundo rural, tais como Tchurbrik, Bercolon, Djabadá Porto, Abú e Sonaco, assim como nas povoações de maior dimensão e dinâmica comercial como Contuboel, Nova Sintra e Calequisse, sem esquecer grandes cidades do interior entre as quais Buba, Gabu, Bafatá e Canchungo.


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Durante as missões ao terreno, a equipa teve encontros e visitou atividades de vários grupos e associações de mulheres, entrevistou responsáveis locais de organizações (ONG, OSC) intervindo nas zonas visitadas nas temáticas objeto do estudo, assim como personalidades da administração local. Visitou também e entrevistou bideiras nos lumos de Bantandjan, Cambadju e Canchungo e observou as dinâmicas comerciais nos mercados de Bambim, da Praça e do Porto-Canoa, em Bissau. Na capital, entrevistou ainda algumas empresárias com negócio em vários ramos, personalidades e pessoas recurso de instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais ligadas ao microcrédito. Nas entrevistas e djumbais realizados, seguiu de perto um guião preparado para o efeito, que foi adaptando às dinâmicas locais. Em todos os lugares onde esteve, a equipe recolheu pequenas “histórias de vida”, contadas na primeira pessoa e que ilustram e dão alma ao presente relatório. Em termos de metodologia, o diagnóstico assentou na leitura de documentos, sobretudo das áreas jurídica e económica, em djumbais, entrevistas semiestruturadas e observação direta. O estudo focalizou-se sobre as perceções e as práticas atuais, tentando compreender as mutações em curso, captar as tendências e perceber os novos paradigmas no que respeita aos direitos económicos das mulheres. Para tal, recolheu depoimentos e registou os pontos de vista de mulheres de vários grupos étnicos e socioculturais, das várias faixas etárias e incluiu também homens, com atenção particular a jovens. Com base na documentação consultada, nas observações feitas aquando das visitas ao terreno, nas entrevistas, encontros e djumbais realizados, foram feitas recomendações apontando para pistas


a explorar permitindo aproveitar novas oportunidades na economia, nomeadamente com base na inovação e nas expressões culturais, entre outras. Recomendações também para a melhoria das políticas e do quadro jurídico e institucional relativo aos direitos económicos das mulheres. A abordagem privilegiada, em particular nos encontros com (e entre) as mulheres foi a de partilha de experiências, onde as entrevistadas e as facilitadoras do diagnóstico, se assumiram como mulheres com percursos e experiências de vida a partilhar, com vivências relatando faces distintas de uma mesma realidade, dum mesmo país a melhor compreender para melhor transformar: a Guiné-Bissau.

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A MULHER É A FORÇA MOTORA DA ECONOMIA GUINEENSE! O QUE OS NÚMEROS MOSTRAM E O QUE ESCONDEM O 3º Censo Geral da População e Habitação realizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censo em 2009 dá conta que a Guiné-Bissau tinha, na data, uma população de 1.449.230 habitantes, entre os quais 746.404 mulheres, representando 51.5 % da população guineense1. Os dados publicados em 2015 pelo INEC estimam uma evolução, nesse ano, do efetivo da população da Guiné-Bissau para 1 530 673 habitantes, dos quais 780 554 são do sexo feminino, isto é, 50,9% da população total. Estima-se ainda que, em 2015, as mulheres representam 49,4 % da população guineense entre os 15 e os 49 anos de idade2. O país ocupa o 177º lugar no ranking de 186 países com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo, no valor de 0,396 em 20143. A pobreza extrema afeta 33% da população guineense, que vive com menos de 1 USD por dia, em 20104. As taxas de pobreza absoluta e pobreza relativa figuram entre os 48,9% e os 69,3% em 2014, apresentando maior incidência sobre jovens e mulheres5. Em 2010, segundo o Inquérito Ligeiro para Avaliação da Pobreza II (ILAP II), 76,9% das famílias guineenses eram chefiadas por homens, enquanto 23,1% eram dirigidas por mulheres. No entanto, os dados revelam que existe uma maior tendência para a concentração de mulheres chefes de família em Bissau, 31,2%, do que nas regiões, 19,6 %, onde a percentagem de homens chefes de família é consideravelmente elevada, 80,4%.

/ 1 INE 3º Recensea-

mento Geral da População e Habitação 2008.

/ 2 INE. http://www.

stat-guinebissau.com/. Consultado em 2406-2015.

/ 3 PNUD,2014. / 4 ILAP II, 2011. / 5 De acordo com o

Relatório de Desenvolvimento Humano de 2014, 48,9 %da população guineense vive com 1,25 dólares por dia e 69,3% vive abaixo do limiar da pobreza nacional, (PNUD, 2014).


Quadro 1: Representação dos Chefes de Família, segundo sexo, meio e residência em % em 2010.

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Residência Sexo do Chefe Outras do agregado Bissau Regiões Masculino

68,8

80,4

76,9

Feminino

31,2

19,6

23,1

52.914

123.716

176.629

52.914 123.716 Fonte: ILAP II, 2011.

176.629

Total Total

/ 6 ILAPII, 2011;

AFDB, OECD, UNDP, 2014.

Total

Embora os dados consultados não permitam associar as mulheres chefes de família a determinados tipos de atividade de ocupação económica, 51,9% da população feminina na Guiné-Bissau afirma desempenhar uma atividade, com ocupação distribuída pelos sectores público (25%), privado, para-privado sob agregado familiar e /ou serviço militar6. Grande parte da ocupação ativa concentra-se em atividades geradoras de bens e serviços, nomeadamente o sector agrícola, silvicultura, pesca – produção de bens alimentares, venda e comercialização de bens destes produtos e serviços, com maior incidência no sector informal. O Segundo Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza reconhece a contribuição e participação das mulheres na economia nacional - 55% da produção agrícola é efetuada por mulheres no que diz respeito à produção rural, sector informal, saúde, educação, responsabilidade para com


os trabalhos domésticos e sobretudo a nível da economia não monetária7. As mulheres são as principais agentes económicas do sector primário e secundário, também associadas aos sectores com menores níveis de produtividade. Este fator deve-se à falta de escolarização e fracos níveis de educação, elemento que define a desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres assente na conceção tradicional e cultural da divisão do trabalho e que tem influenciado negativamente o acesso das mulheres ao mercado de trabalho (formal e remunerado) e a rendimentos. Em 2014, a taxa de alfabetização da população guineense com mais de 15 anos era de 55,3%, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano8. Apesar da melhoria que se tem vindo a registar nos últimos tempos, a frequência média de escolaridade das raparigas continua a ser marcada pela disparidade em relação aos rapazes. De acordo com o mesmo documento, a frequência escolar das raparigas corresponde em média a 1,4 anos e a dos rapazes a 3,4 anos. A agricultura na Guiné-Bissau encontra-se alicerçada no esforço da mulher no desenvolvimento da produção agrícola e garantia da segurança alimentar das famílias. As principais atividades agrícolas são as seguintes: a produção de arroz, horticultura e a castanha de caju9 - cultura de rendimento cujo maior esforço laboral compete às mulheres (a apanha da castanha de caju). O sector é ainda caracterizado pelo fraco recurso à mecanização e tecnologia, o que se traduz na sobrecarga laboral das mulheres rurais.

/ 7 DENARPII, 2011.

/ 8 PNUD, 2014

/ 9 DENARP, 2011.

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Ocupação das mulheres por sectores de actividade económica na Guiné-Bissau, 2010

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/ fonte ILAP (2011)

/ 1O Barros,2009. / 11 Gomes, 2010; Barros 2009.

O sector informal desenvolveu-se a partir dos anos 80 com a liberalização económica introduzida pelos Programas de Ajustamento Estrutural (PAE). Com a entrada da Guiné-Bissau para o espaço da CEDEAO e adoção da moeda única da UEMOA, é considerado o segundo maior potencial empregador da economia guineense10. As atividades desempenhadas neste contexto apresentam as seguintes características11:

/ Crescimento acelerado da população urbana e das suas ne cessidades e fraca necessidade do mercado formal na supressão destas necessidades;


/ Estratégias de subsistência no âmbito da economia familiar tendo como principal objetivo o autoconsumo e a reciprocida de em contexto comunitário – proteção social e solidariedade; / Estratégias de sobrevivência, desenvolvimento de atividades com vista à geração de rendimentos / Estratégias de rendimento complementares a atividades eco nómicas paralelas com ofertas de baixos salários, visando a acumulação de riqueza.

O contexto de liberalização que impulsionou o aparecimento do sector informal permitiu o alargamento e a maior diversidade de agentes económicos, que passa a privilegiar a livre iniciativa e o empreendedorismo das camadas mais vulneráveis, mulheres e jovens12, com capacidade de identificação das oportunidades de negócio existentes no mercado devido à fraca capacidade de resposta do Estado guineense em matéria de criação de emprego aos seus cidadãos, tanto nas zonas rurais como urbanas. Neste quadro, a divisão sociocultural do trabalho entre homem e mulher também é visível no sector informal, onde as atividades desempenhadas pelas mulheres concentram-se na produção, transformação e comercialização de produtos alimentares (hortícolas e pescado, comida), criação de pequenos animais (galinhas, porcos, cabras), comercialização de produtos de beleza e roupa (a partir de casa). Os homens, por seu lado, para além de estarem implicados também nos trabalhos agrícolas (lavoura do arroz, cultivo de outros cereais, de frutícolas e hortas de caju…) ainda que cada vez menos que as mulheres, desempenham

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/ 12 Gomes, 2010.


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/ 13 Lopes, 2013.

/ 14 ILAP II, 2011.

/ 15 Lopes 2013: 113; DENARP II, 2011:11

funções e realizam tarefas nos setores das oficinas mecânicas, construção civil, concerto de eletrodomésticos, produção musical e transporte passageiros. As mulheres que se dedicam à comercialização de produtos hortícolas e alimentares são conhecidas igualmente por bideiras e desempenham as suas atividades tanto em meios urbanos como rurais nas feiras, mercados, lumos e butiques. Os produtos comercializados são produzidos pelas próprias – produtoras-vendedoras, tal como é o caso dos hortícolas, mas podem igualmente derivar da compra de bens a terceiros para revenda, tanto a nível interno, através de fornecedores nacionais, como a nível externo, deslocações aos países vizinhos, Senegal, Gâmbia e Guiné-Conacri e mesmo para países mais distantes (Cabo Verde, Portugal, Espanha, França…), revelando uma maior autonomia e capacidade económica. Deste modo, as mulheres estão comummente associadas a atividades de subsistência ligadas ao sector informal e/ou economia popular, que lhes permite garantir um determinado grau de estabilidade financeira, relativamente às despesas familiares, encargos com educação e saúde (dos filhos). O índice de incidência de pobreza tende a ser menor nas famílias lideradas por mulheres13. 56,1 % dos domicílios dirigidos por mulheres em 2010 apresentam um indicie de pobreza de 56,1 % , enquanto os domicílios chefiados pelos homens se situam nos 66, 1%14. Este facto deve-se ao esforço e à capacidade das mulheres de garantir aos seus agregados, particularmente aos filhos, o acesso à escolarização e alimentação, saúde e vestuário, ainda que as atividades económicas exercidas por elas apresentem menor rentabilidade, sendo este facto atribuído ao seu baixo nível de escolarização e alfabetização15.


No contexto da África Subsariana, da qual a Guiné-Bissau faz parte, menos de 1% das mulheres são detentoras/ proprietárias de terra, principal recurso para o exercício da sua atividade agrícola16 ainda que na Lei da Terra (no. 5 /98, artigo 2) se afirme que “a terra é propriedade do Estado e património comum de todo o povo”. As mulheres estão igualmente sujeitas a um acesso limitado a outros recursos, tais como água (potável) e recursos energéticos, o que aumenta a sua carga horária de trabalho não remunerado em 50%, por oposição aos homens. O acesso e posse de bens é um obstáculo maior à melhoria do desempenho económico das mulheres e, consequentemente, ao aumento dos seus rendimentos. Mas ainda assim, 91,7% das mulheres inquiridas17 afirma ter um rendimento satisfatório ou estar muito ou um tanto ou quanto satisfeita com o seu rendimento. Ainda que a análise da documentação à qual tivemos acesso no âmbito deste estudo não permita uma contabilização da contribuição real das mulheres para o PIB da Guiné-Bissau, elas são consideradas como promotoras de desenvolvimento e motoras da economia, dado o seu papel no sector agrícola e na economia não formal, associada a atividades de pequeno comércio, que estão na base do desenvolvimento económico da Guiné-Bissau. Porém, as mulheres continuam a figurar como um grupo particularmente vulnerável, quer no que diz respeito ao acesso aos meios de produção, quer ainda a nível do seu acesso a bens, serviços, educação, saúde, e formação tendo em conta os padrões de desigualdade de acesso a meios e recursos, o que apresenta um vasto impacto na sua performance enquanto agente económico.

23 / 16 OCDE, 2007.

/ 17 MICS 2014


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OS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU: O QUE DIZ A LEI? Em termos jurídicos, a Guiné-Bissau é um país onde a Lei consagra o princípio da igualdade entre o homem e a mulher, que é salvaguardado no artigo 25º da Constituição da República e consta de várias convenções internacionais das quais é signatária, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. No entanto, outras leis importantes, como o Código Civil, não mantêm sempre coerência com esses princípios. Por isso, muitas propostas de sua modificação foram feitas no concernente ao direito das mulheres. Estas propostas resultaram de um estudo feito pelo Centro de Estudos e Apoio às Reformas Legislativas da Faculdade de Direito de Bissau, com vista a promover reformas legislativas. Referimos, para ilustrar, o artigo 1674 do Código Civil em vigor, que atribui apenas ao homem o estatuto de chefe da família, quando as estatísticas demonstram, como referido no capítulo anterior, a tendência progressiva para as mulheres desempenharem esse papel, pelas responsabilidades crescentes que elas assumem na alimentação, educação, saúde e bem-estar dos filhos em particular e muitas vezes de toda a família, principalmente no meio urbano de Bissau. (Ver testemunhos de vida em anexo VI) Por isso se propõe alterar tal articulado para que tanto o homem como a mulher possam ser considerados chefes de família. O reconhecimento pela lei da emancipação da mulher, da qual muitas já usufruem na prática, passa obrigatoriamente pela consagração dos seus direitos


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económicos, pois as transformações sociais e económicas deram à mulher oportunidades de realizar atividades geradoras de rendimento, outrora da competência exclusiva dos homens. Mas resta ainda por conquistar, para muitas mulheres, sobretudo no mundo rural, o direito de decidir sobre a utilização dos resultados económicas dessas atividades. E o que são os direitos económicos? Em termos jurídicos, define-se como o ramo do direito que se compõe por normas jurídicas que regulam a produção, a posse e a circulação de produtos e serviços com vista ao desenvolvimento económico. O direito económico é um dos direitos fundamentais que compõem os direitos humanos e cria condições para que muitos direitos humanos se concretizem. É fundamental compreender que os direitos humanos estão interligados. Com efeito, os direitos económicos proporcionam mecanismos para que os direitos sociais se realizem, criam meios para o indivíduo usufruir dos direitos fundamentais. Para ilustrar, podemos citar o direito ao trabalho é um direito social que visa a dignidade humana. Para que se concretize, necessita das normas do direito económico. Ou seja, para que o trabalho contribua para a dignidade humana, é necessário que proporcione uma remuneração justa. O direito económico aqui apresentado é o direito a uma remuneração justa. Ela visa, pois, a concretização direito social que é o direito ao trabalho18. Para respeitar o princípio de igualdade consagrado pela Constituição da República, os direitos económicos das mulheres deveriam ser os mesmos que os dos homens e isso deveria estar espelhado em todas as normas relativas. Mas há lacunas e contradições no dispositivo jurídico nacional que impedem a mulher guineense de usufruir em pleno os seus direitos económicos, contra-

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/ 18 http://jose-

luizquadrosdemagalhaes.blogspot. com/2011/05/362-direitos-humanos-37-direitos.html


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riando convenções internacionais ratificadas pela Guiné-Bissau. Constata-se, muitas vezes, um conflito de interesses entre essas convenções e o Direito Consuetudinário que, segundo a Lei em vigor na Guiné-Bissau, também é uma fonte admitida de direito. Para além disso, a diversidade de usos e costumes característica do país, quando traduzida no enquadramento jurídico, resulta em diferentes cenários no que tange os direitos das mulheres e que condicionam fortemente a aplicação do direito positivo. É pois legítimo questionar a coerência e a aplicabilidade do dispositivo jurídico nacional no que respeita os direitos económicos das mulheres. Por exemplo, como se pode afirmar que as mulheres guineenses beneficiam dos seus direitos económicos, se na maioria das práticas das etnias que coabitam no território nacional, elas não têm direito à terra, à herança, nem aos benefícios do divórcio (como a partilha de bens entre o casal e dos direitos e responsabilidades na manutenção e educação dos filhos, indemnizações pela separação) entre outros? Pode-se afirmar, com propriedade, que as mulheres têm direitos económicos, ou terão simplesmente deveres económicos? Como é que o quadro jurídico internacional influencia o direito positivo e até que ponto o direito consuetudinário está em coerência e integra o direito positivo? Como é que são aplicadas na prática as disposições legais? Quais as principais contradições encontradas no quadro jurídico nacional? Essas e outras questões serão desenvolvidas neste capítulo 3, através da reflexão à volta de quatro aspetos fundamentais: 1) A mulher face ao direito de propriedade e gestão dos bens durante o casamento; 2) Que direitos usufruem as mulheres na separação e no divórcio; 3) O direito à herança, qual a parte que cabe à mulher? 4) O direito das mulheres ao crédito.


A) A MULHER FACE AO DIREITO DE PROPRIEDADE E GESTÃO DOS BENS DURANTE O CASAMENTO Entende-se por Direito de Propriedade o conjunto de leis que atribuem a uma pessoa física ou moral todas as prerrogativas possíveis sobre um determinado bem. Na Constituição da República da Guiné-Bissau19, no seu artigo nº 12 alínea b) encontra-se estipulado que o Estado reconhece o direito à propriedade privada, sem no entanto determinar o sexo do beneficiário do direito, o que vem a ser completado pela mesma Constituição, no seu capítulo intitulado “Direitos, Liberdades, Garantias e Deveres Fundamentais”, artigo 24º, que reza que todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de raça, sexo, nível social, intelectual ou cultural, crença religiosa ou convicção filosófica. Estas disposições da Constituição excluem qualquer tipo de discriminação baseado no sexo, atribuindo à mulher todos os direitos que são reconhecidos aos homens, inclusive o da propriedade. Deste modo, se partirmos do princípio que todas as disposições legais devem conformar-se com a Constituição, como a «lei mãe» de um Estado soberano, parece ser contraditório o Código Civil ainda dispor de vários elementos restritivos dos direitos das mulheres, nomeadamente, quando refere por um lado no artigo 1677 º que durante a vida comum do casal, o governo doméstico pertence à mulher conforme os usos e condições dos conjugues e que é obrigação de ambos contribuir para as despesas domésticas correspondentes à condição económica e social da família, mas logo a seguir, no seu artigo

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/ 19 Constituição da República de 1996.


30 / 2O Por força do artigo

25 da CRGB, passariam ambos a ser chefes de família, segundo a proposta da consultoria feita pela FDB

/ 21 Artigo nº 1678º nº 2

1678 º nº 1 estipula que os bens do casal, incluindo os da própria mulher e os bens dotais pertencem ao marido como chefe da família20, salvo alguns casos específicos em que a Administração dos bens pertence à mulher.21 Fala-se de restrição dos direitos pelo Código Civil pois, mesmo quando este diz no seu artigo 1676 º que a mulher não necessita do consentimento do marido para exercer profissões liberais ou funções públicas, mas no entanto, apesar de ser garantida esta liberdade, ela é limitada logo em seguida quando é admitido ao marido denunciar o contrato celebrado pela mulher, caso ele não tenha dado o seu consentimento, sem que por esse facto possa ser imputado uma indemnização. Quando falamos no Direito de propriedade, constitui elemento fundamental,


o Direito ao acesso à Terra. A Lei da Terra vigente na Guiné-Bissau estipula no seu artigo nº 2 que a terra é propriedade do Estado e património comum de todo o povo. Ela pode se atribuída por uso privativo, por concessão ou por uso consuetudinário22. Ora, parece ser contraditório quando se atribui ao direito consuetudinário a gestão e distribuições da terra, quando é do conhecimento geral, e segundo os estudos aos quais tivemos acesso, que na maioria das etnias existentes no país, as mulheres não têm direito à propriedade da terra. Se não vejamos: No casamento celebrado conforme os rituais balantas e fulas, no que diz respeito à propriedade dos bens, a casa de morada da família assim como os terrenos de cultivo pertencem ao marido, podendo a mulher ser proprietária só da sua cama, de bens domésticos e de pequenos animais de criação.23 Os objetos utilizados na feitura e no consumo da comida são propriedades da mulher. Nos casamentos segundo os rituais mancanhas, as mulheres só podem ter os terrenos que ficam longe das tabancas se estes lhe forem concedidos pelo marido ou por outro familiar próximo (pai, tio, irmão). Já os usos manjacos atribuem à mulher o direito à propriedade dos bens domésticos e a possibilidade de serem proprietárias das casas de habitação quando esta for construída com os capitais próprios, e também admitem a possibilidade da mulher ser proprietária dos terrenos de cultivo quando o herdam do marido ou de um familiar. Os papéis por seu lado têm vindo adaptar os seus costumes às dinâmicas sociais, admitindo que a mulher seja dona da casa de habitação e, em certas situações, podem mesmo ser proprietárias da casa de família. Elas podem

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/ 22 Definido como a

utilização da terra de acordo com as regras, costumes e práticas tradicionais constantes de uma determinada comunidade local, que definem poderes e deveres recíprocos e disciplinam a sua gestão.

/ 23 Mesmo o gado bovino, só lhe é permitido quando se divorcia e regressa a casa dos pais.


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/ 24 As bolanhas per-

tencem exclusivamente ao marido.

/ 25 Segundo a Lei da

Terra, a terra é propriedade do Estado e pode ser conferido o direito de uso privativo mediante uso consuetudinário ou concessão. Quando é conferida por concessão, existe a possibilidade dela ser transmitida a terceiros a titulo oneroso, mas quando se trata da transmissão dos direitos do uso privativo da terra sujeita ao regime de uso consuetudinário, ela deve ser gratuita para os residentes na comunidade local ou vizinhas e é transmissível também por sucessão hereditária. Mas no entanto, a Lei da Terra também oferece a possibilidade de converter os direitos de uso, passando do regime de uso consuetudinário para o regime de concessão, sendo neste caso obrigatório todas as exigências administrativas estipuladas pela lei.

igualmente ser proprietárias de mobiliário, utensílios de cozinha e outros bens domésticos, assim como do gado bovino e outros animais de criação como porcos e galinhas, mas não podem ser donas das bembas. No casamento celebrado de acordo com as cerimónias rituais papel, a casa de morada da família e os terrenos de cultivo, com exceção da bolanha24, podem pertencer tanto ao marido como à mulher. Quanto à capacidade jurídica, na maioria das etnias a mulher pode celebrar negócios e conservar o dinheiro ganho com essa atividade, tendo no entanto por obrigação informar o marido sobre o destino do dinheiro. No entanto a mulher não pode vender terrenos de cultivo25, o que contraria o artigo 67º do Código Civil, que não diferencia o sexo quando estipula que “as pessoas podem ser sujeitos de quaisquer relações jurídicas, salvo disposição legal contrário”. Quando os costumes, que são consideradas fontes imediatas do direito por serem normas corporativas26, contrariam o direito positivo, estamos face ao designado na linguagem jurídica: “Costume contra legem”. Posto isto, a questão que se coloca é até que ponto são admissíveis práticas consuetudinárias que contrariem a lei? Costume contra legem: Os costumes também constituem uma fonte do direito, na medida em que desempenham três funções: a de inspirar o legislador a normalizar condutas (fonte da norma a ser legislada), a de preencher as lacunas da lei (fonte suplementar da lei) e a de servir de parâmetro para a interpretação da lei (fonte de interpretação).


Muito se tem discutido sobre os limites do costume contra legem no ordenamento jurídico guineense, uma vez que ele transmite a vontade do povo em rejeitar ou derrogar uma norma legislada. Neste sentido, considera-se o costume contra legem a correspondência da sociedade com a norma legislada com o objetivo de torná-la eficaz e legítima27. No entanto, tal como referido no nº 3 do artigo 1º do Código Civil, “as normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo”. O Código Civil também admite o valor jurídico dos usos, uma vez que o seu artigo 3º nº 1 estipula que os usos que não forem contrários aos princípios de boa-fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. Isso leva-nos a acreditar que os usos e costumes podem ser fontes quando é admitido ao tribunal resolver os litígios conforme a equidade28. Neste sentido, é importante sublinhar que segundo o artigo nº 4 do Código Civil, os tribunais só podem resolver segundo a equidade quando haja disposição legal que o permita, quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível ou quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis. Assim, reconhece-se a força do costume contra legem, quando este pretende mudar uma lei absolutamente contrária á vontade do povo, desde que este não contrarie os princípios básicos da Constituição e desempenhe as suas funções acima referidas29. Sintetizando, o costume contra legem pode sim influenciar a revogação da lei, assente na jurisprudência, mas enquanto essa influência não se formaliza, o que prevalece, categoricamente, são os preceitos do direito positivo vigente, exceto nos casos acima referidos. Pode-se então concluir que, tanto no direito consuetudinário, como no

/ 26 Definida pelo artigo nº 1 do código civil relativa as fontes do direito, nº 2 como o conjunto de regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicos e profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respetivos estatutos e regulamentos internos. / 27 A lei revoga-se

no todo ou em parte, de forma expressa ou tácita por lei posterior e por força obrigatória do costume ou desuso geral confirmado pela jurisprudência assente.

/ 28 O poder de decisão que vai para além da lei, delegando ao juiz a responsabilidade de agir em justiça para colmatar as lacunas existentes na lei concernente á matéria em causa.

/ 29 Inspirar o legislador, preencher lacunas da lei e interpretar a lei.

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Código Civil, a gestão dos bens do casal pertencem ao marido como chefe de família, uma vez que, mesmo para exercer o comércio, as mulheres precisam do consentimento do marido, salvo quando são elas as administradoras dos bens do casal. Esta regra não vai ao encontro do artigo 25 º da Constituição e das normas internacionais relativas aos direitos económicos e sociais das mulheres.

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B) QUE DIREITOS USUFRUEM AS MULHERES NA SEPARAÇÃO E NO DIVÓRCIO?

/ 3O Enumerados na lei 6/76 de 3 de Maio de 1976.

Antes de analisar os direitos usufruídos pela mulher em caso de separação e divórcio, convém estabelecer a distinção entre estes dois termos. A separação traduz a desunião judicial de pessoas e bens que segundo o artigo 1774º do Código Civil, não dissolve os vínculos conjugais, mas os conjugues separados não estão sujeitos aos deveres de coabitação e assistência. Relativamente aos bens, a separação produz os efeitos normais de uma dissolução do casamento (divórcio). Já o divórcio é definido como a separação judicial dos bens e o rompimento legal e definitivo dos vínculos de um casamento civil, de acordo com os regimes pré-estabelecidos. Pode ser o resultado de um mútuo consentimento como também pode ser litigioso. Neste caso é requerido por vários fundamentos30 que só podem justificar a sua efetivação quando se provar que comprometem seriamente a possibilidade de vida em comum, ou a formação dos filhos, ou ainda o valor social do casamento. Em ambos os casos têm direitos a alimentos: o cônjuge não culpado, se a separação ou divórcio tiver sido decretado por culpa exclusiva de um deles; os


cônjuges não considerados principais culpados, quando haja culpa de ambos e a qualquer um dos cônjuges se forem ambos culpados ou haja separação por mútuo consentimento31. Por outro lado, em caso de contração de um novo casamento ou se a parte beneficiante se tornar indigna do benefício pelo seu comportamento moral, os direitos acima referidos serão cessados32. Para regularizar tais incidentes existem uma série de disposições legais que merecem uma análise que facilite a compreensão dos direitos económicos das mulheres em caso de separação ou divórcio. Na Guiné-Bissau existem três formas de contrair um casamento: o casamento religioso (regido pelas leis da Igreja Católica), o casamento civil (regulamentada pelo direito positivo) e o casamento tradicional (obedecendo ao direito consuetudinário). Neste estudo, daremos ênfase ao casamento civil e ao celebrado segundo os usos e costumes, como forma de analisar as contradições que acarretam. É importante ter em consideração que, assim como no direito à propriedade e gestão dos bens durante o casamento, prevalecem as limitações impostas pelo costume contra legem. Assim sendo, vejamos a priori, o que prevê o nosso Código Civil, no livro IV, relativo ao Direito da Família e, por outro lado, como acontece com os praticantes dos usos e costumes. Quais sãos os direitos garantidos à mulher pelo direito positivo assim como pelo direito consuetudinário? a) O que regulamenta o direito positivo? Para começar, vamos percorrer a Constituição da República da Guiné-Bissau, no seu artigo nº 26 nº 1 relativo aos Direitos, Liberdades, Garantias e Deveres fundamentais, que estipula que o Estado reconhece a constituição da

35 / 31 Artigo 2016º CC.

/ 32 Artigo 2019º CC.


36

/ 33 Artigo 1600 do

CC- Legislação complementar.

/ 34 Artigo 1671º do CC.

Família e garante a sua proteção, tendo sido completado pelo nº 3, que reza o seguinte: “os conjugues têm direitos iguais e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos”. Para melhor compreender, vejamos o que nos diz o Código Civil em vigor na Guiné-Bissau. Mas antes de o analisar, é importante salientar que reza o artigo 14 º do Código Civil, que os dispostos nos artigos 1671º ao 1697º são somente aplicáveis aos casamentos celebrados até ao dia 31 de Maio de 1967, mas em caso algum serão anulados os atos praticados pelos cônjuges na vigência da lei antiga. E quanto ao regime dos bens, preceituados nos artigos 1717º a 1752, indicam que só é aplicável aos casamentos celebrados até ao dia 31 de Maio de 1967, na medida em que for considerado como interpretativo do direito vigente. No que tange o casamento civil, têm capacidade de o contrair todos aqueles que não tenham nenhum impedimento matrimonial previsto na lei33. Durante a vida conjugal, as partes estão reciprocamente vinculados pelos deveres de fidelidade, coabitação e assistência.34 No que diz respeito ao dever de assistência é obrigação dos cônjuges não só o socorro e auxílio mútuos, como também a contribuição para as despesas domésticas e em caso de separação. Só aquele a quem não for culpabilizado pela separação pode exigir da outra parte o cumprimento do dever de assistência. Mas se a lei reconhece o homem como sendo o chefe da família, com o poder de gerir os bens do casal, e obriga a mulher a obter o consentimento do marido para todos os contratos que venha a contrair, (podendo até denunciar se achar conveniente) como pode esta lei não proteger as mulheres categoricamente no momento do divórcio? Ou seja, no momento da gestão dos bens


a mulher encontra-se em situação de inferioridade e submissão ao poder do homem como chefe de família, mas em caso de separação, já prevalece o princípio de igualdade, uma vez que o dever de assistência é imputado tanto ao homem como à mulher. Antes do casamento, os esposos podem fixar livremente35 em convenção antenupcial, o regime dos bens do casamento36, sem se esquecer que esta convenção só é válida se for celebrada por uma escritura pública. Na ausência de convenção antenupcial, ou em caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção, o casamento considera-se celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos37, dos quais os bens próprios de cada um dos cônjuges não fazem parte, e em caso de separação é feita a divisão dos bens adquiridos, conservando cada parte os seus bens próprios. Podem fazer parte dos bens alvos de comunhão o produto do trabalho dos cônjuges assim como os bens adquiridos pelos cônjuges durante o casamento. A lei admite aos esposos optar para o regime de comunhão geral para o caso de dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges, quando haja descendentes comuns, seja qual for o regime anteriormente adotado38. Se o regime de bens adotado pelos cônjuges for o da comunhão geral39, o património será constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges que não sejam excetuados por lei40. Sendo o regime de bens imposto por lei ou adotado pelos esposados, o da separação41, cada um deles conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente. No entanto, caso haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em copropriedade a ambos os cônjuges. No caso

37

/ 35 Esta liberdade

contêm várias restrições, entre as quais: não pode constar na convenção a regulamentação da sucessão hereditária; a alteração dos direitos ou deveres quer paternais, quer conjugais; a atribuição da administração dos bens do casal à mulher

/ 36 Artigo 1698º CC / 37 Artigo 1717º CC

/ 38 Artigo 1719º CC / 39 Artigo 1732 CC / 4O Enumerados no artigo 1733º do CC

/ 41 Artigo 1735 CC


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/ 42 Artigo 1736º CC

de um dos cônjuges entrar na administração e fruição dos bens do outro sem mandato escrito, fica obrigado à restituição dos frutos percebidos, a não ser que prove que os frutos foram aplicados na satisfação dos encargos familiares ou no interesse do proprietário do bem42. No entanto, a lei não dispõe de elementos que regulem a possibilidade da mulher ter contribuído para o aumento do bem privado do homem. E por outro lado, devia o legislador ter em conta que, apesar de ter admitido à mulher recorrer ao tribunal caso o marido não entregue os rendimentos proporcionais para o sustento da família durante a vida em comum, também atribuiu o dever das tarefas domésticas às mulheres (limitando assim as suas possibilidades de obter bens por conta própria). E sem bens próprios as mulheres ficam desprotegidas aquando do divórcio, quando o regime de casamento é o da «separação» ou de «adquiridos». E caso não tenham tido descendentes comuns, porque é que a lei limita o direito de uma convenção antenupcial que preveja um regime de comunhão geral, se assim constitui a vontade de ambos? Até então, referimo-nos aos matrimónios civis, tendo analisado algumas lacunas existentes na lei que desfavorecem as mulheres. Não obstante, nesta matéria, o direito consuetudinário não constitui uma exceção, pois em caso de separação e divórcio, encontramos situações que deixam as mulheres em extrema pobreza e dependentes dos ex-maridos ou da família destes ou ainda da sua própria família (pai, irmãos). b) E o que diz o direito consuetudinário? Nos casamentos celebrados segundo os rituais balantas, as mulheres jamais podem alegar adultério para obter a separação, já nos fulas elas podem invo-


car que estão a ser enganadas pelo marido e essa alegação pode ter relevância para obtenção do divórcio43. Quando existe divórcio ou separação por iniciativa do marido este não fica em princípio obrigado a sustentar a ex-mulher, cabendo-lhe apenas apoiar a mulher economicamente para as despesas com os filhos até estes atingirem a maioridade. Em caso de desentendimento sobre a tutela destes, é a vontade do homem que prevalece. Nas etnias balantas, fulas, mandingas e mancanhas, o pedido do divórcio pode vir de ambas as partes. O homem pode invocar vários motivos, tais como o adultério, maus tratos e desobediência. A mulher pode solicitar a separação ou o divórcio num casamento ritual mandinga mesmo que o marido não o queira. Depois de divorciada, se regressar à casa do pai, a mulher poderá construir e ser proprietária da sua casa, de habitações e demais bens. Nos costumes balantas e fulas não é permitido à mulher ficar solteira. Mesmo em caso de morte do marido, ela sofre pressão para que seja «herdada» por um familiar do marido (irmão ou primo), quando o mesmo não sucede ao homem. Entre os balantas e os fulas, uma mulher adulta solteira, depois que passa a idade de casar (adolescência, juventude) é mal vista, o que as obriga a permanecerem casadas apesar de todas as desvantagens que possam ter com tal situação. Já a mulher mancanha, quando enviúva, casa normalmente com o irmão do falecido marido, embora seja livre de não o fazer. No entanto, caso não o fizer, deve abandonar a casa de família e casar-se com outra pessoa, se quiser. A mulher pode solicitar a separação num casamento do ritual mancanha sem mesmo que o marido esteja de acordo, mas já o divórcio, em hipótese alguma é aceite. Sabe-se também que, em caso de separação do casal, a mulher pode

39 / 43 FDB, Direito

Consuetudinário Vigente na República da Guiné-Bissau


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pedir ao chefe da tabanca a propriedade dos bens a que entenda ter direito. Quanto à separação e ao divórcio nos casamentos celebrados segundo os rituais mandingas, o divórcio é aceite e a separação pode ocorrer por iniciativa da mulher, mesmo que o marido não esteja de acordo. No entanto, no que concerne aos direitos provenientes da separação, a mulher só tem direito a uma lembrança do marido, que pode ser em dinheiro ou espécie (roupa, joias, mobiliário, gado…). Quando há separação ou divórcio por iniciativa do marido, este só é obrigado a sustentar a ex-mulher e ajudá-la nas despesas com a alimentação até um máximo de sete meses. Persistindo a separação, os filhos ficam com o pai. No que concerne ao divórcio ou à separação dos casamentos celebrados segundo os rituais manjacos, a mulher pode exigir a propriedade dos bens a que entenda ter direito não prevalecendo normalmente a vontade do marido nesta matéria. As versões dos acontecimentos que levaram à separação, apresentadas pelo homem e pela mulher têm o mesmo valor. Quando existe separação por iniciativa do marido, este não fica obrigado a sustentar a ex-mulher ou a ajudá-la nas suas despesas. Porém, o elemento do casal que fica com os filhos recebe apoio económico para as despesas com os filhos por parte do outro. Mas o facto é que, em caso de separação, os filhos ficam com o pai. Não é possível o divórcio entre um homem e uma mulher casados nos rituais papéis e o casamento jurídico do Estado não é reconhecido. Porém, é possível a separação e neste caso a mulher pode exigir guardar a propriedade dos seus bens. Mas o marido não fica obrigado a sustentá-la nem a ajudá-la nas suas despesas mesmo quando a iniciativa da separação é dele. Em síntese, em caso de separação e divórcio, nas etnias nas quais se


basearam os estudos aos quais tivemos acesso (balantas, fulas, mancanhas, manjacos, mandingas e papéis), a mulher encontra-se em posição de desvantagem, em primeiro lugar porque os motivos nos quais pode se apoiar para pedir o divórcio são limitados, apesar de poder fazê-lo livremente. Em seguida porque o marido não é responsabilizado pela subsistência da mulher mesmo quando o divórcio é da sua iniciativa. A única possibilidade que fica à mulher de tirar algum benefício material do divórcio é através dos filhos. No entanto, em quase todas as etnias, a tutela deste é dada ao pai… Esta situação de falta de proteção da mulher na separação e no divórcio tradicionais é agravada pelo facto de, nas regras dos usos e costumes que regem a vida da grande maioria das mulheres guineenses, não lhe são reconhecidos direitos de propriedade de terras e de bens de grande importância. Elas ficam assim desamparadas aquando de uma separação ou divórcio, uma vez que durante o casamento toda a gestão dos bens pertence ao marido.

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C) O DIREITO À HERANÇA, QUAL A PARTE QUE CABE À MULHER?

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/ 44 Justificam a desi-

gualdade na repartição entre homens e mulheres pelo facto dos filhos serem continuadores da família do pai, enquanto as filhas vão fazer parte de outras famílias e no caso de separação com os seus maridos, sempre voltam para a casa dos irmãos.

/ 45 Artigo 2139º CC. / 46 FDB, Direito

Consuetudinário Vigente na República da Guiné-Bissau

A sucessão é definida pelo artigo 2024º do Código Civil como o chamamento de uma ou mais pessoas a titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a este pertenciam e pode ser deferida por lei, testamento ou contrato. Os sucessores são chamados herdeiros legatários. O artigo 25º da Constituição, não estabelece nenhuma diferença relacionada com o género, como referido anteriormente. No entanto, os usos e costumes não se regem pelos mesmos princípios de igualdade. Nos usos e costumes balantas as mulheres só podem herdar bens de pequena importância e em caso de morte do marido. A mulher não tem direito aos bens que pertenciam ao marido, com exceção dos de uso doméstico. Na etnia fula, as mulheres podem receber bens deixados pelo falecido mas não herdam em igualdade com os homens. Aquando da partilha, os filhos do sexo masculino ficam com 3/4 dos bens e as filhas ficam com o quarto restante, podendo escolher os bens de forma igualitária44. Esta prática dos usos e costumes fulas fere o artigo 25º da Constituição que garante a igualdade entre os sexos. Ainda, no Código Civil em vigor está previsto45 que a partilha entre os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quanto forem os herdeiros. Em caso de morte do marido, a mulher pode ficar com os bens que pertenciam ao falecido e pode normalmente recorrer à autoridade tradicional competente se entender que ficou prejudicada na herança. Para a etnia mancanha46, os filhos são os primeiros sucessores de um falecido, só podendo a mulher ser herdeira, quando não existirem filhos. Os bens são repartidos entre os filhos em pé de igualdade, sendo a mulher


administradora destes enquanto os filhos são menores. Caso o falecido não tenha filhos, a comunidade aceita que a mulher herde os seus bens, podendo continuar a viver na casa de morada de família com o irmão do falecido. É importante sublinhar que neste caso quem herda os bens é a mulher, o irmão do falecido apenas tem por obrigação de gerir os bens de forma racional. Relativamente ao direito à herança das mulheres mandingas é admissível que elas herdem em caso da morte do pai, porém as filhas nunca podem receber mais do que a metade dos bens recebidos pelos filhos. Em caso de morte do marido a mulher não pode ficar com os bens que lhe pertenciam, podendo, no entanto, recorrer à autoridade tradicional competente se ela entender que ficou prejudicada numa questão relacionada com o seu direito à herança. As sucessões das mulheres manjacas resumem-se à herança dos bens de uso pessoal de familiares do sexo feminino, isto é, as mulheres herdam os pertences pessoais de suas mães, nomeadamente os recheios da casa (mobiliário, utensílio de cozinha), roupa, joias e adornos. Em caso de morte do marido, a mulher não fica com os bens que lhe pertenciam, devendo resolver os problemas de herança no âmbito da família. No caso da etnia papel, as mulheres não podem normalmente herdar bens em caso de morte de uma outra pessoa, mesmo o marido, salvo quando seja beneficiária de um testemunho oral, e ainda assim, nunca poderá ser herdeira de bolanhas. Em caso de morte do marido, a mulher só pode ficar com os objetos que são usados em casa. Em caso da morte da mulher, se ela for solteira, os seus bens passam para o pai, mas se for casada, os bens passam para o marido, incluindo todo o gado, a criação de animais domésticos e os materiais usados em casa.

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D) O DIREITO DAS MULHERES AO CRÉDITO

44 / 47 Noção que traduz

a participação ativa das mulheres na vida política, económica e social, cujos princípios são estipulados no documento «Princípios de empoderamento das mulheres, igualdade significa negócios», uma iniciativa conjunta do UNIFEM e do Pacto Global das Nações Unidas

/ 48 VIEIRA, Rosa, 2012, As Condicionantes do Acesso ao Crédito por parte das Mulheres Empreendedoras Rurais e Urbanas em Moçambique, Para além do Microcrédito.

Atualmente, a importância do crédito como instrumento crucial para o empoderamento47 da mulher, tem merecido muita atenção nos debates sobre igualdade de género a nível nacional, regional e global. As principais referências foram feitas na terceira e quarta Conferência Mundial sobre a Mulher que tiveram lugar em Nairobi em 1985 e Beijing em 1995, tendo sido destacado no objetivo estratégico «a necessidade de providenciar o acesso da mulher aos mecanismos e instituições de poupanças e crédito».48 Por outro lado, apresenta recomendações de ações concretas destinadas a governos, bancos comerciais, instituições financeiros especializadas, sector privado e organizações de mulheres. Na Guiné-Bissau, o direito de acesso ao crédito encontra-se regularizado seja pela lei 4/2008 de 21 de Março relativa à regulamentação bancária, seja pela lei 9/2008 de 26 de Agosto relativa aos sistemas financeiros descentralizados, que constituem uma das instituições financeiras não bancárias mais vocacionadas para a microfinanças. Por outro lado, pelo facto de a Guiné-Bissau fazer parte da União Económica e Monetária Oeste Africana (UEMOA), o dispositivo normativo do sector bancário deste país está subordinado e é uma imanação das normas e regulamentos do BCEAO, enquanto banco central desta comunidade económica. Por isso, a generalidade das leis bancárias em vigor neste país, inclusive aquelas a que nos referimos no presente capítulo, estão enquadradas e limitadas pelos tratados e convenções que os países membros da UEMOA são signatários e obedecem às diretivas do BCEAO.


a) Créditos concedidos por instituições bancárias Os documentos relativos ao crédito bancário49 definem o crédito como a disponibilização de dinheiro por parte de uma instituição bancária para um cliente onde este assume o compromisso de devolver integralmente o valor, aumentado de juros fixados, dentro de um prazo combinado. Relativamente ao direito das mulheres ao crédito na Guiné-Bissau, percorrendo a lei 4/2008 relativa à regulamentação bancária, não se encontra nenhuma disposição que restrinja o direito ao crédito das mulheres. No artigo 2º da mesma lei, são enumeradas as operações bancárias, nomeadamente: a receção de fundos do público, as operações de crédito, assim como a gestão de meios de pagamento e a sua colocação à disposição da clientela. Ainda, o artigo 6º, nº 2 é claro, quando estipula que constitui operação de crédito, o ato pelo qual uma pessoa assume para o seu interesse, um crédito por assinatura, tal como o aval, a fiança ou a garantia. Nestes artigos, assim como na integralidade da lei, em momento algum foi citado a limitação baseada no género, o que leva a concluir que não existem restrições legais. Foram entrevistados dois juristas do Banco da União (BDU) no âmbito do presente estudo, as informações prestadas sobre as condições de acesso ao crédito, sintetizam-se nos 4 critérios seguidos na avaliação de um pedido de crédito: 1º) A capacidade de gestão do requerente e a sua experiência na área que pretende investir os recursos; 2º) A viabilidade do projeto que é apresentado pelo requerente; 3º) A fiabilidade da informação financeira; 4º) A contribuição com capital em bens ou dinheiro que garanta o empenho do requerente em tornar o negócio bem-sucedido. Por último, afirmam que, uma vez reunidos todos estes requisitos, as mulheres “são olhadas com mais simpatia”,

45 / 49 VIEIRA, Rosa,

2012, As Condicionantes do Acesso ao Crédito por parte das Mulheres Empreendedoras Rurais e Urbanas em Moçambique, Para além do Microcrédito


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/ 5O Segundo os agentes bancários entrevistados, esta garantia exigida pode ser comprovada entre outros documentos, pelo contrato de trabalho e uma declaração da entidade patronal garantindo o salário do requerente até à data prevista para o pagamento da última prestação do empréstimo requerido.

/ 51 Retirado judicialmente.

por serem mais cumpridoras das suas obrigações em relação aos homens. No entanto, analisando melhor, é com base nestes critérios que as mulheres são desfavorecidas, pois ficou evidente que para contrair um crédito é necessário ter um nível académico adequado (para se poder lidar convenientemente com os processos administrativos e burocráticos dos bancos), assim como ter uma garantia bancária, em forma de bens ou dinheiro regular (neste caso é mais frequente falar-se de salário fixo)50. São condições que a grande maioria das mulheres guineenses não reúnem pois elas são penalizadas pela lei em vigor na Guiné-Bissau, se tomarmos em conta o que referimos anteriormente relativamente ao direito à propriedade e aos regimes do casamento. Esta afirmação é suportada pela conclusão de que as mulheres têm menos capacidade de reunir todos os requisitos solicitados porque, por um lado, elas representam uma certa inferioridade quanto ao nível académico relativamente aos homens, sobretudo nas zonas rurais, e por outro lado, elas não possuem bens e mesmo que possuam, em caso de casamento em regime de comunhão de bens adquiridos ou total, elas precisam do consentimento dos seus parceiros para oferecer bens comuns como garantia. Tais constatações fundamentam-se na Lei, uma vez que o artigo nº 1686 do Código Civil reza o seguinte: “1. A mulher não pode exercer o comércio sem o consentimento do marido, salvo se for administradora de todo o património do casal ou vigorar o regime da separação de bens. 2. O consentimento para comerciar não depende de qualquer formalidade. 3. Se, porém, a mulher pretender, por causa do seu trato, praticar ato que exija o consentimento do marido, deve este ser dado, ou judicialmente suprido51, nos termos do artigo 1684º.”


Isto significa que, sendo o crédito bancário uma atividade comercial, também pode abranger os bens em comum do casal, pelo que a mulher casada necessita do consentimento para tal do marido, uma exigência que contraria o muito citado artigo nº 25 da Constituição sobre a igualdade de género. E mais, nos termos do artigo 1676º, “1. a mulher não necessita do consentimento do marido para exercer profissões liberais ou funções públicas, nem para publicar ou fazer representar as suas obras ou dispor da propriedade intelectual. 2. O exercício de outras atividades lucrativas, mediante contrato com terceiro, não depende igualmente do consentimento do marido; mas é lícito ao marido, se não tiver dado o seu consentimento e este não tiver sido judicialmente suprido, ou não vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens, denunciar a todo o tempo o contrato, sem que por esse facto possa ser compelido qualquer dos cônjuges a uma indemnização”. Através das disposições acima citadas e pelos elementos analisados anteriormente, podemos concluir que na lei bancária não consta nenhuma restrição ao direito de acesso ao crédito pelas mulheres, mas é o Código Civil que limita a mulher, ao situar o homem como chefe da família, obrigando a mulher a pedir o seu consentimento para quase tudo apesar de ser garantido a sua “liberdade contratual”. E é a sociedade no seu todo, que restringe as oportunidades das mulheres acederem ao crédito, ao dar-lhes menores oportunidades de educação e formação, sobrecarregando-as com tarefas domésticas e tabus. O estado civil influencia a possibilidade de obtenção de créditos, assim como a escolaridade, pois quanto maior é o nível de escolaridade do cidadão, maior é o conhecimento dos produtos e serviços oferecidos pelos bancos e a

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capacidade de recorrer a eles. Este facto causa muitas vezes constrangimentos às mulheres quando precisam enfrentar burocracias administrativas dos bancos e lidar com a linguagem bancária, que é de difícil compreensão para quem não está familiarizado com a literacia financeira. Por outro lado, as mulheres solteiras, mesmo que escolarizadas, nem sempre possuem bens suficientes para o montante de crédito de que necessitam, sobretudo no meio rural, onde os usos e costumes não lhes dão muitos direitos nas questões da propriedade. Não obstante, as possibilidades de crédito não se limitam ao recurso às instituições bancárias, também existe como alternativa os créditos concedidos pelas instituições financeiras não bancárias.

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/ 52 “O sector financeiro e as Instituições do sector privado na Guiné-Bissau: descrição, constrangimentos e políticas a adoptar” Bubacar Baldé-2013. / 53 Lei 9/2008 de

26 de Agosto http:/// www.microcredito.com. pt/o_que_e_um_microcredito.asp

/ 54 Kofi Annan,

secretary of the United Nations, message to the Microcredit Summit http://www.un.org/ esa/africa/microfinance_model.pdf

b) Créditos concedidos pelas instituições não bancárias52: O microcrédito é definido como a disponibilização de um “pequeno montante, destinado a pessoas que não têm acesso ao crédito mas pretendem desenvolver uma atividade económica por conta própria.”53 Em reconhecimento do microcrédito como uma estratégia para o combate à pobreza, as Nações Unidas declararam o ano 2005 como o ano internacional do microcrédito. Na altura, o Secretário-geral das Nações Unidas considerou o microcrédito como «um instrumento anti-pobreza crucial, particularmente para as mulheres»54. Tendo em conta as consultas efetuadas junto das instituições de micro finanças, estas surgiram nos anos 90, uma altura em que o sistema bancário da União Económica e Monetária da África Ocidental (UEMOA) conheceu crise e houve necessidade de desenvolver um sistema financeiro alternativo ao sistema clássico dos bancos para financiar atividades geradoras de rendimen-


to, feitas pela grande maioria da população que nem tinha acesso aos bancos, devido às condições mais rígidas exigidas para a obtenção de crédito. A prática utilizada nos sistemas financeiros descentralizados é baseada na confiança e solidariedade do grupo. Diz-se que este sistema beneficiava mais as mulheres porque elas honram mais com os seus compromissos e têm a confiança como a base do negócio. Com o aumento da procura estes grupos evoluíram e hoje são instituições vocacionadas que formam um sistema, no qual impera mais rigor quanto aos serviços que oferece. São regidas por uma lei55 específica e concedem microcréditos para que os beneficiários56 realizem as suas atividades. Na Guiné-Bissau, o estudo sobre “Associativismos e o Microcrédito na luta contra a Pobreza e pela Promoção do Bem-Estar Rural” realizado em 1999 pela ACEP, AD, TINIGUENA, SOLMI, AMRU, envolvendo a Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, foi pioneiro na matéria. Projetou luz sobre visões, metodologias e experiências mais pertinentes levadas a cabo por ONGs e associações que se dedicam à microfinança, recolheu ensinamentos e indicou pistas de trabalho que viriam a marcar a intervenção futura neste domínio nos países objetos do estudo. Outras organizações, como a SNV, viriam a desenvolver experiências interessantes e a influenciar políticas no domínio da poupança e crédito, apoiando a emergência e o desenvolvimento de uma rede de Caixas de Poupança e Crédito associadas a várias ONGs e associações legalizadas. No entanto, não foi possível fazer aprovar uma lei específica regulamentando o funcionamento das Caixas de Poupança e Crédito, que lhes permitisse ter condições de se autonomizarem das organizações associadas, nomea-

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/ 55 Lei 9/2008 de 26

de Agosto que regulamenta o Sistema Financeiro Descentralizado.

/ 56 Podem ser membros ou clientela.


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/ 57 “O sector finan-

ceiro e as Instituições do sector privado na Guiné-Bissau: descrição, constrangimentos e políticas a adotar” Bubacar Baldé-2013

damente: ter personalidade jurídica, para poderem abrir conta bancária e estabelecer conexões com o sistema bancário permitindo aos associados obter junto destes créditos mais avultados. Do seu lado, novos bancos, como o BRS, que viriam a instalar-se no país na sequência da entrada da Guiné-Bissau na UEMOA, tentaram aproveitar do empreendedorismo de muitas mulheres com negócio envolvendo algum volume de transação financeira, para captar as suas economias e lhes conceder créditos mais importantes que os obtidos através das ONGs e associações do microcrédito. O Western Union também jogou e joga um papel importante, facilitando transferência rápida e segura dentro do próprio território nacional e do exterior para o país, canalizando poupanças internas (principalmente das bideras) e externas (sobretudo de emigrantes) para apoio às atividades económicas das famílias, das mulheres em particular. O Programa de Apoio à Reforma de Mutualistas de Poupanças e Créditos (PARMEC) viria a contribuir para a o melhor ordenamento e institucionalização do quadro de funcionamento das instituições nacionais vocacionadas para a microfinanças. No quadro do PARMEC foi autorizado e regulamentado o funcionamento das Instituições de Micro Finanças (IMF) sejam elas legalizadas ou não.57 As IMF foram agrupadas em 4 grupos: 1) Os sistemas financeiros descentralizados; 2) As Caixas de Poupança e Crédito autogeridas; 3) As ONGs como promotoras do microcrédito; 4) As associações promotoras do desenvolvimento comunitário. Os Sistemas Financeiros Descentralizados (SFD) são grupos legalizados, alguns com agências ou postos de serviço, funcionando nas diferentes regiões ou localidades do país. A lei 9/2008 de 26 de Agosto, que aprova a regula-


mentação dos sistemas financeiros descentralizados, define o mesmo no seu artigo 1º, como sendo a instituição58 cujo objeto social principal é oferecer serviços financeiros às pessoas que geralmente não têm acesso às operações efetuadas pelos bancos e pelos estabelecimentos financeiros, tal como definidos pela lei relativa à regulamentação bancária. Até 2013, confirma-se o funcionamento efetivo de cinco SFD com agências em Bissau e nas regiões (DIVUTEC, NIMBA, ADIM, ADI e BAMBARAM). As Caixas de Poupança e Crédito Autogeridas (CPCA) são IMF não legalizadas que se encontram localizados maioritariamente nas cidades do interior, mas atualmente estão fechadas devido a problemas de gestão dos créditos ou de governação das próprias Caixas, problemas esses que começaram com a retirada dos seus principais promotores, geralmente ONGs nacionais e estrangeiras. A maioria das CPCA não conseguiram sobreviver depois de deixarem de ter o acompanhamento técnico que lhes era dado pelas organizações promotoras. ONGs com componentes de microcrédito: não aplicam taxas de juros de forma direta ou indireta, mas apoiam os agrupamentos ou associações de bens solidários para a prática do crédito solidário. É o caso, por exemplo, da KAFO, AD e Tiniguena, que apoiam associações de base para reforçar ou diversificar as suas atividades geradoras de rendimento dentro dos objetivos sociais de luta contra a pobreza, sobretudo nas zonas rurais e suburbanas, praticando o micro crédito, mas de forma indireta. Associações promotoras do Desenvolvimento Comunitário: organizam grupos de solidariedade por abotas cuja finalidade é distribuir dinheiro (ou algum produto relevante, como o arroz) entre os membros do grupo,

51 / 58 A legislação

aplicável às cooperativas não se aplica aos sistemas financeiros descentralizados (artigo 3º da Lei 9/2008 de 26 de Agosto)


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/ 59 Lopes, 2013.

de forma rotativa, mas não aplicam taxas de juros aos créditos concedidos. Estas associações estão ligadas a atividades produtivas e criação de infraestruturas económicas e sociais em zonas rurais e urbanas, com o objetivo de congregar vontades e esforços para promover o desenvolvimento local. Por vezes servem de base de apoio para a captação ou mobilização de apoios externos, nomeadamente de parceiros não-governamentais e organizações de cooperação internacional. A abota pode ainda ser feita para satisfazer certas necessidades socioculturais como casamento, choro e é utilizada tradicionalmente pelas mulheres ainda que muitos homens já adiram a esta forma de poupança e crédito. Assim como para o sistema bancário, as IMF não fazem menção nenhuma ao género nas condições de acesso, mas contrariamente aos bancos, são as mulheres as suas maiores beneficiárias. Analisando bem as suas características, podemos observar efetivamente que estas IMF, no seu funcionamento, contrariamente ao sistema bancário, não ferem os direitos económicos das mulheres, muito pelo contrário, privilegiam-nas. Vários estudos confirmam que as mulheres são as maiores beneficiárias dos microcréditos por serem pessoas de confiança e cumpridoras dos acordos estabelecidos.59 Na realidade, estas instituições facilitam o acesso das mulheres ao financiamento pois: 1º) não exigem nenhuma garantia para a concessão do crédito; 2º) aplicam taxas de juros reduzidas; 3º) não requerem consentimento dos parceiros; 4º) estão mais próximas das comunidades; 5º) são acompanhadas por serviços sociais, até mesmo de sensibilização à comunidade; 6º) são acessíveis a todas as mulheres independentemente do seu estado civil ou regime de casamento, ou ainda do nível de escolaridade.


Mas mesmo assim as mulheres na Guiné-Bissau encontram-se em desvantagem, tendo em conta que os valores reduzidos concedidos pelas IMF, que são bem inferiores aos concedidos pelos bancos. E também porque muitas IMF acabam por desaparecer devido à má gestão. Esta situação tem levado muitos autores a defender que sendo as instituições de microfinanças as entidades melhores posicionadas para conceder créditos às mulheres, sobretudo na zona rural, elas precisam de estabelecer ligações duráveis com o sector bancário que lhes permitirá introduzir novos instrumentos de micro finanças para melhorar a eficácia da sua gestão. Se assim for, poderemos voltar de novo aos já referidos constrangimentos bancários que penalizam as mulheres no acesso ao crédito.

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SAPU TA KUME SI LABUR? O QUE AS MULHERES SABEM E COMO EXERCEM OS SEUS DIREITOS ECONÓMICOS Até aqui falámos do que dizem os documentos sobre o papel das mulheres na economia nacional e das famílias, os direitos que lhes são consagrados na Lei em vigor na Guiné-Bissau, nas suas vertentes de direito positivo e consuetudinário, integrando este último o que dizem os usos e costumes dos principais grupos étnicos presentes nas zonas objeto do estudo e a nível nacional. A partir de agora, relataremos o que as mulheres nos disseram sobre os seus direitos económicos, o que sabem e como exercem aquilo a que chamamos direitos económicos. Ninguém melhor do que elas próprias para nos explicar como entendem, como vivem, como gozam ou não destes direitos. Iremos pois contar aquilo que ouvimos delas (e dos que com elas trabalham), por ocasião das visitas ao terreno realizadas em 5 regiões do interior do país (Quínara, Bafatá, Gabú, Cacheu, Bolama/Bijagós) e também na cidade de Bissau, dos djumbais e entrevistas que com elas fizemos, das conversas, partilhas de vivências e sonhos. Ilustraremos as constatações e análises aqui feitas com extratos de 20 pequenas histórias de vida que recolhemos, tentando guardar fidelidade às suas opiniões e expressões. Nestas histórias, resumimos as respostas que deram a estas questões que lhes colocámos, seguindo de perto o guião das entrevistas e djumbais: O que é riqueza para elas? Como é criada, qual o papel do homem e da mulher na sua geração e na providência do bem-estar para os


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filhos e a família? Quais as atividades económicas que realizam e quais as suas prioridades de investimento dos rendimentos que delas obtêm? Quais os impactos dos microcréditos que receberam (nas famílias, comunidades e nas suas próprias vidas)? Como a riqueza é transmitida, como se faz a herança, que direitos tem a mulher sobre a riqueza que produz, os bens que gera? A qual dos seus filhos elas deixarão os seus bens, aos do sexo masculino ou do sexo feminino? Que mudanças tem constatado entre a geração das suas mães, a delas e de suas filhas? Que sonhos têm para as filhas?

A) SOBRE A RIQUEZA À questão colocada sobre o que é a riqueza, tivemos respostas bem distintas, variando em função da idade, da base sociocultural, confessional e económica, da vivência em meio rural ou urbano e ainda da maior ou menor presença do referencial étnico e/ou religioso no quotidiano das entrevistadas. Veremos, nos testemunhos que seguem, diferentes conceções de riqueza. Iniciamos com a visão apresentada pela Cantucha, mulher-grande bijagó que viveu toda a sua vida em Formosa, sua ilha natal, cumpriu todos os rituais próprios da tradição bijagó, uma cultura animista, ainda fortemente ligada à Natureza, com características gerontocrática e matrilinear: “Para nós os bijagós, há a riqueza que Deus criou e deu aos homens e às mulheres. Há a riqueza que os homens e as mulheres produzem com o calor do seu trabalho. Deus deu ao homem bijagó o mato e deu à mulher o mar. São as nossas maiores riquezas, onde tiramos o nosso sustento e o que precisamos


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para as nossas cerimónias. O homem é que toma conta do mato. A mulher do mar. As 3 principais riquezas que nós os bijagós criamos com o nosso trabalho são: o lugar do arroz, o lugar do feijão e da mancarra-bijagó e a casa da família. Agora tudo mudou. A riqueza maior para o bijagó de hoje é o caju.” Cantucha, Cabongha da ilha Formosa, líder da AMPC Urok. Nas antípodas se encontram as comunidades islamizadas, onde o valor do dinheiro está mais presente e enraizado nos costumes. Para ilustrar, passamos os testemunhos retirados das histórias de vida das mulheres da Associação APALCOF, na maioria da etnia fula e também das Mulheres Associadas da Zona Verde, com preponderância da etnia beafada, mais recentemente islamizada. “Entre nós os fulas, as principais riquezas são: 1º) A vaca, porque te dá crias; 2º) As filhas, por causa do dote que o pai recebe pelo seu casamento; 3º) A horta, por causa das hortaliças que ali produzes e podes vender; 4º) A casa, onde moras.” Associadas da APALCOF, Contuboel, Região de Bafatá. “Antigamente, o arroz era a maior riqueza para os beafadas. Agora, é a castanha do caju. A segunda riqueza para algumas é a horta de hortaliça e para outras é a cola-amarga, com a qual fazemos o siti-malgos, que levamos a vender. A terceira é, para algumas, o limão, com o qual fazemos o vinagre de limão que vendemos também, para outras é o mango, o sal, ou outros produtos que vendemos ou comemos. Mas há ainda a criação de animais, como cabra ou galinha, que são importantes para as nossas mistidas.” Mulheres de Bercolon, membros da associação, “Mulheres Associadas da Zona Verde”, Região de Quínara.


Nos testemunhos que apresentamos de seguida, vemos que a conceção da riqueza nos tempos recuados era similar entre os animistas, estando muito associada a meios de produção e bens importantes para a alimentação (bolanha) e para a cultura (animais para cerimónia). Mas esta realidade está em franca mudança com a presença do caju enquanto produto de renda a impor-se em todas as regiões visitadas e em todas as etnias e confissões religiosas. A questão da emigração, que é uma tradição entre os manjacos, também interfere na conceção da riqueza. A escola igualmente aparece como sendo associada à riqueza e ao investimento (facto constatado mais fortemente nos meios urbanos), onde se considera que mandar os filhos para a escola vai-lhes permitir no futuro vir a ter um bom emprego, fonte regular de rendimento através do salário. “Entre nós os balantas, a maior riqueza é a bolanha, depois os animais de criação. O homem é que tem a bolanha e pode comprá-la, a mulher não.” Mas tudo isto está a mudar agora. O homem já não produz arroz como dantes, ou porque há falta de bolanha disponível, ou por amontondade”. Augusta Cumbá, da tabanca de Bessassema de Baixo, vendedeira de mampufa no Porto Canoa, em Bissau. “Antigamente, para os manjacos, as três principais riquezas eram a bolanha, a casa e a criação animal. Mas a horta do caju é considerada agora como sendo a maior riqueza, seguida das remessas e dos investimentos dos emigrantes (casa, loja, hotel…).” Florença, líder da tabanca de Calequisse, fundadora da associação de mulheres Getenemi (Unidas e Solidárias).

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“Maior riqueza para os mancanhas, antigamente, eram os filhos e a lavoura, assim como a criação de animais (vaca, porcos, cabra, galinha). Mas agora, é poder investir na formação dos filhos, ter casa e horta de caju.” Joia, membro da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon” (Ajuda Mútua contra a Fome), granja do Pessubé, em Bissau.

B) PAPEL DO HOMEM E DA MULHER NA CRIAÇÃO E GESTÃO DA RIQUEZA E NO BEM-ESTAR DA FAMÍLIA Apesar de parecerem mais “modernos” do ponto de vista da visão da riqueza, que se integra perfeitamente na economia do mercado, os grupos étnicos de base islâmica que entrevistámos (fulas, mandingas e beafadas) pareceram-nos


ser aqueles onde a divisão do trabalho entre o homem e a mulher penaliza mais fortemente a mulher, o que é documentado por dois extratos das histórias de vida que apresentamos de seguida. E o que nos pareceu ser inquietante é que alguns jovens que com quem conversámos revelaram estar de acordo com este desequilíbrio que acham normal perpetuar-se. Por outro lado e, curiosamente, segundo nos disseram, foram os mandingas que “converteram os beafadas”, o que poderá explicar, talvez, o caráter ainda mais fechado destes últimos, no que respeita aos direitos económicos da mulher. “Desde os tempos remotos, até os nossos dias e no futuro assim o continuará a ser, a mulher mandinga é trator! Sai de casa de madrugada e entra à noitinha. A mulher mandinga que se preze é produtora, é ela que faz tudo na bolanha e no lugar e traz ao marido em casa. O orgulho deste quando algum membro da família o vem visitar, é mostrar a grande quantidade de arroz, de milho, de mancarra e outros produtos agricultados que ela lavrou e trouxe para o sustento da família. O seu parente lhe dirá: estás de parabéns, tu tens uma mulher que vale a pena!” “Entre os futa-fulas é parecido. A mulher é para trabalhar em casa, lavrar o quintal e a bolanha. Mas o terreno é do homem, o trabalho é que é dela. Porém, tudo o que ela precisa, é o homem que lhe deve dar. O homem futa-fula faz tudo pela sua mulher!” Sibite Sonko, Amadú Embaló e Braima Dafé, em Sonaco, Região de Gabú. “Entre nós os beafadas, quem tem a terra é a mulher, porque é ela que a trabalha: limpa o terreno, faz o kopoti, semeia, rega, faz a colheita, debulha o arroz. Os homens só põem o fogo ao mato e cortam os grandes troncos para

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deixar o terreno para nós fazermos a lavoura. Quem é dono da terra são os homens, mas quem é dona do trabalho da terra somos nós as mulheres! Ter a terra é uma coisa, trabalhá-la é outra. O homem é que tem a bemba. Mas quem a gere é normalmente a mulher. Porém, é o homem que entrega as chaves da bemba a alguém da sua confiança, geralmente a sua dona-casa” Mulheres de Bercolon, associação “Mulheres Associadas da Zona Verde”, Quínara. No entanto, é nestas comunidades islamizadas que observámos maior espírito crítico, capacidade organizativa e combativa das mulheres para a conquista dos seus direitos económicos, mais notoriamente entre os fulas. De forma discreta e subtil, mas com perseverança, elas vão marcando progressos no


lugar que ocupam na família e na comunidade, aproveitando das mudanças que vão se operando no seu contexto para reinventar os seus papéis, cada vez mais de chefes de família, pelo menos do ponto de vista económico. Os três testemunhos que seguem suportam esta observação. “Muitos homens dizem que mulher fula é para ser tratada como flor, como afirmam estar no Alcorão, para se guardar dentro de casa, para não apanhar “vento”. Mas hoje, nós já saímos para a varanda e estamos a olhar para a rua! Porque somos nós que vamos buscar fora para trazer para dentro de casa e graças ao esforço do nosso trabalho como bideras, sustentamos nossas famílias, enquanto os homens ficam à espera do fim do mês que chega sempre com vários meses de atraso, quando chega.” Bandje Baldé, Presidente da Associação de Luta Contra a Pobreza (ALCOPO), Gabú. “Eu e o meu marido somos mandingas. Tive 5 partos, mas apenas à última tentativa tive a filha que procurava. Por causa disso sempre pus os meus rapazes a fazerem todo o tipo de tarefas domésticas, para me ajudarem. Os colegas dos meus filhos, quando os viam de vassoura na mão, gozavam com eles e lhes chamavam de “Maria”. Um dia vigiei os tais colegas até os surpreender a troçarem dos meus filhos. Vesti o fundinho do meu marido e saí à rua como um lutador mandinga e gritei alto para todos me ouvirem: desafio qualquer um de vós a voltar a chamar meus filhos de “Maria”. Hoje é que levam a sova das vossas vidas, que não levaram das vossas mães. E se elas não ficarem contentes que venham ter comigo, que eu lhe ensino como educar um filho!

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Depois desse dia, nunca mais chamaram “Maria” aos meus rapazes!” Awa Sy, professora primária em Gabú e membro da ALCOPO, Gabú. “A APALCOF foi a primeira associação de mulheres da Guiné-Bissau, fundada há 24 anos, no quadro do trabalho do DEPA. O objetivo era levar as mulheres a fazerem horticultura, uma atividade exclusivamente feminina. As mulheres desta zona trabalhavam muito nas bolanhas de arroz, que, entre os fulas e mandingas, pertencem tradicionalmente aos homens e por isso elas trabalhavam para os maridos. Com o desenvolvimento da horticultura, elas puderam ter algo que era seu, fazer o que queriam com o fruto do seu trabalho, emancipar-se.” Hadja Djenabo Baldé, Presidente da APALCOF, Contuboel. Nos grupos animistas ainda persiste um certo equilíbrio na divisão social do trabalho entre o homem e a mulher, mesmo que essa situação tenda a alterar-se rapidamente. O equilíbrio é mais acentuado entre os bijagós, talvez porque a tradição animista é ainda mais arreigada nessas comunidades devido ao isolamento próprio das ilhas. No entanto, é neste grupo sociocultural onde as mudanças que ocorrem são mais aceleradas e profundas ameaçando os próprios fundamentos da cultura, como veremos adiante. “Para os manjacos, quem era dono da bolanha (e da horta) era o homem, que partilhava os trabalhos com a sua mulher e os seus filhos. O homem era e é o dono da casa, assim como do curral das vacas, mas os porcos e as galinhas eram das mulheres que, até hoje, são quem os criam e vendem”. Florença, fundadora da associação de mulheres Getenemi, Calequisse.


“Entre nós os balantas, todo o trabalho da bolanha é do homem. A mulher só ajuda a levar o arroz para casa e é ela que o pila. Também é ela que o vende, mas dá o dinheiro ao homem que o lavrou. A mulher pode comprar e ter uma horta dela. Pode adquirir e criar pequenos animais como porco, cabra, galinha, mas a vaca é o homem que tem. Se ela vende os seus animais, o dinheiro é dela. A casa é também do homem.” Augusta Cumbá, da tabanca de Bessassema de Baixo, vendedeira no Porto Canoa, Bissau. “As 3 principais riquezas que nós os bijagós criamos com o nosso trabalho são estas: 1ª Riqueza: o lugar de arroz, que fazemos entre as palmeiras. Aqui, o homem tem o trabalho de pabi. A mulher semeia. Partilha a monda com as crianças que fazem a vigia contra os pássaros. O kebur é feito por todos, assim como a debulha. A mulher é que tem feki o arroz antes das crianças o transportarem para casa. Mas quem tem a chave da bemba onde ele é guardado é a mulher. É ela também que guarda a sementeira. Quando o homem precisar do arroz para as suas cerimónias, pede à mulher. 2ª Riqueza: o lugar de feijão e de mancarra-bijagó, que se faz normalmente no quintal. O homem é que o lavra e faz a cerca com ramos de palmeira para o proteger dos animais. A mulher é que o descasca e faz o tratamento natural contra os bichos, antes de o guardar na bemba. Ela é que tem a sua chave e é ela que guarda a sementeira. Mas quem tem as cerimónias que se fazem com o feijão e a mancarra-bijagó é o homem. 3ª Riqueza: a casa da família. O homem e a mulher se unem para a construir. A mulher é que traz a água do poço, amassa a lama com a areia e palha e dá ao homem que vai levantando as paredes. O homem faz o madeiramento da cobertura com paus que corta do mato, enquanto a mulher

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corta e traz a palha das lalas, que tece com ajuda das crianças. É o homem que termina a cobertura com esta palha, que amarra com cordas que faz a partir de ramos de palmeira.” Cantucha, líder da AMPC Urok, ilha Formosa. Na cidade, em Bissau particularmente, constatámos uma sobrecarga acrescida da mulher na realização de todo o tipo de trabalhos para o sustento dos filhos e da família, assumindo ela, de facto e cada vez mais, a função de chefe de família. Podem ser horticultoras, costureiras, cabeleireiras, trabalhadoras domésticas, funcionárias públicas, empresárias, bideiras que vendem toda a espécie de produtos (peixe, carne de porco, legumes, fruta, frutos silvestres, comida, roupa, artigos de beleza, lenha, carvão…). Curiosamente, a atividade de bidera é exclusiva das mulheres e mais frequente nos meios urbanos, onde o agregado familiar está mais destruturado e a mulher se vê obrigada a “inventar” o que fazer para que o “fogão” da família não se apague. Elas fazem bida, por vezes porque não têm marido (por falecimento, por separação ou por serem mães solteiras), por vezes porque os maridos ficaram desempregados, ou porque emigraram, ou porque o que ganham não é suficiente ou ainda quando eles não assumem a família, guardando para suas mistidas o pouco que recebem. Fazem-no ainda sendo solteiras e sem filhos, mas, na ausência das mãe, para se ocuparem de irmãos mais novos, ou então irmãos mais velhos, mas rapazes, que não se empenham em encontrar como trazer dinheiro para casa para o seu próprio sustento. “Eu me casei cedo e tive 3 filhos. O meu marido emigrou para Portugal. Nos primeiros tempos foi-me mandando dinheiro que dava para as despesas da


casa e com as crianças. Mas veio a crise e a empresa onde trabalhava faliu. Desde então, deixou de me mandar dinheiro com regularidade, só de vez em quando, quando pode. Por isso tive que interromper o curso para fazer bida de vendedeira de porcos, para poder sustentar os meus filhos e lhes pagar a escola, enquanto o meu marido procurava uma situação melhor”. Nené de Oliveira Barbosa, vendedeira de porcos no “Porto Canoa” em Bissau. “Nasci de mãe balanta e pai fula. Somos oito irmãos. O meu pai foi para Portugal doente onde acabaria por falecer. A minha mãe também emigrou para Portugal onde trabalha como empregada doméstica. Graças a este trabalho pode sustentar-nos, enviando-nos algum dinheiro, todos os meses. Também conseguiu construir uma casa aqui em Bissau, no Bairro Militar, onde moramos hoje. Sou-lhe profundamente reconhecida por isso, pois não sei o que seria de mim e dos meus irmãos sem essa casa, porque não teríamos dinheiro para pagar renda. Aquilo que minha mãe nos manda é pouco. Por isso decidi procurar trabalho como empregada doméstica, para ajudar em casa.” Aissatu Canté, empregada doméstica em Bissau. “Trabalhei longos anos como funcionária pública. Por vezes convidava alguns colegas a irem comer caldo de chabéu em minha casa, aos fins-de-semana. Dois deles eram fãs da minha cozinha e me persuadiram a abrir um restaurante. Até hoje lhes estou grata pois graças a este negócio pude criar os meus filhos, visto que já estava separada do pai que viria a falecer mais tarde. Com o salário de funcionária pública, eu não teria podido”. D. Fernanda, empresária, proprietária do restaurante D. Fernanda, em Bissau.

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C) ATIVIDADES ECONÓMICAS E RENDIMENTOS GERADOS PELA MULHER: QUAIS AS PRIORIDADES DE SUA UTILIZAÇÃO E QUEM DECIDE? Nos encontros que tivemos, pudemos constatar que há praticamente consenso no que se refere à primeira prioridade das mulheres para a utilização dos seus rendimentos: os filhos. Constatámos, igualmente, que a escola é quase que unanimemente, a primeira prioridade para estas mulheres! Escola para os filhos, no caso das mais velhas, para os filhos e para si, para as mais novas, sobretudo as que vivem nas cidades. Percebemos que, com exceção dos casos de família monogâmica ou de desemprego dos maridos, elas consideram que o arroz é da obrigação dos maridos trazerem para casa. Um saco de arroz por mês, pelo menos isso os companheiros devem fazer força para contribuir para a casa. A mulher poderá ajudar com o mafé, para comerem melhor. E tudo o resto de que a família precisar. Mas muitas vezes a contribuição dos maridos é irregular, devido a compromissos que têm com outras mulheres, as que (man)têm na “casa dois e três”… Outra constatação que nos admirou foi a importância atribuída ao vestuário, mesmo nas partes mais recônditas visitadas, vestuário para os filhos e para si própria. O que leva a concluir que a questão da imagem é, para elas, muito importante. Pode-se ser pobre, mas não se deve apresentar-se como miserável. Por uma questão de dignidade, de autoestima, provavelmente. E faz sentido, pois a coragem que estas mulheres testemunham só é possível com forte sentido de dignidade e autoestima.


“Na aplicação do dinheiro, a primeira prioridade para nós as mulheres vai para a escola, depois para roupa, para a saúde e para a alimentação. O Homem, o seu dinheiro ganha-o só no fim do mês e não lhe chega. Compra arroz que traz para casa e por vezes, dá dinheiro para o mafé. Mas no mundo atual, se o teu marido põe um tostão, tu pões outro, para poderem comer bem em casa. Porque o homem, quando tem, distribui para casa um, dois e três, mas a mulher, todo o seu dinheiro vai para a família. As crianças nunca vão chorar diante do seu pai! Tudo o que precisam, vão dizer à mãe e é por isso que nos matamos a trabalhar, por causa dos nossos filhos. Por isso, se temos algum dinheiro, somos nós que decidimos como utilizá-lo!” Associadas da Associação das Mulheres de Ponta Nobu, Região de Bafatá. “Eu gasto mais da metade dos meus rendimentos com os estudos dos meus filhos, a minha primeira prioridade. Depois é para a alimentação da família.” Bandje Baldé, Presidente da ALCOPO, Gabu. “Se eu ganhar dinheiro, quais as minhas prioridades? Primeiro, pagar a minha própria escola. Segundo, dar educação aos meus filhos. Terceiro, ajudar a minha família.” 4 Raparigas do Liceu Ho Chi Min em Canchungo. A preocupação da sustentabilidade dos seus negócios está patente em algumas histórias de vida cujos extratos apresentamos de seguida. Esta preocupação é mais explícita nas jovens e nas mulheres com alguma escolaridade, vivendo nos meios urbanos. No mundo rural e entre as mulheres analfabetas

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ou com escolaridade fraca, compreendemos que as estratégias de geração de renda para o negócio progredir são mais baseadas na informalidade, no sentido da oportunidade e na diversidade das atividades a realizar. Elas contam mais com a sua capacidade imaginativa, adaptativa e de “debruiagem” como capital de renovação da sua atividade económica. “Sali diz estar satisfeita com o seu negócio, pois rende-lhe diariamente por volta de 12.000 FCFA. Ela guarda a metade e utiliza o resto para comprar mais produtos e para ajudar na feira. É ela que sustenta a sua família, visto que é a única que trabalha. Sali diz que tem uma pequena poupança que pensa investir para ajudar a irmã mais nova a tirar um curso superior, uma vez que já terminou o Liceu. Mas ela gostaria de vir um dia a construir uma pequena casa para si.” Sali Mané, Vendedeira de Mesa em Bissau. “O meu namorado atual ofereceu-me cinquenta mil CFA para eu montar um pequeno negócio. Quero ir comprar roupa, sapatos e bijuterias à Gâmbia ou ao Senegal e vir revender aqui em Bissau, como vejo muitas fazerem.” Aissatu Canté, empregada doméstica em Bissau. Algumas mulheres, as empresárias em particular, são mais audazes. Falam de escala, de ampliação, diversificação e expansão do seu negócio, assumindo riscos previamente calculados e controlados. “No negócio, é bom ter escala. Enquanto as minhas colegas falavam e pensavam em grandes lucros, eu pensava em pequenos investimentos. Trabalhava


com 150 mulheres bideras de peixe que abasteciam mercados em Bissau e nas regiões! Comecei a dar o pescado a crédito, para encorajar aquelas que não tinham dinheiro suficiente para comprar grandes quantidades a pronto pagamento. E… circunstâncias me levaram à castanha do caju. Em 2010, juntamente com alguns amigos e conhecidos, criámos uma cooperativa com 90 associados, a CPCPAN. Eu exportava a castanha para a Índia. Os meus intermediários eram os membros da cooperativa, todos comerciantes que iam buscar a castanha junto dos produtores e vinham trazer para os armazéns. Mas continuo com o negócio do peixe! Desde 1995 que faço parte da AMUPEIXE da qual sou a Presidente. Por causa desta associação que entrei para a AMAE, da qual fui a Secretária Executiva até recentemente.” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE.

D) IMPACTOS DO MICROCRÉDITO E DO EMPREENDEDORISMO: O QUE MUDOU NAS SUAS VIDAS, DAS SUAS FAMÍLIAS E COMUNIDADES? Na generalidade dos encontros e djumbais que tivemos, as mulheres mostraram-se orgulhosas da sua combatividade, do seu empreendedorismo, graças ao qual sustentam seus filhos e familiares. Poucas revelaram ter consciência das mudanças que contribuíram para provocar nas suas famílias e comunidades, talvez por modéstia ou por pudor. Talvez também porque teriam preferido que fossem os maridos a se baterem pelo seu bem-estar e pelo futuro dos filhos. Muitas vezes ouvimo-las dizer: “Como fazer? Se o marido não faz, alguém tem que olhar para que o fogão não se apague, para que as crianças

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possam ir à escola…” Elas revelam, contudo, ter consciência que é a sua atividade económica a única garantia de sustento para seus filhos e família, como se pode ler nestes testemunhos: “Tenho 38 anos e dois filhos menores, sou viúva há 11 anos. Se não fosse esta horta não sei como poderia criar e fazer estudar os meus filhos”. Joia, horticultora membro da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon”, granja do Pessubé, em Bissau. “Tenho 48 anos e o meu marido está de vida, mas ficou desempregado desde a guerra do 7 de Junho. Ele trabalhava na CICER e naquele tempo tinha muita fama. Por isso ele fez muitos filhos. Agora que está desempregado, “herdei” esses filhos e, para além de mim e dele, tenho 11 bocas para sustentar em casa. E tudo debaixo desta horta…” Adelina, horticultora membro da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon”, granja do Pessubé, em Bissau. “A situação da família é que me obrigou a fazer negócio. Eu tinha 19 anos quando o meu namorado emigrou para a França e fiquei grávida do meu filho mais velho. Foi graças ao meu negócio do peixe que pus os meus dois filhos a estudarem, ambos fora do país.” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE. Porém, por várias vezes ouvimos vozes discordantes da parte dos homens, dos mais jovens em especial, e mesmo de alguns quadros trabalhando para organizações promovendo o microcrédito como instrumento de empoderamento das mulheres. Na série de enxertos das histórias de vida que se


seguem, pode-se “ler” os vários olhares que se cruzam sobre esta mesma questão: os impactos positivos e negativos do microcrédito e do empreendedorismo feminino nas famílias e comunidades. “A horticultura não é uma atividade que ajuda as mulheres a descansar. Antes pelo contrário, é uma sobrecarga, pois elas têm que tratar da horta na altura em que deveriam estar a descansar.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba.

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“Agora as coisas mudaram um pouco. As mulheres desta zona se dedicam mais ao trabalho na horta, porque ganham dinheiro com a venda das hortícolas. São membros da APALCOF. Por isso deixaram de produzir muitos alimentos saudáveis que não comemos agora porque são difíceis de trabalhar, como o fundo. As mulheres de hoje são preguiçosas, elas trabalham mais para si próprias. Foi a horta que trouxe este problema. Para aliviar o seu trabalho ela prefere vender a cebola e outras hortaliças no lumo para depois comprar o arroz importado.” Sibite Sonko, Amadú Embaló e Braima Dafé, Sonaco. “Esta política de dar crédito às mulheres sem envolver os maridos gera desconfiança em casa. Investir apenas na economia da mulher provoca desequilíbrio no casal e contribui para destruir o núcleo familiar.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba. “Muitos homens acham que perdem o poder sobre as mulheres quando elas começam a ter mais força económica do que eles. Mas eu acho que não é bem assim e nem todos os homens são iguais. Eu acho que quando a mulher ganha dinheiro, é a família que ganha.” Mamadu Djack, Presidente da Associação de Pescadores do Rio Grande de Buba. “Nós estamos numa sociedade patriarcal, onde o poder económico é sempre do homem! Há empobrecimento dos homens quando se faz uma política de investimento exclusivo nas mulheres. Isso destrói a harmonia na família. A mulher deixa de ser apoio para o marido, deixa de ter tempo


para cuidar dele e dos filhos, de lhes dar atenção e educação.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba. “Conceder créditos às mulheres excluindo os homens leva muitos a se desresponsabilizarem deixando-lhes todo o encargo familiar. É um risco dar créditos às mulheres sem implicar seus maridos, principalmente nas tabancas onde a religião muçulmana é predominante.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba. “Mas os homens não são todos iguais, alguns compreendem que ajudar a mulher não prejudica a família. Ajudei as minhas duas mulheres a fazerem o seu negócio e terem rendimento. Com o dinheiro que ganharam, construíram suas casas e com o dinheiro do aluguer, elas apoiaram nossos filhos a estudarem, alguns até no estrangeiro. Os mais velhos já se formaram, graças ao seu negócio.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba.

No entanto, as mulheres mais visionárias e combativas, aquelas que foram ganhando força e adesão de suas companheiras, à medida que avançam no desbravamento de terreno hostil na procura de seu justo lugar, para si e suas iguais, no seio de suas famílias e comunidades, elas têm uma outra leitura sobre o impacto do seu empreendedorismo. Mulheres como a Hadja Djenabo, a mulher-grande de Contuboel. Eis um estrato da sua fala:

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“Desde esses tempos até agora, muita coisa mudou nas nossas tabancas e na vida das mulheres rurais. Agora elas têm maior capacidade económica, graças à venda das hortícolas que produzem, em particular da cebola que é comercializada nos lumos da região e em todo o território nacional. Esta capacidade económica deu-lhes maior autonomia e confiança em si mesmas, conquistaram maior espaço e respeito no seio da família e têm mais voz nas suas comunidades. Mas elas pagaram e ainda pagam caro para terem estas conquistas: levantam-se às cinco da manhã para irem regar as hortas, a fim de regressarem a casa a tempo de fazer as lides domésticas e cozinhar para a família. Estão ainda mais sobrecarregadas, pois sempre têm que trabalhar nos campos dos maridos e cumprir com suas obrigações de esposas e mães. Algumas ficaram com os casamentos comprometidos, pois seus companheiros não quiseram compreender e aceitar o seu direito a maior independência económica. Mas agora, as mulheres gozam de maior liberdade e consideração. Têm direito à palavra em público, viajam e representam a sua comunidade no exterior. Como presidente de APALCOF eu estive em mais de 15 países da África, da Europa e da América, sou ouvida e respeitada! A APALCOF contribuiu para trazer a democracia para a Guiné, no que toca aos direitos económicos das mulheres!” Hadja Djenabo Baldé, Presidente da APALCOF, Contuboel. O reconhecimento na sociedade é, sem dúvida, um dos grandes impactos na vida destas mulheres, que graças aos seus negócios, conseguem afirmar-se nas suas famílias, na sua comunidade, com estatura e bravura. Elas o disseram e está explanado na história de vida da Bandja, acima relatada que nos diz que graças ao seu empreendedorismo, saíram da casa para a varanda e


já estão na rua, “virando-se” para ganhar a vida e provir pelo bem-estar de suas famílias. As empresárias Adama Djalo, D. Fernanda e Fanda, também nos testemunha este sentimento de orgulho que o reconhecimento legitima e recompensa. E mais, falam-nos de ambição, de paixão, de autonomia e de investimento no futuro! “Desafio qualquer um no negócio! N’ta buska, N’ka ta furta! Tenho 22 pessoas que alimento em minha casa, entre irmãos, sobrinhos e primos e isso graças ao meu empreendedorismo. Neste momento tenho 3 negócios importantes, o 1º de peixe, o 2º de castanha de caju e o 3º de lavoura de arroz, para além de pequenas atividades geradoras de renda (venda de sorvete e butique) que apoio os meus familiares a fazerem em casa. Contribuí para a fundação e estou engajada em duas cooperativas, a AMUPEIXE que tem 156 associadas e a CPTCPAM, com cerca de 2000 membros. Sou 1ª Vice-Presidente da AMAE, sou Vogal do Conselho Fiscal da Câmara do Comércio. Faço parte de redes nacionais e internacionais de mulheres empreendedoras como a RENAMUP-GB e da COMOFA e viajo muito para o fora do país por causa disso. Tenho poupança e conta pessoal em dois bancos que me dão crédito quando preciso. Sim, sou orgulhosa e tenho muita ambição!” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE. “Tive anos de glória aqui! O meu negócio de restauração pôs-me ser “senhora do meu nariz”, ser conhecida na Guiné, em África, no espaço CPLP em muitos países europeus. No dia 30 de Janeiro deste ano, Dia da Mulher guineense, eu estava lá em cima! Fui uma das 5 mulheres que cobriram com

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pano, juntamente com a Fanda e a Dulce Neves, numa cerimónia onde estava o Presidente da República, o 1º Ministro e outros altos responsáveis deste país”. D. Fernanda, proprietária de restaurante, Bissau. “O meu negócio de venda de flores e plantas ornamentais é a minha paixão! Representa para mim uma certa autonomia e um investimento no futuro. Fui investindo no terreno que atualmente vale ouro! Hoje, sinto-me satisfeita. Consegui ir longe. Sou atualmente Presidente da AG da AMAE e faço parte da RAMAO. E o meu marido diz que mesmo que eu não venda, só de ver as plantas os meus olhos sorriem!” Fanda, empresária, proprietária da “Fanda’s Flowers” em Bissau. E liberdade! Conquista de espaços de liberdade é o que as suas atividades económicas representam para algumas destas mulheres que partilharam suas histórias de vida connosco. “Nós as mulheres beafadas, somos marcadas como se marca o gado. Estamos sempre a trabalhar. Não temos tempo para mais nada. Por isso arranjamos jeito de conseguir algumas coisas para ir vender a Bissau, como siti-malgos ou vinagre de limão. Ali, podemos ter alguma liberdade, por vezes mesmo ter um namorado. Os homens dizem que Deus deu ao beafada a “Mulher Cabra”... Isso é porque nós não temos liberdade nas nossas tabancas. São os nossos pais que decidem quando e com quem nos casar e depois são os maridos que decidem por nós e nos põem a trabalhar sem


direito a descanso. Então, quando é demais, invocamos uma mistida em Bissau e vamos mudar de ares, gozar a vida na praça…” Mulheres Associadas da Zona Verde”, Quínara.

E) A HERANÇA, COMO SE TRANSMITE? A QUEM VAI DEIXAR SUA HERANÇA? AOS FILHOS OU ÀS FILHAS? Salvo raras exceções, a generalidade das mulheres do meio rural e da periferia urbana com quem conversámos falaram-nos sobre a herança à luz do direito costumeiro, o único que parece conhecerem. Em caso de conflito de interesse, a generalidade invoca a justiça exercida pelo poder tradicional segundo os usos e costumes. Pelo que deduzimos que, a ausência do poder do Estado, sobretudo no interior do país e nas zonas mais recônditas, leva a que a prática comum reconhecida e legitimada seja a do direito consuetudinário. Como já foi argumentado no capítulo 3, na partilha dos bens por separação ou morte, a mulher é altamente prejudicada quando o regime aplicado é o do direito costumeiro. E aqui, pelo facto das suas normas não estarem suficientemente estruturadas, clarificadas, fixadas e divulgadas, por não haver mecanismos oficiais de sua aplicação no quotidiano, é objeto de interpretações díspares. “Entre nós os beafadas, a terra, quem herda é o filho varão, a casa também. Porque as filhas vão para a casa dos maridos e vão cultivar suas terras. Se têm problemas no casamento e querem regressar para a casa de seus pais, o filho que a tiver herdado dá-lhe uma parte para morar e um pedaço do terreno para trabalhar o que quiser. Mas sempre é o homem que tem força, que deci-

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de.” “Não, quem decide pode ser o homem, mas quem tem força é a mulher. Porque na cultura beafada, a herança se passa pela barriga. O pai tem o filho ou a filha, mas não tem o djorson. Quem tem o djorson é a mulher e por isso a herança se passa para os filhos varões do djorson da linha materna. E aqui reside a nossa força!” Mulheres de Bercolon, associação “Mulheres Associadas da Zona Verde”, Quínara. “Se a mulher faz algum comércio importante e junta dinheiro até poder fazer uma casa, deve “testemunhar” o marido a quem compete dar-lhe a devida autorização. E quem herda então a sua casa? É o seu filho varão!” Sibite Sonko, Amadú Embaló e Braima Dafé, Sonaco. Ressalta-se aqui, a prática comum de usos e costumes atentatórios dos direitos humanos consagrados universalmente e na Constituição da Guiné-Bissau, como a “herança” da mulher por morte do marido, juntamente com os filhos, a bolanha, a casa e demais bens materiais. E ainda da questão sensível do casamento forçado, mais ou menos dissimulado, no qual se jogam interesses económicos das famílias, do pai em especial, que assim pode ganhar bens avultados, através do dote prometido pelo pretendente, dote que só se concretiza quando há casamento consumado! No entanto, a maioria das mulheres que encontrámos disseram que esta situação está evoluindo e muitas práticas tradicionais ligadas à herança estão mudando rapidamente. Neste processo de mudança, é invocada, por vezes, a Lei do Estado, ainda que sem saber como recorrer a ele e como se faria a sua aplicação. Esta invocação só foi feita por mulheres que assumiram já uma


postura de rebeldia face a tais constrangimentos dos usos e costumes que consideram como ultrapassados. “Antigamente, entre os manjacos, quem era dono da bolanha (e da horta) era o homem, que partilhava os trabalhos com a sua mulher e os seus filhos. O homem era e é o dono da casa, assim como do curral das vacas, mas os porcos e as galinhas eram das mulheres que, até hoje, são quem os criam e vendem. Com a morte do marido, era o seu irmão que herdava a bolanha, a casa assim como a sua mulher e os filhos menores. Mas agora, há Lei do Estado e segundo a Lei, a herança dos bens da família é para a mulher e os seus filhos.” Florença, fundadora da associação de mulheres Getenemi, Calequisse.

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“Sobre a herança, entre nós os mancanhas, na morte do marido, era o seu irmão ou o seu sobrinho que herdava os seus bens como o lugar, a horta, a casa e mesmo os filhos e a mulher. Mas agora, nós não aceitamos essa prática! Só se a mulher o quiser. Senão, apenas realizamos, simbolicamente, a cerimónia tradicional e depois tocamos a nossa vida para a frente, tomamos conta dos bens do falecido e cuidamos dos nossos filhos como eu fiz. Se houver disputa com a família do marido, há tribunal, onde é a lei do branco que manda. Para nós as mulheres com poucos meios, não temos como pagar um advogado, mas ouvi dizer que há uma Casa lá para os lados de Bissau Velho onde apoiam as mulheres para fazerem valer os seus direitos em situações como a herança.” Joia, da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon”, granja do Pessubé, em Bissau. “O meu pai morreu em finais de 2014 e a minha mãe foi herdada pelo irmão mais novo do meu pai que não nos ajuda muito, contribuindo em casa só com o arroz. Ele também tem sua própria família que deve sustentar.” Sali Mané, vendedeira de Mesa em Bissau. “Entre nós os fulas, tradicionalmente, as filhas representam uma grande riqueza. Isto porque uma filha era, de certa maneira, objeto de transação e se ela era bonita, o valor do dote que se propunha ao pai para a desposar subia. Agora, muita coisa mudou. Mas o que mudou mesmo foi o casamento forçado que acabou! No que toca à herança, quem tem direito são os filhos varões, porque as filhas vão para o casamento. A bolanha é do homem mas o trabalho na bolanha é da mulher… O gado também é do homem, porém,


algumas mulheres podem ter as vacas que lhes deram como dote ou então compraram. A casa também é do homem. Mas agora muitas mulheres têm capacidade económica de fazer suas próprias casas. E quem herda os seus bens? Os seus pertences pessoais são para a filha. No entanto, é o filho varão que herda a casa e o gado que a mãe tiver. Entretanto, se uma das suas irmãs estiver mal no casamento e deixar o marido, o irmão a acolhe e lhe dá um quarto na casa da família para ela e os seus pertences. Também lhe pode dar uma parte do terreno para ela cultivar.” Mulheres associadas da APALCOF, Contuboel, Região de Bafatá. Os primeiros testemunhos que apresentamos têm a ver com as perceções que os nossos entrevistados mostraram ter da herança e de como ela se transmite, com base na referência étnica. A religiosa, nomeadamente a muçulmana, justifica e legitima, igualmente, muitas práticas pouco abonatórias para os direitos económicos das mulheres. Também nestes casos, há várias interpretações que se cruzam, por vezes num mesmo djumbai, onde as mulheres mais emancipadas contrariam as mais tradicionalistas (normalmente as mais velhas), avançando com versões mais “progressistas” do Corão: “Entre nós muçulmanos, é o homem que tem direito à herança. A mulher não!” “Não, eu acho que a partilha da herança é uma questão de consciência! É às filhas que se deve dar a casa, pois são elas que trabalham e se cansam mais!” “Se Deus te der dois filhos varões, que te ofereça três filhas, pois são elas que se lembram da família!” 3 Associadas da Associação das Mulheres de Ponta Nobu, Região de Bafatá.

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Quando abordadas no sentido de dizerem a quem elas deixariam como herdeiros dos bens que conseguiram obter graças às atividades económicas que realizam, muitas dizem, sem hesitar, que é aos filhos varões, outras hesitam. Nesta hesitação, ao lembrarem-se de que quem vai cuidar delas quando ficarem doentes e velhas são as filhas, que são estas também que poderão fazer-lhes os rituais fúnebres, elas acabam por lhes dar a sua preferência. Porém, algumas mulheres, desde o início, optam claramente por legar seus bens às filhas, para as proteger, dizem elas. E se a mulher morrer, quem é que herda os seus bens? Geralmente são os filhos varões. Mas isso tende a mudar, porque no mundo de hoje, uma filha é igual a um filho varão. As suas capacidades e competências dependem de cada um. No mundo moderno o homem e a mulher são iguais diante da Lei. Por isso, cada mulher pode decidir e comunicar aos seus familiares ou mandar escrever um documento onde ela diz a quem quer deixar seus diferentes bens. E nessa decisão, o travesseiro é o melhor conselheiro! Mas não devemos esquecer que uma filha é “a segurança” da sua mãe, é ela que lhe vale quando a mãe tem necessidades e cuida dela na doença e na velhice!” Florença, fundadora da associação de mulheres Getenemi, Calequisse. “Gostaria que a minha filha herdasse o meu empreendimento, porque as mulheres ficam mais expostas se não têm um bom apoio no casamento.” D. Fernanda, proprietária de restaurante, Bissau.


“Quem eu gostaria que me herdasse, se eu tiver algum bem como casa? Seria a minha filha, porque a vida é mais difícil para as mulheres!” Joia, da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon”, granja do Pessubé, em Bissau. E as moças mais novas, quando interpeladas sobre o tema da herança, relutam em se manifestar no meio das mais velhas. Quando ganham coragem para o fazer, também ousam exprimir uma opinião diferente dos valores que lhes transmitiram, como constatamos deste testemunho: “As nossas mães nos ensinaram que são os homens que devem herdar. Mas hoje em dia, assim como os filhos, as filhas vão à escola, trabalham fora de casa. Para nós são todos iguais e por isso devem ter todos direito à herança!” Associadas da Associação das Mulheres de Ponta Nobu, Região de Bafatá. Já as empresárias entrevistadas em Bissau revelam conhecer o direito positivo no que toca à herança e manifestaram, quase todas, a sua intensão de partilhar equitativamente sua herança entre os filhos varão e as do sexo feminino. Mais uma vez se confirma que a instrução e a educação são fatores-chave contribuindo para o conhecimento e o exercício dos direitos económicos das mulheres. “Acabei há pouco tempo de construir uma casa com duas moradias bem espaçosas, que comecei há 20 anos! Quem vai-me herdar? São os meus dois filhos, cada um ficará com uma moradia e o resto partilharão.” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE.

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VOLTA DI MUNDO I RABU DI PUMBA? PROGRESSOS E SONHOS NA CONQUISTA DOS DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES A) QUE MUDANÇAS TÊM OCORRIDO? Nos testemunhos que recolhemos, assim como nos djumbais que tivemos, a questão da mudança aparece frequentemente. Dizem-nos que as coisas se passavam de uma certa maneira, mas que agora já mudaram porque os tempos mudaram e os costumes também estão mudando. Mas de que mudanças estamos a falar? Cantucha, a Cabongha bijagó relata-nos, de forma clara, objetiva e demolidora, das mudanças que a sua comunidade está conhecendo e que ameaçam os próprios fundamentos da cultura bijagó e em consequência, as bases da sua economia, assente nos recursos naturais, que são, segundo seu testemunho, as riquezas que Deus criou e ofereceu aos homens: “A riqueza maior para o bijagó de hoje é o caju. Por causa do dinheiro que traz. Todos querem o dinheiro para comprar coisas que precisam e não têm, mas também muitas coisas que faziam dantes e agora não querem ter a canseira de fazer e mesmo outras coisas que vêm e querem, mas nem precisam, porque não são essenciais. Mas o caju está a dar cabo da palmeira, do feijão, da mancarra e mesmo do arroz lavrado no lugar pelo bijagó, assim como das ostras, do lingron, do combé, que era só descer ao mar para apanhar. Agora, com o dinheiro do caju vai-se ao porto comprar, onde vendem o combé, as ostras e o lingron já todo tirado da casca e secado. Com a força que estão a


pôr na exploração destes recursos, eles vão acabar! O mundo bijagó vai acabar também, porque sem esses produtos não há cerimónia e o bijagó não é bijagó sem cerimónia!” Cantucha, líder da AMPC Urok, ilha Formosa. Há também boas mudanças que estão ocorrendo nas práticas tradicionais e que contribuem para fazer vingar os direitos das mulheres, dos económicos igualmente, como confirmam estes dois testemunhos: “Agora não aceitamos essa prática tradicional de um outro membro da família do teu marido herdar o lugar, seja bolanha, seja horta, onde trabalhaste com ele toda a vida e ainda por cima te herdar a ti própria e aos teus filhos! Agora só fazemos a cerimónia da herança que a tradição recomenda e depois, os bens que trabalhaste com o teu marido ficam para ti e para os vossos filhos. Mas claro, isso depende da força e determinação de cada mulher!”, Florença, fundadora da associação de mulheres Getenemi, Calequisse. “Mas tudo isto está a mudar. O que ajuda a mudar os costumes, é a escola, é a Lei. Mas também a educação, que se dá em casa pode ajudar! Porque a mulher transmite valores! Ela é que educa os filhos em casa. Por isso, agora, aqui em Contuboel, as coisas mudaram muito, graças às mulheres da APALCOF. É frequente ver-se agora tanto as filhas como os filhos todos a ajudarem suas mães na horta. Para aliviarem o seu trabalho, mas também porque é de lá que vem o sustento da família!” Mulheres associadas da APALCOF, Contuboel, Região de Bafatá.

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O que ajuda a mudar os costumes é a escola, a Lei e a educação que se dá aos filhos em casa, dizem, com razão, as mulheres da APALCOF. Como consolidar e estender estas bolsas de mudanças, para que toda a sociedade guineense possa delas beneficiar? Quando se sabe o estado deplorável em que estão as escolas e o ensino neste país, quando se constata os limites que a lei e a justiça têm, quando se vê a desestruturação de grande parte das famílias, onde os pais se desresponsabilizam do seu papel educador, ficando os filhos (e não só!) entregues às mães e às avós? Analisemos o que nos diz o próximo testemunho de vida, um quadro formado e experiente na matéria do microcrédito: “Os direitos económicos das mulheres passam pelos direitos económicos dos homens. Quando tu, homem, enquanto chefe de família, não tens com o que sustentar os teus filhos, não podes dizer como eles devem se comportar, perdes autoridade no seio da família, tanto nos filhos como na mulher. Por isso o crédito deve ser dentro da família, deve permitir unir e empoderar o núcleo da sociedade, que é a família, não apenas um elemento desta.” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba. Será assim? O testemunho que segue tem um outro olhar, que contraria algumas justificações que ouvimos aquando das missões no terreno, da parte de núcleos representando novas tendências mais conservadoras do Islão e segundo o qual a desigualdade entre o Homem e a Mulher estaria consagrada no Corão. “Temos visões diferentes. É preciso olhar e ver longe! O mundo está a mudar para todos, para as mulheres também. Investir na mulher é ajudar a promover


o bem-estar da família. Se o homem é inteligente, ele compreende isso e quando perceber, ele colabora. A religião islâmica não põe barreiras às mulheres, dá-lhes a mesma liberdade que ao homem. Por vezes é uma questão de interpretação do Islão que se faz segundo os interesses de cada um. É o amontondade que leva muitos a fazerem más interpretações e a se demitirem de suas responsabilidades deixando tudo para as mulheres fazerem. Só agora é que as atividades geradoras de rendimento são vistas como exclusivas às mulheres. Isso não é verdade, todos podem fazer um pequeno negócio para ajudarem-se a si próprios a progredir e à sua família. Tanto mulheres como homens!” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba.

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Entretanto, muitas mulheres reconheceram que tem havido, entre as duas últimas gerações, progressos positivos significativos nos seus direitos, nomeadamente nos económicos. “Entre o tempo da minha mãe e o meu, houve melhoria nos direitos das mulheres. Aumentou a escolaridade da mulher, e regra geral, ela goza de maior liberdade, pode decidir o que fazer com o dinheiro que ganha.” Bandje Baldé, Presidente da ALCOPO, Gabú. Falaram-nos ainda de outras mudanças, mais de natureza política, que afetaram e afetam ainda as atividades económicas das mulheres. A instabilidade política, os golpes de Estado que não deixam vingar o empreendedorismo neste país, arruinando todas as iniciativas económicas antes de frutificarem. Disseram-nos, em vários lugares que “Golpi ta dana nogós”. Duas empresárias nos relataram, nas suas histórias de vida, os efeitos devastadores nos seus negócios do 7 de Junho e outros golpes que se lhe sucederam: “Os conflitos prejudicaram muito o empreendimento. Eu tinha o restaurante sempre cheio até o 7 de Junho de 1998. Depois, nunca mais foi a mesma coisa. Quando o negócio começou a prosperar de novo, veio o 12 de Abril 2012, que deitou-nos abaixo outra vez. Estes ciclos constantes de instabilidade é que nos matam! Com a abertura do país depois das eleições, abrem-se também as portas do negócio! Porque restaurante vive de estrangeiros que vêm e precisam de lugar onde comer. Contudo, agora há mais concor-


rência de novos restaurantes que estão a abrir. Nunca mais tive a casa cheia como no início!” D. Fernanda, proprietária de restaurante, Bissau. “Perdi tudo com a guerra de 7 de Junho, tive a casa e os jardins vandalizados, roubaram a máquina de cortar relva, outras ferramentas e materiais de jardinagem, tudo!… Mas depois da guerra retomei o trabalho com maior vigor. Em 2003, com as minhas economias e empréstimo bancário de 10 milhões, comprei dois terrenos em Safim, mandei construir um muro e uma fonte, comprei um outro carro para apoio ao trabalho e pude assim estender o meu negócio. Hoje, a minha empresa, a Fanda’s Flowers, tem 35 empregados! Com todas as dificuldades que o país tem passado, nunca parei, nunca deixei de pagar os meus empregados, nem os impostos que devo ao Estado, a tempo e a hora!” Fanda, empresária, proprietária da “Fanda’s Flowers” em Bissau. Esta extraordinária capacidade de dar a volta à vida que as mulheres empreendedoras têm, faz parte das grandes forças que mantêm a Guiné-Bissau de pé! Enquanto muitos políticos e pretensos nacionalistas, tecem e desfazem golpes, estas mulheres estão ocupadas em criar oportunidades para uma vida melhor para suas famílias, trabalhando, empreendendo, inovando! Tolher-lhes os seus direitos económicos consagrados na lei, não seria bloquear das principais saídas que se abrem ao país e donde vem luz e ar fresco?

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B) NOVAS TENDÊNCIAS QUE SE DESENHAM: FAZEM AVANÇAR OU RECUAR AS CONQUISTAS DAS MULHERES? QUAIS OS RISCOS? Uma das tendências que constatámos durante este estudo foi a de acantonar as mulheres empreendedoras com sucesso numa classe de mulheres à parte, o que conduz, de certa maneira, à sua marginalização. Estas mulheres ficam assim marcadas para a vida e o seu exemplo não é invocado como um referencial positivo, antes pelo contrário. Vários epítetos lhes são dados, desde “matchu minjer”, até “mindjer baguera”, recusando-lhes, desta feita, a sua feminilidade, o que tem efeito dissuasor junto das demais. Porque para muitos, feminino é igual a submissão. Ouvimos de alguns que “bon minjer i minjer manso”. Uma das formas de demonstrar que estas mulheres empreendedoras aguerridas não têm hipótese de estar bem em família e de ser feliz, é argumentando que elas não conseguem viver em casal, acabando, mais cedo ou mais tarde, por ficar sem marido, porque não se ocupam deles, apenas do seu negócio, que lhes toma todo o tempo e lhes subtrai do lar. Tal tendência é bem explícita neste testemunho: “Muitas vezes as mulheres saem muito de casa, sob pretexto de irem tratar dos seus negócios, mas nem sempre é assim! É porque têm seus “projetos” atrás, querem ser independentes e não prestar contas aos maridos. Mulheres que têm sucesso no negócio, muitas vezes é sacrificando suas famílias. Por exemplo, sabemos que 60% das mulheres que construíram casa própria aqui no Bairro de Nema II, mais conhecido por Bairro das Mulheres, não estão


com os seus maridos, vivem sozinhas. E isso é bom? Damos poder económico às mulheres, mas destruímos a família. Isso não pode ser bom!” Djumbai com 5 quadros de organizações do microcrédito em Buba. Mas nem todos os homens partilham desta posição, alguns dão maior crédito às mulheres bem-sucedidas nos seus negócios, reconhecendo seu direito a progredir, de acordo com o mundo.

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“Muitos homens acham que perdem o poder sobre as mulheres quando elas começam a ter mais força económica do que eles. Mas eu acho que não é bem assim. Eu penso que ajudar as nossas mulheres a irem para a frente com seus negócios, isso não enfraquece o homem. Não podemos pretender deixar hoje as mulheres acantonadas no mesmo lugar que tinham as nossas bisavós, porque o mundo “anda” para a frente e não para traz!” Mamadu Djack, Presidente da Associação dos Pescadores de Rio Grande de Buba. E algumas mulheres entrevistadas em Bissau, as empresárias em particular, mais instruídas e pertencendo a um estrato socioeconómico mais desafogado, declararam não terem sentido diretamente nos seus negócios nenhuma forma de descriminação nem de pressão sexista. Isso é revelador, quanto a nós, da incidência das questões culturais, educacionais e económicas na maioria dos preconceitos que obstaculizam o empreendedorismo das mulheres e o usufruto dos seus direitos económicos, preconceitos esses que são mais sentidos no mundo rural, onde os constrangimentos culturais são mais fortes e os níveis de educação/formação mais fracos. “Não, o facto de ser mulher nunca me bloqueou nem fui molestada nos meus afazeres por causa disso. Também nunca permitiria. Uma pessoa faz-se respeitar pela atitude que toma. Garandis ta fala kuma rispitu sta na udju!” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE. Outra tendência constatada neste estudo, em particular no seio da camada juvenil, é a de “parasitar” as mulheres com sucesso nos negócios, sejam elas


familiares, sejam “amigas”. Foi-nos dito, num encontro no Porto Canoa, em Bissau, que os homens costumam dizer entre si: “Se a tua mulher ou namorada for bidera, estás safo! Nada te faltará!” Algumas entrevistadas falaram-nos da propensão de muitos jovens a procurar “vida boa” sem terem que se cansar muito, não hesitando a valer-se do seu charme junto das meninas ou das “tias”, para lhes subtrair dinheiro e outras vantagens, ou recorrer à tradicional solidariedade comunitária para ter o que comer em casa de alguém, sem precisar de trabalhar. E tudo isso, mantendo uma visão depreciativa das mulheres, que muitos acham que têm menos direitos económicos que os homens, mas mais obrigação de cuidar dos filhos e da família. “Para ajudar os filhos e a família já fiz de tudo um pouco. Até trabalhei a amassar bosta de vaca com palha de arroz, para fazer fogões melhorados no quadro de um projeto e para o qual me pagaram bem. Um dia, arranjei um biscate nas obras da estrada a um sobrinho que estava sempre a me pedir dinheiro, mas ele desistiu rápido, porque achava aquele trabalho pouco digno: estava sujo todo o tempo. Perguntei-lhe se eu podia estar enfiada em bosta de vaca até aos joelhos para ganhar dinheiro, ele é que era fino demais para procurar o seu sustento nas obras? E deixei de lhe ajudar. É assim, os homens de agora só querem vida fácil. Quando vão à Europa podem trabalhar nas obras, carregar lixo e a fazer as tarefas mais ingratas, que não aceitariam na sua terra. Aqui, preferem ir namorar as “tias”, que lhes dão dinheiro, como vêm nas telenovelas.” Bandje Baldé, Presidente da ALCOPO, Gabú.

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“Os jovens de agora não querem trabalhar! Apenas curtir e procuram uma mulher para lhes sustentar!” 4 Raparigas do Liceu Ho Chi Min em Canchungo. “Hoje em dia vemos alguns retrocessos sobretudo no seio da camada juvenil. Esta rapaziada que não tem trabalho, não quer trabalhar, passa a vida a conversar, a beber warga e alguns a fumar yamba, tem mentalidade mais atrasada do que os seus pais, apesar de pensarem o contrário. Vivem à custa do trabalho das mães, mas não têm consideração pelas mulheres, querem utilizá-las apenas como burro de carga e não respeitam o seu calor.” Hadja Djenabo Baldé, Presidente da APALCOF, Contuboel. Esta tendência foi detetada igualmente entre as raparigas, ainda que em menor escala. Tanto as raparigas como os rapazes, na procura de reprodução de modelos de vida e de consumo fora do seu alcance (para terem dinheiro, roupa e calçado de marca, telemóveis digitais, para poderem frequentar restaurantes e boîtes de fama, viajar para o exterior…) derivam, com alguma frequência, para situações que podem ser de prostituição ocasional, sem estarem minimamente prevenidos sobre os riscos que tal deriva possa comportar para sua saúde física e psicológica. As relações com os namorados são, muitas vezes, aliadas a interesses económicos, sendo que muitas moças reconhecem pretender um homem que lhes possa valer economicamente. Por outro lado, falaram-nos também de alguns rapazes vivendo na periferia urbana que procuram belas namoradas às quais “colocar na praça”, gabando-se entre si de quem tem a rapariga mais bonita e que lhe traz mais dinheiro com os “engates” que faz junto dos “cotas”.


“Com as moças é igual, agora só querem homem velho, que lhes dão vida de luxo, mas lhes dão doenças também! Se hoje muitas raparigas deixam o campo e vêm para a praça, onde andam bem vestidas, moram em boas casas, viajam, parecem ter sucesso, é porque têm “amigos” que as sustentam, Mas se a doença se apoderar delas, para onde vão depois, do que é que vão viver? Refiro-me a doenças sexualmente transmissíveis e vícios como a droga, que agora circula muito por Gabú”. Bandje Baldé, Presidente da ALCOPO, Gabú. “O meu namorado oferece-me dinheiro todos os meses, entre vinte a quarenta mil CFA, que dá para ajudar a cobrir as despesas, visto que o que eu ganha nem sempre é suficiente.” Sali Mané, Vendedeira de Mesa, Bissau. Tendência também entre os homens, de negligenciar as tarefas que são tradicionalmente da sua responsabilidade, sob pretexto de dificuldades várias, sabendo que as mulheres sempre irão encontrar solução para a família e velar com que não lhes falte nada em casa. E mais, não respeitando suas mulheres, pois já não se sentem obrigados perante suas famílias de lhes proporcionar bem-estar. “O homem já não produz arroz como dantes, ou porque há falta de bolanha disponível, ou por amontondade. Os homens de agora não respeitam as mulheres no casamento, talvez porque já não é o pai que lhe dá sua filha para constituírem família, mas ela que decide casar com o rapaz da sua escolha. Por isso, quando o marido não trata bem a sua mulher, não há

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ninguém para lhe exigir. E isso é mau para a mulher”. Augusta Cumbá, da tabanca de Bessassema de Baixo, vendedeira no Porto Canoa, Bissau. “Agora os homens não querem fazer nada, deixam tudo para a mulher. Só nestes tempos de colheita do caju, quando o preço é bom, que os vemos ao fim da tarde irem, às escondidas, apanhar alguma castanha para venderem. Mas não nos dão conta do seu dinheiro que não utilizam em casa. Por isso lhes servimos cuntangho”! Mulheres de Bercolon, associação “Mulheres Associadas da Zona Verde”, Quínara. A perceção de uns e de outros sobre estas tendências constatadas no seio da camada juvenil e entre muitos homens que deixam as responsabilidades familiares a cargo das mulheres, comporta algum risco de acentuar clivagens inter-geracionais e conflito entre sexos que importa prevenir e mitigar, para não se favorecer situações de rutura da coesão social indispensável à promoção do desenvolvimento local e nacional. Porém, é importante agir no sentido de assegurar que os esforços para a manutenção da coesão social e incremento do bem-estar familiar e comunitário não sejam exclusivos às mulheres, mas que sejam partilhados por todos: homens, mulheres e jovens. Outra tendência constatada em muitas zonas visitadas, igualmente preocupante, é o da não valorização pelas próprias mulheres dos trabalhos que fazem, nem da vida no mundo rural. As que fazem negócio a comprar e vender animais (cabra, porco, galinha), por exemplo, têm quase vergonha do que fazem e não querem de forma alguma que as filhas as venham a suceder, mesmo que o negócio seja dos mais rentáveis. A maioria das mulheres


com quem conversámos sobre o assunto querem pôr os filhos e as filhas a estudarem para irem procurar emprego na praça, de preferência em Bissau. Algumas até nos disseram que queriam que todos os seus filhos fossem para Bissau e viessem a ser Ministros, pois aí é que teriam vida boa. “Tenho um casal, a filha de 16 anos e o filho de 14, ambos a estudar. Não quero que continuem a trabalhar na horta como eu e a minha mãe. Quero que se formem para virem a trabalhar como engenheiros, diretores. Porque quem tem maior respeito no mundo de hoje são as pessoas que trabalham nos gabinetes.” Joia, da associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon”, granja do Pessubé, em Bissau. Nas tendências enunciadas, importa referir alguns riscos associados ainda não explanados. Algumas das entrevistadas nos falaram de outro tipo de riscos que os seus negócios acarretam, como o roubo, a violência e mesmo ataques pelos guerrilheiros independentistas da Casamança. “O trabalho como doméstica é duro. Acabei mesmo por deixar esse emprego pois não dava para conciliar o horário do trabalho com o da escola. Tinha que fazer o turno da noite, o que era difícil para mim. Voltar para casa muito tarde e sair da casa muito cedo, para uma rapariga que mora no Bairro Militar, é muito arriscado, por causa dos ladrões. Um dia, uma bidera com quem costumava atravessar o bairro de manhã cedinho, para fazermos companhia uma à outra, foi assaltada na minha frente e lhe levaram todo o dinheiro que tinha para ir comprar o peixe destinado ao seu negócio. Eu fi-

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quei a tremer de medo, mas eu não tinha dinheiro, só o meu telemóvel, que lhes dei, mas eles não o quiseram por ser velho!” Aissatu Canté, empregada doméstica em Bissau. “Compro porcos no Senegal, para vender aqui. Isto porque lá tratam melhor os animais, que recebem cuidados veterinários apropriados. Mas é um negócio de risco. Os porcos são muito caros, mais de cem mil CFA cada um. As despesas com o seu transporte de lá para cá são elevadas, temos que nos juntar entre quatro a seis bideras para podermos suportar os custos. Se há algum problema, porque são animais que têm pouca resistência às canseiras de longas viagens, os prejuízos são avultados! Para além disso há os perigos do caminho com possível ataque dos rebeldes da Casamança… E chegando aqui, onde os mantemos em várias pocilgas à espera da sua venda, por vezes um animal doente trazido por outra colega transmite a doença aos demais e então a mortandade faz razia!” Nené de Oliveira Barbosa vendedeira de porcos no “Porto Canoa”, Bissau. Outra tendência, que representa um alto risco para muitas mulheres que vivem da agricultura, é o açambarcamento de terras, que já se começa a sentir no Leste, com os conflitos gerados à volta da empresa Agrogeba. Esta problemática levou algumas organizações, como aquelas que estão reunidas na Plataforma das ONGs da Região de Bafatá, a realizarem um estudo sobre o acesso seguro à terra com base no género, envolvendo 34 tabancas e a desenvolver várias iniciativas de informação e sensibilização das comunidades e autoridades locais, de denúncia, revindicação e empoderamento de associa-


ções de mulheres para rentabilizarem e legalizarem as terras onde trabalham. Multiplicam também, nesta região, pequenos conflitos em torno da terra, opondo proprietários tradicionais e novos ocupantes, geralmente de outras etnias. O esforço em apoiar a legalização de terras em nome de associações de mulheres é, porém, alvo de algum ceticismo, numa região onde não é frequente as mulheres possuírem terras, o que leva a alguns a dizerem que “quando os projetos que apoiam estas organizações parar, os donos do terreno cedido vão recuperá-lo”.

C) QUE FUTURO SONHAM PARA SUAS FILHAS? E O QUE ELAS SONHAM PARA SEU FUTURO? Quando perguntamos às mulheres que encontrámos no âmbito deste estudo, quais são os seus sonhos para suas filhas, as respostas são várias e por vezes surpreendentes, como veremos de seguida. “Bom casamento, bom marido!” Disseram as mais velhas. “Escola e trabalho para se valerem a si próprias!” Exprimiram algumas entre as mais jovens. “Para se formarem como doutoras, para poderem escolher livremente seus maridos” expressou outra. “Bom marido, sensato, de quem ela goste e que gosta dela, para terem boas palavras um para o outro e se entenderem bem em casa!” “Para ela trabalhar e o seu marido também, contribuindo todos para o bem-estar da família”. “Que ela tenha juízo na cabeça!” “Eu não quero que a minha filha passe amanhã a mesma canseira que eu passei!” “Temos

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que promover a igualdade de género, educar filho e filha de igual maneira!” Associadas da Associação de Mulheres de Ponta Nobo, Bafatá. “Sonhos que tenho para a minha filha? Que ela não passe nem a metade das canseiras e do sofrimento por que tenho passado. Que ela tenha um bom casamento, encontre um homem de bem, que a tome na base do respeito, a quem ela trate com respeito. Para juntos, cuidarem bem do seu lar, criarem bem os seus filhos, na base do respeito. Porque uma boa mulher balanta é mulher de respeito e alguém com quem podes construir família!” Augusta Cumbá, da tabanca de Bessassema de Baixo, vendedeira no Porto Canoa, Bissau. “Que sonhos tenho para as minhas filhas? Que não caiam na mesma asneira que eu, que peguem a sua escola antes de tudo e só tenham filhos depois de acabarem a sua formação e terem trabalho decente!” Nené de Oliveira Barbosa vendedeira de porcos no “Porto Canoa”, Bissau. “Desejamos, sobretudo, que elas trabalhem bem na escola, se formem e arranjem um bom emprego, para terem a sua própria economia. Para isso têm que ter cabeça. Porque nos tempos que correm, boa mulher é aquela que tem miolos, compreende e aprende rápido, é boa gestora. Sim, porque mulher manjaca é economia!” Florença, fundadora da associação de mulheres Getenemi, Calequisse. “O meu maior sonho é ver os meus filhos a irem bem na vida, fazerem seus próprios negócios para cuidarem do futuro dos seus filhos. Porque já tenho 5


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netos! E o que sonho para eles? Que estudem bem e sejam honestos na vida. Para a minha neta, que é uma menina maravilhosa, aplicada na escola, desejo que seja uma mulher batalhadora e procure a sua autossuficiência. Que encontre um bom negócio que goste de fazer, para singrar na vida, como eu. Comigo, tudo começou com o negócio do peixe. Porque sinta na gabinete ka ta da nada, son si furta. Futuro i nogós!” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE. Ao interrogar as mais jovens sobre o futuro com que sonham, as respostas não variaram muito: “Que sonhos tenho para o meu futuro? Hei-de voltar a casar-me com um “bom” homem (bom partido), ter filhos e ajudar os meus irmãos a serem bem-sucedidos na vida. Assim, vou mostrar a todos familiares do meu pai, que me viraram as costas quando eu mais precisava, que consegui vencer na vida!” Aissatu Canté, empregada doméstica, Bissau. “O meu sonho é vir a casar, ter casa própria e ver os meus irmãos formados e encaminhados na vida.” Sali Mané, Vendedeira de Mesa, Bissau. “Para mim ter bom futuro é poder estudar, para depois se ter um bom trabalho e encontrar um bom marido. Casamento para mim significa respeito.” “Escola, para mim, é ter uma boa formação, para ter um bom emprego. Significa fim de lebsimento!” 4 Raparigas do Liceu Ho Chi Min, Canchungo.


Algumas, mais maduras e empreendedoras, sonham com maiores investimentos: “Se tivesse um financiamento avultado, gostaria de me lançar no import/export. Exportar produtos da terra apreciados lá fora e importar artigos como roupa e coisas de casa, que são aqui procurados. Donde? Do Brasil, do Dubai… Se houvesse sistemas de crédito bancário que favorecesse as mulheres empreendedoras como nós, poderíamos ir longe e o país também!” Nené de Oliveira Barbosa vendedeira de porcos no “Porto Canoa”, Bissau. “O meu objetivo no futuro é vir a trabalhar para a exportação de flores.” Fanda, empresária, proprietária da “Fanda’s Flowers”, Bissau. “Sonhos? Ah! É ir sempre em frente! Já tenho ideia de outros projetos, mas é ainda cedo para falar deles.” Adama Djalo, empresária e 1ª Vice-Presidente da AMAE. E a palavra final para a mulher-grande de Contuboel, Hadja Djenabo Baldé, que tem uma visão e um sonho para todas as mulheres da Guiné-Bissau: “Queremos ver mais mulheres como ministros, não pode continuar a haver uma proporção tão fraca como existe agora! Sonhamos com a paridade, porque as mulheres, mais do que ninguém, podem fazer avançar os direitos das mulheres. Sonhamos que nos postos mais altos, de Primeiro-Ministro, de Presidente da República, teremos um dia uma mulher, como aconteceu com a Carmem Pereira que foi Presidente da Assembleia Nacional Popular. Depois

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da Carmem e das mulheres que Cabral formou, não se avançou muito. Porque os homens da Guiné, na sua grande maioria, não querem que as mulheres progridam nos espaços de decisão, como nos outros países. O género de que tanto falam é só da boca para fora. Na prática, querem continuar a ter as mulheres debaixo deles. Nós queremos fazer ressurgir os valores de Amílcar Cabral no que respeita aos direitos das mulheres, na economia e na política! É pelas mulheres da Guiné que eu me bato, para que nenhuma porta lhes seja fechada!” Hadja Djenabo Baldé, Presidente da APALCOF, Contuboel.


“PELAS MULHERES DA GUINÉ-BISSAU, PARA QUE NENHUMA PORTA LHES SEJA FECHADA, NA ECONOMIA E NA POLÍTICA!” CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES, APONTAMENTOS FINAIS As informações económicas e jurídicas recolhidas revelam várias contradições e lacunas, que justificariam muitas recomendações para sua melhoria, no intuito de contribuírem para o reforço dos direitos económicos das mulheres. Mas tentaremos limitar-nos ao essencial. Faremos recomendações de natureza mais prática, visando não apenas melhorar o dispositivo jurídico que já existe, mas contribuir para melhor informação a fim de mudar as perceções e as práticas neste domínio, assim como reforçar a capacidade reivindicativa das mulheres para que possam, finalmente, gozar dos mesmos direitos e responsabilidades que os homens, na economia e na política. Iremos, pois, concentrar a nossa atenção mais nas perceções e práticas que constatámos no quadro deste diagnóstico. Porque a generalidade das mulheres desconhece ou conhece muito pouco o direito positivo, no que toca à herança, à separação de bens e demais regulamentação ligada ao direito da família. Também, um número muito reduzido delas revelaram conhecer e usufruir das oportunidades que existentes no que tange o acesso ao crédito no sistema formal, isto é, os créditos dados pelos bancos, que são avultados.

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A) CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES PARA A MELHORIA DO DISPOSITIVO JURÍDICO-LEGAL Do diagnóstico feito relativamente ao dispositivo jurídico-legal em vigor no concernente aos direitos económicos das mulheres, concluímos o seguinte: a) O Código Civil guineense, que contém as disposições legais relativas à família, incluindo o direito sucessório, carece de revisão urgente, por não se ajustar ao contexto atual do país (é da época colonial) e por contrariar os princípios de igualdade entre homens e mulheres consagrados na Constituição da República. b) Os usos e costumes prevalecem muito fortes na aplicação prática dos direitos económicos das mulheres, originando situações em que o direito positivo é ignorado pelo poder tradicional. Tal facto desfavorece as mulheres (sobretudo do mundo rural) no que tange ao direito à propriedade, ao direito ao crédito, aos direitos provenientes da separação e divórcio e aos direitos à herança, nos quais as viúvas e as filhas são ainda mais fortemente penalizadas. c) Apesar de as mulheres serem as principais trabalhadoras da terra como agricultoras e produtoras, (55% da produção agrícola é efetuada por mulheres), a terra não lhes pertence. De acordo com o que está estipulado na Lei da Terra, a gestão das terrenos concedidas por uso consuetudinário é remetida aos usos e costumes da comunidade local. Na prática, o direito de uso da terra é dado à mulher somente através dos seus maridos e de outros membros masculinos da família.

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d) Algumas atividades e profissões de caráter menos formal, como a de empregadas domésticas, não são cobertas pela Lei Geral do Trabalho, ficando as mulheres que as praticam despossuídas dos seus direitos trabalhistas. Fica igualmente o Estado sem poder captar impostos sobre estas atividades que geram rendimentos não negligenciáveis. e) Enquanto executoras de atividades económicas, as mulheres beneficiam de microcréditos que lhe permitem contribuir economicamente para a gestão da casa e a educação dos filhos, mas o seu acesso a créditos de maior envergadura dados pelos bancos é limitado. f) Sem direitos garantidos no que concerne o acesso à terra e outros recursos produtivos, as mulheres têm menos oportunidades económicas que os homens, pelo que ficam mais vulneráveis face à pobreza crescente. Para reverter esta situação penalizando as mulheres, fazemos estas recomendações: I. Às organizações e instituições nacionais e internacionais governamentais e não-governamentais que trabalham para a proteção dos direitos humanos e para a promoção do género, incluindo as ONGs associadas à Casa dos Direitos, que desenvolvam um trabalho concertado e multidirecional permitindo: 1) A realização, no mais curto prazo de tempo possível, as reformas legislativas que se impõem relativamente ao Código Civil guineense e outros dispositivos jurídicos afins, de forma a refletirem o contexto atual e a não contrariarem, de forma alguma, a Constituição como “lei mãe”, assim como as convenções internacionais ratificadas pela Guiné-Bissau. Isto implica a revisão das leis de herança, divórcio, posse e propriedade


da terra, para garantir à mulher meios de produção e os mesmos direitos sucessórios que o homem. Neste sentido, as propostas da Faculdade de Direito de Bissau, no quadro da consultoria realizada para o efeito, poderiam constituir uma boa base de trabalho; 2) A promoção e implementação dos direitos trabalhistas às mulheres em geral, particularmente o direito ao trabalho digno, à remuneração justa, a férias, segurança social e assistência durante a maternidade. Seria importante integrar no Código Geral do Trabalho certas profissões mais informais e predominantemente femininas, como empregada doméstica, que não são ainda reconhecidas pela legislação em vigor, não gozando as mulheres que as praticam dos direitos trabalhistas; 3) A operacionalização da descentralização dos centros de acesso à justiça, com suporte num forte dispositivo de comunicação e informação, para sua ampla divulgação; Isto implicaria ainda a criação (ou o reforço) de mecanismos de apoio às mulheres no exercício dos seus direitos, incluindo centros de apoio (os Centros de Acesso à Justiça) aos quais elas possam recorrer, quando lesadas. 4) A adoção e implementação pelo Governo de uma política de cotas como um meio para acelerar o acesso das mulheres aos postos de tomadas de decisão; 5) O encorajamento de medidas de política visando garantir maior e melhor acesso das raparigas e das mulheres à educação e formação profissional, à sua capacitação para a liderança, bem como outras ações inscritas em estratégias de empoderamento das mulheres, permitindo melhorar o seu desempenho na liderança económica e política.

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II. À Casa dos Direitos e organizações associadas, que preparem e mobilizem os recursos permitindo a implementação de um programa de promoção dos direitos económicos das mulheres, possibilitando: 1) A mais ampla divulgação dos direitos económicos das mulheres junto das organizações de mulheres tanto no mundo rural como nas cidades, fazendo recurso a ferramentas e materiais de comunicação adaptados. 2) A informação, sensibilização e educação de líderes comunitários e autoridades tradicionais, assim como de associações e líderes juvenis, das zonas rurais e periferia urbana, permitindo dar-lhes a conhecer os direitos económicos das mulheres conforme constam no direito positivo. 3) A mobilização e construção de parcerias com instituições ou organizações vocacionadas para a formação e o reforço de capacidades de lideranças femininas na política e na economia. 4) A organização e disponibilização na Casa dos Direitos de uma base de dados e um reportório com bons endereços de instituições e profissionais competentes na área do direito económico e sua divulgação junto das organizações e instituições pertinentes. 5) A constituição de uma rede de consultores jurídicos com competência na matéria e disponibilidade de apoio a grupos e organizações de mulheres, associada à Casa dos Direitos.


B) CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES PARA A MUDANÇA DAS PRÁTICAS Após as constatações e análises feitas no capítulo anterior e concernentes às perceções, práticas e tendências observadas no terreno relativas aos direitos económicos das mulheres, dos sonhos e paradigmas que as animam, retirámos as seguintes conclusões: a) As mulheres, na sua larga maioria, não conhecem os seus direitos económicos segundo constam na Lei em vigor na Guiné-Bissau. As suas perceções estão enraizadas nos usos e costumes das respetivas etnias e/ou nas versões que lhes transmitiram do Islão. b) As mulheres são empreendedoras, não esperam que ninguém lhes diga o que fazer, tomam iniciativa e assumem o que pensam ser sua responsabilidade para com os seus filhos, família e/ou comunidade. Têm uma grande capacidade de dar a volta ao destino, de encontrar soluções ao seu alcance para tocar a sua vida para a frente, fazendo dos obstáculos desafios que enfrentam com coragem, dando prova de criatividade e perseverança. c) As mulheres representam um potencial de mudança formidável, tanto para elas, como para suas famílias e comunidades, para a Guiné-Bissau, se nos inspirarmos no seu exemplo e testemunho. d) No entanto, o seu empreendedorismo tende a favorecer e a justificar a passividade e por vezes mesmo uma certa revolta por parte dos homens, de muitos jovens também, que assumem, às vezes, uma postura de

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/ 6O De acordo com a conceção da alfabetização do Prof. Paulo Freire.

ciúme e vitimização, reclamando dos apoios marginais dados às mulheres pelas organizações de microfinanciamento, quando todo o sistema concorre para os beneficiar. e) Muitos jovens demonstram ter uma visão mais retrógrada que seus pais sobre as mulheres e os seus direitos, no mundo rural sobretudo e em particular nos meios com forte influência de um islamismo mais conservador e hermético. Apesar de serem mais alfabetizados, revelam boa dose de preconceito e ignorância sobre a matéria; a sua capacidade de “ler e escrever a sua própria realidade”60 é reduzida. Assumem uma interpretação mais fundamentalista dos valores tradicionais ou religiosos sobre a mulher e a família. f) A generalidade das mulheres sonham ver as suas filhas formadas (e os filhos também), para partirem da sua tabanca e irem buscar emprego nas cidades. Mesmo quando são empreendedoras de sucesso e grandes líderes respeitadas, mesmo reconhecendo que devem a sua realização económica e maior liberdade ao seu negócio, a grande maioria vivendo no interior e na periferia urbana não quer ver as suas filhas a fazer o mesmo trabalho nem a continuar a sua atividade económica. g) As raparigas sonham também em deixar as suas tabancas para irem estudar e encontrar outro tipo de trabalho nas cidades (e os rapazes igualmente). Nenhuma delas quer trabalhar a terra, nem fazer trabalho manual, que consideram extenuante e degradante, aspirando antes a serem funcionárias, ou diretoras ou mesmo ministras, em Bissau!


Face a tais conclusões, que recomendações fazer? Com objetividade e realismo, ao alcance dos atores engajados no empoderamento das mulheres como agentes de mudança e de promoção do desenvolvimento ao nível familiar, das comunidades e do país, lançamos-lhes antes estes desafios: I. Às organizações e instituições nacionais e internacionais, governamentais e não-governamentais promovendo o género e o empreendedorismo, incluindo as ONGs associadas à Casa dos Direitos: 1) Encorajar políticas, projetos e iniciativas de promoção do empreendedorismo rural para jovens e raparigas, através da formação profissional e capacitação para o empreendedorismo (gestão de negócio de pequena e média dimensão, pequenas tecnologias, inovação empresarial, economia criativa), através também do apoio a iniciativas-piloto que aproveitem e potenciem novas oportunidades na economia (nomeadamente com base na inovação e nas expressões culturais, que acrescentem valor de mercado a diversas atividades económicas das mulheres e explorem os nichos que vão surgindo no âmbito da designada economia criativa); 2) Incentivar a promoção de lideranças femininas para mudança nos projetos de desenvolvimento orientados para as comunidades e/ou direcionados para os jovens, do meio rural e urbano; 3) Promover e a inclusão das mulheres, jovens e raparigas nos espaços de concertação e de decisão relevantes, quer ao nível local, quer nacional, encorajando as boas práticas, divulgando-as de forma alargada, adaptada e apelativa; 4) Investir na informação, sensibilização e educação para a mudança,

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utilizando a escola como base de aprendizagem e formação das novas gerações na valorização da terra e da cultura como fontes de vida, de riqueza e de identidade, na promoção do género e da equidade como valores essenciais de uma cultura democrática, fazendo recurso a atividades inovadoras de educação para o desenvolvimento. 5) Promover a reflexão e o debate sobre políticas e estratégias para a melhoria das condições de vida no mundo rural com atenção particular para as mulheres e os jovens (rapazes e raparigas). II. À Casa dos Direitos e às ONGs associadas, 1) Assegurar a publicação de uma maleta de suportes de comunicação escrita e uma coletânea de materiais audiovisuais versando a temática dos direitos económicos das mulheres, incluindo informações sobre os instrumentos e mecanismos jurídicos de suporte aos mesmos. Velar pela sua mais ampla divulgação junto de associações de mulheres e de jovens, de líderes comunitários, bem como de autoridades tradicionais e regionais. 2) Organizar um conjunto de atividades de sensibilização e animação em torno da Casa dos Direitos, com jornadas de promoção de arte e empreendedorismo declinados no feminino, incluindo círculos de debate e aprendizagem mútua, série de reportagens audiovisuais, lançamento de produção artística ou literária, feiras e festivais da mulher empreendedora, teatro de rua… 3) Conceber e realizar experiências piloto de valorização da terra e da cultura nas escolas das zonas de intervenção das ONGs de desenvolvimento associadas à Casa dos Direitos (ex.: jardins escolares, viveiros,


oficinas e ateliers temáticos, lojinhas com produtos da terra e cantinas escolares com formação em gastronomia tradicional); 4) Identificar e implementar em parceria entre algumas ONGs associadas à Casa dos Direitos e o Ministério da Educação, um programa-piloto inovador de educação para a promoção do género e equidade nas escolas, a testar num número reduzido de escolas de alguns bairros da capital e de algumas tabancas do interior; 5) Organizar e realizar um atelier de reflexão e proposta de políticas e partilha de boas práticas para a promoção e valorização da mulher na economia e na política sob o lema: “Abrir as portas às mulheres guineenses, na economia e na política!”

C) APONTAMENTOS FINAIS Se as mulheres são consideradas como promotoras de desenvolvimento e motoras da economia, dado o seu papel no sector agrícola, base do desenvolvimento económico da Guiné-Bissau; se nas regras dos usos e costumes que regem a vida da grande maioria das mulheres guineenses, que vivem e trabalham no mundo rural, não lhe são reconhecidos direitos de propriedade de terras e de bens de grande importância; então pode-se compreender porque todas aquelas com quem conversámos sonham ver suas filhas estudar, para saberem ler, como os homens, terem uma profissão que elas considerem digna, irem viver para a cidade onde acham que a vida é mais fácil. Para se livrarem das canseiras dos trabalhos do campo e da subjugação da mulher intrínseca ao sistema tradicional que domina no interior. E neste ponto, partilham dos mesmos sonhos e paradigmas que as suas filhas.

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Mas o que acontecerá ao mundo rural se continuar a se esvaziar dos jovens e das raparigas que são o seu futuro? O que acontecerá então à terra e às riquezas produzidas por estas bravas mulheres e seus familiares, do presente e do passado? Com a tendência para o açambarcamento de terras em África, que já se vem fazendo notar também na Guiné-Bissau, qual será o futuro destes jovens? Alguns ficarão na cidade, vivendo de pequenos expedientes e se empobrecendo cada vez mais porque não terão ali recursos para provirem sua subsistência. Mas outros regressarão à sua terra onde, porém, não terão mais a sua propriedade, ocupada pelos novos proprietários do agronegócio. Poderão, eventualmente, obter algum emprego junto destes como mão-de-obra desclassificada, passando de herdeiros legítimos da terra dos seus antepassados, para simples operários rurais e servidores dos seus novos colonos. E aqui voltaremos, quiçá, a procurar o mundo da nossa mulher-grande Cantucha, a cabongha do Arquipélago dos Bijagós, para nos inspirarmos para construir novos paradigmas. Onde o homem e a mulher voltarão a dar-se as mãos, para refazerem suas vidas no mundo rural, nas cidades também, partilhando mais equitativamente as tarefas, responsabilidades e o fruto do seu trabalho, como o homem e a mulher bijagós construíam suas casas. Mas metamorfoseando-se, capitalizando as aprendizagens do formidável legado destas mulheres empreendedoras, capazes de fazer das fraquezas forças, de reinventar suas vidas, de criar e partilhar riqueza, inovando. É lá, no mundo rural, onde existe terra e recursos naturais, donde saíram suas raízes, que tem o suporte para construir o seu futuro assim como o da Guiné-Bissau. Porque, nos tempos atuais, onde a terra e os recursos naturais são bens preciosos cada vez mais cobiçados, é no mundo rural que este país


tem a sua mais-valia e as bases para a sua segurança alimentar, económica e cultural, o sustentáculo para o bem-estar de todos os seus habitantes, quer vivam no campo, quer nas cidades. No entanto, não é possível nem desejável defender um regresso ao campo idílico, permanecendo este votado ao abandono, como tem sido, onde as condições de vida são duras, nem há oportunidades de acesso a melhores forma de vida, para a juventude em particular. Para que seja possível a todos, os que vivem na cidade ou no campo, mais velhos e mais novos, olharem para o mundo rural com outros olhos e esperar poder ali viver em dignidade, é imperativo mudar políticas e introduzir formas de valorizar a economia rural, criar condições de investimento apropriado, incentivar investigação adequada e virada para as necessidades do mundo rural, investir em energias renováveis e tecnologias simples, mas facilitando o trabalho e a vida no campo, melhorar a educação, os transportes e as comunicações, promover a cultura e o lazer. Enfim, fazer do campo a pedra angular da economia guineense, donde vêm os recursos, mas para onde convergem os benefícios de um desenvolvimento equilibrado ao serviço dos guineenses vivendo no mundo rural e nas cidades. E mais! Há necessidade de se operarem transformações profundas nas relações sociais e na divisão da carga do trabalho entre o homem e a mulher, no campo e na cidade, para um maior equilíbrio, ao serviço do bem-estar das famílias e do desenvolvimento do país. E então teremos cumprido mais um ciclo da nossa história, porque “Volta di mundo i rabo de pumba!”. Bissau, Setembro de 2015

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GLOSSÁRIO Abota Sistema tradicional de poupança e crédito, que funciona com base em grupos de solidariedade, normalmente constituído por colegas de uma mesma atividade económica, ou pessoas com interesse comum residindo ou trabalhando num mesmo local. Amontondade malandragem; preguiça. Bolanha terreno alagado situado em zonas húmidas, normalmente de grande fertilidade e vocacionado para a lavoura do arroz. Bemba celeiro, local onde se guarda a sementeira, normalmente nas traseiras da casa de habitação.

Bidera termo resultante da palavra “bida”, que, em português, significa vida. Aplica-se às mulheres que vendem algo para ganhar a vida: fasi bida. Ou seja, refere-se a mulheres que desenvolvem atividades comerciais de uma forma independente, por conta própria. Bom minjer i minjer manso expressão que significa que a mulher ideal é aquela que é mansa, dócil. Cabongha homem ou mulher-grande bijagó, que já cumpriu todas as cerimónias e está no estádio superior da hierarquia sociocultural. Combé bivalve semelhante ao berbigão muito utilizado pelos bijagós na sua alimentação e que é a sua principal fonte de proteína animal.


Cota termo de origem angolano e já muito vulgarizado em Portugal e nos PALOP que significa homem ou mulher velho ou velha. Cuntangho Arroz cozido limpo, sem molho nem nenhum acompanhamento. Debruiagem desenrasque, encontrar soluções alternativas. Dona-casa primeira esposa, num casamento poligâmico. Djorson linhagem. Djumbai conversa animada. É um recurso metodológico utilizado para favorecer uma comunicação com maior interação dos entrevistados em sessão de grupos focalizados.

Fazer bida vender algo para ganhar a vida, fazer negócio. Feki limpar o arroz depois de debulhado, recorrendo a um balaio para separar os grãos da areia, das pedrinhas e outras impurezas. Fundinho Calça do vestuário tradicional muçulmano. Tem fundo muito lago e é estreito nas pernas, terminando no meio da canela. O fundinho é a vestimenta utilizada pelos lutadores mandingas quando praticam a luta-livre. Fundo cereal da família dos milhetos. Golpi ta dana nogós Os golpes de Estado dão cabo do negócio.

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Hadja Título honorífico dado às mulheres muçulmanas depois de terem feito peregrinação a Meca. Kebur colheita. Kopoti revirar o solo com ajuda de uma enxada pequena, para retirar as raízes e preparar a terra para a sementeira. Lala savana herbácea, coberta de gramíneas, que são utilizadas como palha para cobrir as casas. Lebsimento Falta de respeito; desconsideração. Lingron bivalve semelhante aos canivetes, muito apreciado pelos bijagós e utilizado em certas cerimónias.

Lumo mercados ou feiras de proximidade semanais organizados a céu aberto pelas comunidades em diferentes localidades do interior do país e nas zonas transfronteiriças, servindo de principal praça de acesso e bens e serviços comerciais e de permuta. Lugar campo para a lavoura (do arroz de sequeiro, do feijão, da mancarra, do milho…). Mafé parte importante da cozinha tradicional guineense consistindo em molhos preparados com proteína animal (carne, galinha, peixe ou marisco) que se põe sobre a comida (bianda). Mampufa esteira feita a partir de uma planta herbácea que abunda nas zonas húmidas do país.


Matchu-mindjer mulher masculinizada, com aspeto, atitudes e comportamentos de homem. Mato mato; floresta; zonas do interior geralmente coberto de essências florestais, palmar ou outras árvores não cultivadas. Mindjer-baguera mulher abelha. Mistida Assunto de interesse pessoal. Pode ser uma cerimónia, um bem pessoal, uma viagem. N’ta busca, N’ka ta furta expressão em crioulo que significa eu empreendo, não roubo! Pabi desbravar o mato para preparar o terreno para a agricultura. Sapu ta cume si labur Ditado crioulo que significa “todo

aquele que trabalha deve poder comer o fruto do seu trabalho”. Siti-malgos óleo amargo, um óleo prodigioso utilizado para fazer massagens contra dores de barriga (sobretudo dos recém-nascidos), dores musculares, cefaleias e para alívio de dores de dentes e do ouvido. Volta di mundo i rabo di pumba Ditado crioulo que significa que o mundo é redondo e avança em círculos, com ciclos de progressos e retrocessos. Warga Um chá forte e doce, muito apreciado entre os muçulmanos da África Ocidental, que é servido e partilhado por muitos num mesmo copo, como símbolo de convivialidade. Yamba Cannabis.

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ACRÓNIMOS ACEP Associação para a Cooperação entre os Povos AD Acção para o Desenvolvimento, ONG guineense ADI Associação para o Desenvolvimento Integrado, ONG guineense ADIM Associação para o Desenvolvimento Integrado da Mulher, ONG guineense AMAE Associação das Mulheres de Atividade Económica, ONG guineense AMIC Associação dos Amigos das Crianças, ONG guineense AMPC Urok Área Marinha Protegida Comunitária das ilhas Urok (Formosa, Nago e Chediã) AMUPEIXE Associação de mulheres que se dedicam à transformação e comercialização do peixe APALCOF Associação para a Luta contra a Fome BAMBARAM ONG guineense BDU Banco Da União CC Código Civil CPCA Caixas de Poupança e Crédito Autogeridas CRGB Constituição da República da Guiné- Bissau CPCPAN Cooperativa para a Promoção e Comercialização de Produ tos Agrícolas. DENARP Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza


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DIVUTEC Associação Guineense de Estudos e Divulgação de Tecnologias Apropriadas FDB Faculdade de Direito de Bissau LGDH Liga Guineense dos Direitos Humanos, ONG guineense IMF Instituições de Micro Finanças INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas ONG Organização Não-Governamental OSC Organização da Sociedade Civil PARMEC Programa de Apoio à Reforma de Mutualistas de Poupança e Crédito RAMAO Renascença Africana das Mulheres da África Ocidental SFD Sistemas Financeiros Descentralizados SNV ONG holandesa TINIGUENA Esta Terra é Nossa, ONG guineense


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BIBLIOGRAFIA ACEP, AD, AMRU, SOLMI, TINIGUENA (1999), O Associativismos e o Micro-crédito na Luta Contra a Pobreza pela Promoção do Bem-Estar Rural: Estudos de Casos em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique. AFDB, OECD, UNDP (2014), Perspectivas Económicas em África 2014, Países Africanos da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, Edição Regional, http://www.africaneconomicoutlook.org/fileadmin/uploads/aeo/2014/ PDF/Regional_Editions/Edition_Lusophone_web.pdf BALDÉ Bubacar, (2013), O sector financeiro e as instituições do sector privado na Guiné-Bissau: descrição, constrangimentos e políticas a adotar, Bissau. DE BARROS, Miguel (2009), Economia Informal e Estratégias Juvenis em Contexto de Contingência, INEP, Bissau. Fórum pour le Partenariat avec l’Afrique Unité de Soutien (2007), Égalité des sexes et émancipation économique des femmes, Aperçu nº3, September, Berlim. Faculdade de Direito de Bissau (2006),Centro de Estudos e apoio às Reformas Legislativas Guiné-Bissau, Código Civil e Legislação Complementar, Lisboa. FDB e INEP (2011), Relatório final do projecto de recolha e codificação do Direito Consuetudinário Vigente na República da Guiné-Bissau, Bissau. GOMES, Patrícia, (2010).,“As mulheres do sector informal. Experiências da Guiné-Bissau.”, in Africa. Puentes, conexiones e intercambios, Actas del VI Congreso de Estudios Africanos en el mundo ibérico, Las Palmas, Aquario, pp. 682-701. HANDEM, A., BARBOSA, F. (2008), Relatório Síntese, Condições de Vida da Mu-


lher Guineense nas esferas da vida social, económica, cultural e política, Bissau. HANDEM, A. (2006), As dinâmicas organizacionais no contexto informal, O caso das Associações de Mulheres, Ghatenkar Na Ubom (Ajuda Mútua), Bissau. Lei nº 4/2008 de 21 de Março, Regulamento bancário, Bissau. Lei nº 9/2008 de 26 de Agosto, Sistemas financeiros descentralizados, Bissau. Lei nº 5/98 de 28 de Abril, Lei da Terra, (suplemento do B.O Nº 17), Bissau. LOPES, Cátia (2013), O Papel da Mulher no Microcrédito na Guiné-Bissau. Estudo de Caso em Pitche e em Pirada, Cátia Lopes, ISEG, Lisboa. http://pascal. iseg.utl.pt/cesa/files/Doc_trabalho/8-CatiaLopes.pdf, pp.107-122. Ministério da Economia do Plano e Integração Regional, FMI (2011), Segundo Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza (DENARP II),Bissau. MICS (2010), Inquérito aos Indicadores Múltiplos, Seguimento da Criança e da Mulher, Bissau. PNUD (2014), Relatório de Desenvolvimento Humano, PNUD, Nova Iorque. SAID, A. (2011), Promover a Soberania Alimentar, Fortalecer o Economia e a Governação Local, Estudo Socioeconómico da Zona de Intervenção do Projeto “Anós Ku Tem Tera”, Bissau. República da Guiné-Bissau (1996),Constituição da República da Guiné-Bissau, Bissau. UNIFEM e do Pacto Global das Nações Unidas (2010), Princípios de empoderamento das mulheres, igualdade significa negócio, http://www.unifem.org. br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=119216

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20 HISTÓRIAS DE VIDA

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SINTA NA GABINETE KA TA NADA, SON SI FURTA. FUTURO I NOGÓS!1 130

ADAMA DJALÓ EMPRESÁRIA DE COMERCIALIZAÇÃO DE PEIXE E PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE ARROZ 1 Ficar sentada a fazer trabalho de escritório não dá nada, só se for roubar. O futuro está no negócio!

“Desafio qualquer um no negócio! N’ta buska, N’ka ta furta!1 Tenho 22 pessoas que alimento em minha casa, entre irmãos, sobrinhos e primos e isso graças ao meu empreendedorismo. Neste momento tenho 3 negócios importantes, o 1º de peixe, o 2º de castanha de caju e o 3º de lavoura de arroz, para além de pequenas atividades geradoras de renda (venda de sorvete e butique) que apoio os meus familiares a fazerem em casa. Contribuí para a fundação e estou engajada em duas cooperativas, a AMUPEIXE2 que tem 156 associadas e a CPTCPAM3, com cerca de 2000 membros. Sou 1ª Vice-Presidente da AMAE4, sou Vogal do Conselho Fiscal da Câmara do Comércio. Faço parte de redes nacionais e internacionais de mulheres empreendedoras como a RENAMUP-GB e da COMOFA e viajo muito para o fora do país por causa disso. Tenho poupança e conta pessoal em dois bancos que me dão crédito quando preciso. Sim, sou orgulhosa e tenho muita ambição!” Esta é a Adama Djaló, mulher de 57 anos, respira dinamismo e autoconfiança. É determinada e ousada tanto na sua vida privada, como nos seus negócios. Ela recebeu-nos na sede da AMAE , num pequeno intervalo de tempo que arranjou entre duas viagens para o exterior. Perguntámos-lhe como tudo começou? “A situação da família é que me obrigou a fazer negócio. Eu tinha 19 anos quando o meu namorado emigrou para a França e fiquei grávida do meu filho mais velho. Ele é manjaco e eu sou fula. Eu era funcionária do Ministério da Defesa, onde trabalhei no departamento da contabilidade. Atualmente estou ainda neste ministério onde sou Diretora de Serviço de Relações Públicas.” E quando começou a sua atividade económica? “Comecei o negócio em 1991. O Ministério dava géneros alimentícios aos militares e aos funcionários. Duas vezes por semana recebíamos senhas para 1 2 3 4

Eu empreendo, não roubo! AMUPEIXE – Associação de mulheres que se dedicam à transformação e comercialização do peixe. CPCPAN – Cooperativa para a Promoção e Comercialização de Produtos Agrícolas AMAE – Associação das Mulheres de Atividade Económica.


ir levantar 2 caixas de pescado de primeira, que vinha da pesca industrial. Eu não precisava de todo aquele peixe e por isso dividia com alguns colegas que vendiam-no às bideras5.” Adama percebeu então que isso era um negócio bastante rentável e decidiu pedir mais requisições para levantar maior quantidade de peixe. Mas não se ficou por aí, começou de seguida o negócio do telefone fixo. “Naquele tempo, não havia muita gente que tinha telefone em casa. As pessoas pediam-me para receber chamadas e telefonar por favor. Acabei montando um sistema que dava para contabilizar as chamadas e muitos vizinhos iam ligar para o interior ou para fora do país e pagavam. Então, juntei aquilo que ganhava com os dois negócios e passei a pedir requisições para maiores quantidades de pescado, uma a duas toneladas. Ganhava bastante dinheiro, é certo, mas tinha uma vida de muitos sacrifícios. Levantava-me todos os dias às 5H00, para estar na SEMAPESCA6 ou na GUIALP7 às 5H30 para levantar as requisições e distribuir pelas mulheres bideras com quem trabalhava, de forma a poder estar no trabalho pelas 7H30, pois tinha o livro de ponto a assinar antes das 8H00!” Visão, ambição e determinação são características que Adama reconhece ter e que lhe permitiram prosperar. Com um sorriso aberto, que aprendeu a recorrer para cativar seus interlocutores, ela prossegue a sua história de empreendedora exímia: “No negócio, é bom ter escala. Enquanto as minhas colegas falavam e pensavam em grandes lucros, eu pensava em pequenos investimentos. Trabalhava com 150 mulheres bideras que abasteciam mercados em Bissau e nas regiões! Por vezes não conseguia acabar de entregar todo o pescado que levantava, mas tinha colegas que davam uma mão e acertávamos as contas mais tarde. Isso me deu a ideia de fornecer o produto a crédito. Eu comecei a dar o pescado a crédito, para encorajar aquelas que não tinham dinheiro suficiente para comprar grandes quantidades a pronto pagamento. Tinha um jovem da família que, a meu pedido, ia fazer a recolha dos reembolsos e me entregava. Naquele tempo eu não tinha carro, era com o táxi que trabalhávamos…” Adama faz uma pausa, respira fundo e retoma sua história com entusiasmo, sorrindo sempre! “E… circunstâncias me levaram à castanha do caju. Em 2010, juntamente com alguns amigos e conhecidos, criámos uma cooperativa com 90 associados, a CPCPAN – Cooperativa para a Promoção e Comercialização de Produtos Agrícolas. Mas mantinha sempre o negócio da venda do peixe…” Com a cooperativa, Adama entrou para o mundo do import/export. “Exportava a castanha para a Índia. Os meus intermediários eram os membros da cooperativa, todos comerciantes que iam buscar a castanha junto dos produtores e vinham trazer para os armazéns, que alugávamos a 750.000 CFA mensais, durante o período da campanha, três a quatro meses. Fomos continuando o negócio durante 5 Bideras: mulheres que desenvolvem atividades comerciais de uma forma independente, por conta própria. 6 SEMAPESCA: Empresa estatal de processamento e comercialização do pescado proveniente da pesca industrial. 7 GUIALP: Empresa estatal de exportação do pescado proveniente da pesca industrial, que viria a substituir a SEMAPESCA, quando esta faliu.

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dois anos e depois…” Adama suspende a sua narrativa e, alargando ainda mais o seu sorriso ela prossegue, explica que não chegaram ao bom entendimento na cooperativa, sobretudo entre os homens e ela decidiu tomar a liderança e começar uma outra cooperativa. “E assim, em 2012 criámos a Cooperativa para a Promoção, Comercialização, Transformação e Exportação de Produtos Agrícolas Nacionais, que reúne cerca de 2000 associados e da qual sou a Presidente, havendo 10 mulheres na sua direção.” A CPCTEPAN foi legalizada em 2012, tem sede em Bissau e representação em quase todas as regiões do país, empregando 30 estivadores que fazem o stock e o processamento do caju, o seu produto-rei. “Tivemos o apoio da FUNDAI no início e agora trabalhamos com empréstimo bancário. Exportámos 2250 toneladas de castanha em 2012!” Conclui a Adama, com brilho nos olhos e o peito inchado de orgulho. E retoma: “Mas continuo com o negócio do peixe! Desde 1995 que faço parte da AMUPEIXE da qual sou a Presidente. Por causa desta associação que entrei para a AMAE, da qual fui a Secretária Executiva até recentemente. Foi graças ao meu negócio do peixe que pus os meus dois filhos a estudarem, ambos fora do país. Acabei há pouco tempo de construir uma casa com duas moradias bem espaçosas, que comecei há 20 anos! Quem vai-me herdar? São os meus dois filhos, cada um ficará com uma moradia e o resto partilharão. Sim, porque além do peixe e do caju, entrei ainda num outro negócio, o da agricultura. Mas isso é uma outra história, para contar num outro dia, hoje tenho um voo a apanhar!” Insistimos para ela contar resumidamente essa parte da sua “história” e ela não se fez rogada. “No ano passado abri uma ponta no Sul, na zona de Tite, onde fiz arroz de mangrove. Cultivei sete hectares e como tive bom resultado, mandei fazer uma casa simples e guardei ali quinze sacos de arroz para servir neste ano de sementeira. As pessoas com quem fiz a lavoura me ajudaram a levantar a casa, a gente do interior é solidária… Mas ainda não acabei a casa, vai ser com o tempo…” Quisemos saber quais são os seus sonhos. Os olhos da Adama tornaram-se ainda mais brilhantes e o seu sorriso transformou-se em gargalhada franca: “Sonhos? Ah! É ir sempre em frente! Já tenho ideia de outros projetos, mas é ainda cedo para falar deles. No entanto, o meu sonho maior é ver os meus filhos a irem bem na vida, fazerem seus próprios negócios para cuidarem do futuro dos seus filhos. Porque já tenho cinco netos! E o que sonho para eles? Que estudem bem e sejam honestos na vida. Para a minha neta, que é uma menina maravilhosa, aplicada na escola, desejo que seja uma mulher batalhadora e procure a sua autossuficiência. Que encontre um bom negócio que goste de fazer, para singrar na vida, como eu. Comigo, tudo começou com o negócio do peixe. Porque sinta na gabinete ka ta da nada, son si furta. Futuro i nogós! ” Conclui, finalmente, a sua narrativa e saiu a correr para ir apanhar o seu voo.


SAIR DA CASA MUITO CEDO, PARA VOLTAR MUITO TARDE, É MUITO ARRISCADO PARA UMA RAPARIGA QUE MORA NO BAIRRO MILITAR AISSATU CANTÉ EMPREGADA DOMÉSTICA EM BISSAU Chamo-me Aissatu Canté, tenho 28 anos. Nasci de mãe balanta e pai fula. Somos oito irmãos, mas só quatro são do mesmo pai e mãe. Destes, eu sou a única menina. O meu pai era empresário, mas por razões de saúde deixou de trabalhar e foi para Portugal em 2001, onde acabaria por falecer em 2010. A minha mãe também emigrou para Portugal desde 2008, onde trabalha como empregada doméstica. Graças a este trabalho pode sustentar-nos, enviando-nos algum dinheiro, todos os meses. Também conseguiu construir uma casa aqui em Bissau, no Bairro Militar, onde moramos hoje. Sou-lhe profundamente reconhecida por isso, pois não sei o que seria de mim e dos meus irmãos sem essa casa, porque não teríamos dinheiro para pagar renda.” Aissatu conta-nos a sua história com emoção contida, recordando o seu percurso com um misto de tristeza e riso nervoso. “Quando o meu pai estava de vida e trabalhava, nada nos faltava, estudávamos nas melhores escolas, eu estive no Liceu João XXIII! Mas depois que ele faleceu, o pouco que minha mãe nos mandava não dava para custear todas as nossas necessidades e tive que deixar essa escola até porque me deram em casamento com um primo do lado do meu pai. Mas eu não queria! Porque é que eu não queria? Porque não gostava dele, não fui eu que o escolhi!” E assim, a Aissatu lá esteve casada segundo os usos e costumes, durante três anos. “Porém, aos poucos e sem perceber bem como e porquê (talvez “i yandan muro”1, comecei a gostar do meu marido e já não sabia viver sem ele. Foi quando ele conseguiu uma bolsa de estudos e foi para a Rússia, deixando-me na casa da sua família.” Mas Aissatu não se entendia com os familiares do marido, até porque depois de três anos casada, não tinha filhos. Isso acarretou também problemas com o marido, que resolveu casar-se com uma 1 Yanda muro: Recorrer a um especialista de trabalho de “mistério” (sortilégio), capaz de fazer alguém gostar de outro independentemente da sua vontade

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russa. Pediu então à Aissatu para sair da casa da sua família e voltar à casa dos pais dela. “Como eu não lhe tinha dado filhos, tive que obedecer e assim voltei para a minha família. Sofri muito, porque não tinha como aguentar com as minhas despesas, que eram suportadas antes pela família do meu ex-marido. Aquilo que minha mãe nos manda é pouco. Por isso decidi procurar trabalho como empregada doméstica. Também porque queria retomar os meus estudos.” Mas as atribulações da vida da Aissatu não tinham acabado. “O trabalho como doméstica é duro. Aprendi muito, mas também sofri muito. A minha patroa era muito exigente e por vezes ela não respeitava os meus direitos. Mas que fazer? Não tinha a quem recorrer nem alternativas! Até que um dia acabei mesmo por deixar esse emprego pois não dava para conciliar o horário do trabalho com o da escola. Tinha que fazer o turno da noite, o que era difícil para mim. Voltar para casa muito tarde e sair da casa muito cedo, para uma rapariga que mora no Bairro Militar, é muito arriscado, por causa dos ladrões. Um dia, uma bidera com quem costumava atravessar o bairro de manhã cedinho, para fazermos companhia uma à outra, foi assaltada na minha frente e lhe levaram todo o dinheiro que tinha para ir comprar o peixe para fazer o seu negócio. Eu fiquei a tremer de medo, mas eu não tinha dinheiro, só o meu telemóvel, que lhes dei, mas eles não o quiseram por ser velho!” Recorda a Aissatou rindo-se daquele momento difícil, que prefere lembrar com humor. E agora? O que faz para viver? “Atualmente namoro com uma outra pessoa, apesar de ainda gostar muito do meu ex-marido. Mas que fazer? Ele está na Rússia com a sua russa e eu aqui… O meu namorado atual oferece-me cinquenta mil CFA para eu montar um pequeno negócio. Quero ir comprar roupa, sapatos e bijuterias à Gâmbia ou ao Senegal e vir revender aqui em Bissau, como vejo muitas fazerem.” Que sonhos tem para o seu futuro? Aissatu diz com um largo sorriso e gestos decididos: “Hei-de voltar a casar-me com um homem de bem, ter filhos e ajudar os meus irmãos a serem bem-sucedidos na vida. Assim, vou mostrar a todos familiares do meu pai, que me viraram as costas quando eu mais precisava, que consegui vencer na vida!”


OS JOVENS DE AGORA NÃO QUEREM TRABALHAR. PROCURAM MULHER PARA LHES SUSTENTAR AS 4 RAPARIGAS DO LICEU HO CHI MIN DE CANCHUNGO Elas são quatro raparigas que frequentam o Liceu Ho Chi Min de Canchungo. Encontrámo-nos com elas durante a comemoração do aniversário do liceu, no “fogão”, onde preparavam o almoço para professores e colegas. Fanta, Narcisa, Mama e Dalila são amigas que partilharam connosco como vêm a vida e perspetivam seu futuro. “Para mim ter bom futuro é poder estudar, para depois se ter um bom trabalho e encontrar um bom marido. Casamento para mim significa respeito”. Diz entre risos, a primeira que se aventurou a romper com a timidez e a pronunciar-se. “Escola, para mim, é ter uma boa formação, para ter um bom emprego. Significa fim de lebsimento1! Avançou uma segunda, que se manifestou com veemência. A terceira das colegas de liceu foi mais direta e loquaz. “Se eu ganhar dinheiro, quais as minhas prioridades? Primeiro, pagar a minha própria escola. Segundo, dar educação aos meus filhos. Terceiro, ajudar a minha família. Hoje em dia nós as raparigas temos que trabalhar para nós mesmas, para levarmos a nossa vida para a frente. Os homens de agora não te dão nada! Até se não fizeres atenção, ainda comem o fruto do teu calor. Um bom homem para mim o que é? É alguém que te trate bem, te respeite e possas apresentar à tua família como teu. Não é quem já tem outra mulher em casa e tu és apenas mais uma das suas namoradas”. A quarta rematou, acutilante: “Os jovens de agora não querem trabalhar! Apenas curtir e procuram uma mulher para lhes sustentar!” E lá regressaram as quatro aos seus cozinhados, conversando e rindo-se alto, entre tachos e panelas, o fumo e o odor delicioso da cafriela2 a grelhar no fogareiro…

1 Lebsimento: Falta de respeito 2 Cafriela: prato da gastronomia crioula, constituído por frango grelhado e molho preparado com muita cebola, limão e malagueta.

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MULHER TRANSMITE VALORES! ASSOCIADAS DA APALCOF HORTICULTORAS, VENDEDEIRAS DE HORTÍCOLAS EM CONTUBOEL 136

Já estávamos no fim da visita ao Leste, que fizemos no quadro do diagnóstico sobre “Os direitos económicos das Mulheres”. A última reunião, para a qual tínhamos muito pouco tempo disponível antes do regresso a Bissau, era em Contuboel, com a APALCOF, na sua sede. Vieram 23 mulheres, vestidas a preceito com suas roupas tradicionais coloridas, descontraídas e entusiasmadas com a oportunidade de virem falar da sua associação e do trabalho que realiza. Elas se apropriaram rapidamente do tema em debate e engajaram uma discussão animada em torno das questões que lhes fomos colocando: o que é riqueza para elas, como é gerida e transmitida em herança, o papel do homem e da mulher nesse processo, as mudanças que se têm vindo a operar nas suas comunidades e como afetam a mulher, visão do futuro para suas filhas, sonhos… “Entre nós os fulas, as principais riquezas são: 1º) A vaca, porque te dá crias; 2º) As filhas, por causa do dote que o pai recebe pelo seu casamento; 3º) A horta, por causa das hortaliças que ali produzes e podes vender; 4º) A casa, onde moras.” “Porque a filha era de certa maneira objeto de transação, se ela era bonita, o valor do dote que se propunha ao pai para a desposar subia. Pelo casamento, entre os futa-fulas, o pretendente dava uma vaca (ou mais) à noiva. Se essa vaca tivesse um bezerro, era pertença do marido, mas se tivesse uma bezerra era da mulher. Isto era assim antigamente, mas agora estamos já todos misturados. Mas o que mudou mesmo foi o casamento forçado que acabou!” “No que toca à herança, quem tem direito são os filhos varões, porque as filhas vão para o casamento. A bolanha é do homem mas o trabalho na bolanha é da mulher… O gado também é do homem, porém algumas mulheres podem ter as vacas que lhes deram como dote ou então compraram e elas ficam no curral do marido. A casa também é do homem. Mas agora muitas mulheres têm capacidade económica de fazer suas próprias casas. E quem herda os seus bens? Os seus pertences pessoais (roupa, utensílios domésticos, mobiliário) são para a filha. No entanto, é o filho varão que herda a casa e as vacas que a mãe tiver. Entretanto, se uma das suas irmãs estiver mal no casamento e deixar o marido, ele a acolhe e lhe dá um quarto na casa da família para ela


por os seus pertences. Também lhe pode dar uma parte do terreno para ela cultivar.” “Antigamente, quando a mulher não tinha filhos, não tinha direito à herança nem a nada! Dizia-se que mindjer sebado1 não tem valor, nem é ouvida, é vergonha para sua família. Mas tudo isto está a mudar. O que ajuda a mudar os costumes, é a escola, é a Lei. Mas também a educação, que se dá em casa pode ajudar! Porque a mulher transmite valores! Ela é que educa os filhos em casa. Por isso, agora, aqui em Contuboel, as coisas mudaram muito, graças às mulheres da APALCOF. É frequente ver-se agora tanto as filhas como os filhos todos a ajudarem suas mães na horta. Para aliviarem o seu trabalho e porque é de lá que vem o sustento da família!” Por causa da viagem de regresso, tivemos que encerrar a reunião, quando o debate estava no seu auge. Tomámos o caminho para Bissau, deixando atrás aquelas mulheres formidáveis, que nos acolheram com tanta simpatia e atenção e partilharam connosco suas histórias de vida, suas conquistas e ensinamentos. Acompanharam-nos até a viatura e ficaram a acenar-nos com seus lenços esvoaçantes até a distância fazer delas uma mancha colorida no fundo da estrada.

1 Mindjer sebado: Mulher que não pode ter filhos.

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TEMOS QUE PROMOVER A IGUALDADE DE GÉNERO, EDUCAR FILHO E FILHA DE IGUAL MANEIRA! 138

ASSOCIADAS DE PONTA NOBO MULHERES QUE TINGEM PANOS EM BAFATÁ Elas eram numerosas e tal como bando de pássaros afluíram ao pequeno recinto da sede da sua associação, esvoaçando seus lenços e panos coloridos, muitas trazendo seus filhos nas costas, nos braços. Eram alegres e ruidosas, afáveis e hospitaleiras. Juntarem-se para receber uma missão que seu parceiro DIVUTEC lhes trazia, era pretexto para se encontrarem e conversarem sobre seu trabalho, suas famílias, sua vida. “A Associação das Mulheres de Ponta Nobo foi registada em 2011”, começou a sua presidente, depois de acolher as colegas e a nós e dar início ao nosso djumbai. “Somos 215 associadas, todas nós fazemos agricultura aqui no vale do Rio Geba e muitas se dedicam à tinturaria de panos tradicionais. Nós somos mulheres empreendedoras e decididas. Depois de legalizadas, fomos até ao Comité de Estado pedir terreno para produzir arroz e hortaliças e em 2012, antes do golpe, conseguimos que nos cedessem 10 hectares no setor de Ganadu, por 4 anos. Conseguimos também obter financiamentos para construir no terreno cedido diques de aproveitamento da água para rentabilizar a rega e minimizar o nosso esforço”. Inchada de orgulho, a Presidente da AMPN concluiu a sua introdução. “Cederam-nos igualmente este espaço e mobilizámos apoios para construir e equipar o centro de tinturaria onde estamos agora reunidos e que inaugurámos recentemente, com o nome do nosso saudoso Demba Baldé, o malogrado Presidente da DIVUTEC que tanto nos ajudou.” Iniciado o debate, as opiniões são diferentes entre as associadas, sobre a produção e distribuição da riqueza no seio da família, os papéis do homem e da mulher na alimentação, educação e bem-estar dos filhos, as prioridades da aplicação dos rendimentos obtidos por uns e outros, a herança, os sonhos para o futuro das filhas. “Na aplicação do dinheiro, a primeira prioridade para nós as mulheres vai para a escola, depois para roupa, para a saúde e para a alimentação”, avança uma, ao que outra retorquiu: “O Homem, o seu dinheiro ganha-o só no fim do mês e não lhe chega. Compra arroz que traz para casa e por vezes, dá dinheiro para o mafé. Mas no mundo atual, se o teu marido põe um tostão, tu pões outro, para poderem comer bem em casa. Porque o homem, quando tem, distribui


para casa 1, 2 e 3, mas a mulher, todo o seu dinheiro vai para a família”! Uma terceira associada acrescenta: “As crianças nunca vão chorar diante do seu pai! Tudo o que precisam, vão dizer à mãe e é por isso que nos matamos a trabalhar, por causa dos nossos filhos. Por isso, se temos algum dinheiro, somos nós que decidimos como utilizá-lo”! Mas de seguida uma outra retorquiu: “Não consultamos os nossos maridos e é isso que gera conflito! As decisões devem ser partilhadas para haver respeito na relação entre o casal”! Sobre a herança, uma das presentes deu a sua opinião em como os direitos são iguais, entre o homem e a mulher. Mas logo de seguida uma outra a contrariou: “Isso é entre os brancos! Entre nós muçulmanos, é o homem que tem direito à herança. A mulher não!” De imediato se elevaram e multiplicaram vozes discordantes de muitas que não partilhavam desta interpretação do Livro Sagrado. “A partilha da herança é uma questão de consciência!” Conseguiu uma finalmente fazer-se ouvir. Contou então a história de um homem que fez a partilha dos seus bens em vida, dividindo a sua propriedade entre os seus nove filhos. Deu as três hortas que tinha para os filhos. Deu a casa para as filhas, porque “É às filhas que se deve dar a casa, pois são elas que trabalham e se cansam mais!”. E a narradora concluiu “Se Deus te der dois filhos varões, que te ofereça três filhas, pois são elas que se lembram da família!” Pedimos a opinião das mais novas que estavam presentes na reunião sobre quem é que tem direito a herdar os bens da família. “As nossas mães nos ensinaram que são os homens que devem herdar. Mas hoje em dia, assim como os filhos, as filhas vão à escola, trabalham fora de casa. Para nós são todos iguais e por isso devem ter todos direito à herança!” Respondeu-nos com algum nervosismos uma das noibas em nome das demais. Sonhos para as filhas? Também aqui as opiniões divergiram entre os membros desta associação que é símbolo da diversidade cultural, de pensamento e de opinião entre mulheres do Leste: “Bom casamento, bom marido!” Disseram as mais velhas. “Escola e trabalho para se valerem a si próprias!” Exprimiram algumas entre as mais jovens. “Para se formarem como doutoras, para poderem escolher livremente seus maridos” expressou outra. “Bom marido, sensato, de quem ela goste e que gosta dela, para terem bons modos, boas palavras um para o outro e se entenderem bem em casa!” “Para ela trabalhar e o seu marido também, contribuindo todos para o bem-estar da família”. “Que ela tenha juízo na cabeça!” “Eu não quero que a minha filha passe amanhã a mesma canseira que eu passei!” “Temos que promover a igualdade de género, educar filho e filha de igual maneira!” E assim terminou o nosso jumbai com as mulheres de Ponta Nova, com anedotas, risos, sessões de fotografia e visita obrigatória à loja de exposição-venda dos seus panos tingidos. Então, antes de partir, havia que deixar um pouco do nosso perdiem para a economia das associadas!

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MULHER IDEAL PARA OS BALANTAS É A MULHER DE RESPEITO! AUGUSTA CUMBÁ VENDEDEIRA DE HORTÍCOLAS EM CONTUBOEL 140

Encontrámo-la no Porto Canoa, em Bissau, a vender esteira de mampufa1 com outras mulheres que como ela vêm regularmente do outro lado do Geba, da Região de Quinará, para venderem produtos da terra variados. Ela é balanta da tabanca de Bessassema de Baixo. Ouviu-nos a explicar às colegas que estávamos a fazer um estudo sobre os direitos económicos das mulheres. Interessou-se, puxou-nos de lado e começou a contar-nos a sua história. Baixinho, como quem sussurra e com uma pincelada de tristeza no olhar e na voz. “Sou casada, o meu primeiro filho morreu com 25 anos! O meu marido tomou de seguida uma segunda esposa. Nós não nos entendemos e por causa dela, estava toda a hora a brigar com o meu marido. Acabei por o deixar e ir ficar na casa do meu pai. Agora, tenho que voltar, porque os mais velhos da minha família já foram falar com ele e sua família, para fazermos as pazes e acertaram que eu deveria voltar para a casa do meu marido. Se é isso que eu quero? E eu tenho querer? Como vou fazer? Djitu katen, son pa sufri2”! Quisemos saber como se passa a aquisição e herança dos bens na família balanta. “Entre nós os balantas, a maior riqueza é a bolanha, depois os animais de criação. O homem é que tem a bolanha e pode comprá-la, a mulher não. Todo o trabalho da bolanha é do homem. A mulher só ajuda a levar o arroz para casa e é ela que o pila. Também é ela que o vende, mas dá o dinheiro ao homem que o lavrou. A mulher pode comprar e ter uma horta dela. Pode adquirir e criar pequenos animais como porco, cabra, galinha, mas a vaca é o homem que tem. Se ela vende os seus animais, o dinheiro é dela, mas se ela quiser, pode oferecer ao marido um porco que ela criou, para a sua mistida3. A casa é também do homem. Mas tudo isto está a mudar agora. O homem já não produz arroz como dantes, ou porque há falta de bolanha disponível, ou por amontondade4. Os homens de agora não 1 Mampufa: fibra vegetal produzida a partir de uma planta filtradora abundante nas zonas húmidas. 2 Djito katen son pa sifri: não há como fazer, só aguentar. 3 Mistida: assunto, negócio, compromisso. 4 Amontondade: preguiça, malandragem.


respeitam as mulheres no casamento, talvez porque já não é o pai que lhe dá sua filha para constituírem família, mas ela que decide casar com o rapaz da sua escolha. Por isso, quando o marido não trata bem a sua mulher, não há ninguém para lhe exigir. E isso é mau para a mulher”. Perguntámos-lhe que sonhos tem para a sua filha e Augusta nos respondeu com a sua voz ainda mais sussurrada e embargada de tristeza: “Sonhos que tenho para a minha filha? Que ela não passe nem a metade das canseiras e do sofrimento por que tenho passado. Que ela tenha um bom casamento, encontre um homem de bem, que a tome na base do respeito, a quem ela trate com respeito. Para juntos, cuidarem bem do seu lar, criarem bem os seus filhos, na base do respeito. Porque boa mulher balanta é mulher de respeito e alguém com quem podes construir família!

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CHAMARAM MARIA AOS MEUS FILHOS PORQUE ME AJUDAVAM NOS TRABALHOS DE CASA! ATÉ O DIA EM QUE VESTI FUNDINHO E DESAFIEI OS COLEGAS QUE ASSIM OS HUMILHAVAM E SUAS MÃES AWA SY PROFESSORA E VENDEDEIRA DE HORTÍCOLAS EM GABÚ Awa Sy é professora primária em Gabú. Teve 5 partos, mas apenas à última tentativa teve a filha que procurava. Por causa disso sempre pôs os seus rapazes a fazerem todo o tipo de tarefas domésticas, para a ajudarem. Até porque ela, para além de dar aulas, tem negócio de vendedeira de hortaliça no mercado central. Os colegas dos seus filhos quando os viam de vassoura na mão ou a lavar roupa ou ainda a cozinhar, gozavam com eles e lhes chamavam de “Maria”. Até o dia que os filhos da Awa começaram a resmungar e a não querer ajudar a mãe em casa, dizendo que os colegas os humilhavam com o epíteto de “Maria”. Awa decidiu tomar as rédeas da sua família. “Vigiei os tais colegas até os surpreender a troçarem dos meus filhos. Vesti o fundinho1 do meu marido e saí à rua como um “lutador” mandinga e gritei alto para todos me ouvirem: desafio qualquer um de vós para voltarem a chamar meus filhos de “Maria”. Hoje é que levam a sova das vossas vidas, que não levaram das vossas mães. E se elas não ficarem contentes que venham ter comigo, que eu lhe ensino como educar um filho!” Depois desse dia, nunca mais chamaram “Maria” aos rapazes da Awa e até hoje, eles ajudam a sua mãe em todos os trabalhos de que ela precisar.

1 Fundinho: Calças de fundo largo, próprios do vestuário dos homens muçulmanos e também utilizado pelos lutadores mandingas e fulas.


DIZEM QUE “A MULHER FULA É FLOR, É PARA GUARDAR DENTRO DE CASA!” MAS NÓS JÁ SAÍMOS PARA A VARANDA E ESTAMOS A OLHAR PARA A RUA! BANDJE BALDÉ VENDEDEIRA DE ROUPA E HORTÍCOLAS EM GABÚ Bandje Baldé tem 50 anos. Vive em Gabú e tem um negócio no mercado central, onde tem um cacifo e uma mesa. Vende roupa que compra na Gâmbia e em Dakar e produtos hortícolas. É Presidente da Associação de Luta Contra a Pobreza de Gabú (ALCOPO), que foi criada em 2014 para apoio às associadas no domínio do microcrédito. Eram no início 54, agora já são quase 80 membros, que se dedicam ao pequeno comércio. Bandje e o marido são fulas, têm 4 filhos varões, o mais velho com 33 anos e o mais novo com 21. Os dois primeiros estudaram e vivem no exterior (Portugal e Rússia) e os dois últimos ainda estão a estudar, mas na Guiné. Ela gasta mais de 50% dos seus rendimentos com os estudos dos filhos, a sua primeira prioridade. Depois é para a alimentação da família. “Muitos homens dizem que mulher fula é para ser tratada como flor, como afirmam estar no Alcorão, para se guardar dentro de casa, para não apanhar “vento”. Mas hoje, nós já saímos para a varanda e estamos a olhar para a rua! Porque somos nós que vamos buscar fora para trazer para dentro de casa e graças ao esforço do nosso trabalho como “bideras”1 sustentamos nossas famílias, enquanto os homens ficam à espera do fim do mês que chega sempre com vários meses de atraso, quando chega.” Para ajudar os filhos e a família, Bandje já fez de tudo um pouco. “Até trabalhei a amassar bosta de vaca com palha de arroz, para fazer fogões melhorados no quadro de um projeto e para o qual me pagaram bem. Um dia, arranjei um biscate nas obras da estrada a um sobrinho que estava sempre a me pedir ajuda, mas ele desistiu rápido, porque achava aquele trabalho pouco digno: estava sujo 1 Bideras: Vendedeira do setor informal.

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todo o tempo. Perguntei-lhe se eu podia estar enfiada em bosta de vaca até aos joelhos para ganhar dinheiro, ele é que era fino demais para procurar o seu sustento nas obras? E deixei de lhe ajudar. É assim, os homens de agora só querem vida fácil. Quando vão à Europa podem trabalhar nas obras, carregar lixo e a fazer as tarefas mais ingratas, que não aceitariam na sua terra. Aqui, preferem ir namorar as “tias”, que lhes dão dinheiro, como vêm nas telenovelas da RECORD. Com as moças é igual, agora só querem homem velho, que lhes dão vida de luxo, mas lhes dão doenças também!” Quando lhe perguntámos se houve melhoria nos direitos das mulheres, Bandje não hesitou: “Sim! Aumentou a escolaridade da mulher, e regra geral, ela goza de maior liberdade, pode decidir o que fazer com o dinheiro que ganha. Mas se o nosso tempo é melhor do que o das nossas mães, este tempo é pior do que o nosso, porque há mais vícios, há mais perigos que espreitam a mulher. Se hoje muitas raparigas deixam o campo e vêm para a praça, onde andam bem vestidas, moram em boas casas, viajam, parecem ter sucesso, é porque têm “amigos” que as sustentam, Mas se a doença se apoderar delas, para onde vão depois, do que é que vão viver? Temos que sensibilizar as nossas filhas para arranjarem trabalho digno, terem relações com um homem só e aos nossos filhos para tomarem cuidado com a sua saúde e se protegerem de doenças e de vícios. Doenças sexualmente transmissíveis e vícios como a droga, que agora circula muito por Gabú”.


A MAIOR RIQUEZA DOS BIJAGÓS ESTÁ NO MAR E NO MATO! CANTOUCHA OSTRICULTORA E MEMBRO DO COMITÉ DE GESTÃO DA AMPC UROK EM FORMOSA “Para nós os bijagós, há a riqueza que Deus criou e deu aos homens e às mulheres. Há a riqueza que os homens e as mulheres produzem com o calor do seu trabalho. Deus deu ao homem bijagó o mato e deu à mulher o mar. São as nossas maiores riquezas, onde tiramos o nosso sustento e o que precisamos para as nossas cerimónias. O homem é que toma conta do mato. A mulher do mar. Quem cuida das palmeiras é o homem. Mas quem explora a palha nas lalas é a mulher. Quem está presente diariamente nos bancos de vasa para a coleta de moluscos e cuida das ostras no mangal é a mulher. Mas quem pesca é o homem.” “Quem herda as riquezas que Deus criou? Ninguém! Mas todos beneficiam dela. Para o bijagó, cada um deve tomar a sua parte e cuidar de cada recurso para que as gerações que vêm à frente possam ter também o seu quinhão.” “As 3 principais riquezas que nós os bijagós criamos com o nosso trabalho são estas: 1ª riqueza: o lugar1 de arroz, que fazemos entre as palmeiras. Aqui, o homem tem o trabalho de pabi2. A mulher semeia. Partilha a monda com as crianças que fazem a vigia contra os pássaros. O kebur3 é feito por todos, assim como a debulha (suta arus). A mulher é que tem feki4 o arroz antes das crianças o transportarem para casa. Mas quem tem a chave da bemba5 onde ele é guardado é a mulher. É ela também que guarda a sementeira. Quando o homem precisa do arroz para as suas cerimónias, pede à mulher. 2ª Riqueza: o lugar de feijão e de mancarra-bijagó, que se faz normalmente no quintal. O homem é que o lavra e faz a cerca com ramos de palmeira para o proteger dos animais. A mulher é que o 1 2 3 4 5

Lugar: campo de cultura de arroz, de feijão ou de mancarra. Pabi : desbravar o mato e limpar o terreno para a lavoura. Kebur: colheita. Feki: limpar o arroz depois de debulhado, recorrendo a um balaio para separar os grãos da areia e pedras. Bemba: celeiro.

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descasca e faz o tratamento natural contra os bichos, antes de o guardar na bemba. Ela é que guarda a sua chave e é ela que guarda a sementeira. Mas quem tem as cerimónias que se fazem com o feijão e a mancarra-bijagó é o homem. 3ª riqueza: a casa da família. O homem e a mulher se unem para a construir. A mulher é que traz a água do poço, amassa a lama com a areia e palha e dá ao homem que vai levantando as paredes. O homem faz o madeiramento da cobertura com paus que corta do mato, enquanto a mulher corta e traz a palha das lalas, que tece com ajuda das crianças. É o homem que termina a cobertura com esta palha, que amarra com cordas que faz a partir de ramos de palmeira.” “Quem herda? Quem tem o mato onde se faz pampam6 é o djorson7, que vem da linha materna (barriga di mame). Há matos que pertencem ao djorson da mulher e outros que são do djorson do marido. A herança é em função disso, isto é, quem herda o lugar de arroz são os filhos varões da linhagem materna. O mesmo para os lugares de feijão e mancarra-bijagó. A casa é herdada pelos filhos, assim como a bemba, mas o recheio da casa é das filhas.” “Este é o mundo bijagó que eu conheci, onde vivi, na tabanca de Abú, ilha Formosa, que me viu nascer há 68 anos. Agora tudo mudou. A riqueza maior para o bijagó de hoje é o caju. Por causa do dinheiro que traz. Todos querem o dinheiro para comprar coisas que precisam e não têm, mas também muitas coisas que faziam dantes e agora não querem ter a canseira de fazer e mesmo outras coisas que vêm e querem, mas nem precisam, porque não são essenciais. Mas o caju está a dar cabo da palmeira, do feijão, da mancarra e mesmo do arroz lavrado no lugar pelo bijagó, assim como das ostras, do lingron, do combé8 que era só descer ao mar para apanhar. Agora, com o dinheiro do caju vai-se ao porto comprar, onde vendem o combé, as ostras e o lingron já todo tirado da casaca e secado. Com a força que estão a por na exploração destes recursos, eles vão acabar! O mundo bijagó vai acabar também, porque sem esses produtos não há cerimónia e o bijagó não é bijagó sem cerimónia! Por isso criámos a área protegida em Urok, da qual Formosa faz parte, para proteger estes recursos e a cultura bijagó.” Este é o testemunho de Ana Lopes, vulgo Cantoucha, Cabongha9 da ilha Formosa, membro fundadora e líder da Área Marinha Protegida Comunitária das ilhas Urok (Formosa, Nago e Chediã), no Arquipélago dos Bijagós. 6 7 8 9

Pampan: Arroz de sequeiro. Djorson: Linhagem Combé: bivale semelhante ao berbigão muito utilizado pelos bijagós na sua alimentação e que é a sua principal fonte de proteína animal. Cabongha: Última fase da classe etária do bijagó, que se conquista uma vez feitas todas as cerimónias.


O MEU NEGÓCIO PÔS-ME SER “SENHORA DO MEU NARIZ”! Dª FERNANDA EMPRESÁRIA DE RESTAURANTE EM BISSAU Fernanda Gomes Fuma, mais conhecido por D. Fernanda, é a distinta proprietária de um restaurante situado no Bairro de Sta. Luzia, em Bissau, prestigiado pela sua deliciosa “bica grelhada” e por estar num amplo espaço exterior, com um jardim encantador. Mudou-se para lá desde 1996, quando acabava de construir a sua casa, num terreno que fora do seu falecido pai e ela recuperou da Câmara. “Tive que deixar a casa onde morava pois o senhorio pediu-me para pagar o aluguer em Dólares mas eu só ganhava em Pesos. Três anos antes eu tinha aberto um “clando” no quintal, que depressa se transformou em restaurante, pois tinha muita procura, sobretudo de cooperantes suecos e holandeses. Quando mudei para aqui, trouxe comigo o restaurante e o jardim, os clientes também e fiz tudo crescer. Para mim, este empreendimento significa tudo. Isto é a minha vida!” D. Fernanda tem 60 anos, 6 filhos já adultos, 4 deles emigrados, mas os dois últimos, dos quais uma filha, ainda vivem com ela. “Trabalhei longos anos como funcionária pública. Por vezes convidava alguns colegas a irem comer caldo de chabéu em minha casa, aos fins-de-semana. Dois deles eram fãs da minha cozinha e me persuadiram a abrir um restaurante. Até hoje lhes estou grata pois graças a este negócio pude criar os meus filhos, visto que já estava separada do pai que viria a falecer mais tarde. Com o salário de funcionária pública, eu não teria podido”. A licença sem vencimento de 3 meses que ela pedira, acabou por se converter em desvinculação pois o restaurante rendia, mas exigia-lhe todo o seu tempo. Porém, ela não se arrepende. “Tive anos de glória aqui! O meu negócio pôs-me ser “senhora do meu nariz”, ser conhecida na Guiné, em África, no espaço CPLP em muitos países europeus. No dia 30 de Janeiro, Dia da Mulher guineense, eu estava lá em cima! Fui uma das 5 mulheres que cobriram com pano, juntamente com a Fanda e a Dulce Neves, numa cerimónia onde estava o Presidente da República, o 1º Ministro e outros altos responsáveis deste país”. A D. Fernanda levou tempo a construir a sua casa, que até agora ainda está em obras. Recorda que teve ajuda de muitos clientes estrangeiros que lhe foram facilitando materiais de construção, equipamentos e mesmo o seu 1º gerador, foi-lhe oferecido por técnicos portugueses que tinham vindo

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apoiar na recuperação do aeroporto de Bissalanca depois da guerra de 7 de Junho. “Os conflitos prejudicaram muito o empreendimento. Eu tinha o restaurante sempre cheio até o 7 de Junho de 1998. Depois, nunca mais foi a mesma coisa. Quando o negócio começou a prosperar de novo, veio o 12 de Abril 2012, que deitou-nos abaixo outra vez. Estes ciclos constantes de instabilidade é que nos mata!” D. Fernanda vê o futuro com um misto de esperança e apreensão. “Com a abertura do país depois das eleições, abrem-se também as portas do negócio! Porque restaurante vive de estrangeiros que vêm e precisam de lugar onde comer. Contudo, agora há mais concorrência de novos restaurantes que estão a abrir. Nunca mais tive a casa cheia como no início. E mais, já começo a sentir o peso da idade nos joelhos e nas costas, custa-me a andar, só com ajuda da muleta.” Sobre os filhos, ela lamenta que não lhe têm apoiado muito. Gostaria que a sua filha herdasse o seu empreendimento, porque, diz ela, “as mulheres ficam mais expostas se não têm um bom apoio no casamento. Mas a minha filha não se interessa pelo trabalho do restaurante, quer estar livre para ir onde lhe apetecer, usufruir dos benefícios que advêm do meu negócio, sem as responsabilidades. Talvez este meu rapaz aqui, talvez ele vai se interessar e cuidar do restaurante” termina a D. Fernanda entre a dúvida e a esperança, apontado para o seu último filho…


A MULHER IDEAL? É A MULHER TRATOR! DJUMBAI COM 3 HOMENS EM SONACO “Desde os tempos remotos, até os nossos dias e no futuro assim o continuará a ser, a mulher mandinga é trator! Sai de casa de madrugada e entra à noitinha. A mulher mandinga que se preze é produtora, é ela que faz tudo na bolanha e no lugar1 e traz ao marido em casa. O orgulho deste quando algum membro da família o vem visitar, é mostrar a grande quantidade de arroz, de milho, de mancarra e outros produtos agricultados que ela lavrou e trouxe para a casa para o sustento da família. O seu parente lhe dirá então: estás de parabéns, tu tens uma mulher que vale a pena!” “Quem tem propriedade da bolanha entre os mandingas? É o homem! Se a mulher que trabalhou nessa bolanha tem direito à sua herança? Não! A mulher não pode herdar nem a bolanha nem o lugar porque quando vai para o casamento, não pode levar a bolanha consigo!” “Entre os futa-fulas, é parecido. A mulher é para trabalhar em casa, lavrar o quintal e a bolanha. Mas o terreno é do homem, o trabalho é que é dela. Porém, tudo o que ela precisa, é o homem que lhe deve dar. O homem futa-fula faz tudo pela sua mulher!” “Agora as coisas mudaram um pouco. As mulheres desta zona se dedicam mais ao trabalho na horta, porque ganham dinheiro com a venda das hortícolas. São membros da APALCOF2. Por isso deixaram de produzir muitos alimentos saudáveis que não comemos agora porque são difíceis de trabalhar, como o fundo3. As mulheres de hoje são amonton4 , elas trabalham mais para si próprias. Foi a horta que trouxe este problema. Para aliviar o seu trabalho ela prefere vender a cebola e outras hortaliças no lumo5 para depois comprar o arroz importado.” Se a mulher faz algum comércio importante e junta dinheiro até poder fazer uma casa, deve “testemunhar” o marido a quem compete dar-lhe a devida autorização. E quem herda então a sua casa? É o seu filho varão, claro!” Extratos do diálogo entre Sibite Sonko, Amadú Embaló e Braima Dafé, aquando do djumbai com os homens na tabanca de Sonaco, Região de Gabú. 1 2 3 4 5

Lugar: campo para a lavoura. APALCOF: Associação de Mulheres Produtoras de Cebola… Fundo: Cereal da família dos milhetos. Amonton: preguiçoso(a) Lumo: feira tradicional que se realiza semanalmente.

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INVESTIR EXCLUSIVAMENTE NA MULHER É EMPOBRECER O HOMEM E DESTRUIR O NÚCLEO FAMILIAR! 150

DJUMBAI COM QUADROS DE BUBA Reunimo-nos com eles ao fim do dia, no bantabá da sede do Parque Nacional de Cufada, em Buba. Eram cinco técnicos de prestigiadas organizações trabalhando com o microcrédito como instrumento de empoderamento das mulheres daquela região e um líder de uma conhecida associação de pescadores da zona. Tinham opiniões distintas, mas as ideias eram claras, exprimiam-se com propriedade e percebia-se que costumavam conversar sobre o tema que lhes propúnhamos debater. Surpreenderam-nos pelo seu olhar crítico e sua fala irreverente sobre o assunto. Sem “papas na língua”, lançaram-nos as suas “verdades” como trunfos na mesa, para começar a conversa no quente, indo diretamente ao vivo do sujeito. “Esta política de dar crédito às mulheres sem envolver os maridos gera desconfiança em casa, pois eles sempre acabam por saber que sua mulher tem dinheiro. Se a mulher não lhe tiver informado antes, ele não vai cooperar para o seu negócio ter sucesso, até pode ser o contrário. Investir apenas na economia da mulher provoca desequilíbrio no casal e contribui para destruir o núcleo familiar.” “A horticultura não é uma atividade que ajuda as mulheres a descansar. Antes pelo contrário, é uma sobrecarga, pois elas têm que tratar da horta na altura em que deveriam estar a descansar. E depois, têm as suas tarefas domésticas e os trabalhos no campo que têm que fazer pois são da sua responsabilidade.” “As organizações que dão crédito às mulheres deveriam implicar os homens, para eles poderem se responsabilizar, ajudar as mulheres no seu negócio e a reembolsarem a tempo. É por isso é que há uma taxa elevada de créditos mal parados, visto que quando as mulheres devem pagar e não têm como fazê-lo, os maridos não as ajudam, pois se não foram envolvidos no princípio, como podem responder no fim? Isso é uma questão de respeito. Entre nós homens muçulmanos, podes não nos dar dinheiro, mas dá-nos respeito.”


“ Mas os homens não são todos iguais, alguns compreendem que ajudar a mulher não prejudica a família. Eu, por exemplo, ajudei as minhas duas mulheres a fazerem o seu negócio e terem rendimento. Com o dinheiro que ganharam, construíram suas casas e quem vai herdar esses bens? São seus filhos, que são meus também! Com o dinheiro do aluguer, elas apoiaram nossos filhos a estudarem, alguns até no estrangeiro. Os mais velhos já se formaram, graças ao seu negócio. Quem fica a ganhar quando se ajuda a mulher é a família!” “Nós estamos numa sociedade patriarcal, onde o poder económico é sempre do homem! Há empobrecimento dos homens quando se faz uma política de investimento exclusivo nas mulheres. Isso destrói a harmonia na família. A mulher deixa de ser apoio para o marido, deixa de ter tempo para cuidar dele e dos filhos, de lhes dar atenção e educação …” “Temos visões diferentes. É preciso olhar e ver longe! O mundo está a mudar para todos, para as mulheres também. Investir na mulher é ajudar a promover o bem-estar da família. Se o homem é inteligente, ele compreende isso e quando perceber, ele colabora.” “ Muitas vezes as mulheres saem muito de casa, sob pretexto de irem tratar dos seus negócios, mas nem sempre é assim! É porque têm seus “projetos” atrás, querem ser independentes e não prestar contas aos maridos. Mulheres que têm sucesso no negócio, muitas vezes é sacrificando suas famílias. Por exemplo, sabemos que 60% das mulheres que construíram casa própria aqui no Bairro de Nema II, mais conhecido por Bairro das Mulheres, não estão com os seus maridos, vivem sozinhas. E isso é bom? Damos poder económico às mulheres, mas destruímos a família. Isso não pode ser bom!” “Promover a mulher não enfraquece o homem. O que é preciso é compartilhar. Tanto o poder económico, como o poder de decisão no seio da família. Mas isso depende do homem e da mulher. Não somos todos iguais. Se eles colaborarem e partilharem o esforço para melhorar a economia e as decisões na sua família, tudo vai para a frente!” “Os direitos económicos das mulheres passam pelos direitos económicos dos homens. Quando tu, homem, enquanto chefe de família, não tens com o que sustentar os teus filhos, não podes dizer como eles devem se comportar, perdes autoridade no seio da família, tanto nos filhos como na mulher. Por isso o crédito deve ser dentro da família, deve permitir unir e empoderar o núcleo da sociedade, que é a família, não apenas um elemento desta.” “Estamos agora num mundo de globalização, que passa pela regionalização. Estamos a adaptar-nos. Mas temos que desenvolver metodologias que ajudem as nossas comunidades a encontrar novas formas de viver numa sociedade em mudança, sem perder os valores da “guineendade”, na qual se dá valor e respeito às mulheres. Em todas as etnias da nossa terra a mulher é força fundamental da

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sociedade. O resto vem de fora. Temos que ser capazes de recusar projetos que vêm desenhados de fora e são trazidos em “pacote” para utilizarmos como está no “folheto de instrução”. Temos que ser capazes de conceber e convencer nossos parceiros a apoiar projetos orientados para as nossas necessidades reais.” “Conceder créditos às mulheres excluindo os homens leva muitos a se desresponsabilizarem deixando-lhes todo o encargo familiar. É um risco dar créditos às mulheres sem implicar seus maridos, principalmente nas tabancas onde a religião muçulmana é predominante.” “A religião islâmica não põe barreiras às mulheres, dá-lhes a mesma liberdade que ao homem. Por vezes é uma questão de interpretação do Islão que se faz segundo os interesses de cada um. É o amontondade1 que leva muitos a fazerem más interpretações e a se demitirem de suas responsabilidades deixando tudo para as mulheres fazerem. Só agora é que as atividades geradoras de rendimento são vistas como exclusivas às mulheres. Isso não é verdade, todos podem fazer um pequeno negócio para ajudarem-se a si próprios a progredir e à sua família. Tanto mulheres como homens!” Foram estas as opiniões expressas pelos seis participantes do djumbai com homens que tivemos em Buba. Depois da última intervenção, decidimos terminar a reunião, antes que uma nota de rodapé viesse rebater e levar a uma conclusão menos favorável às mulheres…

1 Amontondade: preguiça, falta de vontade ou capacidade de trabalho.


MEU NEGÓCIO, MINHA PAIXÃO! FANDA’S FLOWERS EMPRESÁRIA DE PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE FLORES EM BISSAU Fanda tem 66 anos. Sempre gostou de flores, sempre cultivou um jardim em sua casa. O seu negócio de venda de flores e plantas ornamentais que tem em Bissau vem na sequência desta paixão. Começou em 1989, quando recebeu um convite da então Primeira-dama para organizar uma feira na capital, sem ter fundos para tal. Valendo-se da imaginação, Fanda recolheu, junto de amigos e conhecidos, vários artigos para vender na tal feira e deduzir dos lucros a quantia necessária para pagar os custos da iniciativa. Foi assim que pediu ao Diretor da fábrica de cerâmica de Bafatá para lhe fazer vasos para plantas, onde colocou algumas variedades do seu jardim, que expôs na feira. Várias Embaixatrizes tinham sido associadas ao evento e quando viram as belas plantas ornamentais, compraram todas de antemão. Os demais interessados que não puderam adquiri-las na feira, encomendaram e Fanda diligenciou mais vasos e plantas para satisfazer uma clientela que se começou a constituir e a passar a informação sobre onde arranjar flores e plantas ornamentais em Bissau. E daí lhe veio a ideia de aproveitar deste interesse para começar o “seu negócio”. “Sempre quis fazer um negócio, mas queria que fosse sobre algo de que gosto e saiba fazer. Eu trabalhava como bibliotecária na OMS e depois da experiência da feira, nos tempos livres, comecei a me dedicar à jardinagem para venda. Havia um terreno baldio junto a um prédio da família do meu marido, perto da UDIB, que servia de lixeira e urinol público. Era um lugar que cheirava mal, mas pedi à empresa de limpeza e saneamento “Seabra” para tirar dali o lixo e cercar o espaço com kirintin. Arranjei estrume e, com a ajuda de um jardineiro com quem trabalhava em casa, começámos um viveiro de plantas e, mais tarde, de roseiras que se vendiam bem, pois era difícil encontrar flores naturais em Bissau. Fazia ainda pequenos jardins para as pessoas que me pediam e me pagavam pelo serviço”. O negócio da Fanda foi crescendo e diversificando, inspirado na sua grande imaginação e gosto pelas plantas. “Trabalhava ainda para a OMS quando as Nações Unidas lançou um concurso público para fazer o jardim das suas novas instalações. Ganhei o concurso, entre cerca de 30 concorrentes, porque a minha proposta era a melhor tecnicamente e o seu custo menor. Naquela obra, gastei mais

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do que ganhei, usei todas as minhas reservas! Mas valeu a pena, porque fiquei mais conhecida e me propuseram depois outros trabalhos, onde tive lucros que puderam compensar o que havia perdido. Deixei a OMS para ter mais tempo para dedicar ao meu negócio. Com a pequena indemnização que tive, decidi investir: comprei um terreno de 3 hectares no Bairro Internacional, para ter maior espaço. Ali comecei a fazer viveiros, a plantar flores variadas, mesmo rosas de porcelana que o meu marido me trouxe de S. Tomé. Ele também me havia oferecido o primeiro carro que tive e que serviu para transportar vasos, plantas, arranjos florais, deslocar-se para o trabalho...” Mas depois veio a guerra de 7 de Junho 1998 e a Fanda teve enorme prejuízo. “Perdi tudo, tive a casa e os jardins vandalizados, roubaram a máquina de cortar relva, utensílios agrícolas, tudo!… Mas este negócio é uma paixão! Depois da guerra retomei o trabalho com maior vigor. Em 2003, com as minhas economias e empréstimo bancário de 10 milhões, comprei dois terrenos em Safim, um de 24 e outro de 25 hectares, mandei construir um muro e uma fonte, comprei um outro carro para apoio ao trabalho e pude assim estender o meu negócio. Hoje, a minha empresa, a Fanda’s Flowers, tem 35 empregados, incluindo gerente da loja, condutor, pessoal administrativo, jardineiros, pessoal de controlo fitossanitário… Com todas as dificuldades que o país tem passado, nunca parei, nunca deixei de pagar os meus empregados, nem os impostos que devo ao Estado, a tempo e a hora!” Para a Fanda, o seu negócio representa uma certa autonomia e um investimento no futuro. “Fui investindo no terreno que atualmente vale ouro! Hoje, sinto-me satisfeita. Consegui ir longe. Sou atualmente Presidente da AG da AMAE (Associação das Mulheres de Atividades Económicas) e faço parte da RAMAO (Renascença Africana das Mulheres da África Ocidental). E o meu marido diz que mesmo que eu não venda, só de ver as plantas os meus olhos sorriem!” E como vê o seu negócio no futuro? “O meu objetivo é vir a trabalhar para a exportação de flores. Mas para isso tenho ainda que resolver o problema da água, porque a fonte que fiz, não é suficiente…!” Fanda tem dois filhos, um casal, ambos adultos e já com família constituída, vivendo todos na Suécia. Tem 6 netos. Que herança lhes lega? Que sonhos tem para os netos e em particular as netas? “É estudarem, para poderem escolher o que gostam e querem fazer!” Mas uma das suas netas gosta de fazer buquês de flores e oferecer-lhe quando os vai visitar à Suécia. Ela já herdou a paixão da avó Fanda pelas flores…


MULHER MANJACA É ECONOMIA! SER UMA BOA MULHER É TER MIOLOS, APRENDER RÁPIDO, SABER GERIR. FLORENÇA FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE MULHERES GETENEMI EM CALEQUISSE Florença nasceu e vive em Calequisse há 65 anos, tem orgulho em ser manjaca de gema, é pilar e motor da sua comunidade que conhece como as palmas da sua mão. Ajudou a formar e dirigiu durante muitos anos a associação de mulheres Getenemi (Unidas e Solidárias), legalizada desde 2004 e que reúne presentemente cerca de 160 mulheres e 15 homens. As associadas dedicam-se à horticultura, à orizicultura, à produção de óleo de palma e ao pequeno comércio. Todos os postos de responsabilidade da Getenemi são ocupados por mulheres, os homens são simples membros e apoiantes. Florença é visionária, transpira inteligência e determinação no olhar e nos gestos, tem fibra de líder nata e grande capacidade mobilizadora dos seus conterrâneos, da camada feminina em particular, que congrega em torno de iniciativas de interesse comunitário, contribuindo para maior empoderamento e bem-estar das mulheres. Talvez por isso, não é bem vista por alguns jovens pretensos líderes da sua tabanca que vêm as mulheres como sua caixa-de-ressonância e simples reprodutoras ou produtoras de bens e serviços para a família. Num djumbai que tivemos com mais cinco outras dirigentes da sua associação, Florença e as colegas nos disseram que “antigamente, para os manjacos, as três principais riquezas eram a bolanha, a casa e a criação animal. Mas a horta do caju é considerada agora como sendo a maior riqueza, seguida das remessas e dos investimentos dos emigrantes (casa, loja, hotel…). Quem era dono da bolanha (e da horta) era o homem, que partilhava os trabalhos com a sua mulher e os seus filhos. O homem era e é o dono da casa, assim como do curral das vacas, mas os porcos e as galinhas eram das mulheres que, até hoje, são quem os criam e vendem. Com a morte do marido, era o seu irmão que herdava a bolanha, a casa assim como a sua mulher e os filhos menores”.

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“Mas isto já mudou!” Esclareceu a Florença com seu ar decidido. “Agora não aceitamos essa prática tradicional de um outro membro da família do teu marido herdar o lugar, seja bolanha, seja horta, onde trabalhaste com ele toda a vida e ainda por cima te herdar a ti própria e aos teus filhos! Agora só fazemos a cerimónia da herança que a tradição recomenda e depois, os bens que trabalhaste com o teu marido ficam para ti e para os vossos filhos. Mas claro, isso depende da força e determinação de cada mulher!” “Por vezes a família do homem pode querer te arranjar problema, se não aceitares que o teu cunhado herde os seus bens e mesmo a ti como sua mulher”, disse uma das colegas, à qual a Florença replicou: “Mas há lei do Estado e segundo a lei, a herança dos bens da família é para a mulher e os seus filhos”. E se forem duas ou mais mulheres no casamento, como é que se passa a herança, perguntámos e ela retorquiu: “É a primeira mulher e os filhos do homem que herdam. Por isso, agora arranjamos maneira para cada uma ter o seu próprio terreno e a sua casa, e mesmo ter a sua cozinha separada, para si e os seus filhos. Assim, cada uma gere a sua economia. Porém, guardamos a solidariedade e a entreajuda entre nós as kumbosas1, nas situações de dificuldades, mas fazemos isso enquanto mulheres”. E se a mulher morrer, quem é que herda os seus bens? “Geralmente são os filhos varões”, respondeu uma das entrevistadas. E de novo a Florença precisou: “Mas isso tende a mudar, porque no mundo de hoje, uma filha é igual a um filho varão. As suas capacidades e competências dependem de cada um. No mundo moderno o homem e a mulher são iguais diante da lei. Por isso, cada mulher pode decidir e comunicar aos seus familiares ou mandar escrever um documento onde ela diz a quem quer deixar seus diferentes bens. E nessa decisão, o travesseiro é o melhor conselheiro! Mas não devemos esquecer que uma filha é “a segurança” da sua mãe, é ela que lhe vale quando a mãe tem necessidades e cuida dela na doença e na velhice!” Quais os sonhos para as vossas filhas? “Rezamos para que elas tenham a sorte de ter um bom casamento e um bom marido, que as trate bem, as respeite e estime”, responderam uma após outra. Mas a Florença, a valorosa manjaca ciosa da sua economia e da sua autonomia, arrematou: “Desejamos, sobretudo, que elas trabalhem bem na escola, se formem e arranjem um bom emprego, para terem a sua própria economia. Para isso têm que ter cabeça. Porque nos tempos que correm, boa mulher é aquela que tem miolos, compreende e aprende rápido, é boa gestora. Sim, porque mulher manjaca é economia!” 1 Kumbosas: co-esposas.


MUITOS HOMENS GUINEENSES QUEREM CONTINUAR A TER AS MULHERES DEBAIXO DELES. É PELAS MULHERES DA GUINÉ QUE EU ME BATO, PARA QUE NENHUMA PORTA LHES SEJA FECHADA! HADJA DJENABOU PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO APALCOF EM CONTUBOEL Ela tem um porte de rainha, com o seu lenço que lhe cobre a cabeça e modela o rosto, dando maior intensidade ao seu olhar perscrutante. Hadja Djenabou é diferente de muitas outras mulheres fulas e muçulmanas, como ela, olha o seu interlocutor diretamente nos olhos e fala chamando as coisas pelo seu nome. É pontual e organizada, gosta da disciplina, tem sentido de responsabilidade. Todos a conhecem e respeitam em Contuboel, assim como em todas as tabancas das 58 secções dos sectores de Contuboel, Sonaco, Ganadu e Bafatá, onde estão as cerca de 2500 associadas da APALCOF, da qual é a Presidente. Ela é uma verdadeira líder, dá a palavra primeiro às suas colaboradoras, mas quando fala tem a atenção e deferência, das mulheres e dos homens! “APALCOF – Associação para a Luta contra a Fome – foi a primeira associação de mulheres da Guiné-Bissau, fundada há 24 anos, no quadro do trabalho do DEPA do falecido Eng.º Pepito e da UDEMU, do tempo da Francisca Pereira, com apoio da ONG americana Serviço Quacker. O objetivo era levar as mulheres a fazerem horticultura, uma atividade exclusivamente feminina. As mulheres desta zona trabalhavam muito nas bolanhas de arroz, que, entre os fulas e mandingas, pertencem tradicionalmente aos homens e por isso elas trabalhavam para os maridos. Com o desenvolvimento da horticultura, elas puderam ter algo que era seu, fazer o que queriam com o fruto do seu trabalho, emancipar-se. Iniciámos cultivando legumes tradicionais e depois, com a ajuda do Serviço Quacker, que nos forneceu sementes, começámos a fazer cebola, alface, cenoura, e outras hortaliças. Mas foi a

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cebola que mais teve sucesso entre nós! Costumávamos comprá-la nas lojas e utilizá-la na cozinha, não sabíamos que a cebola era lavrada e nós podíamos produzi-la na nossa horta!” Contou-nos a Hadja Djenabou, recordando, divertida, os primeiros anos da sua associação. “Desde esses tempos até agora, muita coisa mudou nas nossas tabancas e na vida das mulheres rurais” prosseguiu ela, em jeito de balanço dos progressos feitos depois da criação da APALCOF. “Agora elas têm maior capacidade económica, graças à venda das hortícolas que produzem, em particular da cebola que é comercializada nos lumos1 da região e em todo o território nacional. Esta capacidade económica deu-lhes maior autonomia e confiança em si mesmas, conquistaram maior espaço e respeito no seio da família e têm mais voz nas suas comunidades. Mas elas pagaram e ainda pagam caro para terem estas conquistas: levantam-se às cinco da manhã para irem regar as hortas, a fim de regressarem a casa a tempo de fazer as lides domésticas e cozinhar para a família. Estão ainda mais sobrecarregadas, pois sempre têm que trabalhar nos campos dos maridos e cumprir com suas obrigações de esposas e mães. Algumas ficaram com os casamentos comprometidos, pois seus companheiros não quiseram compreender e aceitar o seu direito a maior independência económica. Mas agora, as mulheres gozam de maior liberdade e consideração. Têm direito à palavra em público, viajam e representam a sua comunidade no exterior. Como presidente de APALCOF eu estive em mais de 15 países da África, da Europa e da América, sou ouvida e respeitada! A APALCOF contribuiu para trazer a democracia para a Guiné, no que toca aos direitos económicos das mulheres. Mas isso não basta!”. Por que é que não é suficiente? “Porque há ainda muito trabalho a fazer para dar à mulher guineense o lugar que lhe é devido na nossa sociedade. Porque eu luto não apenas para as associadas da APALCOF, mas para todas as mulheres da Guiné-Bissau. Hoje em dia vemos alguns retrocessos sobretudo no seio da camada juvenil. Esta rapaziada que não tem trabalho, não quer trabalhar, passa a vida a conversar, a beber wuarga2 e alguns a fumar yamba3, tem mentalidade mais atrasada do que os seus pais, apesar de pensarem o contrário. Vivem à custa do trabalho das mães, mas não têm consideração pelas mulheres, querem utilizá-las apenas como burro de carga e não respeitam o seu calor. Temos muito trabalho a fazer neste lado. Mas não apenas aqui”, afirma a mulher-grande de Contuboel. E o onde é que há mais obstáculos a vencer, Hadja? Ela explicou: “Lá em cima, ao nível mais alto. Há muito poucas mulheres no Governo e nas instâncias mais altas do poder político. Queremos ver 1 Lumo: Mercado local informal, realizado normalmente em cada 6 dias. 2 Warga: Um chá forte e doce, muito apreciado entre os muçulmanos da África Ocidental, que é servido e partilhado por muitos num mesmo copo, como símbolo de convivialidade. 3 Yamba: Canábis


mais mulheres como ministros, não pode continuar a haver uma proporção tão fraca como existe agora! Sonhamos com a paridade, porque as mulheres, mais do que ninguém, podem fazer avançar os direitos das mulheres. Sonhamos que nos postos mais altos, de Primeiro-Ministro, de Presidente da República, teremos um dia uma mulher, como aconteceu com a Carmem Pereira que foi Presidente da Assembleia Nacional Popular. Depois da Carmem e das mulheres que Cabral formou, não se avançou muito. Porque os homens da Guiné, na sua grande maioria, não querem que as mulheres progridam nos espaços de decisão, como nos outros países. O género de que tanto falam é só da boca para fora. Na prática, querem continuar a ter as mulheres debaixo deles. Nós queremos fazer ressurgir os valores de Amílcar Cabral no que respeita aos direitos das mulheres, na economia e na política! É pelas mulheres da Guiné que eu me bato, para que nenhuma porta lhes seja fechada!”

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QUANTAS BOCAS PARA SUSTENTAR… TUDO DEBAIXO DESTA HORTA! 160

JOIA E ADELINA HORTICULTORAS DA GRANJA DO PESSUBÉ EM BISSAU São numerosas as mulheres que fazem a horticultura nos últimos espaços agricultáveis da antiga “cintura verde” de Bissau. Elas cultivavam no seu quintal, mas com o aumento da pressão e especulação fundiária ligada à expansão da construção civil de casas para habitação, elas foram perdendo seu espaço, até que as juntarem e acantonaram nas traseiras da aldeia SOS. Com o apoio do Ministério da Agricultura, cerca de 300 horticultoras se juntaram e formaram, em 1992, a associação “Ghatenkar Ghaba na Ubon” (Ajuda Mútua contra a Fome), que seria legalizada em 1993. Naquele espaço, elas têm apoio em água e sistema de rega, para cultivarem durante todo o ano uma grande variedade de hortícolas. Duas destas horticultoras, a Joia e a Adelina, nos falaram da sua atividade e da sua vida. “Tenho 38 anos e dois filhos menores, sou viúva há 11 anos. Se não fosse esta horta não sei como poderia criar e fazer estudar os meus filhos”. Contou-nos a Joia. Ela é mancanha e já em pequena fazia horticultura com a mãe, porque isso é tradição das mulheres mancanhas. “Tenho um casal, a filha de 16 anos e o filho de 14, ambos a estudar. Não quero que continuem a trabalhar na horta como eu e a minha mãe. Quero que se formem para virem a trabalhar como engenheiros, diretores. Porque quem tem maior respeito no mundo de hoje são as pessoas que trabalham nos gabinetes. Quem eu gostaria que me herdasse, se eu tiver algum bem como casa? Seria a minha filha, porque a vida é mais difícil para as mulheres!” A Joia falou-nos de riqueza e herança entre os seus parentes. “Maior riqueza para os mancanhas, antigamente, eram os filhos e a lavoura, assim como a criação de animais (vaca, porcos, cabra, galinha). Mas agora, é poder investir na formação dos filhos, ter casa e horta de caju. Sobre a herança, na morte do marido, era o seu irmão ou o seu sobrinho que herdava os seus bens como o lugar, a horta, a casa e mesmo os filhos e a mulher. Mas agora, nós não aceitamos essa prática! Só se a mulher o quiser. Senão, apenas realizamos, simbolicamente, a cerimónia tradicional e depois


tocamos a nossa vida para a frente, tomamos conta dos bens do falecido e cuidamos dos nossos filhos como eu fiz. Se houver disputa com a família do marido, há tribunal, onde é a lei do branco que manda. Para nós as mulheres com poucos meios, não temos como pagar um advogado, mas ouvi dizer que há uma Casa lá para os lados de Bissau Velho onde apoiam as mulheres para fazerem valer os seus direitos em situações como a herança”! A Adelina, sua vizinha de canteiro, contou-nos também a sua história, que é bem diferente: “Tenho 48 anos e o meu marido está de vida, mas ficou desempregado desde a guerra do 7 de Junho de 1999. Ela trabalhava na CICER e naquele tempo, ele tinha muita fama. As bideras iam pedir a sua ajuda para comprarem cerveja e sumo para revenderem nos seus bares. Por isso ele fez muitos filhos. Agora que está desempregado, “herdei” esses filhos e, para além de mim e dele, tenho 11 bocas para sustentar em casa. E tudo debaixo desta horta… Mas Deus é grande, tem-nos dado a sorte de nunca nos faltar o que comer…”

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NÃO PODEMOS ACANTONAR AS NOSSAS MULHERES AO MESMO LUGAR QUE TINHAM AS NOSSAS BISAVÓS, PORQUE O MUNDO “ANDA” PARA A FRENTE E NÃO PARA TRÁS. MAMADOU DJACK PESCADOR, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE PESCADORES DO RIO GRANDE DE BUBA, EM BUBA Mamadou Djack é um pescador muito conhecido e respeitado em Buba, cidade onde vive e em toda a região bem como a nível nacional, graças à ação da Associação dos Pescadores do Rio Grande de Buba, que ele ajudou a fundar há cerca de 20 anos. É um líder nato, com visão, capacidade de escuta e de negociação notáveis. Mamadou Djack é beafada, de confissão muçulmana e tem duas mulheres. Uma delas é bastante empreendedora e destacada dirigente de um agrupamento de mulheres transformadoras de peixe conhecido por “Bubacalhau”1. “Um dia, ela me disse que tinha conseguido fazer economias e arranjara um terreno que queria comprar. Ela contou-me o seu sonho de construir uma casa para ela e seus filhos. Como eles são também meus, eu apoiei-lhe no seu projeto e fui pescar para ela várias vezes. Ela comprava-me o peixe para transformar e depois vender. Até que conseguiu dinheiro suficiente para começar a erguer a sua casa. Mas percebi que a minha outra mulher, a sua kumbosa2, também tinha o mesmo desejo. Para equilibrar as relações na família, eu ajudei-lhe também no seu negócio de vendedeira na feira e lhe encorajei a investir. Assim, as duas conseguiram construir casa aqui em Buba, no Bairro Nema II, que alugaram. Graças ao dinheiro do aluguer conseguimos mandar os nossos filhos estudar. Alguns já se formaram.” “Mas nem toda a gente daqui viu isso com bons olhos. Mais de 60% das mulheres que construíram 1 Bubacalhau: nome que foi dado à barracuda salgada feita pelas mulheres transformadoras de peixe do Rio Grande de Buba, seguindo o mesmo processo do bacalhau e que significa em simultâneo “o teu bacalhau”. 2 Kumbosa: co-esposa.


casa no bairro Nema II, mais conhecido pelo Bairro das Mulheres, acabaram divorciadas e vivendo sozinhas. Um régulo daqui tinha sido solicitado pela mulher no mesmo sentido, mas ele recusou e quando a mulher lhe disse que tinha conseguido erguer a sua casa, ele lhe disse que se mudasse então para a casa que ela tinha feito, pois mulher sua não podia ter bens que não os seus. E assim o seu casamento acabou.” Esta é a tendência e o risco que muitas mulheres correm para fazerem seu negócio crescer e terem autonomia, nos disseram. E porquê? “Muitos homens acham que perdem o poder sobre as mulheres quando elas começam a ter mais força económica do que eles. Mas eu acho que não é bem assim e nem todos os homens são iguais. Eu acho que quando a mulher ganha dinheiro, é a família que ganha. O homem tem que se esforçar por dar também a sua parte e não deixar-se sustentar, refugiando-se na falta de apoio. E penso que ajudar as nossas mulheres a irem para a frente com seus negócios, isso não enfraquece o homem. Não podemos pretender deixar hoje as mulheres acantonadas no mesmo lugar que tinham as nossas bisavós, porque o mundo “anda” para a frente e não para trás!”

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DIZEM QUE DEUS DEU AO BEAFADA A MULHER-CABRA. É A MULHER SEM LIBERDADE! 164

MULHERES DE BERCOLON HORTICULTORAS E BIDERAS DO AGRUPAMENTO DE MULHERES ASSOCIADAS DA ZONA VERDE EM BERCOLON Foi memorável o djumbai1 que tivemos com as mulheres na tabanca de Bercolon, sector de S. João de Bolama, membros da associação “Mulheres Associadas da Zona Verde”, com cerca de 20 anos de existência. Olhares de várias gerações de guerreiras se cruzaram ali. Mas uma mesma determinação na conquista de espaços de liberdade e de solidariedade declinados no feminino. Elas nos falaram da economia e da cultura beafada, que estão interligadas numa sociedade que resiste em mudar. “Entre nós os beafadas, quem tem a terra é a mulher, porque é ela que a trabalha: limpa o terreno, faz o kopoti 2, semeia, rega, faz a colheita, debulha o arroz.” E os homens, o que fazem? Perguntámos nós ao que nos responderam: “Os homens só põem o fogo ao mato e cortam os grandes troncos para deixar o terreno para nós fazermos a lavoura.” Mas quem é o dono do terreno? Quisemos saber e uma delas retorquiu, elevando a sua voz entre as muitas que falavam e riam em simultâneo: “Quem é dono da terra são os homens, mas quem é dona do trabalho da terra somos nós as mulheres! Ter a terra é uma coisa, trabalhá-la é outra.” E a bemba3, de quem é? “O homem é que tem a bemba. Mas quem a gere é normalmente a mulher. Quem decide? É o homem que entrega as chaves da bemba a alguém da sua confiança, normalmente a sua dona-casa4 ou então o filho que revelar melhor aptidão.” Qual é a maior riqueza para os beafadas, perguntámos. Aqui as opiniões se dividiram entre as mais velhas e as mais novas. “Antigamente, o arroz era a maior riqueza para os beafadas. Agora, é a castanha do caju.” Sintetizou finalmente uma das participantes, depois de intensa discussão em beafada. Quando lhes pedimos para priorizar as três maiores riquezas, houve de novo longas discussões em 1 2 3 4

Djumbai: reunião, conversa animada. Kopoti: revirar a terra com uma enxada pequena, para retirar as raízes e prepará-la para a sementeira. Bemba: Celeiro Dona-casa: Primeira esposa, num casamento poligâmico.


crioulo e beafada, até obtermos uma nova tradução sintética “Para umas a primeira riqueza é a castanha do caju e para outras é o arroz. Porque cultivamos o caju e apanhamos a castanha para podermos trocá-la com o arroz, caju ou arroz, dá no mesmo. A segunda riqueza para algumas é a horta de hortaliça e para outras é a cola-amarga, com a qual fazemos o siti malgos5, que levamos a vender em Bissau. A terceira é, para algumas, o limão, com o qual fazemos o vinagre de limão que vendemos também em Bissau, para outras é o mango, o sal, ou outros produtos que vendemos ou comemos, como feijão, mandioca, inhame... Mas há ainda a criação de animais, como cabra ou galinha, que são importantes para as nossas mistidas6. Quisemos saber o que utilizam para a alimentação. “Comemos sobretudo o arroz, que é da nossa responsabilidade, nós as mulheres. O mafé7 é com o homem. Ou dá dinheiro para comprar ou vai pescar. Se não faz nem um nem outro, come cuntangho8! Isso dá por vezes briga em casa. Mas agora os homens não querem fazer nada, deixam tudo para a mulher. Só nestes tempos de colheita do caju, quando o preço é bom, que os vemos ao fim da tarde irem apanhar alguma castanha para venderem. Mas não nos dão conta do seu dinheiro que não utilizam em casa. Por isso lhes damos cuntangho.” “Nós as mulheres estamos sempre a trabalhar. Não temos tempo para mais nada. Por isso arranjamos jeito de conseguir algumas coisas para ir vender a Bissau, como siti malgos ou vinagre de limão. Ali, podemos ter alguma liberdade, por vezes mesmo ter um namorado. Os homens dizem que Deus deu ao beafada a “Mulher Cabra”... Isso é porque nós não temos liberdade nas nossas tabancas. São os nossos pais que decidem quando e com quem nos casar e depois são os maridos que decidem por nós e nos põem a trabalhar sem direito a descanso. Então, quando é demais, invocamos uma mistida em Bissau e vamos mudar de ares, gozar a vida na praça…” Testemunhou uma das participantes, entre risos das demais. “Nós as mulheres beafadas, somos marcadas como se marca o gado. E sabemos que, como diz o ditado, “a corda que prende a cabra é sempre do seu dono!”. Rematou uma jovem, com um misto de tristeza e ironia, nos gestos e no semblante. E quem é que herda a terra e o produto do trabalho que vocês fazem, interrogámos. “São os filhos varões!” Retorquiram em coro. “A terra, quem herda é o filho, a casa também. Porque as filhas vão para a casa dos maridos e vão cultivar suas terras. Se têm problemas no casamento e querem regres5 Siti-malgos: óleo amargo, um óleo prodigioso utilizado para fazer massagens contra dores de barriga (sobretudo dos recém-nascidos), dores musculares, cefaleias e para alívio de dores de dentes e do ouvido. 6 Mistida: Assunto de interesse pessoal. Pode ser uma cerimónia, um bem pessoal, uma viagem… 7 Mafe: Acompanhamento do arroz, feito de molho com peixe, mariscos ou carne. 8 Cuntangho: Arroz cozido limpo, sem molho nem qualquer acompanhamento.

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sar para a casa de seus pais, o filho que a tiver herdado dá-lhe uma parte para morar e um pedaço do terreno para trabalhar o que quiser. Mas sempre é o homem que tem força, que decide.” Mas uma das mais velhas replicou, assim que conseguiu ter palavra, explicando com autoridade e determinação: “Não, quem decide pode ser o homem, mas quem tem força é a mulher. Porque na cultura beafada, a herança se passa pela barriga. O pai tem o filho ou a filha, mas não tem o djorson9. Quem tem o djorson é a mulher e por isso a herança se passa para os filhos varões do djorson da linha materna. E aqui reside a nossa força!” O djumbai com as mulheres de Bercolon terminou num ambiente de alegre camaradagem, de cumplicidade e partilha entre mulheres, com sessões de fotografias para mais tarde recordar…

9 Djorson: Linhagem.


DEIXEI A ESCOLA NO 2º ANO DA UNIVERSIDADE, PARA VENDER PORCOS PARA CRIAR OS MEUS FILHOS. NENÉ DE OLIVEIRA VENDEDEIRA DE PORCOS NO PORTO CANOA EM BISSAU Nené de Oliveira Barbosa tem 39 anos e um negócio de venda de porcos no “Porto Canoa”, junto ao Geba, em Bissau. É uma bela mulher mancanha que, mesmo entre os suínos, se distingue pelo seu asseio e elegância. Seu olhar é decidido, mas triste. Ela nos contou sua história. “Eu me casei cedo e tive 3 filhos, dos quais duas meninas, a mais velha agora com 20 anos. Entretanto, o meu marido que trabalhava aqui com a empresa Sow & Sow emigrou para Portugal. Nos primeiros tempos foi-me mandando dinheiro que dava para as despesas da casa e com as crianças. Por isso pude continuar os estudos até entrar para a Universidade. Mas veio a crise e a empresa onde trabalhava faliu. Ele andou uns tempos a viver de biscates e depois emigrou para a Espanha. Desde então, deixou de me mandar dinheiro com regularidade, só de vez em quando, quando pode. Por isso tive que interromper o curso (pensando que poderia voltar mais tarde), para fazer bida1, para poder sustentar os meus filhos e lhes pagar a escola, enquanto o meu marido procurava uma situação melhor”. Nené experimentou vários negócios até chegar ao de vendedeira de porcos. “Compro porcos no Senegal, para vender aqui. Isto porque lá tratam melhor os animais, que recebem cuidados veterinários e são menos sensíveis às doenças e mortandades que aqueles que são criados aqui. Mas é um negócio de risco. Os porcos são muito caros, mais de cem mil CFA cada um. As despesas com o seu transporte de lá para cá são elevadas, temos que nos juntar entre 4 a 6 bideras2 para podermos suportar os custos. Se há algum problema, porque são animais que têm pouca resistência às canseiras de longas viagens, os prejuízos são avultados! Para além disso há os perigos do caminho com os rebeldes da Casamança… E chegando aqui, onde os mantemos em várias pocilgas (cada mulher 1 Fazer Bida: fazer negócio. 2 Bideiras: Vendedeiras do sistema informal.

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com a sua), à espera da sua venda, por vezes um animar doente trazido por outra colega transmite a doença aos demais e então a mortandade faz razia! Não há nenhuma assistência sanitária eficaz aqui, nem sistema de segurança que proteja o nosso negócio. E falta financiamentos para nos ajudar a aumentar e diversificar a nossa atividade económica. Fica difícil”. E o que é que a Nené gostaria de fazer em vez de vender porcos? “Se tivesse um financiamento avultado, por exemplo, de cinco, dez milhões, gostaria de me lançar no import/export. Exportar produtos da terra apreciados lá fora (cabacera, peixe, óleo de palma…) e importar artigos como roupa e coisas de casa, que são aqui procurados. Donde? Do Brasil, do Dubay… Se houvesse sistemas de crédito bancário que favorecesse as mulheres empreendedoras como nós, poderíamos ir longe e o país também! Contudo, o banco exige pertencer a uma associação, que tem que estar legalizada, ter garantia. Isso é complicado, porque o negócio depende do talento e empenho de cada um. É difícil associar só para ter crédito. Mas o que eu gostaria mesmo era de voltar à escola e terminar o meu curso! Não perdi ainda a esperança…” Que sonhos tenho para as suas filhas? “Que não caiam na mesma asneira que eu, que peguem a sua escola antes de tudo e só tenham filhos depois de acabarem a sua formação e terem trabalho decente. Porque eu desperdicei a minha vida, não a gozei, como podia e não gostaria que as minhas filhas fizessem o mesmo erro que eu.” Entretanto, chegou uma cliente, uma senhora bem fornecida de carnes, pedindo para comprar um porco grande como ela, para o toca tchur3 do seu pai. E a Nené lá voltou à sua lide de venda de porcos, com a sua elegância e dignidade invejáveis!

3 Toca tchur: Ritual tradicional em honra dos mortos, reunindo seus familiares e amigos.


PAREI DE ESTUDAR PARA TRABALHAR E AJUDAR A SUSTENTAR A FAMÍLIA. SALI MANÉ VENDEDEIRA DE MESA EM BISSAU Sali Mané é uma jovem beafada de 27 anos, nasceu e vive em Bissau, mas conserva os seus usos e costumes. É solteira, tem 4 irmãs e 1 irmão e vive num bairro periférico, numa casa familiar com mais 39 pessoas alojadas em 3 moradias. O pai de Sali morreu em finais de 2014 e a mãe foi herdada pelo irmão mais novo do pai, que segundo Sali, não lhes ajuda muito, contribuído em casa só com o arroz. Ele também tem sua própria família que deve sustentar. Sali vende castanha de caju, manga, djorontch1 e netetu2, tem uma mesa algures no centro da cidade de Bissau. Ela diz que herdou o negócio da mãe, que foi forçada a abandoná-lo devido a uma doença. Como a mais velha das irmãs, Sali não teve outra escolha senão ir trabalhar no lugar da mãe para ajudar a suprir as necessidades da família. Por isso parou de estudar e também porque tinha dificuldades com a vista. Sali diz estar satisfeita com o seu negócio, pois rende-lhe diariamente por volta de 12.000 FCFA. Ela guarda a metade e utiliza o resto para comprar mais produtos e para ajudar na feira. É ela que sustenta a sua família, visto que é a única que trabalha. Sali diz que tem uma pequena poupança que pensa investir para ajudar a irmã mais nova a tirar um curso superior, uma vez que já terminou o Liceu. Mas ela gostaria de vir um dia a construir uma pequena casa para si. Questionada sobre a possibilidade de voltar a estudar, Sali diz “E quem é que vai valer a minha mãe e os meus irmãos? Em nossa casa só sou eu que lhes ajuda…” Mas depois explica que o seu namorado também contribui, pois lhe oferece dinheiro todos os meses, entre vinte a quarenta mil CFA, que dá para ajudar a cobrir as despesas, visto que o que ela ganha nem sempre é suficiente. E no futuro? Sali Mané sonha vir a casar-se, ter casa própria e ver os irmãos formados e encaminhados na vida. 1 Djorontch: camarão seco em farinha utilizado na gastronomia tradicional guineense para realce do paladar. 2 Netetu: sementes de cabaceira seca e pilada empregue no realce do paladar na cozinha de algumas etnias islamizadas da GB.

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CAUSAS SOCIAIS E CULTURAIS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO QUADRO JURÍDICO EXISTENTE Cleunismar Silva

NOTA INTRODUTÓRIA

A situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau tem registado melhorias substancias nos últimos tempos, tendo em conta uma maior intervenção dos parceiros nacionais e internacionais. Os registos positivos devem-se também a vontadade política e à determinação do Governo que são testemunhadas pela ratificação de vários tratados e convenções internacionais e adoção de leis nacionais para a defesa e promoção dos Direitos Humanos, designadamente as leis contra a Mutilação Genital Feminina, Violência Doméstica e Lei que crimi-

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nalisa o Tráfico de Pessoas, em especial de mulher e criança. Não obstante, acima sublinhado, o status quo continua ainda preocupante e diversos fatores convergem para uma análise insuficiente dos esforços positivos alcançados até aqui, sobretudo no plano das políticas públicas de combate a violência contra as mulheres. Tais fatores podem ser claramente visualizados tendo em conta a violação sistemática dos direitos humanos das mulheres e pela ausência de estruturas e de mecanismos de respostas adequadas para combater a impunidade e violência contra as mulheres. O presente diagnóstico insere-se no quadro da execução do projeto “Pelos Direitos das Crianças, Mulheres e dos Detidos: Influência Política, Advocacia e Sensibilização” promovido pela ACEP, AMIC, LGDH e Tiniguena, financiado pela União Europeia no quadro do Instrumento Europeu de Democracia e Direitos Humanos - IEDDH e pela Cooperação Portuguesa. O diagnóstico tem como objetivo servir de instrumento para apoiar as Organizações da Sociedade Civil na formulação de propostas ao Governo e à Assembleia Nacional Popular de definição e de reformulação das políticas, estratégias e medidas para combater a violência contra as mulheres, assim como contribuir para melhoria da aplicação das normas de proteção das mulheres, em especial na administração da justiça. O relatório está estruturado em três partes. Na primeira parte buscou-se desenvolver uma abordagem no sentido de compreender o significado dos diversos conceitos de violência que serviram para uma concretização prática do tema, assim como problematizar a violência contra mulheres à luz da realidade guineense.


A segunda parte versa sobre os resultados obtidos com o diagnóstico, onde aponta de forma objetiva as causas da violência contra as mulheres no país. Igualmente desenvolve uma análise crítica sobre o quadro legislativo existente e sua aplicação no domínio de proteção dos direitos das mulheres. A terceira parte aponta as principais conclusões e as recomendações propostas aos diferentes atores.

VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES: PERCEÇÕES, CONCEITOS E PROBLEMATIZAÇÕES FACE AO CONTEXTO GUINEENSE

O termo violência contra as mulheres engloba diversos tipos de comportamentos condenáveis à luz dos direitos humanos cujos alvos são as mulheres e meninas. A expressão tipologias de violência pretende referir que o termo comporta diferentes tipos de violência, nomeadamente – física, sexual, psicológica e patrimonial. Algumas adquirem mais importância, enquanto outras são menos divulgadas no contexto guineense, como por exemplo, a violência psicológica que se exerce por via de novas tecnologias, como as ameaças e perseguições por via do telemóvel ou por via das redes sociais. A violência doméstica, que também corresponde a uma tipologia de violência contra as mulheres é definida segundo a lei que a criminaliza no país, como sendo “todo o padrão de conduta por ação ou omissão de natureza criminal, reiterada ou não, que inflija sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos, pri-

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vações de liberdade e económica, de modo direto ou indireto, praticado no seio da família contra qualquer pessoa que resida habitualmente no mesmo espaço doméstico ou não, a pessoa com o qual a vítima mantenha relações.” Resulta deste conceito uma pluralidade de atos que podem ser classificados como violência doméstica. Contudo, na vida corrente muitas das violências são difíceis de serem percecionadas como tal. Isto porque, à luz dos padrões sociais e culturais não se trata de uma “violência contra as mulheres”, mas de um direito que os homens exercem com base num presumível poder natural de correção. Seria algo comparado ao suposto poder paternal e não uma violência, sendo assim, conflituoso o seu enfrentamento. Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, a violência contra mulheres pode ser definida como sendo: “Qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilha-la, ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidade físicas ou intelectuais.” Este conceito traz consigo as diferentes tipologias de violência (física, sexual, psicológica, patrimonial, etc.). Partir-se-á desta definição como referencial

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teórico para analisarmos os diversos comportamentos, à luz das dinâmicas sociais e culturais guineenses, impulsionadores da violência contra as mulheres. A violência contra mulheres tem raízes profundas na sociedade e cultura guineense. Embora, seja um fenómeno reconhecidamente presente na vida de muitas mulheres, não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que possam demonstrar a magnitude deste fenómeno, com exceção de poucos estudos realizados por organizações não-governamentais ou organismos internacionais que apresentam uma dimensão mais qualitativa e analítica e pouco ou quase nada de uma dimensão quantitativa da real situação no país. Apesar da ausência de dados quantitativos, a perceção social de que a existência da violência contra mulheres é um problema de maior gravidade tem-se difundido entre as organizações da sociedade civil, assim como entre as instituições estatais. É consenso que o tema constitui uma das maiores preocupações das organizações que atuam no país na proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres. Os diversos estudos realizados, no sentido de tentar compreender as manifestações da violência contra as mulheres no país, têm demonstrado que as mulheres no geral estão sujeitas às situações de violência, independente do nível de escolarização, classe social, grupo étnico, faixa etária ou religião e crença. Contudo, discute-se muito a situação de vulnerabilidade económica como o principal obstáculo ao acesso à justiça e à informação. O fato da violência ter supostamente um estatuto de “problema familiar” é um outro fator que obstaculiza um real conhecimento sobre a temática. Sendo assim, tradicionalmente os “problemas familiares” resolvem-se no seio das famílias.


Igualmente, a perceção de justiça formal para um guineense ou para muitos povos africanos assume uma dimensão distinta da visão europeia ocidental. Para um guineense recorrer a um tribunal ou à polícia para resolver um conflito é declarar a outra parte como sendo seu inimigo. Desta forma, uma mulher, em caso de vítima de violência doméstica, para fazer uma queixa-crime contra o seu agressor tem que o considerar seu inimigo, para além de estar disposta a assumir perante os familiares que recorrera a outras instâncias que não o ambiente familiar para solucionar o seu problema. As mulheres são vítimas de violência por causas e em espaços muito variados – na família, na comunidade, pelo Estado (por via de ação ou omissão). A violência é uma constante na vida das mulheres guineenses, do nascimento até à velhice, tanto na vida privada como na vida pública. A tipologia mais comum de violência sofrida pelas mulheres guineenses é a violência exercida no âmbito familiar - violência doméstica, exercida por seus companheiros ou familiares próximos. Em muitos casos devido a forma como é tratada torna-se um ciclo, um fenómeno reincidente. Em geral familiares apelam para que as mulheres sejam capazes de suportarem as agressões. É como se a violência fosse um fardo que incumbe as mulheres suportá-lo, a expressão “sufri”, “sufridur ta padi fidalgo1” é utilizada como forma de sensibilização das mulheres para consolar o fardo da violência. Contudo, no seio das comunidades, presta-se cada vez mais atenção ao assassínio de mulheres por motivos relacionados ao sexo - a violação sexual, ao assédio sexual e ao tráfico de mulheres, em especial de meninas.

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/ 1 Expressão utilizada

em crioulo para estimular uma pessoa a ser resistente aos infortúnios da vida, ou seja, apesar do seu sofrimento a recompensa virá em benefício dos filhos. É muito utilizada como forma de consolar nas situações de sofrimento da mulher guineense.


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ABORDAGEM METODOLÓGICA

A abordagem metodológica do diagnóstico consistiu na utilização de ferramentas participativas que envolveu os diferentes atores da sociedade. O processo foi conduzido por uma consultora externa às organizações promotoras com a duração de 3 meses, entre Março a Junho de 2015. A dimensão principal do diagnóstico consiste na análise qualitativa de discursos, práticas e perceções. Para a recolha dos dados utilizou-se a técnica de entrevistas semiestruturadas aplicadas às instituições estatais, organizações da sociedade civil e observadores com conhecimento sobre a temática, todos selecionados em função da relevância e envolvimento no processo de combate à violência contra as mulheres. Também se recorreu à técnica de djumbais (grupos focais) com mulheres e raparigas vítimas de violência. Esta técnica utilizada para abordar as mulheres permitiu e possibilitou o exercício de pensar compartilhado e favoreceu as condições de espontaneidade, comunicação e reflexão. Os djumbais foram organizados com o apoio de organizações da sociedade civil (RENLUV, NADEL e a própria LGDH). A discussão foi orientada através de perguntas chaves e igualmente possibilitou às vítimas partilharem suas experiências vivenciadas. Optou-se por não utilizar recursos a gravações, nem a fotografias, como forma de tranquilizar as vítimas e não expô-las a situações de constrangimentos. As entrevistas e djumbais foram realizadas para além do Setor Autónomo de Bissau, no Setor de Canchungo, São Domingos, Quinhamel, Gabu e Bafatá. Em síntese, a metodologia consistiu nas seguintes etapas de trabalho:


1ª Etapa: Recolha e análise dos dados bibliográficos. Esta fase permitiu sistematizar informações já existentes sobre o tema e agrupá-las de modo a fornecer pistas e indicações essenciais para a recolha de dado no terreno. Igualmente possibilitou fortalecer os aspetos teóricos para a consolidação da metodologia de trabalho2; 2ª Etapa: Consolidação da metodologia de trabalho. Elaboração do guia de entrevistas e seleção das instituições, organizações e localidades alvo deste trabalho; 3ª Etapa: Recolha de dados no terreno. Esta fase iniciou-se no Setor Autónomo de Bissau, com a aplicação de entrevistas semiestruturadas às instituições estatais, organizações da sociedade civil e grupos focais com mulheres e raparigas vítimas de violência. Seguiu-se este mesmo processo nas cinco localidades situadas no interior do país. 4ª Etapa: Referiu-se à fase de sistematização dos dados obtidos e elaboração do relatório preliminar. 5ª Etapa: Constou na elaboração do relatório final com incorporação das sugestões das organizações promotoras e parceiras da iniciativa.

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/ 2 Para a recolha

e sistematização das referências bibliográficas contou-se com a colaboração do Estudante de Direito e Coordenador da Geração Nova da Tiniguena Erickson Mendonça.


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CAUSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NA GUINÉ-BISSAU A) CAUSAS CULTURAIS E SOCIAIS Devido a inexistência de estudos sobre vitimização, que partem fundamentalmente do olhar da vítima sobre o tema e que possam demonstrar, com melhor rigor e clareza à luz de casos concretos, as motivações que justificam as violências contra as mulheres, neste diagnóstico para o levantamento das causas sociais e culturais tomou-se como ponto de partida duas abordagens distintas. A primeira consistiu em saber à luz dos discursos tanto da vítima quanto do agressor quais as motivações que culminaram na violência (através dos grupos focais com mulheres vítimas de violência e dos registos dos casos recolhidos junto às instituições estatais e OSC especializadas na temática). A segunda abordagem centrou-se na identificação de práticas culturais e sociais que têm contribuído para fomentar e enraizar a violência contra as mulheres. No fim tentou-se perceber até que ponto estas abordagens convergiam e se constituíam um ponto comum ou não de confluência para as dinâmicas, transformações e tendências sociais das violências contra mulheres. Desta forma, de acordo com os casos concretos analisados foram identificados como causas da violência contra as mulheres: Insubordinação da mulher: consiste na recusa em obedecer as ordens do companheiro em relação aos afazeres domésticos e aos cuidados com os filhos ou recusa das raparigas em aceitarem o casamento precoce e forçado.


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No geral consiste no fato da mulher questionar e recusar-se a cumprir uma ordem imposta pelo homem. Ciúmes: refere-se em relação a ambos os sexos, manifesta nas relações conjugais (casamento ou união), assim como no namoro. Recusa da mulher em manter relação sexual com o companheiro: identificado basicamente nas relações conjugais (casamento ou união). Entre os mais jovens foram elencadas também duas causas que não se verificaram nos discursos dos mais experientes: Alcoolismo do agressor: uma prática muito citada no interior do país e associada ao tempo ocioso dos jovens. Nos discursos dos entrevistados surgiram posições como “ os jovens agora é só beber vinho de cajú”. A consequência é sempre o aumento da violência nas comunidades, em especial sobre as raparigas. A violência como demonstração de amor: “se o meu rapaz (namorado) me bate é porque ele gosta de mim.” Neste caso, seria a violência tendo como causa o ciúme. Segundo o grupo de raparigas entrevistado, é uma violência que tem uma certa aceitação entre as raparigas mais jovens pelo fato de ser motivada pelo ciúme, logo “agiu por amor.” Já na segunda abordagem preocupou-se em identificar os aspetos culturais, sociais e tradicionais que de forma direta ou indireta resultam em qualquer tipo de violência contra as mulheres. É relevante ressaltar que para esta abordagem tomou-se em conta que não existe uma explicação única e acabada sobre as causas da violência, ela resulta de uma complexidade de fatores e múltiplas causas.


Em resposta a questão sobre as causas sociais e culturais da violência contra as mulheres foram elencados pelos entrevistados e confirmados pela revisão bibliográfica um conjunto de práticas que ou contribuem ou por si só produzem a violência contra as mulheres. Estas causas podem ter suas origens em práticas culturais ou sociais que resultam de um sistema de organização social onde a tradição, os usos e costumes prevalecem ainda muito forte. Igualmente, de um conjunto de fatores estruturais que na ausência ou perante as fragilidades das políticas públicas de acesso aos direitos recaem com maior impacto negativo sobre as mulheres e raparigas (ver tabela a seguir). Causas Sociais e Culturais / Casamento precoce e forçado / Mutilação Genital Feminina / Opção de permanecer no casamento, mesmo com a violência / medo de viver sozinha / Preceitos religiosos / Desigualdade de género / Resultado da cultura de submissão da mulher e do complexo de inferioridade dos homens / Aceitação social e cultural da violência contra as mulheres / Mulheres sem poder de decisão na família / Costume da mulher não questionar o homem e quando o faz isso gerar violência

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/ Educação familiar que inculca na cabeça do homem o direito de espancar a mulher / Resultado da forma pela qual as meninas e os meninos são educados / Poligamia / Mulher vista como um objeto / Violação sexual / Problema Familiar que envolve (despesas com os filhos, relação com os familiares do casal, reconhecimento de paternidade, direito a herança e outras) / Reside fundamentalmente no estatuto tradicional e social da mulher / Prática de um irmão ou sobrinho do marido herdar a mulher (em caso de morte do marido)

Causas Estruturais / Dependência económica dos maridos / Baixo nível de escolarização do agressor / Baixo nível de escolarização e falta de informação das mulheres sobre seus direitos / Fragilidade do sistema de justiça / Impunidade / Ausência de responsabilidade dos homens com as despesas familiares / Ausência de conhecimento sobre os procedimentos para lidar com a justiça formal / Ausência de vontade política em relação ao tema / Morosidade dos processos e falta de cumprimento da justiça


/ Pobreza generalizada entre as famílias sem acesso ao emprego e habitação digna / Recusa dos pais em cumprir com o dever de alimento dos filhos / Falta de emprego / Falta de cultura de diálogo / Gravidez precoce

Importa ressaltar que algumas destas práticas ocorrem com maior incidência em alguns grupos étnicos ao passo que outras são transversais para todos. Mas dada a limitação do diagnóstico e a diversidade étnica não iremos aprofundar as especificidades, faremos apenas referência quando necessário. É importante reter que a nossa ideia vai no sentido de uma análise comparativa destas causas sociais e culturais com as transformações económicas, políticas e de segurança que o país tem atravessado nos últimos anos. Estes recursos poderão reforçar ou confirmar os discursos de que a violência contra as mulheres na Guiné-Bissau começa fundamentalmente no âmbito doméstico, no seio da família como reflexo da cultura de submissão da mulher em relação ao homem, da acentuada desigualdade de poder de decisão expressa nas relações de género no seio familiar e público, com evidente supremacia do homem. Contudo, reconhecemos e identificamos a existência de diversas outras causas sociais e culturais de violência contra as mulheres que ocorrem fora do âmbito familiar, igualmente preocupantes, como exemplo a violência oriunda da relação professor versus aluna, das relações patronais, sobretudo no âmbito do trabalho doméstico (onde as mulheres estão em maioria), e na ausência

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de uma legislação que regule o sector, tornam-se presas fáceis para os abusos de poder e violência. Porém, os estudos qualitativos sobre o tema têm demonstrado que a perceção das relações patronais, sobretudo no âmbito do trabalho doméstico é que existe uma incorporação da trabalhadora doméstica ao direito de propriedade, assim como também estão inseridas num regime de trabalho quase escravo. Importa agora tentar analisar algumas destas causas que merecem uma abordagem aprofundada, para compreendermos suas manifestações, assim como o enquadramento que recebem à luz das políticas de combate à violência contra mulheres no país. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA “Fui violentada de várias formas, durante 20 anos de casamento. Muitas vezes tive que sair de casa no meio da noite, nua, sem nenhuma roupa no corpo, os vizinhos que me cobriam com panos. Também fui espancada com cinto, ele (companheiro) colocou uma pistola na minha boca e puxou o gatilho, não tinha bala na arma, Deus obrigada. Tive os dedos cortados com faca (como você pode ver). Fui chicoteada e muitas vezes dormi na rua, pois ao chegar do trabalho encontrava a porta fechada e não podia entrar. Todo tipo de tortura que você possa imaginar eu passei nas mãos daquele homem. Meus filhos também sentiam que já não tinha paz em casa. Eles tinham pânico do pai, quando ele chegava em casa as crianças davam logo um jeito de fugir para a casa dos vizinhos, para a rua. Esta situação durou até o dia que eu tomei coragem e sai de casa, eu não dependo dele financeiramente, aluguei


uma casa e fui-me embora com meus filhos. Hoje eu vivo em paz.” (Entrevista com uma vítima atendida pela RENLUV). Na Guiné-Bissau são várias as formas que assumem esta violência. A realidade social demonstra que as mulheres e crianças são os principais alvos desta tipologia de violência. Nota-se nas últimas décadas uma consciência em relação aos direitos das mulheres e uma maior abertura para falar do tema, mas não para denunciar as agressões. Desta forma é igualmente possível que as denúncias não correspondam necessariamente a este padrão, uma vez que é mais difícil para as mulheres fazerem queixa de familiares do que de desconhecidos. Apesar da acentuada concentração da violência no espaço familiar e íntimo seguir uma tendência de outros contextos, acreditamos que no contexto guineense este fenómeno possui um caráter próprio das sociedades africanas genericamente e também da Guiné-Bissau. Comporta basicamente o sentido que se confere à família, assim como as manifestações do masculino e feminino (do ser homem e ser mulher) no âmbito familiar e como estas relações se projetam em violência contra um ou outro sexo. O crime de violência doméstica foi autonomizado através da Lei nº 6/2014 que criminaliza todos os atos de violência praticados no âmbito das relações domésticas e familiares. A inovação do diploma é reconhecer este crime como sendo um “crime público”, desta forma não depende da queixa da vítima para o Ministério Público agir, basta tomar conhecimento para impulsionar o processo. Segundo as entrevistas realizadas, a violência no âmbito familiar se manifesta

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de diferentes formas: agressões físicas, psicológicas, morais e verbais. Entre algumas das vítimas entrevistadas foram possível visualizar o alcance destas dimensões através de cicatrizes espalhadas pelo corpo. Os serviços de estatísticas nacionais desconhecem os casos que dão entrada nos hospitais e centros de saúde espalhados por todo o país, muitos em situações precárias, funcionando de forma básica, sem nenhuma capacidade de prestar auxilio adequado às vítimas e de construir um banco de dados acerca dos casos ou especialmente encaminhá-los ao Ministério Público. Segundo os dados do CAJ, em quatro anos de existência dos serviços foram atendidos 50 casos de violência doméstica. O que nos parece ser muito baixo, embora tenhamos consciência de que denunciar a agressão é um ato quase impensável para uma mulher. É curioso observar que, segundo os dados do MICS5, 41,8% das mulheres entrevistadas com faixa etária compreendida entre os 15 – 49 anos de idade, responderam ser aceitável o marido bater na sua mulher em caso de: se ela sair sem lhe dizer; não cuidar dos filhos; discutir com ele; recusar a ter relações sexuais com ele ou queimar a comida. Apenas 28,7% dos homens consideraram aceitável esta atitude. Os indicadores do MICS vão de encontro aos dados qualitativos levantados durante as entrevistas, ambos demonstram que existe uma resignação das mulheres, pois são as próprias mulheres a considerarem que os homens utilizem a força como via de resolução dos conflitos conjugais. Isto porque as mulheres guineenses em sua maioria são educadas para serem domésticas, não para terem uma vida profissional ativa, para serem cientistas, médicas, juristas, etc… Mas para estarem na casa a limpar, cuidar dos filhos,


cozinhar, cuidar do marido e não questionar as suas ordens e quando não o fazem com rigor e qualidade, a reprovação vem da própria categoria feminina e da sociedade no geral. São representações sociais construídas sobre o ser homem e o ser mulher. Além disso, os atos violentos são muitas vezes justificados como reação a um comportamento inaceitável da mulher “ela não cozinhou bem”, “não cuidou como devia dos filhos.” Como as mulheres acreditam que de fato é tarefa unicamente delas, não se revoltam. Ressalta que segundo os dados recolhidos existe um limite aceitável para esta violência, devendo ser utilizada como uma forma de sancionar a mulher quando é considerado que não comportou-se bem no casamento, mas quando ultrapassa este limite e assume uma forma extrema de agressão física torna-se inaceitável. CASAMENTO FORÇADO “Eu não aceitei casar com aquele homem que minha família queria. Ele é muito mais velho que eu, mas só porque tem alguns bens, é homem reconhecido na tabanca, os grandes da minha família determinaram que eu deveria casar-me com ele. Como eu recusei o casamento tive que fugir. Agora eu vivo por minha própria conta, sou eu que tenho que conseguir o que comer, roupa de vestir, pagar minha escola. Vivo na casa de uma prima no Bairro Missira, mas não tenho um tratamento igual aos seus filhos. Conto com a ajuda do pastor da igreja para pagar as despesas da escola. (Entrevista adolescente de 16 anos, vítima de casamento forçado).

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/ 3 Proposta apresentada pela Faculdade de Direito de Bissau. Código Civil com anotações. 2a Edição. 2007.

Não obstante as ações de sensibilização, o casamento forçado continua sendo um forte impulsionador da violência contra as mulheres, sobretudo entre as raparigas menores de 18 anos. Segundo os dados do CAJ de Setembro de 2011 a Fevereiro de 2015 foram registados 61 casos refentes ao casamento forçado. Convém questionar o que se considera em termos práticos de “casamento forçado”. Segundo o Artigo 1577º do Código Civil guineense, o casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir legitimamente a família mediante uma comunhão plena de vida. Por força da Lei nº 3/76 de 4 de Maio, Boletim Oficial nº 18 a disposição deve manter suprimindo apenas a palavra legitimamente, pois o legislador guineense atribui à união de fato a denominação de casamento não-formalizado equiparando-a ao casamento civil.3 Portanto, fica evidente que a lei do país não permite a poligamia, nem tão pouco que o casamento resulte de qualquer ato alheio à vontade das partes. Contudo, na prática tem-se verificado a existência de casamentos poligâmicos com base nos usos e costumes e a maioria dos casos identificados de casamento forçado refere-se a casamentos tradicionais poligâmicos, em que ao homem é admissível possuir quantas mulheres ele queira. O casamento forçado é uma prática que incorpora diferentes tipos de violência. Esta prática pode ocorrer na idade adulta ou na infância/adolescência (que tem sido o mais recorrente). Afeta sobretudo o sexo feminino. Os casos de adultos ocorrem sobretudo em situações de viuvez, uma passagem simbólica da “proteção do marido para a proteção do cunhado”. Muitas vezes implica também a existência de relações sexuais forçadas.


Segundo os dados do MICS5, 59,6% da amostra de mulheres inqueridas, entre 15-19 anos de idade, estão casadas ou em união com homens pelo menos 10 anos mais velhos. Sendo que esta percentagem cai para 47,3% para as mulheres da faixa etária de 20-24 anos. Os dados do MICS ainda apontam que o casamento ou união antes de 18 anos de idade é esmagadoramente superior entre as mulheres (37,1%) em comparação com os homens (3,7%). Geralmente os casamentos com grande diferença de idade e o casamento precoce estão associados ao casamento forçado. Aqui daremos destaque às diversas consequências negativas do casamento forçado na vida das raparigas. A primeira, que resulta do próprio ato em si do casamento forçado (ausência de liberdade na escolha do companheiro, convivência em muitos casos em ambiente poligâmico e conflituoso); a segunda, em que as raparigas são obrigadas a arcarem com as consequências resultantes da recusa em aceitar o casamento. Segundo as entrevistadas ao rejeitarem um casamento de conveniência têm que fugir para não serem sujeitas a diversos tipos de torturas, espancamentos, humilhação pública na comunidade. Contudo, como punição mais severa, são banidas do seio familiar. Portanto, passam a viver ao completo abandono, em casa de amigos, parentes ou em missões religiosas. É importante realçar que este abandono implica em situações diversas, a exposição destas raparigas, em estado de vulnerabilidade, à exploração sexual, abandono escolar, maior exposição ao vírus VIH/SIDA, gravidez precoce e outros constrangimentos. Como se verificou, muitas delas têm recorrido a missões religiosas como via alternativa à situação de vulnerabilidade; porém

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convém mencionar que esta solução também comporta os seus riscos, como por exemplo, desenraizamento cultural, conflitos identitários, etc. Também foi possível identificar situações de violação sexual mascaradas com pretensões de casamento precoce e forçado. São situações em que o agressor aproveita da autoridade que exerce sobre a vítima, por ser um homem mais velho (durante o processo de negociação do casamento) e, mesmo antes de contrair o casamento, impõem à rapariga situações constantes de violação sexual. Têm sido realizadas ações de sensibilização da comunidade por diferentes OSC guineenses, assim como organismos internacionais. Igualmente, muitas raparigas quando fogem ao casamento forçado recorrem às organizações que atuam neste domínio. O IMC possui atualmente um programa de bolsa de estudos para raparigas carentes como forma de criar condições alternativas e combater este fenómeno. No entanto, é preciso reforçar estas estratégias para minorar o problema e consolidar as políticas de desenvolvimento para promover alternativas centradas num projeto de vida e na aquisição de competências profissionais para inserção destas raparigas no mercado de trabalho. MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA - MGF “Eu e o meu marido tínhamos acordado de que nossa filha não iria ao fanado. Saímos os dois para trabalhar e quando voltamos não encontramos a menina em casa. A tia (irmã do pai) levou- a escondido para o fanado sem o nosso consentimento. Já faz mais de 10 anos que não nos falamos por causa deste fato.” (Entrevista com uma mãe sobre a MGF em S. Domingos).


A mutilação genital feminina (MGF), também conhecida por excisão feminina ou fanado de mulher é uma das formas de violência mais mediatizadas nos últimos tempos. Várias mulheres têm vindo a denunciá-la como uma prática nefasta. Na Guiné-Bissau a lei que criminaliza a MGF foi promulgada, publicada e entrou em vigor em 2011, após um longo processo de advocacia liderado pelas OSC junto ao parlamento, para sua aprovação. A excisão feminina é definida segundo a lei que a criminaliza como sendo “toda forma de amputação, incisão ou ablação parcial ou total de órgão genital externo da pessoa do sexo feminino, bem como todas as ofensas corporais praticadas sobre aquele órgão por razões socioculturais, religiosa, higiene ou qualquer outra razão invocada.” Após as intensas ações de sensibilização e informação da sociedade sobre os efeitos nefastos da prática na saúde das mulheres e raparigas, pode-se defender que não existe um consenso em relação à posição se a prática reduziu ou não no país.4 A ausência de um consenso se a MGF reduziu ou não no país indica a necessidade de um inquérito aprofundado sobre conhecimento, atitudes e práticas em matéria de MGF, com vista a monitorar a redução ou evolução da prática no país. Não obstante os esforços realizados para combater esta prática, segundo os dados do MICS5, 12,8% das mulheres inquiridas alegaram que se deve continuar com esta prática, sendo que 49,7% das raparigas de idade entre (0-14 anos) foram submetidas a MGF segundo a declaração das mães inquiridas e 44,9% das mulheres de (15-49) inquiridas declararam ter feito a excisão. Nota-se ainda a importância da MGF para legitimar o poder de participação

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/ 4 No estudo realizado pela PLAN INTERNACIONAL. Estudo de base sobre a mutilação genital feminina. Relatório país em 2012 a organização defende que a MGF não reduziu em termos significativos, pelo menos para a região de Bafatá e Gabú.


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e respeito das mulheres nas comunidades: “Bo ka bai fanado” (você não fez fanado) - insulto proferido por uma mulher à sua colega de trabalho durante uma briga no Mercado de Bandim. Isto quererá dizer que o fato de não ir ao fanado não a qualifica como uma “mulher grande” (de responsabilidade e respeito). São estes fatores que fazem com que infelizmente se verifique a existência de mutações do fenómeno como forma de fugir ou driblar a lei. A estratégia tem passado nomeadamente por realizar a MGF em crianças bebés recém-nascidas. Segundo os dados da RENLUV, recentemente foram diagnosticados na pediatria do Hospital Nacional casos de bebés do sexo feminino que apresentavam sinais da MGF nos órgãos genitais. Importa mencionar que a lei existente já foi aplicada em casos concretos na região de Bafata e São Domingos. A legislação que criminaliza a MGF comporta o mérito rigoroso que pune o coautor do crime com o mesmo rigor que o autor. No entanto, ressalta a importância de dar continuidade ao processo de sensibilização e informação das comunidades, sobre o impacto da MGF na vida e saúde das mulheres, bem como da lei existente, assim como também criar e fortalecer mecanismos comunitários de vigilância, prevenção, denúncia e monitoramento da prática.


VIOLÊNCIA SEXUAL “Eu fui violada pelo marido de uma prima várias vezes. Ele me ameaçava para não dizer nada a ninguém. Quando eu recusava ele me castigava com surras de catana. Eu cheguei a ficar grávida ele me levou ao hospital e fizeram um aborto em mim (disse que se alguém no hospital perguntasse era para dizer que foi um colega que engravidou-me) foi neste dia que eu fugi. Eu estava cheia de dores, a sangrar e ele queria fazer sexo comigo. Fugi e liguei a minha mãe na tabanca contando tudo. Veio um irmão do meu pai e me levou com ele.” (Entrevista de uma vítima atendida pela RENLUV, 16 anos de idade). Os casos de violações sexuais têm-se configurado um dos mais complicados e difíceis de solucionar. Isto em função das limitações técnicas e estruturais importantes para o processo de diagnóstico e recolha de provas comprobativas da violência, com celeridade e respeito à dignidade humana da vítima. A violação sexual acontece em diferentes contextos e com mulheres de diferentes faixas etárias. Segundo a entrevista realizada à direção do Hospital Nacional Simão Mendes e Casa Emanuel é frequente o diagnóstico de violação sexual e de doenças sexualmente transmissíveis em meninas com idade inferior a 10 anos de idade. Tentámos identificar a perceção que as comunidades alvo do estudo tinham sobre o conceito de violência sexual. Todos foram unânimes ao afirmar que “há violência sexual sempre quando existir uma relação sexual que não é de comum acordo ou de livre vontade das duas partes.” Mas o fato do marido forçar a mulher a manter relação sexual não foi considerado uma violência sexual, segundo os discursos dos entrevistados “o homem estaria apenas a

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exercer o seu direito”. Como mencionado anteriormente, o fato da mulher se recusar a manter relação sexual com o marido é uma das 3 causas da violência contra as mulheres mais citadas nos registos das instituições de atendimento à vítima. Durante a recolha de dados verificamos 3 casos “frescos” de violação sexual que culminaram com a morte das vítimas. Um em Canchungo cujo autor foi o próprio marido. O outro em São Domingos, sendo que a vítima era uma adolescente de 13 anos cujo agressor foi identificado como sendo um militar vizinho da vítima. O terceiro também em Canchungo, sendo violadores dois rapazes vizinhos da vítima. Quando tentamos perceber as causas que levam a mulher a ser vítima de violência sexual, houve algumas variações nos discursos. Na localidade de São Domingos o grupo entrevistado apresentou uma visão centrada no discurso de culpabilização da vítima, sendo a maior referência feita em relação ao “comportamento e vestuário que as raparigas usam hoje em dia, com exposição excessiva do corpo pelas ruas, como forma de induzir os homens para um comportamento não correto, do tipo violência sexual”. Ainda segundo o grupo, “são as meninas que provocam os homens até ao ponto de estes perderem a cabeça.” Já nas demais localidades, para além de invocarem igualmente esta causa, também chamaram a atenção para “a educação dos filhos e das transformações sociais que resultam em perda de valores da sociedade. Quando este tipo de situações acontecem é porque existe um certo disfuncionamento em termos de transmissão de valores positivos das gerações mais velhas para as mais novas.”


O CAJ registou para um período de 4 anos 92 casos, o que daria uma média de 23 casos por ano. Com base na recolha qualitativa que fizemos podemos assegurar que estes dados são insignificantes tendo em conta a dimensão que o fenómeno comporta, tanto nos centros urbanos quanto no interior das comunidades rurais. Durante os djumbais foram relatados vários casos de violação que nem sequer chegaram às autoridades de justiça formal, isto porque, dada a natureza íntima do crime e sendo que a grande maioria são cometidos ou por pessoa próxima a vítima, ou por pessoas com “autoridade e poder sobre a vítima” acaba por intimidá-la a não denunciar a violência. Em relação às mulheres em conflito com a lei, coloca-se a questão da ausência de estabelecimentos prisionais para mulheres. Registou-se em 2012 que 10 guardas prisionais foram sancionados por violação sexual de mulheres reclusas, ao ponto de ter originado gravidez em algumas delas.5 PROBLEMA FAMILIAR “A família não pode ser vista hoje em dia como uma simples estrutura social de base, cujos membros provêm da mesma geração mas sim um núcleo de várias gerações fundadas no espírito de união permanente e de solidariedade.” (Discurso da Ministra da Mulher, Família e Coesão Social, Bilony Nhassé em alusão ao Dia Internacional da Família, 2015) A expressão “problema familiar”6 sintetiza uma serie de conflitos que ocorrem no âmbito familiar, inclui a responsabilização dos pais em relação às

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/ 5 Informação

recolhida por via de entrevista junto a jurista e advogado do Estado.

/ 6 Para aprofundar o conhecimento sobre a expressão “problema familiar” ver: Estudo sobre o acesso à justiça na Guiné-Bissau: regiões de Cacheu e OIO e Sector Autónomo de Bissau. Abril de 2011. PNUD. É uma expressão que tem sido utilizada para limitar a resolução do problema da violência contra mulheres unicamente ao âmbito familiar, sem recorrer às autoridades estaduais de justiça. Reflete mais a vivência quotidiana das comunidades do interior, em detrimento de definições jurídicas de fato, porém não estão em polos opostos.


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despesas dos filhos, disputa entre mulheres nos casamentos poligâmicos, reconhecimento de paternidade, disputa pela guarda dos filhos, separação e divórcio, abandono por parte do marido, discussão envolvendo familiares do casal, questões relacionadas ao direito de herança, etc… Iremos utilizar este conceito para abordar algumas práticas que não se autonomizaram no diagnóstico, mas que constituem fonte de conflito dentro das famílias e consequente agressão física, psicológica e patrimonial das mulheres. É a prática registada no CAJ com maior incidência, totalizando 161 casos para um período de 4 anos. Poucos trabalhos têm sido feitos no sentido de uma compreensão sociológica sobre a família e as relações de parentesco guineense, bem como o papel que desempenham no processo de desigualdade, no fomento ou não da violência contra as mulheres e/ou na promoção da igualdade e equidade de género. Segundo alguns entrevistados, “com a lei costumeira o lar torna-se um campo de batalha, a conceção do casamento é que a mulher integra o património do homem, devendo-lhe obediência e quando não o faz o poder de correção é aplicado”. Assim como também defendem que “em muitos casos, são os próprios familiares dos maridos que os estimulam para agirem com violência”. Com base nas entrevistas, sobretudo nos discursos das mulheres vítimas, nota-se que as relações familiares, assim como as relações conjugais, estão profundamente afetadas pela fragilidade socioeconómica registada no país nas últimas décadas. A desconfiança, a insegurança e o receio da infidelidade conjugal são sem dúvida a justificação apresentada na grande maioria dos casos de violência


contra as mulheres, registados nas instituições competentes para o efeito. Estes dados qualitativos confirmam os discursos que vão no sentido de argumentarem que “o complexo de inferioridade dos homens é também causa da violência contra as mulheres, quando percebem que não estão no mesmo ritmo da mulher, utilizam a violência para compensar e estigmatizar”. De acordo com os dados recolhidos, podemos defender que o combate à violência contra as mulheres passa igualmente pela adoção de um conjunto de políticas públicas que visam promover a igualdade e partilha concertada das decisões entre homens e mulheres no seio familiar. Devemos ressaltar o papel que o Ministério da Mulher, Família e Coesão Social deverá desempenhar como promotor de uma Política Nacional da Família, com vista a aprofundar o conhecimento sobre a família guineense, trazendo ao debate fatos que possam reforçar a compreensão sobre as tendências e transformações nas relações entre os casais e vivência familiar.

B) CAUSAS ESTRUTURAIS Razões de toda ordem contribuem para provocar a violência, e, além disso, sabemos que ela se gera em ciclos ou espirais, existem violências que podem desencadear outras. Por isso, combater a violência contra as mulheres significa desarmar os mecanismos estruturais e culturais que a legitimam nas suas mais diversas formas. Existem na sociedade guineense um conjunto de fatores estruturais que, analisados separadamente, são frágeis para suportar as causas da violência contra as mulheres, mas quando analisados em conjunto constituem uma

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complexidade que interfere tanto na perceção social da violência, quanto em sua criminalização e punição. O baixo nível de escolarização das mulheres que resulta em dificuldades de conhecer e saber lutar pelos seus direitos, a dependência económica em relação ao homem, que se manifesta nas relações sociais como resultado de uma mentalidade que cabe ao homem manter a família, pelo que o homem vai ao trabalho e a mulher fica em casa a cuidar dos filhos. Os afazeres domésticos não são vistos como um trabalho, não se contabilizam no orçamento familiar. Igualmente deve-se assinalar o enraizamento machista no mercado de trabalho, de que a mulher não deve ganhar mais que o homem, ainda que ambos façam o mesmo trabalho; ou a ideia de que os homens devem ser educados para mandar, para liderar, coordenar, serem chefes e as mulheres devem ser educadas para serem boas donas de casa, cozinhar bem, cuidar dos filhos e, quando muito, se querem uma vida profissional esta deve estar associada às suas qualidades de ser mulher (enfermeira, professora, secretaria, etc…). A grande maioria das mulheres guineenses exerce o trabalho informal, em condições precárias e insalubres, sem acesso aos serviços de segurança social. As causas estruturais estão relacionadas com a forma de organização da sociedade guineense, expressa na desigual distribuição do poder e consequentemente em oportunidades desiguais na distribuição do rendimento, da educação, do acesso à justiça, etc. Exemplo caricato é o fato de que na maioria das vezes quando uma mulher recorre à justiça para solucionar algum conflito, antes de qualquer procedimento perguntam-lhe quem é seu marido, “kin ki bu omi?”.


Parece-nos querer dizer muitas coisas este procedimento. Uma mulher sozinha, sem marido não tem reconhecimento social ou esta é uma forma de filtrar os intocáveis em relação à justiça, fomentando assim a cultura da impunidade. A corrupção, a falta de investimento nos serviços sociais e na justiça, a omissão do Estado em relação a violência, a cultura da impunidade, assumem proporções de desigualdade acentuada em relação às mulheres e às jovens, uma vez que o Estado não garante proteção face às práticas de violência. Compreender as dinâmicas estruturais da violência é essencial para compreender a violência interpessoal, mas também a violência coletiva que é exercida através da discriminação no acesso aos recursos e serviços, como educação, saúde, justiça e ao mercado de trabalho formal. Desta forma, acreditamos que para combater a violência contra mulher no país é preciso a concretização de políticas públicas de desenvolvimento e de combate a pobreza, centradas na promoção da igualdade de género e redução do fosso entre homens e mulheres no acesso aos serviços.

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ANÁLISE DO QUADRO LEGISLATIVO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES “Se a lei não for bem interpretada, divulgada e aplicada, o problema não será resolvido. (Entrevista técnico CAJ).” Tendo em conta os diversos desafios para o setor da justiça e segurança, abordados de forma intensa em outros estudos, neste diagnóstico vamos centrar especificamente nos aspetos referente ao acesso das mulheres à justiça. No que concerne às ações desenvolvidas pelo Estado, podemos reconhecer que o maior esforço (em colaboração com as OSC) tem sido de fato no âmbito da formulação legislativa. O país é signatário de um conjunto de instrumentos jurídicos internacionais que recaem de forma direta ou indireta no âmbito da proteção dos direitos das mulheres, nomeadamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais; a Convenção dos Direitos das Crianças (CDC), a Convenção Contra Todas as Formas de Descriminação Contra a Mulher (CEDAW). No plano interno o Estado guineense esforça-se em promover leis específicas para assegurar a aplicação e efetivação dos direitos das mulheres, com destaque para um conjunto recente de legislações avançadas em relação ao problema (lei que criminaliza a Violência Doméstica, a Mutilação Genital Feminina, lei de Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas, em Particular


Mulheres e Crianças e lei que regula as atividades de Saúde Reprodutiva e Planeamento Familiar). Nota-se no cenário interno uma preocupação generalizada em ultrapassar os constrangimentos relacionados com o quadro jurídico desatualizado, herdado do período colonial e limitado por constrangimentos de diversas naturezas. Há um consenso entre os diversos atores entrevistados de que, em termos formais, o atual quadro jurídico é favorável à proteção dos direitos humanos das mulheres, assim como segue uma tendência de harmonização com o quadro internacional. Pode-se verificar que ouve uma notável preocupação em conhecer bem o contexto endógeno do país para a formulação destas legislações recentes. Merece destaque a lei da violência doméstica, cujo conteúdo é de uma exatidão assinalável, em termos das diferentes manifestações e tipologias do fenómeno. Igualmente a lei que criminaliza a MGF comporta o mérito, o rigor e a inovação de sancionar tanto o autor quanto o coautor, o que demonstra a preocupação do legislador em não deixar lacunas ou omissões à volta da aplicação da lei, bem como demonstra que a legislação foi elaborada tendo um real conhecimento das distintas formas de manifestações da prática, que já não deixa dúvidas quanto ao seu caráter violento e desumano. Não obstante, a existências das legislações recentes serem um avanço considerável do quadro jurídico, é importante mencionar a necessidade de reforçá-las com o aprofundamento do tema na Lei Magna do país. Os entrevistados foram unânimes em defender que a Constituição é pobre e omissa em relação à proteção dos direitos das mulheres e dos mais vulneráveis. A igualdade entre homens e mulheres é expressa no Artigo 24º e 25º da

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Constituição da República da Guiné-Bissau. Contudo, tendo em conta a dimensão das relações de género no país, é notório que somente estes artigos são insuficientes para dar ao tema o peso que ele carece. A proposta de revisão constitucional que está em curso nos parece que foi pensada apenas na perspetiva da clarificação da separação dos poderes. Contudo, este apresenta-se como o melhor momento para debruçar-se também sobre os aspetos do reconhecimento da desigualdade entre homens e mulheres no país e na urgente e necessária adoção de medidas para corrigi-las. É igualmente uma oportunidade para harmonizar o quadro jurídico interno em relação ao tema. Não poderíamos deixar de referir a importância salutar que o Direito da Família apresenta como via associada à proteção das mulheres. Os dados recolhidos apontam para um instituto desatualizado que não corresponde a realidade da família guineense. O Instituto Família abarca um conjunto de situações como o casamento, parentesco e adoção. Tendo em conta que a esfera jurídica da pessoa é alargada à família, reconhecer a personalidade humana sem reconhecer a família não faz sentido. Em consonância com isso, devemos compreender que é através do reconhecimento e valorização da família que se pode combater inúmeras causas de violência contra as mulheres e as crianças. O desafio que o Direito da Família comporta é ser revisto à luz da evolução da sociedade e sobretudo da família e das relações de parentesco guineense, pois esta comporta características peculiares e endógenas. Para o efeito é preciso conhecer com melhor exatidão as diversas facetas da família guineense e fazer opções que melhor se adequem a realidade social do país.


A) FATORES DE ESTRANGULAMENTO PARA APLICAÇÃO DO QUADRO JURÍDICO EXISTENTE “A lei é importante porque é um suporte jurídico, mas sozinha ela não resolve tudo.” (Entrevista, representante RENLUV) As informações recolhidas demonstram que há uma inquietação e receio quanto a operacionalização destas legislações recentes. Existe a insegurança de estarmos perante um quadro legislativo adequado no papel, que espelha todos os procedimentos, mas que não é exequível em termos práticos da vida quotidiana, sendo que são leis avançadas em relação à atual situação estrutural do Estado e do sistema de justiça. Podemos elucidar um conjunto de fatores que atualmente obstaculizam a concretização do quadro jurídico, nomeadamente: a) Fatores de ordem estrutural A complexidade estrutural resulta num peso excessivo, o que dificulta grandemente a agilização, eficácia e redução dos procedimentos burocráticos. Também as estruturas existentes funcionam de forma limitada, em espaços não apropriados à proteção da vítima e que lhe permitam expor com confiança os abusos sofridos. A observação dos constrangimentos para implementação destas legislações recentes é facilmente confirmada pela verificação de haver serviços previstos nos diversos diplomas que sustentam os diversos órgãos e que na prática não

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existem, ou não funcionam. Como exemplo citamos as casas de acolhimentos previstas na lei da violência doméstica, o Comité Nacional de prevenção e coordenação de ações de combate ao tráfico de pessoas, previsto na lei de tráfico de pessoas, ou a assistência médica à procriação, prevista na lei de planeamento familiar. O mesmo se passa com as ações de reinserção social, apoio sanitário e psicológicos, previstas em todos os diplomas citados, mas que enfrentam todos os mesmos obstáculos: a inexistência de estruturas e recursos humanos qualificados para fazerem face a estas necessidades. A lei que criminaliza a violência doméstica é sem dúvida a que comporta maior risco sobre a sua implementação prática. Isto porque apresenta um elevado nível de complexidade e disparidade entre os seus aspetos formais e o funcionamento real do sistema judiciário e demais instituições associadas. Importa ressaltar que os estudos realizados e a experiência das OSC que atuam diretamente com mulheres vítimas de violência têm demonstrado que a existência de centros de acolhimento, tratamento clínico gratuito, assistência jurídica e patrocínio judiciário são condições sine quo para impulsionar o processo e consequentemente fazer cumprir a lei e os direitos das mulheres. Outro fator de ordem estrutural identificado refere-se à enorme dificuldade dos operadores de justiça terem acesso às legislações. Muitos alegaram não ter tido acesso ao conteúdo, sobretudo em relação à lei da violência doméstica e do planeamento familiar e saúde reprodutiva, promulgadas em Janeiro de 2014 e Junho de 2010 respetivamente. Somado a estes fatores, encontra-se também a insuficiência de estruturas especializadas no atendimento às mulheres vítimas de violência. Estamos a


referir instituições estatais especializadas com competência de investigação e inseridas no sistema de justiça formal. Não mencionaremos a polícia, em função da sua competência genérica. Como solução para este problema, foi criado o Gabinete de Direitos Humanos e Proteção da Mulher e Criança para funcionar em todas as esquadras de polícia. Estes gabinetes serão os responsáveis para receber qualquer queixa referente a violência contra mulheres e crianças. Atualmente funcionam na 2ª e 3ª esquadra de polícia. A este propósito importa reter que os Gabinetes contam com poucos recursos (financeiros e humanos) o que limita o desempenho do trabalho. Acabam por desempenhar um papel passivo tendo em conta os constrangimentos para deslocação e averiguação dos fatos. Soma-se também a este problema o horário limitado de funcionamento. A Brigada de Atendimento a Mulheres e Crianças Vítimas de Violência é o gabinete especializado da Polícia Judiciária para investigação de crimes contra mulheres e crianças. Apesar de contar com uma equipa capacitada e com conhecimentos sobre a temática, também padecem do mal da ausência de recursos financeiros e humanos suficientes para dar resposta à demanda da população. Por um lado, as estruturas existentes são insuficientes para atender de forma eficaz a demanda da sociedade e por outro não dispõem de todos os serviços necessários para o efeito. Estas estruturas apenas possuem recursos humanos capacitados na área de investigação, não dispondo de outras especialidades fundamentais para o atendimento, como por exemplo assistentes sociais e psicólogos.

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Importa ressaltar que estas estruturas estatais estão concentradas no Setor Autónomo de Bissau e raramente realizar deslocações ao interior, devido a insuficiência de recursos financeiros. Desta forma, no interior do país não se pode contar com acesso a nenhum serviço especializado de atendimento às mulheres vítimas. No que respeita ao papel desempenhado pelas entidades hospitalares e Centros de Saúde no ciclo do processo de atendimento as mulheres vítimas, podemos concluir que ainda existe um percurso longo para ultrapassar. Segundo os relatos dos operadores de justiça, no hospital, o atendimento a uma mulher vítima de violência ainda é cobrado, tendo sido relatado que um parecer de averiguação de violação sexual custa 5.000 XOF (Cinco mil francos XOF) e que muitas mulheres violadas, por não terem condições de pagarem este montante, acabam por desistir do processo. Contudo, a direção do hospital nacional negou que haja este procedimento e declarou que o atendimento em princípio é gratuito. Os constrangimentos não se limitam somente a questão da gratuidade do serviço, mas igualmente à sua qualidade. Segundo o que verificamos, o atendimento à vítima é feito por qualquer equipa que esteja de plantão. Logo, o fato de não existir nos centros de saúde um protocolo de atendimento às mulheres vítimas de violência faz com que cada equipa proceda à sua maneira. Igualmente foi verificado que existe poucas sessões de trabalho a nível nacional, com profissionais da área de saúde, para sensibilização e informação sobre o tema da violência contra as mulheres, assim como divulgação das leis existentes. A informação recolhida indica a necessidade de reforçar a articulação entre todas as instituições envolvidas no ciclo do atendimento às mulheres vítimas


de violência, ou seja, entre os operadores de justiça, os centros de saúde e as OSC. O reforço desta articulação poderá contribuir para melhorar a eficácia do atendimento, redução da burocracia e morosidade dos processos. Outro fator que obstaculiza a efetivar o quadro jurídico existente é a fraca sensibilidade dos operadores de justiça em relação à temática. Permanecem situações em que a vítima recorre à polícia e se depara com situações que colocam em causa o seu direito de recorrer à justiça para ver seus problemas resolvidos. Como por exemplo situações de culpabilizar a vítima pela agressão, ou tentar persuadi-la para não seguir em frente com a queixa, reforçando os aspetos tradicionais de que problemas entre os casais se resolvem no seio da família. b) Consciência e Informação Jurídica das Mulheres Retratar a confiança da população em uma instituição significa identificar se os cidadãos acreditam que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada em conta no dia-a-dia do cidadão comum. Durante os djumbais com mulheres vítimas de violência elas demonstraram pouco conhecimento sobre seus direitos, assim como pouca informação referente ao funcionamento da justiça e existência de leis sobre o tema. De um modo geral a população e em especial as mulheres cidadãs comuns ainda não dispõem de informação suficiente sobre a existência de um conjunto de leis que atuam no sentido de proteger os seus direitos, assim como também não dominam o funcionamento da justiça formal.

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Consegue-se notar que veem os órgãos jurisdicionais de resolução de problemas como um centro de conflito, um mundo à parte do qual elas vivem. Apesar de terem relatado situações de tortura, nenhuma delas chegou de fato a recorrer a justiça para fazer cumprir seus direitos. Desta forma, nenhum dos agressores foi responsabilizado judicialmente pela agressão cometida. A resolução para o conflito resultou da mediação familiar, tendo a separação do casal como solução. Estava isolada, não sentia que poderia contar com a ajuda de ninguém. Vivi assim durante anos (relato de uma das vítimas, Bairro Militar). A justificativa dada pelo fato de não recorrerem à justiça formal prende-se a fatores de ordem económica, a ausência de confiança e esperança de que poderão ver resolvidos seus problemas Esta afirmação por parte das vítimas deixa-nos duas conclusões: a primeira é que não obstante as ações de sensibilização e informação realizadas pelas OSC, ainda persistem no país dificuldades de conhecimento em relação as legislações e ao funcionamento da justiça formal. A segunda, os entrevistados consideram o poder judiciário lento, caro e difícil de utilizar, somado a estes também apontaram a ausência de confiança, credibilidade e o elevado índice de corrupção e impunidade. Em relação à lei que criminaliza a violência doméstica e à lei que regula as atividades de saúde reprodutiva e planeamento familiar o nível de informação ainda é muito baixo, sobretudo em relação à segunda, que inclusive as OSC que atuam no domínio em causa demonstraram dificuldade em conhecer adequadamente a sua existência. Somada à necessidade de divulgação das legislações, impõe-se também


a relevância de divulgação sobre os procedimentos e funcionamento da justiça estatal. É igualmente importante ressaltar que esta situação se agrava ainda mais no interior do país. O acesso à informação está concentrado nos centros urbanos. Os constrangimentos na mobilização de recursos para deslocações ao interior do país têm sido o fator condicionante para esta exclusão, quer segundo as entidades governamental, assim como as OSC. c) Políticas Públicas no Combate a Violência Doméstica Para a efetivação do quadro jurídico não poderíamos deixar de abordar a importância da articulação entre os diferentes ministérios. A questão da fragilidade do acesso das mulheres à justiça não deve ser entendida como sendo um problema unicamente do Ministério da Justiça. Para o efeito, é a própria lei da violência doméstica que nos vem chamar a atenção para a importância da construção de uma estratégia de articulação eficaz entre os diferentes ministérios para prossecução de um objetivo comum, a proteção dos direitos das mulheres. O Ministério da Mulher, Família e Coesão Social, o Ministério da Justiça, o Ministério da Educação, o Ministério da Saúde têm o desafio de pensarem em conjunto uma estratégia de ação concertada para a concretização de atividades que visem prevenir, atender e erradicar a violência contra as mulheres. Apesar de previsto na lei o que verificamos na prática é que as instituições estatais trabalham muito pouco em conjunto para construírem uma agenda concertada e favorável à abordagem do tema. O problema permanece como uma preocupação das Organizações da Socie-

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dade Civil e não tanto das autoridades políticas e estatais. O que se verifica com maior incidência é uma abordagem política, expressa em discursos públicos, mas com pouca concretização em termos práticos e prioritários do tema como uma agenda nacional incluída nas políticas de desenvolvimento social e económico. Em termos de políticas públicas está em curso o processo de atualização da Política Nacional de Igualdade e Equidade de Género elaborada pelo IMC que não chegou a se executar devido a inexistência de recursos financeiros. O IMC, assim como o Ministério da Mulher, Família e Coesão Social que detém a tutela do instituto, são entidades com pouca expressão em termos do Orçamento Geral do Estado. A ausência de ações concertadas com outros ministérios fragiliza ainda mais sua capacidade de intervenção face à execução de uma Política Nacional de Igualdade de Género. Importa ressaltar que a igualdade de género e autonomização das mulheres é um eixo autónomo no Plano Operacional Guiné-Bissau 2015-2020 e desperta junto a sociedade, sobretudo em relação às organizações que atuam neste domínio, a esperança e indícios concretos de que para os próximos anos poderá emergir uma vontade política capaz de incluir a temática na agenda nacional, conferindo-lhe o espaço que carece para de fato operar as transformações sociais nas relações de género no país. Nas entrevistas ficou evidente que existe uma consciência entre as lideranças femininas que atuam neste processo de que este é sem dúvida o momento mais favorável para as mulheres se unirem em ações concertadas, com vista a obterem resultados duráveis no âmbito da proteção dos direitos das mulheres guineenses.


A violência contra mulheres não resulta de uma única causa, desta forma, as políticas públicas têm que ter em conta este indicativo para construção de uma estratégia de combate ao fenómeno. O principal desafio passa pelo reconhecimento do problema como sendo uma questão de políticas públicas.

B) CONSEQUÊNCIAS E IMPACTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES A violência contra as mulheres não deixa dúvida quanto ao seu impacto negativo nas diferentes esferas da vida. Cada tipo de violência gera prejuízos nas esferas do desenvolvimento físico, cognitivo, social, moral ou afetivo e patrimonial. As manifestações físicas da violência eram visíveis no grupo de mulheres que participaram nos djumbais, quase todas apresentavam algum tipo de cicatriz resultante das agressões. A insegurança, dificuldade em olhar as pessoas nos olhos, mãos trémulas, sentimento de vergonha, dificuldade de concentração e ansiedade foram caraterísticas observadas nos comportamentos das vítimas. As que passaram por violação sexual apresentavam estes sintomas de forma mais intensa. Estudos têm apontado que a violência compromete a saúde mental, ao interferir na crença que a mulher possui sobre sua competência, isto é, sobre a habilidade de utilizar adequadamente seus recursos para o cumprimento das tarefas relevantes em sua vida. Sendo assim, a mulher pode apresentar distúrbios na habilidade de se comunicar com os outros, de reconhecer e compro-

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meter-se, de forma realista, com os desafios encontrados, além de desenvolver sentimento de insegurança concernente às decisões a serem tomadas. Todas as participantes dos djumbais relataram que viviam em constante estado de medo e quando questionadas porque permaneceram numa relação marcada por tanta violência, em média 7 a 15 anos, foram vários os argumentos, entre os quais medo de perder a guarda dos filhos, a estabilidade económica e financeira (basicamente a casa onde moravam) e medo da realidade de sobreviver sozinhas. Outro elemento relatado foi o escasso número de locais de apoio onde pudessem confiar o suficiente para relatarem as agressões e acreditarem que algo seria feito para evitar sua reincidência. Importa ressaltar que a maioria das mulheres vítimas de violência que foram entrevistas alegaram que, após a separação, os maridos recusaram-se a contribuir com qualquer meio para o sustento dos filhos, sendo elas sozinhas que têm arcado com as despesas dos filhos. O impacto da violência reflete-se em toda a família, as crianças que convivem em situações de violência acabam por desenvolver comportamentos de agressividade e ansiedade, para além de serem expostas a situações de restrições e vulnerabilidade financeira, como estratégia utilizada pelo agressor como forma de punir a mãe que denunciou a violência. “Meus filhos tinham pânico do pai, quando ele chegava em casa as crianças já não tinham paz para estarem em casa, corriam todas para a rua ou casa dos vizinhos. Minha filha chegou a dizer que o pai é muito mal.” (Depoimento de uma das vítimas).


A violência tem produzido consequências maléficas à vida das mulheres não só em termos psicológicos, mas igualmente exerce uma influência negativa no rendimento escolar ou no local de trabalho, assim como desenvolvimento dos filhos. Igualmente expõe as mulheres a maior vulnerabilidade em relação a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, ao VIH/SIDA e a gravidez precoce ou indesejada. Durante a recolha de dados foram identificados casos concretos de raparigas entre a faixa etária de 13 a 16 anos que foram submetidas a abortos resultantes de gravidez contraída em resultado de violação sexual. A exposição à violência não contribui para fomentar uma cultura de paz na sociedade e nas relações intrafamiliares, assim como permanece sendo um entrave para a consolidação de políticas de igualdade entre os sexos, bem como o exercício equilibrado das relações de poderes entre homens e mulheres na Guiné-Bissau.

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LIÇÕES APRENDIDAS

/ As organizações da sociedade civil evoluíram muito no domínio e conhecimento do tema. / Nota-se uma melhoria significativa na capacidade de trabalho em conjunto e fortalecimento de sinergias, no reforço de competências para ações de lobby, advocacia e sensibilização. Isto pode ser verificado pela participação ativa no processo de elaboração das legislações recentes que favorecem o quadro jurídico para a proteção das mulheres. Igualmente se comprova pelas ações de reivindicação de combate a violência contra as mulheres, porém convém desenvolver ações mais profundas no domínio de trabalho em rede para fortalecer a capacidade das OSC para lutar em torno de uma causa comum; / Entre as organizações da sociedade civil vocacionadas para a proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres existe um grupo de mulheres bem capacitadas com experiência de trabalho em comunidades do interior do país, que poderiam ser mais bem aproveitadas em trabalhos de redes temáticas; / As instituições estatais pouco ou quase nada avançaram neste processo. As nomeações políticas para os postos das instituições estatais que prestam serviços neste domínio dificultam a permanência de recursos humanos capacitados nesta temática e faz com que não haja continuidade das ações; / Algumas práticas culturais, que antes se apresentavam com um

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caráter costumeiro inabalável começam a ruir face as transformações sociais e não se projetam na sociedade com tanta obrigatoriedade quanto outrora; / As ações de formação, capacitação, sensibilização e informação de organizações locais em geral têm acontecido sobretudo em cidades e pequenos centros urbanos. Muitos atores e líderes comunitários nas tabancas (incluindo raparigas com um potencial claramente assinalável) têm ficado fora deste sistema “cosmopolita” de organização de formações que acaba por excluir um bom número de potenciais líderes, ativistas e agentes de transformação local; / As realidades das comunidades do interior do país sobre o tema são pouco exploradas, mas o fenómeno da violência contra as mulheres tem ganho dimensões alarmantes nestas localidades que sobrevivem à margem da organização do Estado e criam vias alternativas e informais para verem resolvidos seus problemas, como o recurso à justiça privada; / Entre os mais jovens ainda é muito frágil a perceção, conscientização e conhecimento sobre as relações de poder desigual entre homens e mulheres, a desigualdade em relação ao género e a violência contra as mulheres, persiste uma visão de que as mulheres lutam por privilégios e não por direitos; / O processo que se desencadeou no país nas últimas décadas sobre a necessidade de promoção da igualdade de género e respeito pelos direitos humanos das mulheres está concentrado numa faixa etária mais adulta, enquanto os jovens, sobretudo os do sexo masculino se


apoderam pouco deste processo; / A instabilidade política e governativa que implica fragilidade do Estado continua a repercutir de forma negativa na construção de um ambiente favorável para implementação de políticas públicas de igualdade de género e no combate a violência contra as mulheres; / O quadro jurídico existente constitui um avanço importante neste domínio, com destaque para a lei da violência doméstica e da Mutilação Genital Feminina que são fundamentais para sancionar tais práticas. Contudo, existe um fosso imenso entre aquilo que a lei prevê e responsabiliza o Estado e a atual capacidade de dar resposta estrutural e operacional para que de fato possamos ter uma legislação eficaz. Basicamente, em termos operacionais é preciso construir de raiz estruturas como centros de acolhimento e instituições de atendimento especializadas nas regiões do país; / Existe uma preocupação muito forte em formular novas leis, sem se preocupar em criar estratégias concertadas de seguimento, monitoria e avaliação do quadro jurídico existente, bem como informar a população sobre o seu funcionamento e criar condições práticas para sua execução. / As OSC têm informação sobre os mecanismos de receção do direito internacional na ordem jurídica guineense, inclusive dominam muito bem as convenções internacionais ratificadas pelo Estado da Guiné-Bissau, porém apresentam dificuldade em trabalhar em conjunto para monitorar a efetivação destes instrumentos no país, bem como apresentar relatórios alternativos sobre as medidas ado

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tadas pelo governo para efetivação destas convenções no país. / As OSC que atuam no país na área de proteção e promoção dos direitos das mulheres dominam muito bem o conteúdo e o funcionamento da justiça formal.

RECOMENDAÇÕES RECOMENDAÇÕES AO NÍVEL DAS CAUSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Às Organizações da Sociedade Civil e aos parceiros internacionais:

/ Estimular e favorecer ações que visam envolver e promover a inclusão dos jovens (raparigas e rapazes) nos temas relacionados com a igualdade de género e violência contra as mulheres; / Elaborar pequenos documentários com histórias de vidas de raparigas vítimas de casamento forçado que tiveram de criar novas estratégias de sobrevivência à margem do apoio e segurança familiar; / Direcionar as ações de capacitação, sensibilização e informação sobre a violência contra as mulheres a grupos de profissionais específicos inseridos no ciclo de atendimento às vítimas, como profissionais da saúde, operadores da justiça, professores. / Desenvolver ações de advocacia junto ao governo para a construção


de centros especializados de atendimento às mulheres vítimas de violência com atenção a componente de apoio psicológico quer no SAB quanto nas regiões; / Construir estratégias conjuntas com o governo para elaboração de uma política nacional de combate à violência doméstica e divulgação da lei que criminaliza esta prática no país; / Mobilizar recursos e condições adequadas para inclusão das comunidades rurais nas ações de sensibilização, informação e capacitação sobre os temas de igualdade de género, violência contra as mulheres, etc..; / Advogar para que haja melhor articulação entre os ministérios (Mulher, Família e Coesão Social, Educação, Justiça e Saúde) e as OSC para a elaboração de uma estratégia nacional de combate a violência contra as mulheres; / Sensibilizar, informar e capacitar a população para a mudança de mentalidade, de forma a incluir as populações mais isoladas no debate e acesso à informação; / Apostar na educação como instrumento fundamental para a mudança de comportamento. / Construir estratégias conjuntas que permitam monitorar os avanços alcançados com as ações de sensibilização, informação e capacitação de forma a poder construir indicadores de avanços e impactos positivos nas ações desencadeadas pelas OSC; / Avaliar a situação da MGF no país através de um inquérito aprofundado de práticas e atitudes em relação à MGF que permite avaliar se a prática reduziu ou não no país.

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Aos Atores Estatais:

/ Criar condições para introduzir o tema da igualdade de género, violência contra as mulheres nos currículos escolares com uma abordagem aprofundada da realidade guineense; / Promover a inserção social e profissional das raparigas vítimas de casamento forçado, através de uma abordagem centrada num projeto de vida que visa favorecer autonomia e aquisição de competências profissionais para inserção no mercado de trabalho; / Promover ações de educação cívica direcionada para as famílias guineenses com vista a estimular a igualdade de direitos no casamento, a incentivar a partilha concertada das decisões familiares, assim como favorecer uma cultura de paz nas relações intrafamiliares e sociais; / Elaborar um estudo aprofundado que permita conhecer a família guineense de modo a favorecer o conhecimento sobre a real situação das mulheres no âmbito familiar, na vertente das relações sociais, económicas e culturais; / Iniciar um processo de revisão do Código Civil guineense, com especial atenção ao Direito da Família; / Construir estratégias concertadas entre os ministérios para combater a violência contra mulheres e promover a igualdade de género.


RECOMENDAÇÕES AO NÍVEL DO ACESSO DAS MULHERES À JUSTIÇA E MELHORIA DO QUADRO JURÍDICO Às Organizações da Sociedade Civil e parceiros internacionais

/ Desencadear ações de sensibilização e informação sobre as legislações existentes no domínio de proteção dos direitos das mulheres, em especial para a lei da violência doméstica, mutilação genital feminina, tráfico de pessoas em especial mulheres e crianças e lei da saúde reprodutiva e planeamento familiar. Recomenda-se que estas ações sejam igualmente realizadas no interior do país, para as populações mais isoladas; / Compilar estas legislações recentes no domínio de proteção dos direitos das mulheres em uma coletânea que favoreça o acesso às leis dando visibilidade aos Direitos das Mulheres; / Contribuir para promover a inserção do tema na cultura jurídica e no Direito guineense; / Favorecer o conhecimento e acesso da população às legislações através da elaboração de folhetos com linguagem acessível e menos técnica transmitindo a informação central do conteúdo das leis existentes; / Apostar em programas radiofónicos com cobertura nacional nas diversas línguas locais para atingir a população iletrada e rural; / Fortalecer a capacidade das OSC de reivindicar o cumprimento

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das leis, com a criação de redes informais ou formais de monitoramento da justiça no país; / Fortalecer a capacidade das OSC de monitorar o cumprimento das convenções internacionais ratificadas pelo Estado da Guiné-Bissau, através dos “relatórios sombras” (relatórios organizados pela socie dade civil sobre a implementação das legislações internacionais na ordem interna do Estado); / Criar ou em caso de existência fortalecer os mecanismos comunitários de vigilância, prevenção, denúncia e monitoramento das práticas de violência contra as mulheres. / Reforçar as ações de sensibilização e informação sobre os Centros de Acesso à Justiça; / Integrar os Centros de Acesso à Justiça nas iniciativas da Caravana de Cidadania previsto pelo Ministério da Justiça; / Promover diálogos e debates sobre a família guineense e as transformações ocorridas ao longo do tempo, de forma a permitir fortalecer uma cultura de diálogo e partilha de decisões entre os casais com objetivo de reduzir os conflitos no âmbito familiar e nas relações de parentescos.

Aos Atores Estatais

/ Capacitar os operadores de justiça a nível nacional sobre as legislações recentes que criminalizam a violência doméstica, mutilação genital feminina, tráfico de pessoas em especial mulheres e crianças


e lei do planeamento familiar e saúde sexual e reprodutiva; / Construir ou reforçar parcerias institucionais entre o MP, as polícias e os hospitais para que haja celeridade, atendimento gratuito e digno às mulheres vítimas de violência, assim como facilitar a identificação de casos; / Promover a elaboração e cumprimento de um protocolo de atendimento para mulheres vítimas de violência; / Melhorar a qualidade dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência através da especialização institucional concentrada dos serviços de atendimento (com recursos humanos qualificados e capacitados tais como psicólogos, assistentes sociais, médicos) e descentralização territorial dos mesmos serviços para que possam atender igualmente as mulheres residentes no interior do país; / Retirar o gabinete da Brigada de Crimes contra Mulheres e Crianças das instalações da Polícia Judiciária, conferindo-lhe autonomia, com melhores capacidades técnicas e operacionais, com vista a aproveitar sua experiência para consolidação de uma entidade especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência com instalações no SAB e regiões; / Criar casas de acolhimentos temporários para mulheres vítimas de violência dotadas de uma política de reinserção social e acompanhamento psicológico; / Avaliar a possibilidade de potencializar os sistemas tradicionais, as redes sociais preexistentes no contexto guineense de famílias de acolhimento para mulheres vítimas de violência;

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/ Estimular iniciativas na área de saúde que abordem temas relacionados à saúde mental das mulheres, relacionando esta temática com aspetos sociais, económicos e culturais. / Ter em conta a igualdade de género e os direitos das mulheres nas caravanas das cidadanias que serão implementadas pelo Ministério da Justiça.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASA DOS DIREITOS. Desafios. Uma história de direitos na Guiné-Bissau. ACEP, LGDH. 2014. CASA DOS DIREITOS. Desafios. Direitos das mulheres na Guiné-Bissau. ACEP, LGDH. 2012. DJAO, Mamadu & VIEGAS, Caterina. Estudo sobre a violência sexual baseada no género em três localidades da Região de Cacheu, Karuei, Djolmet e Saiam. PLAN Internacional, ACNUR, INEP. 2012. PNUD. Estudo sobre o acesso à justiça na Guiné-Bissau: Regiões de Cacheu, Oio e Setor Autónomo de Bissau. 2011. PLAN Internacional. Estudo de base sobre a MGF. Relatório país. Guiné-Bissau. 2012. LGDH. Guiné-Bissau: 40 anos de impunidade. 2013. PROJETO DE SAÚDE BANDIM. Inquérito sobre conhecimento, atitudes e práticas em matéria de saúde reprodutiva (CAP-SR). 2009. GOVERNO DA GUINÉ-BISSAU. Plan Strategique et Operationnel 2015 – 2020. Document 1 : Resume Executif. 2015. GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. Plano nacional de ação para prevenção e combate à violência contra a mulher. 2008 a 2012. Ministério da Economia e Finanças, Direção Geral do Plano, Instituto Nacional de Estatística (INE). Inquérito aos indicadores múltiplos (MICS4). Guiné-Bissau. 2015.

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MEDINA, Ismael Mendes (Coord.). Relatório Preliminar Final Estudo Diagnóstico do Sector da Justiça na Guiné-Bissau. 2008. ROQUE, Silvia. (Coord.). Um retrato da violência contra as mulheres na Guiné-Bissau. NU/RENLUV. 2011. SCHWARZ, Catarina. Sociedade Civil, Advocacia e Sensibilização sobre Direitos Humanos na Guiné-Bissau. Diagnóstico de Competências das Organizações da Sociedade Civil. Observatório dos Direitos. 2015. SANGREMAN, Carlos. Observando direitos na Guiné-Bissau. Educação, saúde, habitação, água, energia e justiça. Observatório dos Direitos. 2015.


ACRÓNIMOS ACEP AMIC CAJ IMC INE LGDH MGF MICS NADEL OSC PPM RENLUV RENAJELF RNMT SAB UE

Associação para a Cooperação entre os Povos Associação Amigos da Criança Centro de Acesso à Justiça Instituto da Mulher e Criança Instituto Nacional de Estatística Liga Guineense Direitos Humanos Mutilação Genital Feminina Inquérito aos Indicadores Múltiplos Associação Nacional de Desenvolvimento Urbano Organizações da Sociedade Civil Plataforma Política das Mulheres Rede Nacional de Luta Contra Violência Rede Nacional de Jovens Mulheres Líderes Rede Nacional Mulheres Trabalhadoras Sector Autónomo de Bissau União Europeia

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AS DIFERENTES FORMAS DE TRÁFICO DE CRIANÇAS NA GUINÉ-BISSAU João Ribeiro Butiam Có, Samba Tenen Camará, Zeca Jandi e Malam Gomes Sambu

AGRADECIMENTOS

A equipa que realizou o estudo agradece a confiança deposita para realização deste estudo e aproveita para agradecer todas as instituições e personalidades que contribuíram na elaboração do estudo. Instituições: / IMC (Bissau); / AMIC (Bissau; Bafata; São Domingos e Gabu); / PLAN Guiné (Bafata); / SOS talibés (Bafata); / Ministério Publico / Tribunal de Bafata (Bafata);

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/ Polícia/Esquadra (Quebo); / Comité Nacional de luta contra práticas nefastas (Quebo); / Polícia de Emigração, Serviços Fronteiras (São Domingos, Quebo); / Comissão da ANP para os Assuntos da Mulher e Criança (Bissau); / Casa dos Direitos (Bissau); / LGDH (Bissau); / FEC/Caritas (Bissau); / Parlamento Infantil (Bissau);

Pessoas individuais: / Laudolino Carlos Medina – AMIC (Bissau) / Nuami Calido Costa- Parlamento Infantil; / Capitão Aida Aminata Fadia – Gabinete dos Direitos Humanos Pro moção da Mulher e Criança; / Nelson Ferreira - Instituto Mulheres e Criança (IMC); / Simão Té - Comissão Assunto mulheres e crianças na ANP; / Daniel/Mamadu - Casa Emanuel; / Felipa Gonçalves - Caritas/FEC; / Vitorino Indeque - Casa dos Direitos; / Fatumata Djaló – Comité Nac. de Luta contra Prática Nefasta (Quebo); / Joanita Teixeira – AMIC (Gabu); / Adama Aua Djaló – AMIC (Bafata); / Emanuel Fernandes – PLAN (Bafatá); / Jorge João Pedro Gomes – Delegado do Ministério Publico no Tribu nal de Bafatá;


/ Domingos - AMIC (São Domingos); / Emília Cardoso - Comandante da Policia de migrações e Serviços de Fronteiras de Jegue 2 – (São Domingos).

Outros contributos: / Fátima Proença – Diretora ACEP | Associação para a Cooperação Entre os Povos; / Filomena Ferreira - Coordenadora da Casa dos Direitos.

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INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO

A Guiné-Bissau é um país da costa da África ocidental, considerado um dos países mais pobres do mundo. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (2014), o país ocupa o 176º lugar, estando entre os 10 piores classificados. A fragilidade do Estado, testemunhada pela constante instabilidade governativa e, consequente, disfuncionalidade das instituições de diferentes setores (público e privado) têm condicionado à população à uma exposição de riscos variados, em particular, os grupos mais vulneráveis, caso de mulheres e crianças. A recente retoma da normalidade constitucional, através das eleições gerais, após golpe militar de Abril de 2012, que tinha condicionado o país ao bloqueio e isolamento internacional, está a suscitar uma nova esperança a nível nacional e internacional, pese embora o novo impasse político, tendo como expoente máximo a apresentação, por parte do governo, aos parceiros internacionais, do Plano Estratégico e Operacional 2015-2020, na mesa redonda de 25 de Março de 2015, em Bruxelas. De forma geral, a nova configuração política parece suscitar expectativas positivas, quanto à possibilidade de mudanças no país e, em particular, em domínios fundamentais para a construção de um Estado de Direito, através de adoção de medidas legislativas e políticas de promoção de direitos e melhoramento das condições do seu respeito efetivo. Neste contexto, a Casa dos Direitos, apesar do contexto difícil em que se surgiu, já pode ser considerada uma referência enquanto espaço físico e de rede informal de promoção de uma cultura de direitos e de cidadania participativa, através de contribuição positiva na preservação e valorização dos direitos humanos. Pese embora a consciência de que os fatores de violação dos direitos são múltiplos, devido a ainda fragilidade do

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Estado, não se pode desvalorizar o papel do mesmo na própria eliminação de alguns desses fatores, através de uma aliança com diferentes atores e a sociedade em geral nas mudanças necessárias. Em matéria de proteção e defesa da criança, os esforços são evidentes, disso a Lei 12/2011/ANP (Assembleia Nacional Popular) que criminaliza as pessoas envolvidas no tráfico das pessoas, em particular das mulheres e crianças na Guiné- Bissau; a realização em Maio de 2013 de uma conferência, em Gabu, sobre a problemática das crianças talibés, que terá permitido a análise e recomendações sobre: a) os direitos da criança e de crianças talibés, b) o papel da sociedade na defesa e proteção dos direitos da criança, c) os direitos da mulher e a equidade de género e, por fim, d) a análise da situação das crianças da região de Gabú, como sendo umas das regiões de maior fluxo de tráfico de crianças no país. Não obstante os esforços que estão a ser realizados, olhando para os dados estatísticos, nota-se que a situação da criança continua a merecer preocupações. A percentagem de crianças de 6-17 anos que alguma vez estudaram, mas que atualmente não estão a estudar é de relativa consideração. Segundo ILAP (2010) 23,6% de crianças que abandonaram os estudos testemunharam não terem condições financeiras e económicas para continuar, 19,2% diziam de nada servia a escola, 21,6% desistiram por causa de doenças e gravidez precoces, 8,2% consideraram a desistência devido a distância. Na verdade, as situações socioeconómicas e socioculturais têm condicionado as crianças e seus tutores. Para os dados mais recentes do Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS, 2014) 51,1% de crianças de 5-17 anos estão envolvidas em atividades de trabalho infantil, como uma das estratégias de vivência pessoal e familiar. Em comparação, as crianças do sexo


feminino que vivem em zonas rurais tendem a ser mais propensas ao fenómeno que as crianças do sexo masculino (60% contra 55%), em centros urbanos as percentagens são repartidas entre 65% contra 45% (LGDH, 2013). Outros fatores de natureza cultural, caso do casamento precoce, testemunham desvios das crianças, sendo que 7,1% de mulheres entre 15-49 anos confirmam terem sido casadas, pela primeira vez, antes dos 15 anos, contra apenas 0,6% de homens da mesma faixa etária. As condições de vivência familiar e/ou do agregado também condicionam a situação frágil e de risco das crianças. Por exemplo, 21,9% de crianças de 0-17 anos não vivem com nenhum dos pais, sendo que 11,6% de crianças da mesma faixa testemunham um dos pais falecidos, 4,5% têm pelo menos um dos pais a viver no estrangeiro. Por consequência, temos 82,4% de crianças de 4-17 anos a testemunhar ser alvos de agressões psicológicas e/ou castigo físico, no ultimo mês (MICS, 2014). Dados que requerem uma necessidade de agir por partes dos atores sociais (Cf. Quadro n.º1).

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Quadro n.º1 - trabalho infantil (crianças de 4-17 anos de idade) na Guiné-Bissau Indicador

(%)

Crianças economicamente ocupadas

39,0

Crianças que efetuam trabalhos a abolir

33,3

Crianças em atividades económicas mas não consideradas de trabalho infantil

4,7

Crianças que efetuam trabalhos perigosos

21,0

Crianças que efetuam outros trabalhos a abolir

48,5

Crianças trabalhadoras de 5-17 fora do sistema escolar

29,6

/ fonte INE (2013)


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O projeto pelos direitos das crianças, das mulheres e dos detidos - influência política, advocacia e sensibilização - que financiou este estudo, visa responder à oportunidade atual de promover a participação cívica e práticas de diálogo entre atores, nos domínios da elaboração das políticas públicas e de iniciativas legislativas com influência na promoção dos Direitos Humanos. Por outro lado, reforçar as ações de sensibilização da sociedade de forma articulada com um leque diversificado de organizações e programas por forma a contribuir para melhorar a situação dos Direitos Humanos no país, através da coresponsabilização dos atores públicos e privados pelo seu respeito efetivo. A elaboração e apresentação, com as organizações da sociedade civil, de propostas, políticas, leis e planos de ação às autoridades do Estado e à sociedade pressupõem levantamentos, estudos e diagnósticos que permitam conhecer com rigor a realidade dos factos, o quadro legislativo, as políticas e planos e da sua efetivação no domínio dos direitos de mulheres, de crianças e de detidos e seu enquadramento no quadro normativo e político dos Direitos Humanos em geral. Estes estudos vocacionados terão um apoio técnico especializado, sob a forma de prestação de serviços quando tal se revelar mais adequado. Serão preparados e realizados em articulação com o Observatório dos Direitos, com projetos no terreno nestes domínios, com instituições locais do Estado, responsáveis da sociedade tradicional e outras pessoas recurso. É neste contexto que foi solicitado a realização dum “estudo diagnóstico sobre as diferentes formas de tráfico de crianças na Guiné-Bissau”, o qual é objeto da nossa análise.


A) OBJETIVOS DO ESTUDO O presente estudo visa realizar um diagnóstico sobre as diferentes formas de tráfico de crianças na Guiné-Bissau, identificando os atores, as ligações transfronteiriças, as formas mais tradicionais e subtis bem como sua ligação à exploração sexual, ao trabalho infantil e outras formas de violação. Assim, em específico pretende-se: / Definir o tráfico de pessoas, em particular das crianças; / Identificar as principais formas e atores envolvidos no tráfico de crianças; / Recolher informações sobre as formas similares do tráfico e/ou perceções; / Identificar os traficantes e que meios utilizam (redes, itinerários etc.); / Identificar as eventuais políticas nacionais ou medidas concretas de a poio à luta contra o tráfico, incluindo medidas de apoio as denúncias; / Recolher sugestões de todos os parceiros e envolvidos quanto as políticas e medidas que podem ajudar a combater o fenómeno do tráfico; / Recomendar informações para a criação de um ambiente favorável à realização dos programas de direitos humanos em particular das crianças; / Recomendar informações para criação de um programa de in tervenção articulada (em termos de comunicação e sensibilização) a nível nacional e regional.

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B) METODOLOGIA IMPLEMENTADA Tendo em conta os objetivos específicos alinhados, o método e as técnicas qualitativas orientaram toda apreensão de informação em diferentes fases da realização do estudo. Primeiro fez-se uma análise documental que permitiu conhecer os programas, as políticas e normas internacionais/nacionais do tráfico. Após um enquadramento teórico, um guião de entrevistas semiestruturadas foi organizado e dirigido as instituições e indivíduos envolvidos no fenómeno tráfico. A segunda fase consistiu em recolher todas as informações críticas junto dos atores institucionais de defesa dos direitos humanos (por exemplo as organizações que desenvolvem projetos de direitos humanos, nomeadamente os financiados pela União Europeia, caso de AMIC, Casa dos Direitos, Casa Emanuel, Parlamento Infantil, Instituto da Mulher e Criança, a FEC entre outras), de modo a conhecer a forma não só como veem o tráfico de crianças, mas também compreender os conflitos de posições e interpretações existentes entre os defensores dos direitos e os atores implicados no tráfico.

C) A POPULAÇÃO, LOCAL E LIMITES DO ESTUDO Segundo os termos de referências, as principais regiões escolhidas são Bafatá, Gabú e Bissau tendo em conta as especificidades do fenómeno destas zonas e sua ligação aos aspetos socioculturais e tradicionais. Também foram consideradas as regiões de Tombali e Cacheu por estarem ligadas ao fenómeno mais nos aspetos transfronteiriços (saídas e entradas), representando principais postos fronteiriços. No entanto, muitas das constatações foram tidas a partir


da cidade Bissau devido a sua mescla cultural e concentração das instituições intermédias de intervenção (ONG), testemunhando diferentes tipos de tráficos, desde “mininus di kriaçon”, passando pelas meninas vendedeiras ambulantes, crianças mendigas nas ruas, crianças Katanderas/torna liti, etc. No entanto, a equipa de consultores percorreu durante uma semana as regiões de Bafata, Gabu, Tombali e Cacheu (São Domingos) de modo não só identificar e conhecer o fenómeno in loco mas, também, para testemunhar as fronteiras e as formas de identificação e controlo do tráfico de crianças destas localidades transfronteiriças. Este trabalho permitiu entrar em contacto com diferentes atores intermédios de proteção de criação, caso de AMIC, Plan Guiné, Ministério Público, SOS Crianças Talibés, entre outras. Porém, apesar da importância e nível de informações obtidas ao longo das entrevistas na compreensão da dimensão do fenómeno, o tempo destinado ao estudo e mobilização financeira não foram suficientes, a fim de permitir melhor profundidade na compreensão de algumas práticas socioculturais associadas ao fenómeno. Por consequência, a impossibilidade de realização de histórias de vidas e entrevistas aprofundadas com as famílias afetadas e implicadas do fenómeno. Não obstante, novas pistas foram testemunhadas ao longo dos textos, pelo que, recomendamos, desde já, estudos mais aprofundados sobre novas formas de tráfico na Guiné-Bissau.

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REVISÃO DA LITERATURA E DEBATES SOBRE VIOLAÇÃO E TRÁFICO DE CRIANÇAS: O CASO DE CRIANÇAS TALIBÉS, CONFIAGE ENTRE OUTROS

/ 1 Autor do livro «

Enseignement arabo islamique dans le système éducatif sénégalais: Bilan et perspectives (2012) »

Segundo a literatura consultada, a questão do tráfico de crianças na Guiné-Bissau está em boa parte ligada a mobilidade das crianças talibés a nível da sub-região, em específico para o Senegal e vice-versa. Não obstante, tratando-se de contributos escritos de outros autores em relação a temática de tráfico de crianças, tentamos trazer ao debate alguns contributos não só centrados em crianças que mendigam nas ruas, mas também algumas práticas bem ocultas que, socialmente, passam despercebidas, as vezes difíceis de aceitar socialmente como práticas de tráficos e/ou violação das crianças devido a seu enraizamento cultural e étnico na sociedade bissau-guineense. Em enquadramento, segundo Mamadou Ndiaye1, as escolas corânicas no Senegal são bem antigas quanto ao Islão. Já em períodos longincos os viajantes árabes e europeus testemunhavam as suas presenças no Senegal para aprendizagem do árabe nas escolas corânicas, sendo uma das primeiras ofertas da educação baseada na aquisição do conhecimento a partir da escrita, de leituras e memorização de textos. Hoje em dia fala-se do desvio e marginalização desta forma educativa, mas continua a ser das mais seguidas e obrigatórias dos grupos muçulmanos, onde cada agregado familiar continua a fazer todos os sacrifícios necessários para assegurar o acesso dos seus menores (CNLTP, 2014). As escolas corânicas para além da sua componente de ensinamento também desempenham funções sociais importantes de acolhimento e socialização das


crianças. Não obstante, os escassos meios financeiros de que os mestres se padecem, tendo em conta a aceitação e volume dos alunos, podem estar na origem da obrigatoriedade de mendicidade dos seus alunos. O que, de certa forma, condiciona as crianças aos sacrifícios diários nas ruas, como pedintes, longe dos olhares dos mestres e dos próprios encarregados da educação, pais e/ ou tutores (Plan Internacional, 2006). Segundo alguns críticos, a mendicidade de crianças testemunha a desinstitucionalização de um bom número destas escolas corânicas. Assim, alguns defendem, o exemplo do Senegal, a adoção de um quadro regulamentar normativo para a abertura destas escolas (conhecidas por daaras), bem como as instituições de inspeções, de modo a erradicar o tráfico e exploração de crianças, sobretudo das crianças talibés, enquadradas na mendicidade ambulante, nas ruas das grandes cidades e em espaços rurais (CNLTP, 2014). A realidade de tráfico de crianças é transfronteiriça e mais do que uma questão apenas de contexto local e nacional. No contexto bissau-guineense afeta muitas crianças que fazem mobilidade da Guiné-Bissau a Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri etc. Segundo o Secretário Executivo da Associação dos Amigos das Crianças (AMIC), Laudolino Carlos Medina, do início de um projeto de prevenção e luta contra o tráfico das crianças, em Novembro de 2005, até a data presente, em 2015, já foi resgatado e inserido junto da sua aldeia de origem e/ou respetivos familiares cerca de 747crianças vítimas do tráfico2. Na Guiné-Bissau, o ensino corânico apresenta três principais componentes: o corânico tradicional, o madrassa e o misto. A sua expansão no país refere na sua maioria as identidades muçulmanas nas regiões de maioria muçulmana (regiões de Bafatá, Gabu e Quinara), virado para o sexo masculino (Plan Internacional, 2006). A necessidade e obrigatoriedade de alguns familiares

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/ 2 Neste mesmo

período, a AMIC apoiou a reintegração de cerca de 500 crianças vítimas de tráfico que voltaram ao país pelos pró¬prios meios (pês), fugindo dos seus cativeiros. A rein¬tegração consiste no acolhimento da criança no centro de trânsito, onde pode ficar até um mês, para a sua recuperação física e psicológica. En¬tretanto a equipa da AMIC reúne as informações necessárias à busca e localização da família (CNLTP, 2014).


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/ 3 Pelo menos, todas as crianças retornadas pela AMIC beneficiam de um projeto de vida e um seguimento personalizado até 2 anos. Neste momento, estamos a realizar um exercício de Catamnèse para saber como estão as crianças retornadas desde 2005.

/ 4 Trafic est un mot lourd, les populations assimilent le trafic au trafic de drogues (UNICEF, 2009).

muçulmanos encaminharem seus filhos e descentes às escolas corânicas continuam patente e representam desafios no fenómeno tráfico de crianças. Este fenómeno, de escolas corânicas, que está ligado a questões culturais e religiosas, também se associa a condições socioeconómicas, incapacidade de resposta de escolas públicas em certas localidades rurais. Todavia, relatos e estudos testemunham desvios em relação a aprendizagem, onde as crianças se transformam em mendicidade, muitas delas regressam as origens, através de ONG’s de intervenção, sem a prometida formação, testemunhando degradação e desnutrição de certos grupos retornados3. O que de certa forma, sublinha crescente estigmatização da comunidade muçulmana, sobretudo os Fulas, e conflitos entre certos atores de proteção e defesa das crianças e as famílias implicadas no fenómeno. O “conflito” existente entre os dois atores (comunidades muçulmanas e ONG’s de proteção e defesa das crianças) reside na interpretação do Protocolo de Palermo na preservação de condições de vida dos menores envolvidos na mobilidade e as formas tradicionais, usos e costumes de maior parte dos grupos étnicos4. Para certos grupos étnicos, da religião muçulmana, é importante que as crianças sejam preparadas para um futuro melhor, mesmo que isso possa constituir sofrimento e/ou esforços penosos. Dai que, para estes, a palavra tráfico, de que são conotados, representa uma ofensa, criminalizando toda a comunidade, uma vez que os pais (envolvido no processo) apenas procuram o melhor para os seus filhos/descendentes. A aprendizagem e a formação numa escola corânica representam uma oportunidade e um orgulho, sobretudo, quando a criança regressa após formação (ter apreendido o alcorão) e, normalmente, são crianças mais inteligentes as selecionadas para


aprendizagem. A mendicidade pode representar uma das etapas de sofrimento e preparação da criança para o futuro, pois, não representa nada de anormal desde que a criança consiga prosseguir os seus estudos de alcorão. Por conseguinte, defendem que não há aquisição do saber sem sofrimento, pois, a ideia de se ter focalizado apenas nas crianças talibés, sua associação ao tráfico, representa um estereótipo a comunidade muçulmana, porque há outras práticas culturais, ligadas a confiage, de outros grupos étnicos, mais propensos ao fenómeno tráfico (UNICEF, 2009). Nesse debate, é importante sublinhar outros fatores de responsabilidade estatal, como a falta de apoio das escolas corânicas na Guiné-Bissau, a precariedade de condições de funcionamento de algumas escolas corânicas, as condições de vida de que as crianças talibés estão sujeitas nos países de destino (de formação), e a própria défice de informações por partes dos pais, encarregados de educação e/ou tutores, como determinantes na apreciação do problema na sua componente holística (Plan Internacional, 2006). Segundo estudo «Les enfants mendiants dans la région de Dakar» realizado pelo Understandig Children’s Work, em 2007, só em Dakar perto de 8 mil crianças mendigam-se nas ruas, sendo que, as crianças talibés representam 90% do total. Entre os países representados, testemunham-se que 95% destas crianças são originárias dos países vizinhos como a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, a Gâmbia e Mali. Estima-se que 30 % das crianças mendigas (talibés) na região de Dakar são originárias da Guiné-Bissau5. As escolas corânicas também constituem uma realidade na Guiné-Bissau, apesar das mobilidades para o Senegal. O estudo sobre “escolas corânicas, madrasta e crianças talibé” levado a cabo pela PLAN Internacional, em 2006,

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/5

Informação recolhida na entrevista tida com Laudolino Carlos Medina, Secretário Executivo da AMIC, 2015.


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testemunha 22.831 crianças talibés repartidas em 617 escolas a nível de todo o país, donde 561 (90,92%) são escolas exclusivamente corânicas, seguido de 50 (8,10%) caracterizadas por escolas madrassas, e, 6 (0,97%) consideradas escolas mistas. Por distribuição geográfica, Quinara absorve 176 (29%), seguida de Bafatá 173 (28%), Gabú 122 (20%), Tombali 119 (19%) e SAB 27 (4%). Em relação a distribuição das crianças talibés a região de Bafatá lidera com 7.697 (33,7%), seguida de Gabú 4.689 (20,5%), Quinara 4.125 (18,1%), SAB 3.258 (14,3%) e Tombali 3.062 (13,4%) (Plan Internacional, 2006). Segundo várias testemunhas, a implicação cultural é importante na perceção deste fenómeno mas, a implicação das crianças talibés em ações de mendigação também tem muito a ver com a situação socioecónomica dos seus mestres. Nos tempos antigos, um marabout (mestre de alcorão) tinha capacidade de alimentar os seus almudus devido a sua produção agrícola (arroz, milho, algodão e amendoim etc.), donde era apoiado pela comunidade incluindo os seus alunos (talibés). Devido a esse poderio económico e sustentação alimentar não havia necessidade de os seus almudus se mendigarem nas ruas para pedir as moedas em sustentação dos mestres. Isto, ao contrário do que acontece hoje em dia, onde a necessidade de mendigar é uma obrigatoriedade de sustentação e continuidade na aprendizagem do alcorão, aliado a solidariedade cultural das sociedades em particular muçulmana para com as crianças mendigas, o que se associa a fins exploratórios, segundo ativistas dos direitos da criança (UNICEF, 2009). Em ligação ao tráfico, por consequência, temos a realidade de exploração sexual, como uma prática sexual que envolve criança mas com fins comerciais e/ou ou de proveito próprio do adulto ou outrem, havendo ganhos em troca do uso do corpo (sexo) da criança. Muitas das vezes testemunhamos ativida-


des sexuais (disfarçadas) de que as crianças são passíveis em várias culturas e oportunidades sociais. Disso, o exemplo da prática de violações sexuais, de participações de crianças em shows, em casamentos forçados e precoces, e em entregas sexuais de natureza donjuanista (envolvendo adultos com adolesceste), crianças manequins, a prática de Katanderas etc. O estudo levado a cabo por UNICEF, em 2006, testemunha várias formas de violação sexual organizadas em duas grandes categorias. A primeira refere as formas correntes e as cruéis de violação (física e mental), mas não reportam o uso dos órgãos genitais da criança, referem apenas a violações de tipo violência física, abusos, explorações, agressões etc., considerados correntes em qualquer sociedade e/ou espaço de vida bissau-guineense. A segunda categoria refere as formas parafílicas e as crueldades sexuais, pois, consistem no uso ou contacto com os órgãos genitais de menores para satisfação sexual do violador. Em associação, poder-se-á considerar a prática do casamento precoce, uma prática enraizada culturalmente em certos grupos étnicos, no quadro das formas parafílicas, uma violação sexual e que hoje em dia está a ser interpretado numa outra versão no grupo étnico papel designado de Katandera/Torna liti, onde muitas das crianças são envolvidas em processo de casamento forçado de modo a repor as raízes socioculturais de que a mãe é originária. Porém, o estudo considera três frentes de abuso e exploração sexual de crianças. Primeiro, as crianças violentadas nas suas casas, ora por pais ora por outro elemento superior da família (intrafamiliar); segundo, as crianças vendedoras ambulantes que sacrificam os seus tempos para ajudar as mães são, por vezes, objetos de simulacros à troca de pequenas notas e moedas para relações de abuso sexual (de estupro); e, por fim, aquelas que andam em ruas a mendigarem, essencialmente

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talibés, devido a miséria e oportunismo dos seus tutores (UNICEF, 2006). A caracterização de condições de vulnerabilidades de crianças depende do contexto, situações, conceitos, e objetivos de que se pretende qualquer estudo. Para o estudo encomendado pela organização internacional de trabalho sobre as crianças trabalhadoras em Bissau, em 2014, conclui-se três tipos de crianças vulneráveis. O primeiro refere a crianças que vivem com os pais, mas que devido a pobreza e razões culturais são privadas de oportunidades de uma vida melhor e de crescimento normal enquanto crianças (passam mais tempo em atividades de natureza doméstica mas que lhes privam de oportunidades de crescimento normal como defendem as leis universais). O segundo a crianças órfãs, muitas das vezes sob tutela de familiares (tios, avós e até vizinhos próximos), designados de encarregados de educação e/ou tutor – é a realidade de confiage (em francês) ou meninu di kriaçon (em crioulo). Devido a pobreza e pressão social os novos tutores acabam por usar as crianças em estratégias de sobrevivência, ficando estas reféns destes e sem possibilidades de escolarização. O terceiro a crianças trabalhadoras (normalmente trabalham das 8:00 h as 18:00), onde algumas delas chegam a viver em casa dos patronos correndo riscos de exploração sexual (OIT, 2014). Em relação a criança em situação de confiage (meninu di kriaçon) é uma realidade transversal a diferentes etnias bissau-guineenses de várias interpretações e desígnios. Para os Fulas o termo pode variar de Négol, Tamnougol et Ngokirgol; o termo Néugol significa educar, referentes a criança que são entregues aos familiares próximos e até marabous para efeito de aprendizagem de alcorão; o termo Tamnougol significa confiar, assim, por razões de confiança, os pais podem confiar uma criança a alguém para a sua educação ou sustentação


durante um determinado tempo; o termo Ngokirgol significa dar, contrariamente aos dois, a doação é definitiva não havendo hipótese de a criança regressar aos pais de origem, assimila-se a um dom que a família adotiva recebe. No caso de outros grupos étnicos, caso de Biafadas confiage significa Gunbene, com diferentes modalidades de conceção e adoção de crianças, a exemplo dos Fulas; para os Balantas, o termo é Nrang que significa educação, pois, considera-se apenas a raparigas, onde uma família adota uma criança ou bebé para os fins de casamento, ou seja a criança é educada pela sua tia a fim de poder ser coesposa do marido da tia (GDAL, 2010). Na verdade, esta realidade transcende interpretações étnicas, apesar da sua tradição, devido a fatores ligados a pobreza e estratégias de sobrevivência familiar, envolvendo todo tipo de etnias e categorias sociais onde a pobreza é visível. O debate entre os atores envolvidos no processo de tráfico das crianças requer uma apreciação dos dispositivos jurídicos por um lado e, por outro, as realidades sociocomunitárias dos grupos étnicos considerados. Segundo a Liga Guineense dos Direitos Humanos, no seu relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau 2010-2012, existem instrumentos jurídicos a nível interno que consagram a proteção e defesa das crianças – a Constituição da República, o Código Penal, o Estatuto de Assistência Jurisdicional de Menores, a Lei Orgânica do Tribunal de Setor – todavia, há um vazio de aplicabilidade destes instrumentos e sua consequente harmonização aos instrumentos e protocolos internacionais (LGDH, 2013)6. A isso associamos a fragilidade do Estado em si, as resistências e perenidade de algumas práticas socioculturais e religiosas, caso do casamento forçado e precoce, a mutilação genital entre outros, a inexistência de uma política

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/ 6 O Estatuto de Assistência Jurisdicional de Menores prevê a criação de Tribunais de Menores como instituições autónomas; o tribunal encarrega-se dos processos da adoção, regulação do exercício do poder paternal, a ação de alimentos devidos ao menor, entrega judicial de menores, inibição do poder paternal e averiguação oficiosa da maternidade ou paternidade; a curadoria de menores, enquanto estrutura especializada do Ministério Público para a proteção jurídica das crianças, visa prestar assistência aos menores no domínio de prevenção criminal, mediante a adoção e aplicação de medidas adequadas conducentes à defesa dos seus direitos e/ ou interesses (IMC, 2008; LGDH, 2013).


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de proteção social e a falta de estratégias coordenadas das instituições que atuam sobre a criança (IMC, 2008; LGDH, 2013).

A DIMENSÃO E TIPOLOGIA DO TRÁFICO DE CRIANÇAS NA GUINÉ-BISSAU

Segundo os ativistas durante os trabalhos de terreno, em alguns sítios, tradicionalmente conhecidos como de tráfico, caso da região de Bafata, há uma sensação de redução do fenómeno, devido ao trabalho dos ativistas locais reforçados pela aprovação da Lei 12/2011 sobre tráfico de menores. Porém, para outros, a luz do Protocolo de Palermo, artigo n.º 3, a Guiné-Bissau é caracterizada por vários tipos de tráfico de criança latente associado a exploração sexual, casamento forçado, raparigas “Katenderas” da etnia pepel, crianças manequins, crianças em situação de adoção, crianças em trabalho doméstico exagerado, implicação nas forças armadas, mendicidade etc. Entre os diferentes tipo de tráfico de crianças, a mendicidade das crianças talibés (almudus, crianças em aprendizagem do alcorão) tem sido uma referência, devido aos seus contornos sociais, familiares e políticos. Em termos de consequências e maus tratos das crianças há elementos de natureza tradicional importante a sublinhar, por constituírem violações graves e subtis de ponto de vista dos direitos humanos. Alguns usos e costumes são disso o exemplo, caso da etnia Mansoancá quando acontece a mortalidade materna, durante o parto, a criança (viva) é considerada de feiticeira. Nestas circunstâncias, a criança é entregue a uma senhora de idade para a guarda até a hora da cerimónia


fúnebre, onde será sepultada junto da mãe. Outro caso hostis de tratamento é quando uma criança nasce deficiente e/ou com problemas mentais normalmente é considerada de feiticeira sendo pro conseguinte morta. Havendo já pessoas especialistas em tirar a vida das crianças nestas circunstâncias. De realçar que há uma correlação entre as crianças propensas ao tráfico e a situação sociofamiliar, sobretudo as crianças órfãs. Devido a pobreza familiar as crianças são obrigadas a realizar atividades de autossustentação pessoais e familiares. Disso, o exemplo das meninas vendedeiras ambulantes nas ruas de Bissau que, durante as suas atividades, correm grandes riscos de estupro e violações sexuais. Segundo várias testemunhas, durante o trabalho de terreno, acontece casos cujos pais falecidos eram detentores de certos bens materiais, nestas circunstâncias as crianças são esporadicamente corridas dos seus lares por terceiros (familiares) de modo a não serem legítimos herdeiros. Dai, a importância de um estudo mais profundo a fim de discutir diferentes formas e tipologias de tráfico na Guiné-Bissau.

A) EXPERIÊNCIAS E INTERPRETAÇÕES DO FENÓMENO DE TRÁFICO DE CRIANÇAS O fenómeno de tráfico de crianças, a luz do Protocolo de Palermo, sempre existiu na Guiné-Bissau por vários motivos, culturais, pobreza, entre outros. Graça a intervenção dos atores intermédios (caso de ONG’s como a AMIC, Plan Guiné, LGDH, Fundação Suíça do Serviço Social Internacional, IPHD, OIM, Embaixada dos Estados Unidos de América e dos apoios de UNICEF), a realidade do tráfico das crianças é hoje conhecida na sua dimensão nacional

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e regional. O entendimento do fenómeno tráfico a luz de Protocolo de Palermo parece condenar o comportamento tradicional de alguns grupos étnicos, sendo quase difícil em algumas situações a atuação das ONG de defesa de direito das crianças. A AMIC pela sua natureza em defesa das crianças, tão cedo, através dos seus ativistas, constatou alguns comportamentos e acontecimentos passíveis de serem interpretados de tráfico. Depoimento do Secretário Executivo de AMIC (Laudolino Carlos Medina) sobre a aplicação do Protoloco de Palermo (Bissau)

“O Protocolo de Palermo na sua aplicabilidade parece ser muito forte na interpretação de vários atores comunitários “em várias ocasiões de diálogos comunitários que nós efetuamos, a nível das regiões, onde constatamos uma forte mobilidade de crianças com objetivo de tráfico, os populares e os chefes tradicionais informam-nos sempre de que o tráfico tal como definido no Protocolo de Palermo é muito forte para a nossa sociedade, temos que ver a realidade, respeitando a nossa evolução e a da nossa sociedade. Dai a nossa mudança no que diz respeito a tratamento de caso de tráfico. Mas, como definido no Protocolo, basta testemunharmos a mobilidade, o recrutamento e a exploração de crianças para consideramos fundamentos de tráfico de criança, sendo assim um fenómeno muito sensível”. Segundo Nelson, técnico do Instituto da Mulher e Criança/Mamadu técnico da ONG FEC/Caritas:

“O fenómeno de tráfico na sua abordagem e interpretação muitas das vezes se


vê em dificuldades de natureza jurídica, condicionando os processos a morosidade, dificultando possibilidades de julgamentos e de condenação dos infratores da lei sobre proteção de crianças”. Mamadu técnico da ONG FEC/Caritas testemunha que neste combate “tem existido uma experiência de parceria entre atores envolvidos no processo, desde da identificação das crianças nas fronteiras, o investimento na formação com os polícias fronteiriços, passando por processo de acolhimento (disso a experiência da casa de acolhimento “Banbaram”). Geralmente as crianças entram a pedido de uma autoridade policial, a polícia judiciária, é iniciada um processo de localização dos familiares ou de quem supostamente é detentor da sua guarda, e elas ficam a aguardar em acolhimento até o processo ser concluído através de retorno a suas famílias. Nós tivemos um caso cerca de dez crianças alegadamente todos irmãos que foram apanhados na fronteira e que ficaram na casa Banbaram durante dez dias até se fazer este retorno a família no Senegal” Depoimento de uma ativista AMIC - cidade de Gabú (Leste da Guiné-Bissau):

“Quando pela primeira vez falámos em fenómeno de tráfico de crianças, aqui em Gabu as pessoas não queriam acreditar que fosse uma realidade, acharam que nós éramos malucos. Mas com o passar do tempo começou-se a surgir denúncias, por parte de algumas famílias, sobre o desaparecimento das suas crianças. O ponto de maior alerta foi o caso de uma criança desaparecida que dias depois foi encontrada nos arredores da pista de aviação de Gabu morta e sem órgãos internos. O que de uma vez por todas despertou a consciência da população e das autoridades desta região sobre a dimensão e profundidade deste fenómeno”.

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A testemunha de uma criança encontrada sem órgãos é um dos sinais do fenómeno não só na região de Gabu mas em todo o país e com ligações aos países vizinhos da sub-região, caso do Senegal e da Guiné-Conacri. O recrutamento de crianças, algo ancestral e renovado através de novas estratégias e procedimentos, é operacionalizado através de várias formas, desde a oportunidade de realidade denominada “confiage”, onde os pais confiam as suas crianças a outros indivíduos próximos familiarmente ou por confiança reciproca para fins educativos (confira a parte 3 da Revisão da literatura sobre violação e tráfico de crianças). A situação de pobreza familiar também pode condicionar as crianças a mobilidade de oportunidades educativas sem precedentes, aumentando o risco de vulnerabilidade das mesmas e o reforço de conflito entre os tutores e as normas e direitos e defesa das crianças. Devido a estas e demais razões o rapto, recrutamento ou condição de doação/aceitação de uma criança associam-se a cumplicidade entre os implicados, o que normalmente disfarça a identidade do “raptor” (presumível traficante), pese embora o seu ato de violador. Por exemplo, no caso das crianças talibés as vítimas normalmente são acompanhadas dos seus acompanhantes (presumíveis traficantes) e da devida documentação. Declaração de uma ativista da cidade de Quebo (Sul da Guiné-Bissau):

“[…] Havia uma senhora que tinha uma criança-sobrinha, batia tanto nela e obrigava-lhe a fazer trabalhos desenquadrados da idade. Tentamos sensibilizar a senhora mas, ela defendia que a criança não tinha boa educação, e que já tinha passado por cinco (5) educadoras sem sucesso [de aprendizagem], o que justifica o comportamento, de maus tratos, que ela tem tido para com a criança”.


Declaração da responsável de AMIC na cidade de Gabú sobre as crianças repatriadas do Senegal e outras intercetadas (Leste da Guiné-Bissau):

“[...]Nós recebemos regularmente as crianças talibés, compatriotas repatriadas do Senegal, e várias outras crianças intercetadas em linhas transfronteiriças, pelas nossas forças da guarda nacional. São crianças que os traficantes tentam a todo custo e de forma clandestina levar para o Senegal, com o pretexto de lhes proporcionar a oportunidade de apreender o alcorão”.

Depoimento de uma ativista da cidade de Quebo sobre o novo sistema de recrutamento das crianças e adolescente para escola de futebol (Sul da Guiné-Bissau):

“Um dia destes chegou aqui um senhor, o nome não posso dizer, que afirmava estar a recrutar crianças e adolescente para a escola de futebol em Portugal, convencendo os familiares e todo o mundo que tinha uma escola de futebol por ai. Conseguiu levar três crianças de uma só vez, daqui do setor de Quebo, mas, a partir dai, nunca mais ouvimos falar dele e nem das crianças. Ouvimos relatos de abandonos de crianças ligadas ao futebol, sobretudo, quando as coisas não dão certo, elas são abandonadas a sua sorte. Quem nos garante que as crianças recrutadas daqui em Quebo não vão para a má vida, caso não tenham conseguido o sucesso desejado. Há que ter em conta a esta nova forma de recrutar as crianças no quadro dos direitos das mesmas, porque envolve falsas promessas por pessoas que não são familiares e nem próximas destas crianças”. Depoimento de uma ativista da cidade de Quebo sobre a mendicidade das crianças talibés (Sul da Guiné-Bissau):

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“Houve um caso de uma criança mendiga, cujo mestre foi convocado pelas autoridades. Durante a interrogação o mestre justificou que não tinha condições para sustentar as crianças talibés, dai a obrigatoriedade de condicioná-las a mendigar de modo a se autossustentarem. Confrontado com a situação de violação de que estava a praticar, o referido mestre pediu apenas a ajuda de 50 Kg de arroz, em troca da situação de privação [momentânea] da criança vítima. Nós seguimos o mestre até ao local onde morra e, constatamos que mais do que a criança vítima, havia mais crianças na tabanca (Mafanco) privadas pelo mestre, vivendo em condições desumanas”. Nestas condições os familiares de confiança devido a várias razões culturais e de pobreza acabam por ensaiar as crianças em situações de trabalho infantil e/ ou atividades estratégicas de sobrevivência familiar, casamentos forçados entre outros. Devido a pobreza que se vive no país, a tendência de certas práticas é de continuidade, caso de trabalhos domésticos infantil, casamentos precoces, nos meios rurais e urbanos. Isto porque os benéficos, os dotes envolvidos, a própria doação em casamento representam uma verdadeira e permanente fonte de receita para os familiares e/ tutores da vítima (Medina, 2013). Hoje em dia, algumas práticas socialmente aceites em certas comunidades étnicas são disso o exemplo. Na realidade da etnia Balanta uma criança (meninu di kriaçon) é entregue a tia por razões educativas e quando o seu desenvolvimento físico testemunha a puberdade ela é doada em casamento ao «tio» (marido da tia), partilhando desta forma o mesmo esposo com a tia. Outros exemplos sarcásticos são testemunhados nas experiências de convivência étnico-comunitária.


Depoimento de um ativista da cidade de São Domingos sobre o que tem verificado nesta zona fronteiriça sobre o tráfico das crianças (Norte da Guiné-Bissau):

“Nesta zona [São Domingos] o que se tem verificado de forma sazonal é saída de jovens, alguns deles adolescentes, para o Senegal (concretamente em Ziguinchor) a fim procurar as oportunidades de vida, tais como serviços de empregadas domésticas. Nestas aventuras, devido as dificuldades de vida, dormem em casas e/ou quartos partilhados. Por consequência, tem-se testemunhado casos de gravidez precoce entre as adolescentes e estrangeiros, do país vizinho, e/as vezes entre eles próprios emigrantes. Este fenómeno está a crescer e a preocupar as famílias, mas não há como fazer é a pobreza do país”.

De forma geral, o recrutamento de crianças, nas suas formas de ligação ao tráfico, pode ser entendido em duas formas: coerciva e passiva. A coerciva é aquela que engloba quase sempre um intermediário que tanto pode usar a força, ludibriar os familiares com grandes ganhos, seja educativo, seja monetário; a passiva é aquela em que as crianças (por serem de menor idade) devido a razões de pobreza familiar e oportunidade de mobilidade transfronteiriça poder deslocar-se aos países vizinhos de forma sazonal a procura de novas oportunidades de vida e/ou melhorar as condições dos seus familiares. Todavia, em ambos os casos, testemunha-se a exploração, o abuso sexual, a gravidez precoce, o abandono escolar, como sintetiza o quadro a baixo sobre as formas de recrutamento e tipos de vítimas, como testemunha o Quadro em baixo, sobre as formas e tipos vítimas de tráfico.

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Quadro n.º 2 Formas de tráfico e tipos de vítimas

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Formas de recrutamento e/ou de tráfico

Tipos de Vítimas

Confiage: os pais confiam a criança a outras

Crianças Talibés;

pessoas (conhecida da família, amigo, etc.)

Mininu di Kriaçon;

para educação nos diferentes grupos étnicos;

Crianças em adoção;

Rapto por práticas e mitos tradicionais, e/ou

Crianças talibés;

através de coerciva;

Crianças de mutilação genital; Crianças em casamento forçado; Crianças Katanderas/ torna liti;

Migração/mobilidade de crianças devido a

Crianças em trabalho infantil (por exem-

pobreza e/ou situação familiar;

plo nas plantações de algodão, coleta de amendoim etc.); Crianças em casamento forçado; Crianças em treinamento de fins futebolísticas;

Aliciamento de crianças (sobre condições de

Crianças em trabalho infantil;

trabalho, ganhos etc.);

Crianças em treinamento de fins futebolísticas;

Rapto por cumplicidade desleal (quase sempre

Crianças Talibés;

as vítimas são acompanhadas, traficantes

Crianças em trabalho infantil;

detidos e documentos retidos);

Crianças em treinamento de fins futebolísticas;


B) OS MODUS OPERANDIS E CUMPLICIDADE DOS ATORES ENVOLVIDOS NO PROCESSO A batalha entre os defensores/protetores de crianças concernente ao fenómeno tráfico tem condicionado aos presumíveis “traficantes” a novas estratégias, de modo a fugir dos apertados controlos implementados pelos guardas nacionais nas fronteiras. Contrariamente as estratégias iniciais e clássicas - em que os próprios professores ou mestres corânicos vinham buscar as crianças, atravessando as fronteiras - são os próprios familiares (pais, encarregados de educação e/ou tutores) das crianças que as acompanham até além-fronteiras e entregam-nas aos supostos mestres. Normalmente aproveitam períodos de Gammu7, momentos de concentração e manifestação da fé muçulmana, para provocarem rumarias de crianças, alegando a participação destas em cerimónias de profissão da fé muçulmana. O que evidencia a cumplicidade entre os dois atores envolvidos no processo. Posto isto, fica a ideia do envolvimento claro dos familiares na propagação e sustentação do fenómeno. Realidade amplamente debatida no capítulo da revisão de literatura onde os determinantes socioculturais, as condicionantes estratégicas de sobrevivência humana são importantes na perceção do fenómeno tráfico. Esta nova estratégia, Gammu, de cumplicidade intrafamiliar, entra em contradição com os princípios de defesa das crianças, e tem dificultado toda a resposta e o trabalho dos guardas nacionais nas fronteiras. Por conseguinte, é necessário que se submeta aos guardas nacionais (fronteiras) uma formação específica em matéria de tráfico transfronteiriço, e lhes possa ser dado outros poderes (legais) no processo de interceção de menores. Mesmo a nível de pro-

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/ 7 Gammu - é uma

grande concentração dos muçulmanos onde se fazem leituras de alcorão e professam a fé, cada muçulmano almeja assistir e contribuir algo neste tipo cerimonia.


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teção dos colaboradores. Por exemplo, no quadro da experiência da região de Bafatá, para além dos cinco elementos que compõem as estruturas sectoriais e colaboradores da AMIC, é importante que se crie os pontos focais em todos sectores, cada qual com o seu telemóvel e um subsídio para compra de crédito com o objetivo de poder denunciar atempadamente todos os casos relacionados com as violações e tráfico de crianças. Acrescenta a ativista (Bafata). Declaração do representante do Ministério Público sobre tráfico das crianças na zona Leste da Guiné-Bissau:

“As crianças talibés agora são transportadas pelos próprios pais, com documentos legais. Normalmente são os pais que acompanham os seus filhos menores até ao outro lado da fronteira, onde os seus mestres as esperam numa aldeia perto da fronteira do país de destino. Aproveitam a concentração dos muçulmanos chamada Gammu, para levar as crianças a atravessar fronteiras, a fim de entregá-las aos mestres. Estas estratégias são denotadas nas regiões de Bafata e Gabu. Ao cúmulo de tudo tiveram a ousadia de transportar a bem pouco tempo 54 crianças, a maior parte era Djabi-Cundas, com justificação de que participariam em cerimónias de Gammu, felizmente foram intercetados, o caso está agora no Ministério Público”. Além da justificação de participação em cerimónias de Gammu, há outras estratégias mais “macabras” e “desumanas” de transportar de forma disfarçada as crianças junto as fronteiras de Gabu e Bafata. Desconfiando de interrogatórios de que poderão ser objeto, os próprios familiares viajam com crianças metidas


debaixo dos assentos de passageiros. E quando é assim, em maior parte dos casos, para não serem controlados usam em disfarce juntos aos retrovisores dos carros bandas e bandeiras de cor branca que simboliza livre transito, e/ou transporte cheio de fieis para as cerimonias de Gammu. Na zona leste, as fronteiras de Pirada, de Tchetche e de Buruntuma são as mais usadas para o tráfico de crianças. Isto, não pondo de parte a cumplicidade entre os presumíveis traficantes (destas zonas) e os guardas nacionais fronteiriços. A mesma estratégia é conhecida nas zonas sul do país, devido ao cerco dos guardas nacionais e animadores. A estratégia Gammu impera, sobretudo em fronteiras como a de Bunho, Cuntabane, N’ghadur, Candabel. Para além do disfarce são fronteiras isoladas, sendo fáceis de serem usados para facilitação do tráfico. Depoimento de uma ativista da cidade de Quebo sobre o caso de uma criança supostamente traficada, atada e posta num saco (Sul da Guiné-Bissau):

“Entre vários casos de tráfico de crianças que aqui foram registadas eu gostaria de testemunhar um, que me marcou pelas circunstâncias da sua ocorrência. Foi um caso de uma criança que foi raptada por um homem (presumível traficante) que tentou atravessar a fronteira de bicicleta com a criança de boca tapada, mãos e pés atados dentro de um saco disfarçado dentro dum caixote de artesanato (cufu, em crioulo). Talvez a ideia que o presumível traficante queria fazer transparecer era simular estar a transportar um porco (animal) amarado e embrulhado dentro dum saco. Felizmente foi intersetado pelos guardas nacionais que o abordaram e, o presumível, respondeu que se tratava de uma caixa de peixe a vender de forma ambulante. Devido à persistência

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dos guardas o presumível traficante tentou abandonar o local, mas foi preso e levado a polícia de Buba, onde, depois, foi libertado pela alegação de que ele teria problemas mentais”. As novas estratégias para além de serem subtis, conseguem confundir os atores intervenientes de ponto de vista de legitimação, segundo testemunhou uma animadora em Bafata, uma vez que envolvem os pais legítimos das vítimas. Depoimento de uma ativista da cidade de Bafatá sobre o caso de 54 crianças interpeladas em Cambadju (Leste do País):

“Eu penso que não se pode falar do fenómeno de tráfico de crianças na região de Bafatá, pois, o caso de 54 crianças interpeladas em Cambadju não tem nada a ver com o tráfico de crianças, porque elas estavam acompanhadas dos seus respetivos familiares, iam assistir a cerimónia de Daara (Gammu) no Senegal. Em Bafata verifica-se mais casos de violência, relacionada a casamento precoce, circuncisão feminina, violação sexual de menores e de agressão. Nisso, neste combate, temos tido uma colaboração das autoridades locais, nomeadamente a polícia, o Ministério Público, o Hospital, a Plan Bafatá e as rádios comunitárias locais”. Todavia, a ativista confirma o fato de as crianças serem normalmente transportadas por contra vontade, dando exemplo que muitos acabam por fugir dos seus familiares e dos presumíveis mestres, após serem entregues, e voltam para os seus lugares (país) de origem. O que testemunha alguma confusão na


definição do fenómeno e na própria interpretação do Protocolo de Palermo. A esses desafios de interpretação associamos a resistência que se vive quando se trata da situação de crianças mendigas nas ruas de Bissau. Segundo ativista do Parlamento Infantil é difícil de tomar partido ao fenómeno de mendicidade porque as experiências tidas não deram frutos “já tentamos muitas vezes ter encontros com quem de direito, principalmente inspetor-geral da administração interna, o qual nos testemunhou que não há nenhuma lei que trata da mendicidade infantil. Assim, só nos resta a sorte de continuar a trabalhar nesse sentido fazendo «lobbying» junto a ANP, que se possa criar uma lei sobre a mendicidade infantil” afirmou. Depoimento de uma ativista da cidade de Bafata sobre a ausência de tráfico e existência de casos de violação sexual (Leste da Guiné-Bissau):

“[...]Na ausência de tráfico de crianças aqui na região de Bafata, há mais casos de violação sexual”. Dou-vos o exemplo de um caso de um homem [parafílico] que introduzia o dedo na vagina duma criança que infelizmente acabou por morrer por sangramento e ferimentos; outro exemplo é um caso de uma criança (surda e muda) de 14 anos, que foi violada por um madeireiro estrangeiro da Guiné-Conacri. Estes dois refletem o que normalmente acontece na região. Isto, para além de vários casos de agressão, de excisão e de casamento precoce que constituem a nossa realidade. Mas quando atuamos, através do Ministério Público, como defensores das vítimas, os próprios familiares [das vítimas] acabam por desistir do processo-crime retirando as queixas em nome de recorrência a “Djokoré-Endham”.

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Segundo os técnicos do Ministério Público, em Bafata, a recorrência a Djokoré-Endham, que é o concelho de anciões para resolução de conflitos, sobretudo na comunidade étnica dos Fulas, não tem ajudado na luta contra os crimes e criminosos que violam sistematicamente os direitos das crianças. Pois, a lógica da sua justiça não ajuda a desencorajar a prática do crime, muito pelo contrário, facilita e cristaliza a impunidade. A par destes instrumentos tradicionais, assistimos o desfile dos Deputados, dos Administradores que, por razões de manutenção do poder, interferem constantemente nos processos judiciais, chegando a perturbar, provocando sarilhos quando os suspeitos são eleitores dos seus círculos. Infelizmente, conseguem fazer libertar os detidos-, sublinha o delegado do Ministério Público de Bafata. Para este responsável, não obstante, é possível reduzir o nível de criminalidade infantil se houver colaboração e boa vontade de todas as organizações envolvidas, porque as autoridades policiais estão sempre disponíveis a executar as operações. Para o sucesso da estratégia do combate ao tráfico de crianças é extremamente necessário que se crie condições para a proteção dos denunciantes, evitando-lhe das retaliações de que são vítimas. Por exemplo, os professores podem ser bons colaboradores nas denúncias de casos de tráfico se lhes forem criadas condições, ou seja, se lhes forem fornecidos telemóveis e um subsídio para compra de crédito, sobretudo durante os meses de março e abril, onde a intensidade do fenómeno é maior.


Quadro n.º 3 Modos operandi, coação e controlo sobre as vítimas Modos de atuação e mecanismo de coação /controlo

Tipos de vítimas

Estratégia das cerimónias de Gammu

Crianças e alguns dos seus familiares

Endividamento forçado

Crianças e seus familiares

Servidão por devida

Crianças

Retenção de documentos

Crianças Talibés

Isolamento e castigos corporais

Crianças

Uso da violência e intimidação

Crianças e seus familiares

Ameaças as famílias das vítimas

Familiares das crianças

Esconderijos em viagem (marítima e terrestre)

Crianças Talibés

Uso do poder coercivo e/ou força

Crianças e seus familiares

Aproveitamento da vulnerabilidade e pobreza

Crianças trabalhadoras

Técnica de subornos nas fronteiriças

Guardas nacionais transfronteiriços

C) TRÁFICO, RECRUTAMENTO DE CRIANÇAS E FINS EXPLORATÓRIO Durante o trabalho de terreno podemos constatar que, para além do conflito entre os atores envolvidos no fenómeno, o entendimento sobre a interpretação do conceito tráfico ainda está muito limitado a certos indivíduos, mesmo quando se refere aos próprios animadores. Pois, a finalidade do tráfico de crianças ganha contornos de grandes dimensões e proporções no seio da

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população, desde práticas ligadas a exploração sexual, trabalhos forçados, mendicidade, tráfico de órgão humanos etc. Segundo algumas testemunhas, em regiões como Gabu e Bafatá, no seu entender, por razões de natureza sociocultural, as pessoas estão mais propensas a práticas de violação sexual, abusos domésticos, mutilação genital feminina, casamento precoce e forçado. Para eles, o tráfico, sobretudo em Bafata, não constitui um problema da comunidade. O que ao nosso ver testemunha a falta de alcance na interpretação do Protocolo de Palermo e, por outro lado, a resistência testemunhada pela comunidade local em considerar o protocolo desenquadrado da realidade social e étnica de que se vivem. Apenas sublinham que etnias como Fulas e Balantas são as mais envolvidas em práticas de casamento forçado e Mutilação Genital Feminino (MGF). Isto, apesar das campanhas de sensibilização e aprovação da lei. Depoimento de uma ativista da cidade de Gabú, sobre situação da saúde de uma criança repatriada do Senegal (Leste da Guiné-Bissau):

“Tivemos conhecimento de um caso, aqui em Bafata, de uma criança repatriada do Senegal com sinais de maus tratos, que foi levada ao hospital, onde lhe foi feita a ecografia. Concluiu-se que um dos rins lhe tinha sido retirado. Questionamos todos sobre o estado de saúde da criança (…) mas, como não temos condições acabamos por entrega-la aos pais biológicos, passando algum tempo tivemos a (má) notícia de que tinha falecido. Um outro caso refere à uma criança que foi encontrada morta na pista de Gabu com órgãos retirados. Os infratores até agora não foram encontrados, o caso desta criança foi no mês de Janeiro de 2015”.


Para além de testemunhas de caso ainda por esclarecer, ligados a roubo de rins etc., a maior parte dos entrevistados, os casos de tráfico identificados, relatam apenas as crianças Talibés. A dinâmica do tráfico de crianças Talibés envolve as regiões de Gabu, Bafata, Tombali e Cacheu. Onde nas regiões de Gabu, Bafata e Tombali se pode encontrar entradas e saídas de crianças traficadas, sendo Cacheu (via São Domingos) apenas via de entrada dos retornados. São crianças manipuladas por mestres Marabus e familiares com promessas de formação em grandes escolas corânicas e que depois são traduzidas em mendigas nas ruas de Dacar, a fim de levar consigo para seus mestres quantias em dinheiro (variando de 500 a 1.000 xof diários), e outros produtos de consumo que recebem da generosidade das pessoas. Apesar das escolas corânicas representar instituições antigas na educação e aprendizagem do alcorão, hoje em dia constituem estratégia de enriquecimento dos seus mestres, devido ao volume dos seus almudus, obrigados a entregar certas quantias diárias. A pretensão gananciosa dos marabus perante o enriquecimento elícito e a exploração dos seus alunos vai ao encontro das condições de miséria de que estes são passivos além-fronteiras e mesmo dentro do território bissau-guineense. Entre os sacrifícios, mendigação, dormir nas ruas, as crianças acabam por fugir procurando zonas fronteiriças, escondendo dos mestres, caminham por atalhos em grupos de 2 a 6 menores, com riscos de minas nas zonas de região de Casamança, via N’pak, acabam por chegar ao território da Guiné-Bissau, que normalmente são acolhidas pelos guardas, nacionais sensibilizados para o efeito, que, por conseguinte, entregam as crianças aos animadores da ONG AMIC. A partir dos representantes de AMIC faz-se o processo e procedimento de entrega aos familiares, ou nos

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centros de acolhimento. Realidade que tem sido difícil nos últimos tempos devido as dificuldades económicas e falta de financiamento. Quadro n.º 4 - Finalidade de tráfico e suas vítimas Finalidade de tráfico

Tipos de vítimas Crianças (rapazes e raparigas) alguns casos

Exploração sexual (prostituição, pornografia)

testemunhados nas ilhas, São Domingos, N’goré e Ziguinchor; Crianças “manequins”

Casamento forçado com dotes excessivamente

Crianças (raparigas) em diferentes grupos

elevados

étnicos

Trabalho forçado/exploração laboral

Crianças (rapazes e raparigas)

Mendicidade nas ruas

Crianças Talibés

Serviço militar forçado Tráfico dos órgãos humanos Práticas similares à escravatura Utilização de crianças para atos delinquentes / crimes

Crianças (maioria rapazes) em períodos de guerra civil (7 de Junho) Crianças (rapazes e raparigas) Crianças (rapazes e raparigas), chamados mininus de kriaçon; Katanderas/torna liti Crianças (rapazes e raparigas)


i) O dilema da “incapacidade” das autoridades e efeitos Djokeré-Endham A questão da responsabilização das autoridades no combate ao tráfico constitui um dilema. Os trabalhos de terreno mostram algum conflito entre os diferentes atores envolvidos e sobretudo a fraca participação em alguns sítios do Estado, através do Instituto de Mulher e Criança e do Ministério Público, como também de certas ONG’s. Isto, associado a não aplicação da lei – ou seja desde 2011 à esta parte, nenhum caso de tráfico de criança conheceu uma sentença judicial. No sul do país, setor de Quebo, foi-nos testemunhado que as autoridades locais (polícias) apesar da disponibilidade em participar no início das operações de divulgação de atos ligados a tráfico, acabam por desistir e/ou não cooperar até ao encerramento do caso. Depoimento de uma ativista da cidade de Quebo, sobre a incapacidade de atuação das autoridades locais (Sul da Guiné-Bissau):

“A polícia como autoridade devia manter a ordem, mas não o faz. Em caso de tráfico, esperam sempre que as ONG’s, que trabalham sobre proteção e defesa de direitos das crianças, resolvam os problemas, ou tomem decisão sobre os casos de denúncias, que não são da nossa responsabilidade porque não somos autoridades do Estado. Também aqui em Quebo os representantes do Ministério Público não tomam decisões, mesmo tratando de denuncias ligadas à crianças talibés a mendigar nas ruas de Quebo, à práticas de mutilação genital feminino e abuso sexual dos menores, não reagem”.

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A mesma preocupação foi testemunhada em Gabu sobre a indisponibilidade das autoridades no combate ao tráfico, há pouco tempo denunciamos junto a Polícia o desaparecimento de uma criança, mas testemunharam não terem meios para realizar a investigação. As autoridades não têm meios para realizar uma investigação séria, muitas vezes nos dizem que não têm carro para as deslocações e, mesmo quando o têm há falta de combustível remata a responsável. Algumas estratégias residem na sensibilização e acordos entre ONG’s e autoridades do Estado, é disso o exemplo da testemunha Bafata no início tentou-se responsabilizar as nossas autoridades policiais mas, depois, vimos que as coisas não estavam a funcionar, constatamos que precisavam de formação sobre o tráfico, sobretudo, na atualização de novas formas do fenómeno, de crianças disfarçadas nas fronteiras para Senegal. Há que haver uma comunicação reciproca (vice-versa) entre nós ONG’s e as autoridades do Estado (guarda nacional, polícia de migração etc.), o que não quer dizer que não se deva desconfiar em alguns elementos da autoridade que normalmente recebem subornos dos presumíveis traficantes. Para além destas críticas dirigidas aos guardas nacionais e polícia de migração, sobre a necessidade de mais cooperação, há uma outra responsabilização por parte do Ministério Público ao próprio Estado. Segundo o Ministério Público (de Bafata), há uma crítica aos seus Delegados de serem passiveis, não atuando em certas situações, por falta de recursos financeiros e materiais (meio de transporte) para operacionalizar as suas missões. No entanto, na região de Bafata, o responsável do Ministério Público testemunha ter colaboradores em todas as tabancas, através de telefones, o que culminou na apreensão de 54 crianças. Outra dificuldade da cumplicidade dos elementos


do Estado, segundo os mesmos entrevistados, são os Deputados que, por razões e estratégias a votos, aquisição e manutenção do poder, usam todas as suas influências para libertar os condenados. Isso em associação ao ritual de Djokeré-Endham liderados pelos chefes tradicionais. Em resposta a estas formas subtis de escamotear a lei, está-se a criar, em Bafata, no quadro da proteção das crianças, uma relação de cooperação e colaboração entre os mestres corânicos e o tribunal com objetivo de dar a conhecer uma melhor interpretação de algumas leis de defesa das crianças e, por outro lado, conhecer as normas e os valores de usos e costumes que regem princípios corânicos, de modo a facilitar o combate ao tráfico. ii) Parceiros envolvidos na defesa e proteção das crianças: entre a cooperação e conflitos A nível nacional existem várias instituições e estruturas de defesa e proteção das crianças, desde organizações dos Sistema das Nações Unidas, caso de UNICEF e OIM, as estruturas intermédias caso de AMIC, SOS Talibés, e outras estruturas de apoio como a Plan Internacional, SOS Aldeias das Crianças, IPHD, Casa Emanuel, FEC/Caritas, a Casa dos Direitos etc. Na primeira linha de capacidade de financiamento encontramos UNICEF, seguidos de Plan Internacional, SSI, IPHD, pontualmente a União Europeia, que apoiam estruturas intermedias como AMIC, ONG’s de referência na intervenção a nível nacional, SOS Talibés, Casa Emanuel, FEC/Caritas etc. Devido a dimensão do fenómeno a estratégia de combate do mesmo a nível nacional convida a cooperação com outras instituições, incluindo estatais. Disso o exemplo mais plausível de AMIC em Bafatá. Esta ONG implicou vários parceiros no

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terreno na luta contra o tráfico, caso de Hospital, da Polícia, do Ministério Público, através de centro de acesso a justiça, e da própria comunidade. Em cada sector criou-se um Comité de Gestão, e, em cada tabanca os Pontos Focais, através de telefonemas regulares se mantêm em contactos. As denúncias podem ser dirigidas a qualquer das instituições colaboradas que, por conseguinte, informam os animadores de AMIC como atores preliminares dos fatos, de modo a verificar a correlação do ato com as normas de proteção e consequente encaminhamento do processo para outras instâncias legais. O exemplo da estratégia cooperação vertical e horizontal, entre AMIC e instituições financiadoras bem como as congéneres de terreno permitiu uma boa relação de trabalho com a PLAN Guiné-Bissau, através de consultas de internet, preparação dos seus relatórios, trocas de informação sobre o tráfico. Todavia, esta colaboração já não pode estender-se a SOS crianças talibés de Bafatá, onde, apesar de testemunharem boas relações, não há trocas de sinergias laborais e nem informações sobre os casos de tráfico entre as duas instituições. A estratégia de extensão cooperativa é também notória em Gabu, entre as diferentes instituições e estruturas de proteção e defesa da criança. Para além da colaboração institucional entre animadores e os guardas nacionais transfronteiriços, as outras instituições como UNICEF apoia em motos, a OIM em senhas de combustível, o IPHD em géneros alimentícios. Contrariamente a rivalidade testemunhada em Bafata há uma relação sinergética com a SOS aldeia de crianças de Gabu que tem recebido algumas crianças retornadas em regime de internato. A par disso, a comunidade de forma geral e os Imames em particular têm ajudado a AMIC através de sensibilização nas suas mesquitas, dos aspetos negativos do tráfico. Ao contrário dos apoios e sinergias


de trabalho, as dificuldades testemunhadas pelos animadores têm a ver com os aspetos materiais de operacionalização, por outro lado, as ameaças que têm recebido devido as suas ações no terreno. Informação da responsável da AMIC na Região de Gabú sobre ameaças na luta contra o tráfico (Leste da Guiné-Bissau):

“Temos recebido várias ameaças de morte, por parte de certas pessoas, que nos consideram de intrusos e estar contra algumas normas tradicionais. Ameaçam, através de pequenos panfletos que nos colocam debaixo da porta, queimar as nossas casas, o nosso centro, o que nos faz temer um pouco, mas continuamos firme nesta luta de proteção da criança. É preciso que nos apoiem nessa luta. Apesar de tudo, temos boa colaboração com os guardas nacionais que controlam os postos fronteiriços e nos mantem informados sempre que interpelarem os presumíveis traficantes com crianças. Por razões de dificuldades, acontece que os próprios guardas em certos casos acompanham as crianças até aqui, a sede, e nós apenas compensamo-los com o combustível, quando não conseguem vir eles próprios pedem colaboração dos transportes públicos, onde apenas pagamos o transporte das crianças. O que não é fácil agora, porque não há dinheiro, os programas que apoiavam (através de IPHD e outros) já não existem”. A consciencialização do fenómeno de tráfico nas regiões de Bafata e Gabu permitiu a realização de um “Fórum de Concertação” sobre a proteção das crianças, onde participaram todos atores (ativos e passivos) na discussão de

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normas e procedimentos, tanto a nível jurídico como na interpretação de valores tradicionais de usos e costumes e consequente contradição entre as leis modernas e normas tradicionais. O grande desafio consiste em mobilizar meios financeiros para a materialização das recomendações do Fórum. Aliás, durante os trabalhos de terreno, as questões de dificuldades financeiras foram as mais testemunhadas pelos entrevistados. Algumas estruturas estão a viver dificuldades enormes, causando preocupações a nível das próprias organizações. Por exemplo, o centro de SOS crianças Talibés (de Bafatá) depara-se com grandes dificuldades, devido o fraco apoio das organizações de sistema de Nações Unidas (que dantes recebia); a PLAN Guiné tem tido dificuldades em financiar a operacionalização das recomendações do Fórum. No entanto é bom referir que são zonas de saída de crianças para o Senegal. Do lado contrário, zonas de entrada, de crianças vindas do Senegal, em setor de São Domingos, o trabalho de acolhimento de crianças retornadas é feito em base de pedidos pessoais dos animadores de AMIC, e da boa compreensão das outras estruturas envolvidas, caso da polícia de emigração e guardas transfronteiriças. Segundo um animador de AMIC, as organizações que apoiavam a proteção de direitos das crianças caso de UNICEF, UNIOGBIS, AMIC, PLAN Internacional entre outros já não têm financiamento, mesmo a ONG-SÓGUIBA que suportava temporariamente as crianças repatriadas e regressadas do Senegal, já não conseguem apoiar, o que tem dificultado a missão dos animadores e de outros intervenientes.


CONCLUSÃO

Nos últimos anos, têm sido notórios na Guiné-Bissau esforços em matéria dos direitos humanos. Não obstante, os desafios ainda imperam segundo os dados estatísticos. Segundo ILAP (2010) 23,6% dos que abandonaram os estudos testemunham que ensino é muito caro, 19,2% dizem que a escola não representa qualquer investimento no futuro das suas vidas, 21,6% desistem por causa de doenças e gravidez precoces, 8,2% consideram a desistência devido a distância. Por consequência das condições socioeconómicas e socioculturais 51,1% de crianças de 5-17 anos estão envolvidos em atividades de trabalho infantil, como estratégias de vivência pessoal e familiar, 7,1% de mulheres entre 15-49 anos confirmam terem sido casadas, pela primeira vez, antes dos 15 anos, 21,9% de crianças de 0-17 anos não vivem com nenhum dos pais, 82,4% de crianças de 4-17 anos testemunham ser alvos de agressões psicológicas e/ou castigo físico, no ultimo mês (MICS, 2014; LGDH, 2013). Posto isto, urge um projeto de defesa dos direitos das crianças que visa responder aos atuais desafios, através de promoção da participação cívica e práticas de diálogo inclusivo entre atores (públicos e privados) envolvidos no processo. O fenómeno de tráfico de criança ainda constitui um desafio por sua relação de interpretação estar ligada a questões de natureza cultural e económica. No entanto, os relatos testemunham que o rapto das crianças pode ter consequências e fins inesperados, desde a mendicidade, o abuso e exploração sexual, os trabalhos forçados, casamento forçado, casamento das catanderas (na etnia papel), tráfico de órgãos etc. A nova estratégia, Gammu, que relata a cumplicidade intrafamiliar na mobilidade transfronteiriça das crianças é

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disso o exemplo da sensível combate que atores de defesa das crianças enfrentam. A recorrência Djokoré-Endham, que é o concelho de anciões para resolução de conflitos, sobretudo na comunidade étnica dos Fulas, envolvimento de deputados e administradores nos processos judiciais têm constituído obstáculos na luta contra os crimes e criminosos que violam sistematicamente os direitos das crianças. Outras estratégias mais macabras e desumanas de transportar as crianças junto as fronteiras são conhecidas. Testemunha-se casos onde as crianças metidas debaixo dos assentos de passageiros, embrulhadas em sacos disfarçados de mercadorias ou de animais. Na zona leste, as fronteiras de Pirada, de Tchetche e de Buruntuma são as mais usadas para o tráfico de crianças. Isto, não pondo de parte a cumplicidade entre os presumíveis traficantes (destas zonas) e os guardas nacionais fronteiriços. A mesma estratégia é conhecida nas zonas sul do país, devido ao cerco dos guardas nacionais e animadores, a estratégia Gammu impera, sobretudo em fronteiras como a de Bunho, Cuntabane, N’ghadur, Candabel. Tendo em conta a dimensão do fenómeno, a pobreza, a questão da responsabilização das autoridades no combate ao tráfico constitui um dilema. Existe algum conflito, de imputação de responsabilidade, entre os diferentes atores envolvidos, sobretudo a fraca participação do Estado, através do Instituto de Mulher e Criança e da incapacidade do Ministério Público. Isto, apesar de uma evolução aceitável das leis e instâncias jurídicas de defesa e proteção da criança, todavia, não aplicadas e, por outro lado, a resistência cultural dos líderes tradicionais em aceitar todas as implicações do Protocolo de Palermo. As dificuldades financeiras em sustentar e dar perenidade aos projetos/programas são as mais testemunhadas, mas, também, há


falta de correlação das políticas e dos atores envolvidos, chegando a haver rivalidades entre os mesmos, pese embora, em certos casos testemunharem experiências satisfatórias de cooperação. A consciencialização do fenómeno de tráfico no país permitiu a realização de um Fórum de Concertação sobre a proteção das crianças, onde participaram todos atores (ativos e passivos) na discussão de normas e procedimentos, tanto a nível jurídico como na interpretação de valores tradicionais de usos e costumes e consequente contradição entre as leis modernas e usos e costumes tradicionais. Por exemplo, em Bafata, está-se a criar um quadro de relação de cooperação e colaboração entre os mestres corânicos e o tribunal com objetivo de dar a conhecer melhor interpretação de leis de defesa das crianças e, por outro lado, as normas e os valores tradicionais corânicos, de modo a facilitar o combate ao tráfico. O grande desafio consiste em mobilizar meios financeiros para materializar certas iniciativas e harmoniza-las a nível nacional através de uma política coerente de proteção social, que ainda teme em ser elaborada por parte do Estado.

RECOMENDAÇÕES ESTRATÉGICAS A) A NÍVEL DAS REDES AFRICANAS E DA SUB-REGIÃO

/ Os desafios do combate ao tráfico, testemunhados ao longo do trabalho de terreno, supõem uma organização desde a identificação da criança vítima, a condição socioeconómica dos seus familiares,

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seguimento e apoio ao desenvolvimento das capacidades socioecónomicas da família/familiares e da comunidade de pertença. Sobre isso, o trabalho desenvolvido pela Réseau Afrique de l’Ouest pour la Protection des Enfants, sobre as oito etapas do procedimento de responsabilidade standards a nível da sub-região na proteção e reintegração das crianças em situação de vulnerabilidade é um exemplo a implementar no país; / Devido a dimensão regional e transfronteiriça, deve-se trabalhar na implementação das recomendações de um modelo de ação transnacional de luta contra o tráfico dos seres humanos, em particular das crianças, na África Ocidental, baseado na cooperação entre os países e no trabalho social em rede. O Programa transnacional de prevenção, ajuda ao regresso, reinserção social e profissional de menores vítimas de tráfico de seres humanos e de migração de risco ao nível da África Ocidental, que surgiu em Novembro de 2005, é disso o exemplo, onde mais de 2000 crianças e jovens, dos quais 25% são da Guiné-Bissau, foram resgatadas das ruas e reinseridas no seio familiar, e seguidas de maneira personalizada no seu país de reinserção (de 2005 à 2010). As perspetivas devem considerar oportunidades de escolarização, de formação profissional, de desenvolvimento de atividades geradoras de rendimentos (caso da horticultura, criação de animais, transformação e conservação de produtos locais, etc.); / Sendo um fenómeno transnacional, a nível da sub-região, requer também uma abordagem transnacional e holística. Assim, estudos


atualizados e consequentes disseminações devem ser considerados em cada país mas através de considerações regionais, de modo a conhecer a realidade local e regional; / Algumas políticas e experiências de cooperação bilateral e multilateral devem ser desenvolvidas entre os países ligados pelas frontei ras de tráfico.

B) A NÍVEL DAS REDES NACIONAIS E LOCAIS

/ Implementar política de prevenção antecipada através de formação e reforço dos guardas nacionais nas fronteiras, incluindo a sensibilização aos novos deputados e aos novos responsáveis das administrações regionais e locais, sobre a lei de proteção das crianças e mulheres; / Permitir que o retorno, repatriamento e reintegração das crianças almudos sejam feitos com implicação dos antigos almudos e estruturas de proteção caso IMC, AMIC, SOS Talibés, Casa Emanuel, FEC/Cari tas etc., reforçando centros de acolhimento para as crianças vítimas de tráfico no que diz respeito aos padrões mínimos de assistência; / Criar um Comité Nacional de coordenação/concertação de mestres do ensino corânico/madrassa na Guiné-Bissau e, melhorar as condições de ensino corânico no país, através de criação de escolas integradas do ensino oficial e corânico nas diferentes regiões do país, onde se justifique, de forma a reduzir a taxa de envio de crianças para o estrangeiro; / Recolher documentos audiovisuais sobre a situação das crianças

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Talibés e das outras práticas nocivas e sua difusão através dos órgãos de comunicação social como meio de informação e sensibilização da população sobre as reais condições de vida das vítimas de modo a persuadir as famílias e as comunidades implicadas; / Criar em principais regiões afetadas (Leste e Sul do país) um Fórum de Concertação e promoção de encontro regulares entre ONG’s envolvidas no processo, os governadores e administradores setoriais, os representantes do Ministério Público, as representações religiosas e antigos alunos almudos, discutindo leis e realidade que implicam as deferentes formas e fins do tráfico de crianças e promover outras iniciativas de persuasão a prática do tráfico; / Envolvimento através de promoção de encontros de diferentes chefes religiosos e tradicionais (animistas) sobre a sensibilização e persuasão a algumas práticas e interpretações tradicionais nocivas a condição e vidas humanas, caso dos bebés feiticeiros, o casamento das “katanderas/torna liti” e outras práticas similares; / Envolvimento do Estado através de revisão de programas educativos (curricula) e participação na criação de condições as escolas corânicas, sensibilização e preparação da comunidade em geral, a partir de estudos mais aprofundados sobre outras formas e práticas socioculturais passiveis de tráficos de crianças.


BIBLIOGRAFIA ACEP (2013) Engenhos de Rua - Modelos de intervenção com crianças em situação de vulnerabilidade/exclusão em países da CPLP - Edição ACEP - Associação para a Cooperação Entre os Povos; AMIC (2011) Manual Básico dos Direitos da Criança - Edição: AMIC - Associação dos Amigos da Criança (Guiné-Bissau) com ACEP - Associação para a Cooperação Entre os Povos (Portugal); CNLTP (2014) Cartographie des écoles coraniques de la région de Dakar – Cellule Nationale de Lutte contre la Traite des Personnes - Ministère de la Justice - Primature Cellule d’Appui au MCA Sénégal, Dakar ; GDAL (2010) Étude sur le Confiage des Enfants en Guinée, Groupe Développement /Acting for Life (GDAL), Bissau ; IMC (2008) Relatório sobre a Aplicabilidade da Convenção de Direitos de Criança ma Guiné-Bissau – Instituto da Mulher e Criança (IMC) – Ministério da Solidariedade Social, Família e Luta contra a Pobreza, Bissau; LGDH (2013) Relatório Sobre a Situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau 2010-2012 - Revisão e paginação: ACEP, Edição: Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH); Medina, Laudolino C. (2013) Desafios, Direitos da Criança na Guiné-Bissau – Associação Amigo das Crianças (AMIC), Casa dos Direitos, Bissau; MICS (2014) Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS-5) - Ministério da Economia e Finanças, Instituto Nacional de Estatística (INE), Bissau.

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OIT (2014) Estudo Sobre Trabalho Infantil Doméstico em Bissau -Programa Internacional para Abolição do Trabalho Infantil - Organização Internacional de Trabalho (OIT), Bissau. Plan Internacional (2006) Estudo sobre escolas corânicas, Madrasta e Crianças Talibé, Bissau - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), PLAN Internacional, Bissau. RAO (2011) «Procédure de prise en charge et Standards régionaux ouest-africains pour la protection et la réintégration des enfants en situation de vulnérabilité (inclus enfants en déplacement et jeunes migrants » - Réseau Afrique de l’Ouest pour la protection des enfants (RAO) Réseau Afrique de l’Ouest pour la protection des enfants (RAO), Accra, Ghana ; UNICEF (2006) Abuso e a Exploração Sexual de Menores na Guiné-Bissau, Fundo da Nações Unidas para Educação e Infância (UNICEF), Bissau; UNICEF (2009) Tráfico de crianças na Guiné-Bissau: um estudo exploratório-, Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), Bissau.


ACRÓNIMOS ACEP

Associação para a Cooperação Entre os Povos

AMIC

Associação Amigos da Criança

ANP

Assembleia Nacional Popular

CC

Código Civil

CDC

Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança

CNLTP

Cellule Nationale de Lutte contre la Traite des Personnes

DENARP

Documento Estratégico para a Redução da Pobreza

GDAL

Groupe Développement /Acting for Life

ILAP

Inquérito Ligeiro para a Avaliação da Pobreza

ILO

Internacional Labour Organisation

IMC

Instituto da Mulher e Criança

INEC

Instituto Nacional de Estudos e Censo

INEP

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa

IPHD

International Partnership for Human Development

LGDH

Liga Guineense dos Direitos Humanos

MGF

Mutilação Genital Feminino

MICS

Indicadores Múltiplos para as Células de Seguimento

OCV

Órfãos e Crianças Vulneráveis

OIT

Organização Internacional do Trabalho

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ONG

Organização Não Governamental

ONU

Organização das Nações Unidas

RAO

Réseau Afrique de l’Ouest pour la protection des enfants

SAB

Setor Autónimo de Bissau

SSI

Fundação Suíça do Serviço Social Internacional

UNICEF

Fundo das Nações Unidas para Infância

UNIOGBIS

United Nations Integrated Peace-Building Office in Guinea-Bissau


ANEXOS DEFINIÇÕES E CONVENÇÕES SOBRE TRÁFICO DE CRIANÇAS Abuso mau uso; uso demasiado; exorbitância de atribuições; ultraje ao pudor; (Do lat. abösu, «utilização demasiada de uma coisa»). Abuso sexual ato de relação sexual por determinantes do uso do poder ou força. Abuso sexual doméstico ato de relação sexual por determinantes do uso do poder ou força que ocorre normalmente no seio da família e/ou comunidade. Abuso sexual extrafamiliar ato de relação sexual por determinantes do uso do poder ou força que ocorre normalmente fora do seio/ meio familiar e/ou comunitária. Abuso sexual incestuoso ato de relação sexual por determi-

nantes do uso do poder ou força que ocorre entre indivíduos da mesma linhagem consanguínea. Abuso sexual verbal ato de uso de palavras ofensivas e nocivas devido a determinantes do uso do poder ou força entre indivíduos de diferentes sexos. Adolescência fase de crescimento até aos 12 ou 14 anos de vida. Período de crescimento que se situa entre o fim da puberdade e a independência social completa. Agregado Familiar Grupo de pessoas ligadas ou não por laços de parentesco que habitualmente vivem na mesma casa. Agressão consiste em um indivíduo atacar (fisicamente ou verbalmente) outrem para fins próprios. Há prazer de agredir. Juntamente com destruição, o prazer de destruir, a agressão provém, segundo os psicanalistas, dum instinto que

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reage contra os instintos de conservação da vida, as que se confunde com eles nas diversas situações. Agressão física quando é de natureza e aplicação do corpo, do físico. Agressão sexual consiste em um indivíduo atacar (fisicamente ou verbalmente) outrem para fins próprios, divido a diferenciação de força ou género. Aliciamento consiste em tentativa de atracão de um indivíduo a outrem com falsas promessas. Almudus Alunos (crianças) entregues normalmente aos Marabus (mestre) para efeito de aprendizagem do alcorão. Ameaça é anunciar a outrem, com o intuito de lhe incutir receio, terror, insegurança, que lhe vai ser causado qualquer mal; manifestar a intenção de produzir um

mal que, além de injusto, constitui crime; intimidar; pôr em perigo. Assédio sexual conjunto de operações que visam a conquista do outrem para fins sexuais. Captura ato ou efeito de captura, rapto; acontece normalmente na exploração de menores. Cárcere privado cadeia, ou quando o raptado está ao belo prazer do raptor. Casamento precoce união matrimonial que acontece em várias tradições asiáticas e africanas entre menores e adultos. Chantagem são coações sob ameaças, obrigando outrem a revelar ou esconder algo, ou informações. Coação ato de coagir; imposição a outrem; constrangimento que se impõe a alguém para que faça, deixe de fazer


ou permita que se faça alguma coisa contra o seu consentimento. Comércio sexual quando se refere a troca e venda de indivíduos em atividades sexuais. Comunicação perversa é uma anti comunicação, um monólogo que tem por objetivo ocultar, confundir, amedrontar, manter o poder, através de não-ditos, silêncios, reticências, subentendidos. Confiage forma de confiar uma criança a outrem (familiar, amigo, próximo) com finalidade desta receber melhor educação, ou ter melhor oportunidade de vida. Ver: Mininu di kriaçon. Criança Talibé Criança confiada a Marabus para efeitos de aprendizagem do alcorão. Desfloração a perda da virgindade, portanto, o ato de rasgar o hímen, normalmente no ato da primeira relação sexual.

Desnutrição Estado de consumo insuficiente de alimentos. Desnutrição Crónica Estado de privação absoluta de alimento. Djokeré-Endham Forma de mediação de conflito no quadro do poder tradicional da sociedade Fula (solidariedade e ajuda mutua). Direitos conjuntos de normas de proteção e defesa dos indivíduos instituídos legislativamente. Dominação quando uma força ou poder é exercido sobre outro; é uma relação que acontece entre o abusador (adulto) e o abusado (menor). Criança Qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade.

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Estupro Representa atentado contra a virgindade da mulher; desfloração; violação; coito forçado.

corão e professam a fé. Hoje em dia, devido a sua importância, qualquer muçulmano almeja assistir e contribuir algo neste tipo cerimónia.

Excisão consiste na corte ou ablação parcial ou total dos lábios dos órgãos genitais femininos.

Gerontofilia inclinação excessiva de adultos a pessoas mais novas para relações amorosas e/ou sexuais.

Exploração Todas as formas desumanas de trabalho forçado, sexuais, escravidão, servidão, remoção de órgãos etc.

Gozo sexual é o prazer que advém depois de um ato ou contacto sexual.

Exploração sexual atividade económica referente a venda de indivíduos para fins de atos ou relacionamento sexual. Fanado consiste no corte de prepúcio ou da parte genital feminina, praticado por diferentes grupos étnicos como passagem da fase jovem para adulta. Gammu é uma grande concentração dos muçulmanos, onde fazem leitura de al-

Identificação É o processo de obtenção através de serviços competentes de informações sobre o estatuto civil, nacionalidade e situação de tráfico da vítima, a fim de facilitar o repatriamento e/ou reintegração da mesma. Incesto designação depreciativa e pouco objetiva para as relações sexuais proibidas entre parentes próximos, sobretudo entre pai e filha, mãe e filho ou irmão e irmã. Pode também estender-se a outra linhagem consanguínea.


Indústria pornográfica atividade económica referente as instituições de publicidade pornográfica e consequente venda de indivíduos envolvidos na exploração sexual.

Mercadoria são objetos de compra e venda; no caso do turismo infantil, os menores raptados, são considerados de mercadoria na transação.

Iniciação começo da relação sexual por parte dos adolescentes.

Mininu di Kriaçon ver confiage.

Levirato costume, pelo qual a viúva é “herdada” pelo irmão do falecido marido. Maus-tratos uma das componentes de abuso sexual ou violação de direitos de outrem. Marabu Mestre de alcorão, que normalmente recebe um conjunto de almadus (alunos) para ensinamento. Menarca É o início da masturbação na puberdade. Ou primeira menstruação das raparigas.

Mutilação Genital consiste na ablação parcial ou total dos lábios genitais femininos; é também considerado de práticas nefastas. Pacto de silêncio quando o agressor ou violador, por razões convence o violado a não testemunhador a violação. País de origem País originária da vítima de tráfico, ou no qual a mesma possuí residência permanente no momento da sua entrada no país de destino. País de destino País no qual a vítima de tráfico foi identificada e resgatada.

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País de trânsito País através do qual a vítima do tráfico passa a caminho do seu destino final.

Perversão sexual é a atuação do impulso sexual com determinado objeto e fins que foram socialmente proibidos.

Parafilia sexual representa expressão de fantasias, desejos e impulsos sexuais incontroláveis e compulsivos de quem é passível de violar sexualmente uma vítima, no ato o violador impõe seus desejos à vítima, podendo causar danos psicológicos e físicos.

Poliandria uma mulher que tem ao mesmo tempo vários esposos.

Patriarcado é uma forma de organização familiar em que a autoridade é reconhecida e atribuída ao chefe de família, geralmente o pai mais velho do grupo familiar.

Poligenia prática de casamento ou de união onde um homem que tem (vive) ao mesmo tempo com várias mulheres.

Pedofilia atração sexual mórbida do adulto pelas crianças. Pedófilo individuo (adulto) que prática a pedofilia.

Poligamia é um modo de união matrimonial em que uma pessoa de um dos dois sexos está unida com várias pessoas do sexo oposto.

Pornografia arte ou literatura que tem por assunto atos obscenos; devassidão. Práticas sexuais qualquer que seja comportamento que envolve relacionamento sexual.


Procriação ato de reprodução sexual. Promiscuidade troca frequente de parceiro sexual. Prostituição entrega sexual a estranhos contra o pagamento. Prostituição de hospitalidade partilha do parceiro ou parceira com pessoas hospedes. Prostituição infanto-juvenil entrega sexual de indivíduos com a idade ainda de menores a estranhos contra o pagamento. Prostituto(a) individuo que prática atos de prostituição. Pode ser por ou sem vontade própria. Rapto ato ou efeito de raptar alguém, seja por sedução seja por violência. Repatriamento É um processo que consiste em garan-

tir o retorno de uma ou várias vítimas de tráfico ao país de origem e, no caso de crianças, só deve ser feito no melhor interesse da vítima e tendo em conta a sua opinião. Compreende-se na identificação o fornecimento de cuidados de base, alojamento, cuidados médicos, alimentação, apoio psíquico-social e transporte para o país de origem. Reabilitação Conjunto de ações visando permitir à vítima de tráfico a recuperação da sua dignidade ou do seu estatuto social como um ser humano. Recrutamento enganador Quando acontece uma aparente vontade própria da criança (vítima) devido a falsas promessas de uma vida melhor no país de destino. Rede conjuntos de indivíduos e instituições que trabalham em sintonia para fins comuns (seja para bons e maus ofícios).

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Reintegração Processo através do qual a vítima de tráfico é levada de volta e reinstalada no seu contexto social e cultural.

Segredo familiar quando uma informação é contida dentro do perímetro familiar, evitando a sua fuga.

Reinserção Processo que visa trazer de volta e readaptar a vítima ao seu meio social, cultural e familiar.

Sororacia Ver Sororato.

Relação sexual é a relação exercida entre dois indivíduos onde há contactos corporais com satisfação sexual. Relação sexual forçada quando a relação estabelecida entre dois indivíduos com contactos corporais e com finalidade de satisfação sexual não é de consentimento de as partes. Repressão Ação adotada para levar a julgamento e punir os perpetradores e os seus cúmplices.

Sororato Sistema de casamento onde a irmã da falecida é obrigada a casar com o marido (viúvo) da irmã falecida. Subordinação ato de pôr sob dependência; quando se está em condições de se sujeitar. Surto de crescimento adolescente aumento acentuado em altura e peso que precede a maturação. Tabanca conjunto de habitação de determinados familiares. Tabu tem um significado de proibido.


Tabu sexual proibição de comunicação e/ou informação de certas práticas sexuais. Talibé Talib ou Talibé significa procurar (na língua árabe). Para os Mandingas de Bidjine, “Talbo” é a pessoa que desloca de um local para outro a fim de aprender o Alcorão, sobretudo crianças e jovens, seja da mesma tabanca ou fora dela. Talibé no meio rural São aqueles que vivem no campo ou meio rural, garantindo a sobrevivência com o seu próprio trabalho, no campo, sobretudo na agricultura e outras atividades socioeconómicas. Talibé no meio urbano São aqueles que vivem dependentes dos peditórios que realizam nas ruas das cidades onde (não) estudam. Trabalho assalariado ver trabalho formal.

Trabalho doméstico todo tipo de atividade que se desenvolve no seio das atividades familiares e domésticas, sem contrapartidas remunerativas. Trabalho escravo consiste numa atividade desenvolvida por um indivíduo sem que tenha em contrapartida a divida remuneração. Trabalho informal é todo tipo de atividade que se desenvolve sem que houvesse necessidade contratual – é em muito confundido com o trabalho doméstico. Tráfico consiste no rapto de um indivíduo sem o seu consentimento. Tráfico de pessoas Recrutamento através de transporte, transferência, alojamento ou outro, a partir de meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de sequestro, de fraude, de deceção, de abuso de poder ou de uma posição

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de vulnerabilidade ou de efetuar e receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que possui o controlo sobre uma outra pessoa.

Violação sexual é uma ação de força empregada contra o direito natural de outrem, e ordem sexual relacionada a comportamento libido.

Tráfico de crianças Recrutamento de crianças (pessoas com menos de 17 anos) através de transporte, transferência, alojamento ou receção, para fins de exploração.

Violência força empregada contra o direito natural de outrem.

Trauma Na psicologia das profundidades, significa um choque psíquico que deixa atrás de si uma ferida. Em muitos casos de evoluções sexuais erradas surge como causa uma experiência infantil traumatizante. Turismo sexual tem a ver com a exploração sexual, ou venda de indivíduos para fins de atos sexuais. Violação de direito é uma ação de força empregada contra o direito natural de outrem.

Violência sexual força empregada contra o direito natural de outrem com intuito de proveitos sexuais. Virgindade qualidade do que é virgem; testemunha de uma mulher ou menina que ainda tem o hímen. Vítima pessoa sacrificada ou maltratada a paixões de outrem; individuo ludibriado. Vitimização sexual doméstica quando ocorre um ato sexual contínuo no seio de uma família.


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PROTOCOLO DE PALERMO Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do tráfico de pessoas, particularmente das mulheres e crianças. Artigo 2.º (Objeto) a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma especial atenção às mulheres e às crianças; b) Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos; c) Promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir estes objetivos. Artigo 3.º - Definições a) Por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo, deverá ser considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a).


TRÁFICO DE PESSOAS, EM PARTICULAR DAS CRIANÇAS: QUADRO LEGAL - BREVE HISTORIAL:

/ 1926 Convenção relativa a escravatura

/ 1949 Convenção para a supressão do tráfico das pessoas e exploração da prostituição pelo outrem;

/ 1954 Convenção suplementar relativa a abolição da escravatura, instituições e práticas relativas a escravatura; / 1979 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação em relação as mulheres.

Quadro legal nacional:

/ (CRGB – art 24 e 37.1.2.3, CP, CC, lei nº12/2011 etc.)

Direitos da criança:

/ 1973: Convenção da OIT sobre a idade mínima de admissão ao emprego;

/ 1989: Convenção das NU relativa aos Direitos da Criança (e os seus protocolos facultativos concernente a venda da criança, a prostituição e pornografia das crianças/concernente a implicação das crianças em conflitos armados); / 1990: Carta Africana dos Direitos e Bem - Estar da Criança; / 1999: Convenção da OIT sobre as piores formas do trabalho das crianças.

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Neste âmbito a Guiné-Bissau assumiu vários compromissos internacionais não só com os instrumentos acima mencionados mas também com:

/ Os Protocolos Facultativos sobre a CDC que especificam tipos de proteção de menores; / A Convenção 182 da Organização Internacional de trabalho (OIT) sobre a interdição das piores formas de trabalho de crianças;

/ A Carta africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança (1990); / A posição comum Africana, “ uma África digna para as Crianças, como contribuição do continente para a Sessão especial das Nações Unidas (2001);

/ A Sessão Especial das Nações Unidas sobre a Infância (2002).

As principais etapas que marcaram os compromissos assumidos pela Guiné-Bissau são: Em 1987:

/ Foi criado pelo Governo sob tutela da Secretaria de Estado do Plano, o Comité Interministerial para a Proteção da Infância (CIPI), coordenado pelo Diretor Geral do Plano, alargado a uma ONG que se ocupa da infância a Associação dos Amigos das Crianças (AMIC).

Em 1990:

/ O Conselho de Estado da Republica da Guiné-Bissau ratificou a


Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança através da resolução 20/90 de 18 de Abril do ano1990, visando o estabelecimento de novos princípios éticos, normas e comportamentais de todos os cidadãos em relação as crianças;

/ Criada a Comissão Nacional para a Infância (CNI) e o CIPI foi transformado no seu Comité Técnico;

/ A Guiné-Bissau participou ao mais alto nível na Cimeira Mundial sobre a infância, em Nova Iorque. Esta Cimeira reuniu cerca de 60 Chefes de Estados para discutirem as ações prioritárias a empreender com vista a melhoria da situação da criança até o ano 2000.

Em 1992:

/ A Guiné-Bissau, sob a coordenação da Comissão Nacional para a Infância, elaborou e adotou o Plano Nacional de Ação sobre a infância. Este Plano foi implementado.

Em 1996:

/ O Parlamento Nacional Infantil foi assumido pela Assembleia Nacional Popular, passando o seu funcionamento a estar integrado no seu orçamento geral.

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Em 1997:

/ A Guiné-Bissau iniciou a preparação do relatório Inicial sobre a implementação da CDC no Pais. Este processo foi interrompido pelo conflito político militar de 1998/99.

Em 2000:

/ Foram criados o Instituto da Mulher e Criança e o Ministério de Solidariedade Social Família e Luta Contra a Pobreza;

/ O Relatório Inicial sobre a implementação da CDC foi finalizado e enviado ao Comité dos Direitos da Criança em Genebra;

/ A campanha «diga sim as crianças» foi realizada na Guiné-Bissau. Entre os 10 pontos imperativos em votação em todos os Países do Mundo, as crianças Guineenses identificaram 3 grandes prioridades: 1. Garantir a saúde a cada criança (Lutar contra o paludismo e VIH/ SIDA); 2. Pôr a criança em primeiro lugar (Criança prioridade absoluta); 3. Não deixar nenhuma criança de fora (não descriminar nenhuma criança).

Em 2001:

/ Paralelamente ao Relatório Inicial do Governo, um grupo das ONG que trabalha no domínio da infância na Guiné-Bissau elaborou em 2001 um relatório alternativo. Este relatório foi também apresentado ao Comité dos Direitos da Criança em Genebra;


/ Ao convite da OUA, do UNICEF e do Egipto como Pais anfitrião, as Primeiras Damas Africanas, os Governos africanos e as ONG do Continente, reuniram no Cairo de 28-31 de Maio, num Fórum Pan-Africano sobre o Futuro da Criança. Neste fórum foram adotadas uma Declaração e Plano de Ação intitulado “ Posição Comum Africana, Como Contribuição para a Assembleia-geral das Nações Unidas Sobre as Crianças”. O referido documento contempla metas e orientações claras a atingir pelos Estados partes no domínio da melhoria das oportunidades de vida das crianças africanas, VIH/ SIDA, realização do Direito a Educação, realização do Direito a proteção, ações a todos os níveis, parceria internacional e sólida a favor das crianças Africanas e ações de acompanhamento e monitorização. A Guiné-Bissau esteve representada a todos os níveis requeridos no referido fórum;

/ Campanha Nacional de Registo Civil das Crianças organizada pelo Governo e com o apoio do UNICEF e ONG.

Em 2002:

/ O Governo da Guiné-Bissau apresentou e defendeu em Genebra o Relatório Inicial sobre a implementação da CDC no Pais. As recomendações do Comité dos Direitos da Criança foram essencialmente em relação a continuação do processo da harmonização da legislação nacional com a CDC e a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação em relação as mulheres;

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/ A Guiné-Bissau participou ao mais alto nível na Sessão Especial das Nações Unidas sobre a Infância. Esta Sessão Especial permitiu a revisão dos progressos realizados depois da Cimeira Mundial sobre a Infância de 1990 e adoção de um documento «um mundo digno para as crianças» – que apresenta uma Declaração e um Plano de Ação definindo os compromissos e medidas a tomar a favor das crianças nos próximos 10 anos. A referida agenda politica para o futuro aborda 4 prioridades fundamentais: 1. Promover vidas saudáveis ; 2. Oferecer uma Educação de qualidade para todos ; 3. Proteger as crianças contra os abusos, a exploração e a violência; 4. Combater o VIH/SIDA.

Em 2003:

/ As ONG Africanas reunidas em Bamako (Mali), numa Assembleia-geral Constituinte, criaram a Coligação das ONG Africanas a favor das Crianças, cujo principal objetivo consiste em criar sinergias no continente de molde a proporcionar melhores condições de vida a criança africana baseando na sua própria identidade cultural;

/ O Ministério do Plano, o Instituto da Mulher e Criança e algumas ONG’s iniciaram a elaboração do Plano Nacional da Ação para a Infância e Adolescência. O referido Plano visa garantir a implementação dos compromissos internacionais assumidos pelo nosso País no domínio da infância, nomeadamente, os instrumentos adotados no fórum do Cairo sobre o futuro da criança Africana e na


Sessão Especial das Nações Unidas Sobre a Infância nos Domínios da Saúde VIH/Sida, Educação e Proteção.

Em 2004:

/ A AMIC (Associação dos Amigos das Crianças), o Parlamento infantil, IMC (Instituto da Mulher e da Criança) e o UNICEF propuseram aos Partidos Políticos uma agenda política para as crianças Guineenses. Esta agenda foi assinada por todos os partidos políticos que se candidataram as eleições legislativas.

Em 2005:

/ Inspirando na agenda politica, as mesmas estruturas, nomeadamente AMIC, Parlamento infantil, IMC e UNICEF propuseram aos candidatos as Eleições Presidenciais uma agenda sob forma de compromissos a respeitar para a melhoria da situação da infância na Guiné-Bissau. Esta agenda Presidencial foi assinada principalmente pelos 2 candidatos que disputaram a segunda volta das eleições Presidenciais.

Em 2006:

/ Reunião dos Ministros dos Assuntos Sociais da África Central e Ocidental em Abuja, Nigéria que resultou na assinatura de um “Acordo de Cooperação Multilateral de luta contra o tráfico de Pessoas, em

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particular de Mulheres e Crianças na África Central e Ocidental;

/ Elaborado o MICS 3 (Inquérito aos Indicadores Múltiplos) pelo Ministério da Economia e Plano com o apoio do UNICEF;

/ Elaborado o Relatório de Desenvolvimento Humano na Guiné-Bissau pelo Ministério da Economia e Plano com o apoio do PNUD

Em 2007:

/ As ONG da sub-região estiveram reunidas de 6 a 8 de Novembro de 2007 em Ouagadougou num ateliê para avaliar o estado da implementação das recomendações e das observações finais do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas mormente a implementação CDC.

Em 2008:

/ Criação do Comité Nacional para a Prevenção e Luta Contra o Tráfico dos Seres Humanos sob a coordenação do IMC (Instituto da Mulher e Criança);

/ Conferência do Rio sobre o abuso e exploração sexual dos menores; / O Governo elabora e valida o seu segundo “Relatório do País Sobre o Seguimento e Implementação da Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança sem a participação das ONG; / Elaboração do Manifesto do Parlamento Nacional Infantil com o apoio do UNICEF e que reflete três áreas prioritárias da infância no


país: Saúde, Educação e Proteção;

/ Assinatura do Protocolo de Acordo da TOSTAN com o Governo da Guiné-Bissau para a Promoção dos Direitos Humanos, Higiene e Saúde, Melhoramento do Estatuto da Mulher e da Criança e da Luta Contra a Pobreza;

/ Apresentação do Relatório ADC sobre a Violação dos Direitos da Criança na Guiné-Bissau.

Em 2009:

/ O Grupo das ONG que Trabalha no Domínio da Infância começaram o processo para a elaboração do presente “Relatório Alternativo das ONG Sobre a Implementação da Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança na Guiné-Bissau”;

/ O Governo com apoio do UNICEF realiza a “Consulta Nacional Sobre os Registos de Nascimentos”;

/ Elaboração e validação de um estudo “Análise da Situação das Crianças Órfãs e Vulneráveis na Guiné-Bissau – Elementos para uma Estratégia Nacional de Proteção Social para Órfãos e Crianças Vulneráveis – Ministério da Mulher, Família, Coesão Social e Luta Contra a Pobreza;

/ O IMC com apoio do UNICEF e com a participação dos parceiros chaves no domínio da infância, realizou e validou um estudo sobre abusos e exploração sexual de menores na Guiné-Bissau.

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Em 2010:

/ Sob a coordenação do Instituto da Mulher e criança, os parceiros chaves no domínio da infância elaboram um plano de ação para o combate de abusos e exploração sexual de menores.

/ As instituições estatais e não estatais que trabalham no domínio da infância na Guiné-Bissau, nomeadamente o Instituto da mulher e criança, a AMIC, o Unicef e a Plan Guiné-Bissau celebram o 20.º aniversário da ratificação da Convenção das Nações Unidas relativa aos direitos da Criança pelo estado da Guiné-Bissau.

/ O IMC com apoio do UNICEF e com a participação dos parceiros chaves no domínio da infância, realizou e validou um estudo sobre o tráfico dos seres humanos na Guiné-Bissau, particularmente das crianças.

/ Foi disseminado ao nível de todas as províncias do País o presente relatório alternativo sobre a aplicabilidade da CDC na Guiné-Bissau pelo grupo das ONG que trabalham no domínio da infância.

Em 2011:

/ O Grupo das ONG que Trabalham no Domínio da Infância validam definitivamente o presente Relatório Alternativo das ONG sobre a Implementação da Convenção dos Direitos da Criança na Guiné-Bissau.


Áreas em onde não existe legislação adequada e se justifica debater eventuais propostas de leis:

/ Lei contra casamento forçado ou precoce e eventual revisão da lei existente de forma a criminalizar as práticas nefastas; / Lei sobre mendicidade forçada de menores;

/ Novo código da assistência jurisdicional da criança;

/ Regulamento Geral de Prisões;

/ Normas de proteção para pessoas em conflito com a lei;

Áreas mais importantes em que estão por ratificar instrumentos internacionais:

/ Convenção da OIT sobre trabalho doméstico (2013);

/ Protocolo da UA sobre o Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos;

/ Convenção das NU sobre desaparecimento forcado;

/ 3º Protocolo facultativo à Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança;

/ Convenção das NU sobre desaparecimento forçado;

/ Estatuto de Roma sobre o Tribunal Penal Internacional.

Áreas mais importantes em que os instrumentos internacionais devem ser traduzidos em leis nacionais:

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/ Lei de proteção dos defensores dos Direitos Humanos;

/ Convenções da OIT sobre a idade mínima de admissão ao emprego e sobre as piores formas do trabalho infantil;

/ Harmonização e reforço da legislação nacional com a Convenção relativa aos Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança.

Elaboração de propostas para a definição ou revisão de cartas de políticas sectoriais nos seguintes domínios:

/ Política Nacional sobre Direitos Humanos;

/ Política e Plano nacional de ação no domínio da infância;

/ Elaboração de estratégia nacional para o combate à impunidade;

/ Estratégia nacional para a igualdade de género;

/ Nas áreas que vierem a ser selecionadas para a elaboração de propostas político-legislativas será realizado um trabalho de recolha de contributos de diversas partes interessadas e contar-se-á com uma acessória jurídica sob a forma de prestação de serviços.


QUADRO LEGAL DOS DIREITOS HUMANOS Yasmine Cabral

INTRODUÇÃO

A Guiné-Bissau é um país multi-étnico onde coexistem num espaço equivalente a 36.125 km2 mais de duas dezenas de étnias, sendo os mais populosos são o Balanta 30%, o Fula, 20% o Manjaco 14%, O mandinga 13% e o papel 7%. Outros grupos que representam 16 % são Biafada, o Mancanha, o Bidyogo, o Ejamat, o Mansoanka, o Bainnoukgunyuno, o Nalu, o Soninke, o Badjara, o Bayote, o Kobiana, o Cassanga e o Basary. Esta antiga colonia portuguesa de África ocidental ascendeu à independencia através de um processo revolucionário de guerra de libertaçao que durou pouco mais de 11 anos, tendo terminado com a proclamaçao da independência em 1973. Nesta ordem de ideia, o Estado da Guiné-Bissau assume solenemente ser um Estado fundado nos valores da dignidde da pessoa humana e reconhece expressamente pela Constituição da República que as normas internacionais no dominio dos direitos humanos fazem parte do direito interno. De igual modo, a Lei Magna confere a natureza constituicional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos como está consignado no seu Art. 29º. Com a evolução da visão do Estado e na sequência das revisões constitucionais que tiveram lugar no início dos anos 90, o país entrou numa nova éra de aber-

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Relatório de PNUD sobre o índice do Desenvolvimento Humanos - 2014

tura politica, durante a qual, muitas reformas a favor dos direitos humaos foram imprimidas na Constituição. Este cenário motivou uma série de ratificações dos instrumentos internacionais em direitos humanos, incluindo os relacionados com os direitos das mulheres e crianças. Este processo de adesão aos instrumentos internacionais em direitos humanos ganhou maior importância, após a primeira avaliação da Guiné-Bissau em 2009 pelo Conselho de Dirietos Humanos da ONU, no quadro de Exame Periódico Universal dos Direitos Humanos. Volvidos quase 42 anos sobre a data da sua independência, a Guiné-Bissau continua a enfrentar problemas de estabilização, da consolidação de democracia e de Estado de Direito, os quais, se transformaram num desafio enorme e fundamental para a afirmação das autoridades de estado e para a concretizaçao dos seus compromissos nacionais e internacionais. Entres os quais, se destacam a obrigação de promover e proteger os direitos humanos, enquanto tarefa principal do estado e vertor axiológico da sua existência. Em consquência, a Guiné-Bissau de acordo com o relatório do PNUD1 ocupa o lugar 177 em termos de índice de desenvolvimento num universo de 187. O país caiu quatro posições de 2008-2013, com o Índice de Desenvolvimento Humano de 0,396. Este indicador espelha em parte a situação geral e estrutural do país que muitos analistas qualificam de ser provocado, em parte pelo desfuncionamento do sistema juriciário, marcado pela impunidade generalizada e limitado acesso à justiça. É neste contexto que o presente diagnóstico a par de uma abordagem formal da problemática do quadro normativo nos dominios de direitos económicos das mulheres, tráfico de criança e violência contra as mulheres na Guiné-Bissau procura avaliar e encontrar respostas sobre os desafios ligados à efectivaçao e à concretização dos instrumentos relativos aos direitos humanos.


VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

A violência enquanto acto que atenta contra a intergridade física e moral dos cidadãos, seja de que natureza for, é expressamente proibida no ordenamento jurídico guineense como reza o art. 37° n. 1 da Constituição da República. Quando a violência recai especificamente nos individuos de sexo feminino deixa transparecer a carga histórica de uma sociedade marcada pela discriminação com base no género e onde os males que afectam as mulheres são justificados pelos argumentos preconceituosos e/ou sustentados pelos estereótipos que contradizem com o princípio de igualdade previsto nos artigos 24º e 25º, ambos da Constituição, enquanto principio estruturante do sistema jurídico vigente na Guiné-Bissau. Este fenómino de discriminação é complexo e transversal porque tem reflexo em toda esfera da vida. A violência contra a mulher representa apenas uma das manifestações da discriminação com base no género que também comporta várias categorias, nomeadamente mutilação genital femínina, violência doméstica, casamento forçado e casamento precoce, os quais pelo grau da sua manifestação e nível de frequência na Guiné-Bissau constubstanciam nos principais objectos deste diagnóstico. A Declaração Universal dos Direitos Humanos absorvida como parte integrante do Direito Guineense pelo Art. 29° da Constituição consagra no seu Art. 1º que “ Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com outros em espírito de fraternidade”. Ainda a Declaração Universal que serve de principal instrumento de referência

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para as constituições e sistemas jurídicos a nível mundial estabelece no Art. 7º que “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. No mesmo diapasão o Art 26º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Politicos determina que “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação, a igual protecção da lei. A este respeito, a lei deve proibir todas as discriminações e garantir a todas as pessoas protecção igual e eficaz contra toda a espécie de discriminação…”. Todos estes instrumentos acima mencionados têm como denominador comum, a promoção de igualdade efectiva entre homens e mulheres em toda os dominios da vida, economica, social, politica, jurídica e cultural. Este desafio é comum a todos os estados modernos, com as únicas diferenças que residem no grau de avanço e na concretização das normas e medidas especificas que devem ser adoptadas em função das particularidades de cada sociedade. Perante este cenário, existem várias medidas, políticas e normas internacionais, das quais, se destaca a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução 48/104, de 20 de Dezembro de 1993. Esta Deliberação da instância máxima em termos de regulamentação do direito internacional, define a violência contra a mulher como “qualquer acto de violência baseada no género que resulta, ou que provavelmente resultará em dano físico, sexual, emocional ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaça a tais actos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou privada”. Esta definição tem como hépicentro ou núcleo de aferição, dois elementos fundamentais:


A finalidade de violência: i.e. quando a violência é derigida contra o individuo do sexo femino só por causa desta sua qualidade biológica; As consequências do acto: danos, sofrimento ou privação de liberdade; Este conceito tem expressão na Guiné-Bissau à semelhança dos vários outros países no mundo, embora as suas manifestações apresentem algumas particularidades intrínsicas à organização social, à religião e às práticas culturais nomeadamente. / A Mutilação genital feminina / Excisão feminina; / A Violência doméstica; / O Casamento Forçado e, / O Casamento Precoce

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A) MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA / EXCISÃO FEMININA A mutilação genital feminina é uma prática muito comum e enraizada nas manifestações culturais de muitos países do sul do sará, em particular das étnias ou tribos islamizadas. Segundo o MICS2, as vítimas desta prática representam uma média de 49% das mulheres na Guiné-Bissau devido à sua forte conotação com as práticas religiosas. Aliás, os defensores desta prática sustentam os seus argumentos nos princípios e na tradição islâmica. Todavia a tese de fundamento islâmico foi perdendo sustentabilidade ao longo do tempo, sobretudo depois de uma conferência organizada para o efeito no Egipto, em que os principais professores e sábios muçulmanos de todo mundo reunidos, entre os dias 22 e 23 de Novembro de 2006, deliberaram unanimente que a mutilação genital feminina não tem qualquer ligação com o islão. De acordo com um do participantes desta conferência, Prof. Dr. Abdallah Rabi

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Inquérito sobre Indicadores Múltiplos


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Abdallah, Professor Assistente de Jurisprudência Islâmica no Egipto, “qualquer forma de mutilação representa um dano para a mulher, isto é, o infligir de danos contra os mais elevados valores da nossa religião é estritamente proíbido. Nenhum muçulmano pode causar danos a outro ser humano, caso contrário, estará a cometer um pecado contra Aláh”. Como vem mesmo plasmado no preâmbulo da Lei 14/2011 que proíbe e criminaliza a mutilação genital feminina na Guiné-Bissau, a Liberdade de manifestação cultural e religiosa integra ao catálogo dos direitos fundamentais, dos quais nasce o dever do Estado, de os assegurar e proteger. Porém não sendo direitos autónomos, procuram a sua perfeição no sistema juridico-constitucional em que se encontram inseridos. Não havendo fundamentos religiosos e nem culturais banstantes para a preservação desta prática prejudicial para a saúde e integridade física da mulher e tendo em conta a necessidade de dar resposta aos seus compromissos internacionais no domínio da promoção e protecção dos direitos humanos, decidiu-se estabelecer um equilíbrio entre o direito à manifestação cultural e o direito ao respeito pela integridade física dos cidadãos, adoptando a Lei 14/2011, que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina na Guiné-Bissau. O Legislador guineense optou pela terminologia excisão feminina contrariamente à designação comum de mutilação genital feminina por motivos que não ficaram bem patentes. Porquanto, a Lei 14/2011 qualifica a “excisão como toda a forma de amputação, incisão ou ablação parcial ou total de órgão genital externo da pessoa de sexo feminino, bem como todas as ofensas corporais praticadas sobre aquele órgão genital por razões sócio-cultural, religiosa, de higiene ou qualquer outro motivo invocado”. Da


definição legal de excisão resultam três elementos fundamentais: a. O acto de incriminação: que podemos designar de corte, b. O objecto de protecção: o órgão genital feminino e; c. A Finalidade: proibindo qualquer prática de excisão por motivos religiosos, sociais, culturais ou relativos à higiêne. Deste modo, a Lei 14/2011 só não considera crime de excisão feminina ou mutilação genital feminina nos termos do seu Art. 2º quando for feita por motivos médicos, devidamente fundamentados com base nos diagnósticos rigorosos, por um colectivo de médicos, e nas instalações adequadas. Quando a excisão é praticada por outras razões, os infratores são susceptíveis de aplicação de sanções categorizadas em função de dois factores: idade da vítima, e grau de participação do infractor no acto do crime. Esta decisão vem concretizar o consignado no artigo 3º da CEDAW e no Art. 5º da Protocolo à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos vulgarmente conhecido por Protocolo de Maputo. De acordo com este último instrumento “os Estados devem adoptar todas as medidas e em todos os domínios, nomeadamente político, social, económico e cultural, incluindo disposições legislativas, para assegurar o pleno desenvolvimento e o progresso das mulheres, com vista a garantir-lhes o exercício e o gozo dos seus direitos e liberdades fundamentais, com base no principio de igualdade”. Apesar desta clarividência em termos de proibição e criminalização da excisão feminina, o Código Penal anterior à Lei 14/2011 adopta no seu art° 17° intitulado ofensas corporais privilegiados, uma solução ambigua e contraditória. Em consonância com o artº 117° do Código Penal da Guiné-Bissau, “Quem, habi-

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litado para efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar que se produzam os efeitos previstos no número 1 do artigo 115° ou a morte da vítima, e estes sobrevierem, é punido, respectivamente, com a pena de prisão até 3 anos e de1 a 5 anos”. Este artigo pode dar azo a duas interpretações possíveis, primeira de ter condicionado a excisão a uma intervenção médica, quando se faz referência a “quem habilitado para efeito e devidamente autorizado” à semelhança do aborto art. 112º do Codigo Penal que só considera crime, quando o aborto for praticado fora das instalações médicas e por individuo que não se encontre profissionalmente habilitado. A segunda interpretação possível é de considerar que a expressão “quem habilitado para efeito e devidamente autorizado” quer também referir-se a fanatecas ou seja, as mulheres que tradicionalmente são reconhecidas pela comunidade como profissionais para efectuar a excisão feminina. Se perfilharmos a primeira hipótese seria equivalente aceitar que terá havido uma repetição do previsto no número 2 do Artº 115° do Código Penal, segundo o qual “ As intervenções e outros tratamentos médicos feitos por quem se encontra profissionalmente habilitado não se consideram ofensas corporais; porém, da violação das “legis artis resultar um perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente, o agente será punido com a prisão de 6 meses a 3 anos”. Tudo leva a crer que a opção do legislador vai no sentido de admitir a excisão tanto assim que, no periodo antes da entrada em vigor da Lei 14/2011 a prática de mutilação genital feminina não constituia crime e, nem era penalizada na Guiné-Bissau. Neste enlace, mesmo que o nosso entendimento fosse no sentido de


defender a criminalização da excisão, o art. 14° da Lei 14/2011 que visa prevenir, proibir e criminalizar a excisão, consagra explicitamente que fica revogada toda a legislação contrária as normas da presente lei. Dai, podemos depreender o seguinte: mesmo que o sentido útil do artigo 17º do Código Penal fosse de admitir a excisão, o preceito deixava de produzir efeitos jurídicos por via do Art 14º da Lei 14/2011. Por outro lado, mesmo admetindo que as duas leis tenham a mesma força jurídica, o principio da primazia da lei especial sobre a lei geral irá prevalecer, associado ao preceituado no art 7° do Código Civil, que dispõe no sentido de revogação automática das normas anteriores por incompatibilidade com as novas disposições ou pela circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior. Todavia, em nome da coerência e da segurança do sistema jurídico este artigo 17° do Código Penal deve ser revogado expressamente para evitar casos de interpretações passíveis de promover a excisão sobretudo, numa sociedade em que a cultura jurídica e a instituicionalização das normas se encontram ainda em fase de gestação. Com efeito, é bom recordar que não obstante a existência da lei contra a excisão feminina desde 2011, apenas três casos foram ao julgamento: o primeiro caso em 25 de Janeiro de 2012 em que 5 mulheres foram condenadas a 3 anos de pena de prisão suspensa pela prática de excisão, enquanto que o segundo resultou na condenação no dia 26 de Maio de 2015, de 4 suspeitos a 3 anos de prisão efectiva por terem sido considerados culpados pela prática de excisão em janeiro de 2015 em Ganadu (região de Bafata), ambos os casos ocorreram no Tribunal Regional de

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Bafata. O teceiro julgamento verificou-se no Tribunal Regional de Bissau a 17 de Dezembro de 2014 com a penalização de 6 suspeitos, quatro com pena de prisão efectiva de 3 anos e dois suspeitos incluindo (pai de uma das crianças e a mulher proprietária da casa onde a excisão teve lugar) foram condenados a 1 ano de prisão, convertido em multa no valor de 150,000 FCFA. Estes números tão insignificante no quadro de combate à excisão feminina não implica a redução efectiva da prática. Com base nas informações recolhidas junto das organizações de base que actuam neste domínio, estes dados prendem-se essencialmente com o facto desta prática nefasta passar a assumir contrariamente ao passado, uma natureza descreta e caracter clandestino. Portanto, é preciso reforçar as medidas de fiscalização junto das comunidades locais, acompanhadas de acções de sensitiblização.

B) VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência doméstica representa uma das formas mais frequentes da violência com base no género e constitui um atentado contra os direitos à liberdade e à integridade física e psíquica das pessoas. Na Guiné-Bissau, este fenómeno merece uma atenção particular, visto que constitui uma das práticas nefastas e tradicionais mais frequentes a par do casamento forçado e da mutilação genital feminina. Segundo um estudo realizado em 2011 por organizações de defesa e promoção de igualdade de género, 85% da violência contra as mulheres ocorre no ambiente familiar e em 67% dos casos os agressores são os cônjuges das vítimas e 35% outros membros da família.


O mesmo estudo indica ainda que 23.193 casos de violência doméstica foram registados no país entre 2006 e 2010 pelas autoridades judiciais e de segurança. Todavia, estes dados não reflectem a realidade global dos factos, porque 71% das vítimas entrevistadas reportaram que nunca apresentaram queixa. Porquanto, o referido estudo estima que em média apenas cinco casos de violência doméstica são denunciados por dia, em todo territorio nacional. A Constituição da Guiné-Bissau refere no seu artigo 37° n° 1 que “todo o cidadão goza da inviolabilidade da sua pessoa, bem como da sua integridade moral e física”, e o numero 2 do mesmo artigo reza que “ninguém pode ser sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos”. Após uma longa batalha travada pelas ONGs e com o apoio das organismos internacionais com vista à construção de uma sociedade livre e fundada nos valores da igualdade, da tolerância e da justiça, o Estado guineense adoptou a 18 de Julho de 2013 a Lei 6/2014, de 4 de Fevereiro, “Lei para a Prevenção e Combate à Violência Doméstica” com o propósito de pôr fim ao clima de intolerância e de violência sistemática no ambiente familiar. Esta lei vem igualmente concretizar os principios consagrados na CEDAW e noutros textos interancionais para a protecção das mulheres, incluindo o Protocolo à Carta Africa sobre os Direitos do Homem e dos Povos relativo aos Direitos das Mulheres em África (Protocolo de Maputo), adoptado a 11 de Julho de 2003 pela Assembleia da União Africana em Moçambique e que vincula à Guiné-Bissau a partir de 19 de Junho de 2008.

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Definição de violência doméstica De acordo com a referida lei, entende-se por violência doméstica, “todo o padrão de conduta por acção ou omissão de natureza criminal, reiterada ou não, que inflija sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos, privações de liberdade e económicas, de modo directo ou indirecto, praticado no seio da familia contra qualquer pessoa que resida habitualmente no mesmo espaço doméstico ou não, a pessoa com o qual a vítima mantenha relações”. Com base nesta definição, a violência doméstica pode ser descrita em diferentes categorias a saber: Violência física: que pode ser Simples: quando as ofensas corporais não implicam lesões permanentes e nem a diminuição da capacidade laboral da vitima ou Graves quando as ofensas corporais provocam danos irriparáveis ou têm como consequência a redução das condições funcionais da vitima. Violência Psicológica: A aludida lei ainda proíbe e criminaliza a violência psicólogica, como aquela que provoca o desequelibrio emocional na vitima, tais como ameaças e insultos. Violência Patrimonial: entra também na categoria de criminalização como a violência que afecta o patrimonio ou a propriedade do individuo ; Violência sexual: como atentado contra a liberdade sexual do individuo por via de ameaça ou aproveitamento da sua imaturidade ou inexperiência e finalmente a lei criminaliza: Restrição da Liberdade: como impedimento ou privação da liberdade de movimento a pessoa com quem matém as relações familiares, amorosas ou íntimas. Contudo, é fundamental sublinhar que estes actos só podem traduzir-se na violência doméstica quando forem praticados pelas pessoas que vivem no mesmo


agregado familiar ou têm uma relação familiar ou de afectividade. De acordo com o estudo “Intitulado um retrato da violência contra mulheres na Guiné-Bissau a violência psicológica é a forma mais comum de violência doméstica, ou seja, 80% das pessoas inquiridas, afirmam terem sido vítimas deste tipo de violência, e uma média de 9.522 denúncias em todo território nacional de 2006 a 2010. No que concerne à violência fisica o mesmo estudo aponta que, 44 % das mulheres inquiridas foram vítimas de violência física, isto é, 11.637 casos registados entre 2006 e 2009. Relativamente à violência sexual existem poucos dados tendo em conta o caracter sensivel do caso. Para além de medidas repressivas como a aplicação de penas pela prática do crime, a lei procura introduzir elementos inovadores para prevenir a prática da violência, tendo em conta a sua dimensão sócio-cultural. A percepção social dos actos que põem em risco a saúde, a integridade física ou mesmo a vida das pessoas, leva até as vítimas a consentir na sua prática e a colaborarem inconscientemente na sua ocorrência e continuidade. Por isso, a lei dedica uma atenção especial às seguintes medidas de prevenção: / Sensibilizar (educar e informar) a população para combater precon ceitos e estereótipos, percepções, atitudes e comportamentos dentro do ambiente familiar; / Assegurar protecção policial e jurisdicional da vítima, para que não volte a ser alvo dos mesmos actos; / Prestar serviços sociais de emergência à vitima para facilitar a sua rápida recuperação e reinserção social. O art. 15° da mesma lei refere-se às medidas de segurança que visam reprimir a

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violência em todas as suas formas, impedir a recorrência do crime, e facilitar a investigação. Para tal, a lei estipula a separação temporária do infractor da casa onde vive com a vítima, e a proibição de frequentar a residência temporária e o local de trabalho da mesma. Estas medidas têm como objectivo impedir a recorrência do crime e a perturbação da investigação, pois o infractor poderia intimidar ou ameaçar a vítima, ou eliminar as provas do crime. Paradoxalmente, estas medidas prevista na lei não têm aplicaçãoo prática por falta de estruturas vocacionadas e capazes de assegurar a sua efectivação nas instâncias juridiciárias e de segurança. Por conseguinte, na maioria dos casos de violência doméstica, a vítima corre riscos de voltar a ser vítima do mesmo ou do crime de coação para não denunciar, sendo que vive com o hipotético infractor na mesma casa, ou porque partilham o mesmo espaço físico. Portanto é urgente fazer coincidir a lei com os mecanismos para a sua aplicação de modo a evitar normas ineficazes que apenas provocam sentimentos de impunidade e de inércia da justiça, motivados pelo próprio legislador. i) Abuso Sexual e Violência Sexual A liberdade individual e a autonomia de vontade enquanto valores axiológicos da sociedade moderna, exigem que ninguém seja forçado ou obrigado a manter relações sexuais contra a sua vontade. Ao abrigo do princípio da autodeterminação, o consentimento da pessoa é fundamental e indispensável para qualquer acto sexual. Este consentimento tem que ser baseado num acordo consciente, livre e expontâneo, e não numa simples aceitação, que muitas vezes, pode estar viciada por inexperiência, imaturidade, coação ou ameaça. Segundo o estudo realizado na Guiné-Bissau sobre violência com base no


género intitulado “Um Retrato da Violência contra Mulheres na Guiné-Bissau”, publicado a 8 de Junho de 2011, 43% das mulheres inquiridas foram vítimas de actos de violência sexual. O tema em causa é de dificil abordagem devido à sua íntima ligação com o núcleo de privacidade das pessoas, incluindo da vítima, o que acresce ao facto de constituir até hoje um tabu na sociedade guineense. A lei confere a cada indivíduo o direito de escolher com quem e, quando vai manter uma relação sexual. Nesta linha de orientação, o crime de atentado a liberdade sexual pode ser classificado de Violação Sexual ou Abuso Sexual, conforme se segue: Violação Sexual: Art. 133° do Código Penal “Quem através de violência, ameaça grave ou qualquer outra forma de coação, mantiver relações sexuais com uma pessoa superior a 16 anos, é punido com pena de prisão de 3 anos a 12 anos. Se se praticar acto sexual com uma pessoa maior de 16 anos, o crime é qualificado de violência sexual porque foi realizado por meio de violência” (coação ou uso da força). Abuso Sexual: Art. 134° do Código Penal “Quem praticar cópula com mulher maior de 12 e menor de 16 anos de idade aproveitando-se da sua inexperiência ou independentemente da idade, se aproveitar do facto de a vítima sofrer de anomalia psíquica ou se encontrar diminuida fisica ou psiquicamente, temporária ou permanentemente, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”. Quando a violência sexual é praticada contra um menor de 16 anos, o acto

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ganha outra natureza e censurabilidade, porque é direcionado contra uma criança em fase de construção física e mental, carente de protecção. Neste caso valoriza-se muito a idade da vítima, a quem falta ainda capacidade para tomar decisões de forma livre e consciente, ou seja, maturidade para avaliar os riscos da sua acção. Todavia quando se trata de violência sexual entre homem e mulher, as forças de segurança e algumas autoridades judiciárias procuram desvalorizar a ilicitude do acto, remetendo o casao para a resoluçãoo de acordo com a justiça tradicional. A lei na sua qualificaçãoo de violência sexual ou abuso sexual não faz nenhuma ressalva a casos em que a vitima e o infractor tem uma relação de matrimónio, i.e. relação de casamento. Pelo contrário a opção de integrar a violência sexual no leque de violências domésticas, torna mais do que evidente, a pretensão de punir casos de crimes sexuais, mesmo estando em causa membros da mesma família ou casos de marido e mulher. Em conclusão a violência sexual ou abuso sexual podem ocorrer entre os casais ou marido e mulher. Quando assim for, a prática tem a mesma censurabilidade e deve merecer o mesmo tratamente por parte das autoridades à semelhança dos demais casos de abuso sexual ou violência sexual. ii) Noção de Casamento Da convivência humana nascem várias relações e manifestaçoes culturais entre as quais, o casamento que assume um lugar de destaque porque dele nasce a familia que se traduz no núcleo vital da sociedade. A importância da familia no processo de construção de qualquer sociedade


traforma numa obrigação do Estado promovê-la e proteje-la. É neste contexto que o Estado através do art. 1577° do Código Civil (CC) começa por fixar o conceito de casamento para melhor balizar o seu âmbito de intervenção: Apesar de constituir uma das fontes de relação familiar o casamento não passa de um contrato juridico “celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir legitimamente a familia mediante uma comunhão plena de vida.” Esta noção de casamento vem delimitar o âmbito de aceitabilidade de relação matrimonial na Guiné-Bissau, sem excluir outras relações de mesma natureza e destinadas para as mesmas finalidades, desde que não sejam contrárias ao previsto no art. 1577 º do CC. Neste caso podemos citar a união de facto que na maioria de casos resultam de casamentos tradicionais não formalizados. O reconhecimento de União de facto e do casamento tradicional demonstra inequivocamente a intenção do Estado de atribuir efeitos juridicos a algumas relações matrimonias constituidas fora do quadro legal. O próprio preâmbulo da Lei 3/76 que regula os termos de reconhecimento de União de Facto sublinha a necessidade de proteger com texto legal, os casamentos não formalizados, atribuindo os direitos e deveres próprios de marido e mulher, aqueles que voluntariamente decidiram unir-se e fazer uma vida em comum. É aplausível a intenção do legislador de atribuir a dignidade merecida aos casamentos não formalizados e criar a conciência de responsabilidade que uma vida em comum exige, porém estes casamentos não formalizados devem obdecer os parâmetros legais e serem constituidos dentro das exigências da lei, nomeadamente que os conjuges tenha capacidade para contrair o casamento,

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ser uma relação singular e estável, onde existe a vontade inquivoca de ambos para constituir em comunhão plena de vida. No mesmo horizonte vai o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que vigora na Guiné-Bissau a partir do dia 1 Novembro de 2010, consagrando no seu Art 23º número 2 que “O direito de se casar e de fundar a familia seja efectivada a partir da idade núbil”. Ainda o mesmo intrumento internacional determina que “nenhum casamento pode ser concluído sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos”. Em relação ao direito internacional africano, o Protocolo de Maputo consagra no seu art. 6º que nenhum casamento pode ser contraido sem o consentimeno pleno e livre de ambas as partes. Contrariamente, na Guiné-Bissau essas exigêncies legais nem sempre acolhem as mesmas respostas devido à aderência da esmagadora maioria de cidadãos ao direito costumeiro ou seja, aos usos e costumes locais. Este factor de aderência recorrente ao direito consuetudinário deve-se ao facto de coexistir no mesmo estado unitário diferentes culturais e práticas tradicionais que acabam por sobrepor ao direito positivo. Eís, os motivos que sustentam a necessidade de melhor enquadramento do direito constumeiro aos ditames do direito positivo e a inauguração do processo de institucionalização das normas emanadas do estado para passarem a ser veidadeiros pradrões de conduta na sociedade guineense. Precisamente neste encruzilhada entre direito constumeiro e direito positivo que passamos a abordar alguns desvios ao quadro normativo que contribuem negativamente para o aprofundamento da desiguadade entre homens e mulheres na Guiné-Bissau.


iii) Casamento Forçado Partindo da permissa que o casamento é um instituto formado essencialmente pela liberdade e autonomia de vontade, qualquer acto a ele semelhante sem o consentemente das partes, ou, de uma das partes é irrelevante em termos de produção de efeitos jurídicos. . Casamento Forçado: consiste no casamento sem o consentemente ou contra a vontade dos nubentes ou de um dos nubentes. Quando a lei nacional (Código Civil) qualifica o casamento como um contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente; significa que para celebrar um contrato é fundamental o concurso de vontade das partes. Aliás Art. 16° do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Politicos e o Art. 6º alinea a) do Protocolo de Maputo, consagram que nenhum casamento pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. Contudo, esta prática se verifica com muita frequência e representa uma das violências com maior incidência na vida das mulheres e raparigas na Guiné-Bissau. Neste contexto o não reconhecemento legal de casamento forçado por si, não é capaz de promover uma efectiva protecção e combate a este fenómino de violência contra as mulhres. Na Guiné-Bissau é quase comum a todas as étnias a prática de casamento forçado. Os dados resultants do estudo sobre a violência na Guiné-Bissau3 indica que 41 % das mulheres inquiridas afirmaram que não participaram na escolha do marido. O casamento forçado independemente de afectar o principio da Liberdade e de autodeterminação das mulheres, coloca em causas a sua integridade fisica

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e moral. Para melhor explanação um simples caso de casamento forçado pode implicar vários actos de violência contra a mulher nomeadamente: agressões físicas, ameaças, privação de liberdade e atentado a liberdade sexual. Por conseguinte uma abordagem sobre o casamento forçado não deve cingir apenas na falta ou ausência de vontada de uma das partes, mas sim, é crucial relevar outros elementos essencias que o fundamento cultural do casamento tende a ocultar, mesmo para os aplicadores da lei. Numa das entrevistas desenvolvidas em Bissau e nas regiões de Gabu e Bafata até, os magistrados consideram que o acto de casamento forçado não tem cobertura legal, porquanto nada pode ser feita enquando não houver uma resposta legal à referida prática. Esta conclusão resulta de facto dos administradores da justiça em particular, dos agentes da polícia e procuradores não procurarem analisar isoladamente os elementos que compõem o acto de casamento forçado. Numa análise acuidada e rigorosa, podemos mediante um ritual de casamento encontrar vários crimes consignados no Código Penal nomeadamente: Ofensas Corporais, Coação, Rapto e Abuso ou Violência sexual e restrição de liberdade, este último está prevista na Lei 6/2014 Lei contra Violência Doméstica. Ofensas Corporais: A esmagadora maioria de caso de casamento forçado termina com a agressão fisica contra a noiva quando esta se recusar a celebrar o casamento ou a ir viver com o hiptético marido. Em muitos casos a vitima é infligida lesões graves até à morte. Este tipo de comportamente preenche sem margem para dúvida, o crime de ofensas coporais prevista nos art. 114° a 115° do Codigo Penal e de


violência física previsto nos art. 22° e 23° da Lei 6/2014 Lei que proibe e criminaliza as violências domésticas, independemente de ser praticado no âmbito de um processo de casamento ou não. Coação Da mesma forma podemos qualificar de crime de coação a pressão e as ameaças que os familiares neste caso, exercem sobre a rapariga, coagindo a mesma a contrair o matrimonio tradiconal contra a sua vontade, Art. 123° Cod Penal. Rapto Art. 125 Cod Penal Para os casos de casamento forçado em que a noiva rejeita ir viver com o hipotético marido é comum a situação de rapto. Normalmente a noiva é conduzida à força para a localidade de residência do hipotético marido por meios de violência, ameaça, inclusive, ela pode ser mantida em cativeiro se for necessário para reconhecer ou aceitar o acto de casamento. Restrição da Liberdade: Outrossim, as privações de liberdade a que é sujeita a vitima de casamento forçado pode traduzir-se no crime de restrição de liberdade previsto no art. 27 da Lei contra a Violência, definido como o impedimento ou privação da liberdade de movimento a pessoa com quem matém as relações familiares, amorosas ou íntimas. Violência Sexual art. 25° da Lei 6/2014 Numa situação de recusa o hipotético marido recorre sempre à coação, às

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ameaças ou à violência para obrigar a noiva a praticar actos sexuais sem consentimento. Todavia, mesmo que a vitima é encontrada numa situação dessas, as autoridades procuram apenas mediar o processo para encontrar uma saída consensual, sem lançar mão aos dispositivos legais. Por lei, o casamento forçado só é crime na Guiné-Bissau quando constituir a finalidade de uma acto de tráfico de pessoas, isto é quando a vitima seja recrutada, mobilizada ou fornecida por via de força ou engano para esta objectivo, numa localidade diferente da sua residência ou origem. Esta interpretação com base no Protocol de Palermo, pode significar tanto o tráfico interno (no mesmo estado) assim como o trafico externo (entre os estados soberanos). Fora destes casos, nao existe nenhum tipo legal e autonomo que proibe o casamento forçado que continua a servir de principais formas de violaçao dos direitos fundamentais das mulheres. A sua não criminalização constitui uma violação por omissão pelo Estado da Guiné-Bissau das suas obrigações nacionais e internacionais previstas na Constituição da República no seu Art. 37º que consagra a inviolabilidae da integridade fisica e moral, na CEDAW e no Protocolo de Maputo, concretamente este último quando exige aos Estados Partes para condenarem e proibirem todas as práticas nefastas que afectam os direitos humanos fundamentais das mulheres e/ou contrárias as normas internacionais. iv) Casamento Precoce Sendo um acto de extrema importância para a construção da familia e da realização da personalidade da pessoa, o casamento requer um conjunto de factores entre os quais, a maturidade fisica e psiquica dos noivos ou nubentes. É com base nesses elementos que a lei fixa limites mínimos em termos de idade para


casamento, o qual se designa de idade núbil ou capacidade matrimonial. Reza o Art. 23º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Politicos que “a partir da idade núbil, homem e a mulher têm o direito de casar e de construir familia, sem restrição”. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais. No âmbito do direito interno a capacidade para contrair o casamento ou seja a idade núbil de acordo com o Art. 1601° conjugado com a Lei 5/76, começa a partir dos 16 anos. Este artigo entre em contradição com o Art. 6, alinea b) do Protocolo de Maputo que fixa os 18 anos como a idade minima para uma mulher casar. Esta disparidade entre os instrumentos de direito interno e do direito internacional deve ser resolvido para assegurar a coerência entre as normas nacionais e internacionais a bem da unidade do Sistema e da concretização prática do direito intercioanal a escala nacional. Quadro global fica ainda mais em crise quando se associa a esta contradição entre o direito interno e direito internacional, a orientação do direito costumeiro que determina 14 anos como a idade de casamento para as mulheres. Este entendimento é quase comum a todas as principais étnicas, nomeadamente Balanta, Fula, Mandinga, Mancanha, Manjaca e Papél, como revela o Estudo, desenvolvido pela Faculdade de Direito de Bissau, intitulado, “o Direito Costumeiro Vigente na República da Guiné-Bissau”. Em conformidade com os costumes nacionais, a idade núbil varia entre os 14 aos 15 anos para a rapariga e para os homens entre 16 a 18 anos, o que implica uma violação flagrante do princípio de igualdade. Esta situação torna mais alarmante quando se associa o fenómino de casamen-

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to precoce ao casamento forçado, onde ainda se pode colocar o problema de abuso e de exploração sexual de menor, assim, como dos riscos inerentes ao casamento precoce que passa pela gravidez precoce, desistência escolar e mortalidade materna. Relativamente ao abuso sexual de menor é importante destacar que mesmo partindo de princípio que a idade núbil na Guiné-Bissau seja de 16 anos, não 18 como fixa o Protocolo de Maputo, a criança dada em casamento com menos de 16 anos, de acordo com os costumes, seria provavelmente sempre vitima de abuso sexual porque o Código Penal da Guiné-Bissau qualifica de abuso sexual “ acto sexual com a mulher menor de 16 anos, mesmo com consentimento quando se provar que o infractor tenha aproveitado da sua inexperiência”. Esta inesperiência deve ser avaliada ao abrigo da capacidade de determinação sexual da rapariga que está longe de se formar antes dos 16 anos. Aliás, é extramemtne dificil provar que um menor de 16 tenha maturidade suficiente ou condições para avaliar as consequências da sua conduta na medida em que existe uma presunção legal absoluta da imaturidade de menor de 16 anos que obriga o legislador a fixar a capacidade juridico-penal só a partir dos 16 anos. É imperativo fundamental do Estado criar e promover as condições favoráveis à preservação da identidade cultural, como suporte da consciência e dignidade nacionais e factor estimulante do desenvolvimento harmonioso da sociedade. Contudo a própria Constituição no seu Art. 17º número 2 deixa de forma clara que a cultura não pode ir ao ponto de pôr em causa os direitos humanos fundamentais, isto é, a preservação da cultura está subordinada ao princípio do progresso e da salvaguarda da dignidade humana.


No âmbito do presente diagnóstico constatámos a propósito de casamentos forçado e precoce uma nova causa de violência doméstica resultante de violência sexual na zona leste que depois de uma entrevista e análise pormenorizadas, concluimos que já tem reflexo um pouco por todo o país, incluindo na capital Bissau. As consequências de casamento forçado e precoce obrigam com que os homens mais velhos que padecem de impotência sexual a recorrer a substâncias estimulantes (culémé), cuja reação torna insuportável por parte das mulheres. Em resposta a este comportamento intolerável, as mulheres passaram a utilizar uma outra substancia a que se designa de Tcháru com efeitos aina mais devastadores e que as deixa saciadas, ao ponto de já não estarem interessadas em partilhar a vida sexual com os maridos. Esta situação tem gerado nos últimos tempos, uma vaga de violência fisica e crise nas relações matrimonias, além das consequências para a saúde de ambos porque ninguém conhece até ao momento os efeitos colaterais destas duas subtâncias. Contudo já foram reportados casos de infecções graves por conta de Tcháru (a substancia utilizada pelas mulheres) na região de Oio, concretamente nos sectores de de Farim e Mansaba. Em conclusão o casamento precoce e forçado precisam de uma melhor regulamentação para evitar a insegurança jurídica, fruto de diferentes interpretações que suscitam na ordem juridica guineense. Outrossim, sendo práticas que afectam sobremaneira a dignidade e a liberdade devem ser criminalizadas para salvaguardar os direitos fundamentais das mulheres de constituir a familia de forma livre, consciente e segura. A necessidade de proibição e de criminalização destas duas práticas tradicionais nefestas resultam também duma obrigação geral do Estado da Guiné-Bis-

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sau porque faz parte dos compromissos por ele assumido no quadro do direito internacional nomeadamente, o previsto no art. 5º da CEDAW que obriga os estado partes a adoptarem todas as medidas necessárias para modificar os esquemas e comportamento socio-cultural com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas costumeiros. Enquanto que art 5º do Protocolo de Maputo vai mais longe, obrigando aos estados a eliminar todas as práticas nefastas que afectam os direitos fundamentais das mulheres.

TRÁFICO DE CRIANÇA

O tráfico de pessoas representa uma das mais graves violações contra a dignidade humana, visto que reduz a pessoa a um simples objecto de negócio. O tráfico mundial de pessoas hoje é compreendido como um desafio que ultrapassa a mera política relacionada com a luta contra a criminalidade organizada ou transnacional, mas sim, constitui também uma questão ligada aos direitos humanos porque afecta directamento o núcleo essencial da pessoa humana, que são a vida, a liberdade e a integridade fisica e moral. Em resposta a este problema, a ONU adoptou o Protocolo Adicional à Convenção contra a Criminalidade Organizada e Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças. Este Protocolo traçou linhas e princípios orientadores para a prevenção e combate ao tráfico, que foram incorporados por muitos Estados nos seus ordenamentos jurídicos através de leis contra o tráfico de pessoas. À semelhança dos estados membro da ONU, a Guiné-Bissau, adoptou a Lei


12/2011, Lei da Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas, em particular, de Mulheres e Crianças. A Lei 12/2011 vem no fundo transpor para o direito interno guineense as preocupações e as linhas mestras incorporadas no Protocolo de Palermo mutatis mutandis, com o propósito de dar respostas às necessárias particularidades e aos desafios nacionais no dominio de tráfico de pessoas, em especial de mulher e criança. Para este trabalho em concreto a atenção é dedicada especialmente ao tráfico de criança sendo as principais vitimas em virtude das práticas socio-culturais relacionadas à mobilidade e ao fenómino de migração de menores guineenses para o estrangeiro, mormente para os países vizinhos, Senegal, Gambia e Guiné-Conakry. A Constituição da República da Guiné-Bissau não contém actualmente nenhum preceito especificamente dirigido à protecção das crianças, porém as únicas referências constitucionais relativas à promoção dos direitos das crianças em geral, são os artigos 16º e 49º que consagram o direito à educação; e o artigo 26º, que estabelece a protecção da família pelo Estado e a igualdade entre os filhos. Sem a necessidade de uma análise juridico-constitucional exaustíva, a conclusão é que a Constituição da República da Guiné-Bissau não contempla qualquer norma específica sobre a temática de proteção de menor, em especial sobre o tráfico de criança. Todavia a nossa conclusão não pode ser de considerar que a ausência de um dispositivo constitucional deita por terra todo o quadro juridico nacional relativo à protecção de menores, uma vez que o país seja parte da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) desde 20 de Agosto de 1990).

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Este dispositivo legal a escala global, consagra no seu artigo 11° N°1, que os estados partes devem accionar todas as medidas adequadas para combater a deslocação e a retenção ilicitas de crianças no estrangeiro. Esta preocupação dos estados membros da ONU ficou plasmada no Protocolo de Parlermo que define o Tráfico de pessoas como “ recrutamento, o transporte, a transfarência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou acetação de pagamento ou benfícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”. Esta definição é quase totalmente acolhida pelo legislador guineense que qualifica o trafico através do disposto no art. 4° da Lei contra o Tráfico de Pessoas (Lei 12/2011) como “recrutamento, fornecemento transportar, acolhimento de uma pessoa, para fins de prostituição, trabalho forçado, escravatura, servidão involuntária ou por dívida, é punido com a pena de prisão de 3 a 15 anos”. Para um melhor enquadramento, vamos tentar simplificar a definição de tráfico de pessoas, à luz da lei guineense, em três dominios fundamentais: (1) as actividades que podem ser consideradas como tráfico; (2) os meios considerados típicos para as actividades de tráfico; e (3) as finalidades ou os objectivos dessas mesmas actividades. Actividades: Quem participar no acto de mobilização, fornecimento, transporte ou acolhimento de uma ou mais pessoas, consciente de que tal se destina a fins de exploração, prostituição, escravidão ou trabalho forçado, incorrerá em prática do crime.


Meios: quem por via de ameaça, uso da força ou outras formas de coacção, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento da pessoa que tem autoridade sobre a vítima. Normalmente, os traficantes de seres humanos utilizam meios ilegais, como o uso de força ou atitutes fraudolentas ou enganosas para confundir ou convencer a vítima. Quando esses meios ou instrumentos são utilizados para atingir os fins abaixo elencados, podemos considerar que estamos perante um caso típico de tráfico. Finalidades: Quando os meios e as actividades acima mencionadas são utilizados para a exploração sexual, o casamento forçado, a extracção de órgãos humanos, o trabalho forçado, a escravatura ou práticas similares, podemos afirmar sem limitações que se trata de tráfico de pessoas. Para efeito do presente diagnóstico e tendo em conta as especificidades do tráfico de crianças na Guiné-Bissau, a analise que se segue, irá cingir-se sobre o tráfico de criança relacionado com o trabalho forçado, exploração sexual e casamento forçado. Muitas práticas culturais das étnias na Guiné-Bissau incorporam certos riscos e tendências que hoje em dia são aproveitadas para fins de tráficos na sub-região, nomeadamente o fenómico de almudus (criança talibé), empregadas domésticas e ajudantes de tecelagem.

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A) TRÁFICO DE CRIANÇA PARA A EXPLORAÇÃO SEXUAL OU PROSTITUIÇÃO Consiste em obrigar a pessoa a praticar de forma permanente e involuntária relação sexual para a obtenção de vantagens que podem ser patrimonias ou não. Esta é a forma mais comum do tráfico de pessoas, perpetrada em todo o planeta, e atinge quase 80% do total de vítimas de tráfico de pessoas no mundo, segundo o relatório da UNODC, Escritório da Nações Unidas contra a criminalidade Organizada. Na Guiné-Bissau de acordo com o estudo de UNICEF sobre tráfico de crianças, muitas raparigas das diferentes étnias nomeadamente felupes e manjacos que são deslocadas para Senegal ou Gambia sob pretexto de trabalho doméstico, acabam por ser obrigadas a envolver-se em actos de prostituição.

B) O TRABALHO FORÇADO é o serviço exigido a uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido voluntariamente. Esta prática pode eventualmente envolver a questão de crianças almudus/talibé pertencentes às tribos islamizadas da Guiné-Bissau designadamente: mandinga, biafada, Balanta Mané, Nalu e Fula. Para estas tribos a educação religiosa é fundamental para a firmação social da familia e o futuro da criança. A prática envolve essencialmente os rapazes com a idade compreendida entre 6 a 10 anos que normalmente são enviados para Gambia, Guiné-Conakry e Senegal. Por ser um fenómino fundado nos valores culturais e associado ao ensino


islâmico as crianças são submetidas a trabalho de campo, especialmente de algodão na Gambia e Guiné-Conakry e a mendicidade forçada no Senegal. Mediante este cenário coloca-se um grande problema de qualificação jurídica do tráfico sendo que na maioria das vezes, as crianças são enviadas pelos próprios país, num número que ultrapassa de longe a capacidade financeira do marabout (professor islâmico). Na perpectiva dos marabouts o envolvimento dos almudus/talibés nos trabalhos de campo ou na mendicidade forçada deve-se à falta de recursos para sustentar dezenas ou até centenas de crianças sem qualquer apoio dos pais. Ainda com base no estudo sobre tráfico de criança, os país reconhecem o sofrimento das crianças como um processo inerente à aquisição de conhecimento e sinal de resistência e de humildade para uma vida futura. Na verdade este grau de cumplicidade da familia mormente dos pais das crianças dificulta sobremaneira a compreensão do fenómico de tráfico em Àfrica. Equacionando todo o processo de migração/mobilidade de crianças entres os estados da sub-região, somos obrigados à luz da lei avaliar se constituem ou não, tráfico, o envio das crianças para o outro estado ou localidade para fins de trabalho de campo, mendicidade forçada ou trabalho doméstico: Nas entrevistas que desenvolvemos na região de Gabu e Bafatá, as mais afectadas por este fenómino, constatamos que muitas pessoas sob veste de marabouts e sabendo previamente da necessidade dos pais de educar os filhos de acordo com os ensinamentos do islão, derigem-se para as aldeias da Guiné-Bissau, recrutando crianças, especialmente para o Senegal para fins de mendicidade forçada e trabalho infantil nos campos de algodão. Perante este tipo de caso não podemos afastar a aplicação da Lei 12/2011 que

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proibe e criminaliza o tráfico de pessoas, em especial de mulher e criança, dado que a lei qualifica de tráfico “Todo acto de recrutamento, fornecimento, transporte, acolhimento de uma pessoa, para fins de exploração, neste caso de trabalho forçado”. Quando a vontade dos pais foram viciados pelo terceiro que tem por finalidade explorar a criança, não há margem para dúvidas de que estamos perante o tráfico de criança encoberto por uma prática cultural de ensino de Corão ou de contratação de empregada doméstica. Estas dificuldades de qualificação jurídica obriga com que vários casos de tráfico de crianças submetidos às autoridades juridiciárias acabam por ser inconclusivos, isto é, passado pouco mais de 4 anos da entrada em vigor da Lei contra o Tráfico, nenhum caso foi julgado até à data presente. Para uma melhor compreensão do fenómeno de Tráfico de Crianças na Guiné-Bissau, encetamos contactos com as organizações da zona com maior incidência da prática a nível nacional. Das referidas entrevistas resultaram depoimentos alarmantes, cujo destaque vai para, o de Alassana Camara, membro de Associação de Jovem Agricultores de Sector de Pirada (região de Gabu) que explicou que o tráfico continua a um ritmo preocupante, sobretudo nos meses de outubro e Dezembro em que são deslocadas dezenas de crianças diariamente para o Senegal por via da fronteira que liga Guiné-Bissau e Segenal através de Pirada. Estas crianças que supostamente deviam ir apreender os ensinamentos corânicos, vêem o seu futuro hipotecado nos campos de algodão e depois nas ruas de Dakar a mendigar. Este activista dos direitos humanos deu exemplo de um caso de tráfico que teve lugar no passado mês de Abril de 2015, envolvendo um senhor aparen-


temente de nacionalidade senegalesa que foi interceptado com duas crianças na fronteira de Pirada com destino ao Senegal. Estas duas crianças foram raptadas pelo infractor quando brincavam na zona de Bambadinca (região de Bafata). Segundo o Sr Alassana Camará as autoridades locais depois de terem concluido a investigação preliminar, as crianças foram recuperadas e o homem foi posto em liberdade, tendo seguido para o Senegal, sem qualquer processo judiciário. Esta triste realidade ilustra inúmeros casos de tráfico de crianças que ocorrem na Guiné-Bissau sem qualquer resposta adequada e consentânia com o quadro legal.

C) FENÓMENO DE CLIN-CLIN Com base no estudo sobre tráfico desenvolvido por UNICEF Islândia tem crescido o número de crianças envolvidas em trabalho infantil (engraxadores ou venda ambulante) nos principais centros urbanos da Guiné-Bissau, em especial Bissau. A diferença com os almudus/talibé reside no facto de os Clin-clin são na maioria Conakry-guineenses de 10 a 18 anos que aparentemente trabalham por conta própria e com a autorização dos familiares que sobre os quais, exerce o poder de controlo. Estas crianças ganham uma média que varia entre mil a três mil FCFA por dia. De acordo com o mesmo estudo, a receita diária é entregue a Chefe de familia que anota e amortiza a parte relativo ao sustento. Todavia, o estudo e as entrevistas que desenvolvemos no âmbito do presente diagnostico não foram suficientes para esclarecer a participação voluntária da criança bem como o processo de vinda e de envolvimento dessas crianças no

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trabalho infantil. Por conseguinte, recomendamos que seja desenvolvido um estudo específico e aprofundado sobre este fenómino para apurar com maior precisão, se se trata de um fenómino de tráfico de crianças, trabalho infantil ou acto voluntário de menor que pode ser integrado na categoria de crianças em risco.

D) DIFERENÇA ENTRE TRÁFICO DE PESSOAS E CONTRABANDO DE MIGRANTES O crime de tráfico é muitas vezes confundido com o de contrabando de migrantes, pelo que convém estabelecer a diferença entre estes dois conceitos afins. O contrabando de migrantes ou migração clandestina consiste em facilitar, contribuir ou permitir a entrada ilegal de individuos num país de que não são nacionais ou residentes permanentes, a troco de benefícios económicos ou materiais. O migrante é considerado também criminoso ou culpado. O tráfico de pessoas tem a ver com mobilização, transporte ou acolhimento de pessoas através de coacção física ou qualquer outro meio ilicito, para fins de extracção de órgãos, prostituição, trabalho forçado ou escravidão. O traficado é simplemente uma vítima do crime, mesmo quando tenha consentido na sua prática. Ainda no quadro de prevenção e combate ao tráfico de pessoas, o legislador guineense define três eixos de actuação a saber: prevenção, repressão, e proteção. A Lei sobre a Prevenção e o Combate ao Tráfico de Pessoas, em particular Mulheres e Crianças, estabelece nos artigos 20° a 29° algumas intervenções adicionais e complementares para reduzir as situações de vulnerabilidade das vítimas, entre as quais:


/ Acesso a um abrigo de emergência para garantir que a vítima se encontre num ambiente adequado e seguro, por forma a evitar que sofra mais danos. / Assistência e acompanhamento psicológico com o propósito de contribuir para a recuperação psico-social da vítima; / Assistência médica e jurídica, que têm como finalidade contribuir para o tratamento, a denúncia e o acompanhamento do processo judicial; / Educação e formação profissional com vista a assegurar a reinserção social da vítima; / Autorização de residência temporária na Guiné-Bissau, enquanto aguarda a reintegração local ou o regresso ao seu país de origem art. 22° da Lei do Tráfico.

A responsabilidade primária de combater o tráfico de pessoas, em especial da mulher e criança, compete ao Estado, o qual deve dar prioridade às medidas de prevenção em detrimento das de repressão. Esta conclusão decorre do facto de as reacções depois da ocorrência ou da prática do crime, se manifestarem sempre tardías ou ineficazes porque os danos causados à vítima são na maioria das vezes irreparáveis. O Ministério do Interior, enquanto instituição pública responsável para garantir a ordem e a segurança públicas e proteger os direitos humanos, deve adoptar medidas de controle de fronteiras para evitar tráficos por exemplo, exigir os documentos necessários para a viagem, em particular quando se trata de crianças, em que a lei torna obrigatória a autorizaçao

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dos pais, ou da pessoa responsável pela guarda da criança. Existe evidência de que um número considerável de crianças da Guiné-Bissau vive nas ruas de Dakar e de outras grandes cidades do Senegal, atavessando diariamente as fronteiras nacionais desprovidas de um sistema de controlo eficaz. Segundo o depoimento de Alassana Camará activista dos direitos humanos de secção de Pirada, 8 crianças foram encontradas na zona de Bajucunda, uma estrada que funciona como via alternativa ao controlo das autoridades na linha fronteiriça com o Senegal. Esta via de acordo com o activista passa a ser a principal rota de tráfico de crianças na localidade de Pirada, região de Gabu, sobretudo na época de colheita de algodão, entre outubro e dezembro. Além da exploração e maus tratos a que são submetidas, as crianças vitimas de tráfico ficam expostas aos riscos em termos de saúde fisica e mental e uns acabam por entrar em criminalidade e prostituição. A complexidade e o caracter clandestino de tráfico de criança na África Ocidental requer uma resposta comum e concertada entre os estado da CEDEAO em especial, entre a Guiné-Conakry, o Senegal, a Gambia e a Guiné-Bissau que passa necessáriamente pela harmonização de leis para o combate ao fenómino, reforço de controlo de fronteira e partilha de informação através de instituições de protecção das crianças.


DIREITOS ECONÓMICOS DAS MULHERES

A abordagem da problemática dos direitos económicos da mulheres na Guiné-Bissau impõe logo à partida uma análise da previsão normativa deste direito na esfera jurídica das mulheres. Porquanto, é imprescindível analisar a Constituição da República da Guiné-Bissau que por via dos preceituados nos artigos 11º e 12º podemos retirar os principais corolários dos direitos económicos a saber: Direito à iniciativa privada: que consiste na possibilidade de exercício pleno e efetivo de atividades económicas, sem quaisquer limitações, incluindo as atividades de empreendedorismo, financeiras e empresariais. Direito à Propriedade privada: atribuindo aos cidadãos a faculdade de ser portador ou portadora de direito de propriedade ou de pertença de bens e serviços de domínio privado sob a proteção da lei. Estas duas decomposições do direito de propriedade podem variar de grau ou de magnitude na Guiné-Bissau quando tem como sujeito, o individuo de sexo feminino. Não obstante a consagração pela Constituição da República do princípio de igualdade entre homem e mulher (art. 25°), constitui uma prática generalizada a discriminação económica e violência patrimonial contra as mulheres. Estes divios ao quadro legal (costume contra-legem) acabam por ter maior aplicação na vida prática das pessoas em virtude das práticas tradicionais, colocando as mulheres numa situação de exclusão e de empobrecimento sistemático, senão vejamos:

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A) O ACESSO À TERRA O acesso ou possibilidade de ser proprietário de direito de uso privativo sobre a terra é extremamente importante para o sustento e a sobrevivencia da maioria de familia guineense. Apesar de 77% são envolvidas em agricultura de acordo com dados de ILAP 2011, poucas são as mulhres que conseguem exercer este direito plenamente devido aos usos e costumes tradiconais dicriminatórios. De acordo com o estudo desenvolvido pela Faculdade de Direito de Bissau sobre Direito Costumeiro Vigente na Guiné-Bissau, as mulheres enquanto casadas não têm acesso aos bens imóveis e nem podem ser proprietárias de direito de uso privativo de terra. A Lei 5/98, de 28 de 1998, Lei que estabelece o regime jurídico de acesso e gestão da terra, reconhece o princípio de igualdade no acesso à terra (art 4º) segundo ao qual “a todos os cidadão é reconhecida, nos termos, da presente lei, o direito de uso privativo de terra, sem discriminação de sexo, de origem social, ou de proveniência dentro do territorio nacional”. Paradoxalmente esta mesma Lei remete a forma de aquisição de uso privativo de terra ao contrato de concessão e a regulamentação pelo direito consuetudinário, sendo este último a principal forma de acesso à terra na Guiné. Portanto remeter a regulação de acesso à terra ao direito costumeiro por via do art. 11° da Lei de Acesso à Terra, implica aprofundar o nível de desigualdade de género e a disparidade de acesso entre homem e mulher no acesso a um recurso tão valioso e importante para a economia e o desenvolvimento em África. Neste quadro torna imperativo tendo em conta a imposição do principio de


igualdade previsto no art. 25º da Constituição e demais normas nacionais e interancionais rever este dispositivo, atribuindo às mulheres iguais direitos que os homens no acesso à terra porque é a obrigação de Estado, criar condições para eliminar todas as forças de discriminação com base no género.

B) DIREITO DE SUCESSÃO É dos direitos humanos que obedecem mais os critérios do direito costumeiro na Guiné-Bissau na medida em que as mulheres praticamente não são consideradas herdeiras ou legatárias em termos de aquisição de bens. Esta percepção tem reflexo em todas as étnias com base nos argumentos que sustentam que o homem é o núcleo e a base de continuidade da família, razão pela qual, precisa de recurso para prosseguir este propósito e defender os valores da família. Contrariamente as mulheres que são dadas em casamento, momento a partir do qual, passam a pertencer uma nova família, onde também não podem beneficiar de bens do falecido marido porque a qualquer momento podem voltar a familia de origem. Estas duas visões antagnonicas afectam sobremaneira o gozo e exercicio de direitos económicos das mulheres e representa um dos principais motivos de empobrecemente em Àfrica. O Código Civil da Guiné-Bissau reconhece a capacidade sucessória a todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, da mesma forma, o Protocolo de Maputo, ressalta no seu artigo 21º que “como os homens, as mulheres têm o direito de herdar os bens dos seus parentes, em partes equitativas” e a viúva também “tem direito a uma parte equitativa na herança dos bens do seu cônjuge”.

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Portanto, é preciso incentivar e sensibilizar as mulheres a recorrerem sempre que necessário às instâncias judiciais quando estiverem perante discriminação inerente ao processo de sucessão seja dos pais, assim como do marido.

C) DIREITO DE TRABALHO É um direito fundamental porque determina grandemente o nível de vida das pessoas e constitui um dos factores fundamentais para a realização dos demais direitos económicos e sociais. O trabalho acaba em última instância por servir como único meio de subsistência das pessoas. Em consonância com os propósitos do presente diagóstico a atenção vai ser centrada no trabalho doméstico que apesar da sua importância na vida económica das mulheres guineennses, carece de regulamentação legal. Trabalho Doméstico Consiste num trabalho exercido em domicílio, “em que uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com caracter regular, sob sua direcção e autoridade, actividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou especificas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respectivos membros”. Esta definição engloba trabalhos como confecção de refeições, lavagem e tratamneto de roupas, limpeza e arrumo de casa, vigilância e assitência de crianças, tratamento de animais domésticos, execução de serviços de jardinagem entre outros. Este sector de que depende a vida económica de muitas mulheres e raparigas nunca foi regulamentado na Guiné-Bissau. A Lei Geral de Trabalho Lei 2/86, de 5 de Abril remete no seu art. 1º, número 2 para uma regulamentação


ulterior esta matéria que acaba por ficar ser suporte jurídico até à data presente, colocando em situação quase de escravidão as empregadas domésticas despersas em grandes centros urbanos do país, sem qualquer proteção em termos de riscos e segurança no local de trabalho. Todavia, tudo indica que esta problemática de proteção de actividades económicas ligadas às mulheres poderá ter uma solução à vista na medida em que o Governo recentemente submeteu à Assembleia Nacional Popular uma Proposta de Código de Trabalho. Esta iniciativa legislativa tem como objectivo estabelecer um novo regime juridicó-laboral que procura dar respostas às novas exigências do Mercado, visto que já passaram 25 anos sobre a data da entrada em vigor da Lei Geral de Trabalho vigente (Lei 2/ 1986, de 5 de Abril). Esta manifestação de vontade politica é louvável porque qualquer sector laboral que constitui a fonte de economia e de produção de riqueza deve ser regulado para assguar os direitos dos trabalhadores que potencialmente se encontram em situação de vulnerabiliade face ao empregador. É nesta base que a Organização Mundia de Trabalho (OIT) recomenda a todos os estado no sentido de adoptarem todos os mecanismos necessários para garantir a segurança e a protecção jurídica nas relações entre trabalhador e empregador seja de que natureza for. Na senda da protecção laboral, a Proposta para o novo Código de trabalho fixa como idade minima para a inserção no mercado de trabalho 16 anos, contrariamente ao regime em vigor que permite trabalho de menor a partir dos 14 anos. Igualmente o projecto de revisão da Lei Geral de Trabalho estabelece como período laboral máximo para as empregadas domésticas, 44 horas semanal e atribui as mesmas, os direito às ferias, à

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segurança e à saúde no trabalho e a possibilidade de fixação de remuneração minima por um diploma especial. Esta iniciativa de alteração de regime laboral se for acolhida pela Assembleia Nacional Popular irá representar uma transformação positiva no dominio dos direitos económicos das mulheres que representam a esmagadora maioria dos trabalhadores domésticos na Guiné-Bissau. Contudo este novo regime não deve ser muito ambicioso por exemplo em termos de fixação de salário mínimo para trabalho doméstico ou aumento de subsidio de férias iguais ou superior aos dos seus empregadores, sob pena de tornar muito exigente este mercado, provocando estrangulamentos que vão incentivar a clandestinidade ou o desemprego neste sector. Nesta ordem de ideia, a Assembleia Nacional Popular antes de avançar para a aprovação do referido diploma, deve promover uma consulta nacional abrangente e inclusiva com todos os interessados, incluindo as mulheres que trabalham neste sector para melhor compreender o ambiente laboral e os desafios que a lei precisa de responder.

D) ASSÉDIO SEXUAL Finalmente e para concluir o capítulo de direitos económicos das mulheres é fundamental enfatizar que uma das condutas mais lesivas da liberdade de autodeterminação sexual das mulheres em todo mundo não está legalmente regulada na Guiné-Bissau. Assédio Sexual é uma forma de coerção que atentanta contra a integridade física e moral das pessoas, em particular das mulheres por alguém em posição hierarquicamente superior à da vitima.


Este fenómino não congrega unanimidade quanto à resposta legal que lhe deve ser dada, ou seja, há posições antagónicas entre os juristas sobre a dignidade penal de assédio sexual, uns defendem que seja apenas uma contravenção prevista no código de trabalho e sujeito à multa. Outros defende o contrário ou seja, a previsão de um crime de assédio no código penal, porque a via de contravensão é insuficiente face à gravidade da conduta. portanto, os defensores da penalização consideram que uma sanção penal tem a carga desuasora maior e consequentemente, vai ter um impacto maior em termos de combate a este fenómino. A nossa conclusão vai no sentido de perfilhar a posição de criminalização de assédio sexual porque numa sociedade como a guineense em que a prática do género é quase tolerável e aceite como natural, qualquer iniciativa que não tenha a carta sancionatória penal, implicária um incentivo para perpetuar esta violção tão grave da liberdade e dignidade da pessoa, em especial das mulheres nos locais de trabalho.

CONFORMAÇÃO E EFETIVAÇÃO DAS NORMAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS

Não obstante ao reconhecimento e à incorporação dos principais instrumentos internacionais e regionais em direitos humanos, nomeadamente o Pacto Interancional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Interacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, a Convenção sobre

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os Direitos da Criança, a Carta Africa dos Direitos do Homem e dos Povos, o Protocolo à Carta Africana relativos aos Direitos das Mulheres e o Protocolo à Carta Àfricana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança em Àfrica, a Guiné-Bissau continua a enfretar dificuldades em termos de consolidação de estado de direito. A lei enquanto conjunto de princípios e normas com objectivo de ajustar a conduta dos individuos aos padrões de valores sociais, politicos, económicos e culturais aceites numa sociedade em cada época, carece de automatismo ou seja, a sua concretização requer o concurso de vários factores determinantes. Para este diagnóstico em concreto julga-se importante uma abordagem sobre os desáfios que as autoridades enfrentam na efectivação das normas nacionais e internacionais tais como.

A) AJUSTAMENTO E UNIFORMIZAÇÃO DO DIREITOS INTERNO AO DIREITOS INTERNACIONAL O ordenamento jurídico interno guineense apesar de reconhecer a compatibilidade com o direito interno e sobreposição do direito internacional sobre as leis nacionais, excepto normas constitucionais. Continua a persistir a incongruência entre o direito interno e o direito internacional. Pelo que é urgente uma inventariação e avaliação do quadro legal nacional para apurar os desfasamento e as lacunas existentes para uma melhor consolidação do sistema nacional de proteção dos direitos humanos, sendo que o Direito Internacional desempenha um papel fundamental na promoção dos direitos humanos por duas razões fundamentais: (1) funciona como fonte de


inovação dos padrões e princípios gerais de orientação das normas nacionais e por outro lado, (2) serve como uma espécie de reservatório subsidiário e complementar ao direito interno, o que lhe permite suprir as lacunas existentes, dando assim, uma maior densificação ao ordenamento jurídico interno e uma maior protecççao às pessoas.

B) O PROBLEMA LIGADOS À EFECTIVAÇÃO DAS NORMAS DO DIREITO INTERNO No âmbito do direito interno a problemática de concretização prende-se como a não institucionalização do direito positivo na administração pública e judiciária, isto é, os casos como casamento forçado, relação sexual entre marido e mulhere, tráfico de criança e a violência doméstica continuam a ser tratados como situações toleráveis e perante às quais se recorre por recomendação das autoridades ao mecanismo de Djokraendam (mediação e conciliação no âmbito de justiça tradicional). Para esta matéria ainda podemos citar casos civéis que são rolvidos sistemáticamente nas esquadras de policia e a situação do condicionamento de tratamento médico de vitimas de violência com base no género à utorização de forças de segurança, mesmo quando se trata de casos graves que reclamam respostas médicas urgentes.

C) A PRIMAZIA DA JUSTIÇA TRADICIONAL SOBRE A FORMAL É notório em todo território nacional a aplicação e a obidiência com maior frequência ao direito costuméiro mesmo tratando-se de costume contra-

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-legem. A título de exemplo, casos como a violência doméstica, acesso à terra e exploração de criança dificilmente chegam à justiça porque antes de tudo são em primeira mão, submetidos à conciliação familiar, depois o caso deve seguir por ordem de importância ao djarga, comité de tabanca ou chefe de tabanca, se não tiver solução passa para o regulo e, mais tarde à policia. Em suma, o caso só chega ao tribunal quando todas essas instâncias de resolução de conflitos forem superados sem sucesso. Para uma melhor ilustração segue a tabela de hierarquização de instâncias de resolução de conflitos de acordo com a percepção e as práticas tradicionais em quase todo o territorio nacional, incluindo a capital Bissau onde há maioria de casos de conflitos terminam nas esquadras de polícia.

/ Família / Djarga / chefe de tabanca/ comité de tabanca / Régulo / Polícia / Tribunal

Mediante o esquema acima descrito, os tribunais surgem em 5º lugar na ordem da recurso dos cidadãos às instâncias de resolução de conflitos. Durante o desenvolvimento do presente diagnóstico foi entrevistado um juiz colocado no Tribunal Regional de Gabu há 5 anos. Este confessou que ainda não foi julgado nenhum caso de tráfico numa região em que o fluxo do fenómico faz parte do dia-a-dia. De acordo com este magistrato, o facto deve-se muito ao


recurso sistemático dos cidadãos à justiça tradicional e à recorrente interferência de Policia local na administração da justiça. No quadro de processo relacionado com o tráfico de pessoas único papel que o Tribunal tem desenvolvido é de contribuir para a assinatura de Termos de Responsabilidade por meio dos quais, os pais das crianças repatriadas assumem a obrigação de não retornar filhos para a procedência neste caso, ao Senegal, à Gambia ou à Guiné-Conakry. Ainda no quadro das estrevistas conduzidas a propósito do presente diagnóstico, o Delegado do Ministério Público do Tribunal Regional de Gabu sublinhou que a Polícia só leva casos para o tribunal quando não tiver a capacidade para a sua resolução. Tendo citado exemplo de uma criança de 11 anos vítima de abuso sexual, que ocorreu em Abril de 2015, cuja responsabilização criminal ficou paralisada porque as autoridades tradicionais avocaram o processo, invocando o seu carácter familiar. O caso crime acabou por ser resolvido ao abrigo do direito costumeiro através de Djokraenda i.e, conciliação. Na procura de respostas para esta realidade, constatamos que a fragilidade e a ausência de estado nas regiões, associados à falta de infraestruturas judiciarias têm incentivado e contribudo muito para a manutenção deste status quo. Uma das soluções para a inversão desta tendência preocupante passa necessariamente pela construção de uma cultura juridica em conformidade com o direito positivo através de reforço de mecanismos de informação e consulta jurídica aos cidadãos. Isto implicaria o alargamento dos trabalhos de Centros de Acesso à Justiça para promover uma maior aplicação da Lei de Acesso à Justiça e assegurar uma justiça igualitária e racional ao alcance de todos.

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D) CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE AS FORÇAS DE SEGURANÇA: Existe também outros factores de estrangulamento na concretização das normas jurídicas nomeadamente os conflitos de competências entre as forças de segurança no âmbito de investigação criminal, nomeadamente entre a Policia de Ordem Pública, Guarda Nacional e Policia Judiciária. Havendo situações em que todas as três entidades são envolvidas na investigação do mesmo caso, pondo em risco o sucesso da investigação e a busca da verdade. A opção legislativa de atribuir à Policia de Ordem Pública por via do Art. 3, número 2 alinea E) da Lei 9/2010 de 22 de Junho e a Guarda Nacional através do Art. 3º número 1, alinea E) da Lei 8/2010 de 22 de Junho,) as mesmas competências para a investigação criminal, afecta bastante a organização e a coordenação necessárias entre as unidades de combate a crime, em especial para os crimes transnacionais como caso de tráfico de criança. Em conformidade com os esforços nacionais e interancionais no combate a impunidade na Guiné-Bissau e na afectivação das normas nacionais e internacionais, é fundamental a revisão dessas normas, retirando de pereferência a competência para a investigação criminal à Guarda Nacional, deixando esta estrutura de segurança apenas com as competências de segurança e ordem pública. Esta solução permitiria um conjugar de esforços entre a Policia Judiciária enquanto não for totalmente descentralizada, ou seja, a Policia da Ordem Pública passaria a exercer a competencia criminal apenas nas áreas onde não existe a Policia Judiciária.


CONCLUSÃO

A Guiné-Bissau enquanto estado sobernado proclamou a sua indepedência com base nos valores inerentes à dignidade humana. Este enunciado da fundação da república cristaliza-se no art. 3° da Contstituição, segundo o qual, “a República da Guiné-Bissau é um estado democratico, fundado na unidade nacioal e orientado para a construção de uma sociedade livre e justa”. Esses valores universais que constituem os alicerces dos estados modernos, não representam apenas meras declarações de intenção ou expressão de vontade politica, mas sim constituem obrigações e tarefas principais do estado. Portanto, a existência de um estado livre e justa passa essencialmente pela promoção de igualdade independetemente de origem, da afinidade etnico-tribal, de ideologia, de religião, de sexo entre outros. Este propósito só pode ser alcançado mediante uma firme determinação do Estado em combater instrasigentemente todas as formas de discriminação ou exclusão social assim como, de criar mecanismos sociais, culturais, politicas e legais para a protecção dos direitos fundamentais dos grupos vulneráveis ou das minorias numa determinada sociedade. É nesta perspectiva que a Constituição além de consagrar um conjunto de direitos fundamentais, reconhece como parte do sistema juridico nacional, as demais regras aplicáveis de direito internacional. Esta permissa constitucional conduziu ao Estado da Guiné-Bissau a aderir a várias convenções entre as quais, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres em 23 de Agosto de 1985 e a Convenção sobre os Direitos da Criança em 20 de Agosto de 1990.

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Não obstante, persiste ainda à semelhança de muitos países, sobretudo da África o desfasamento entre a ordem jurídica instituida e a realdidade juridica vivida. Esta situação acresce ao processo transitório de conformação da contuda dos individuos ao quadro legal, às dificuladades inerentes à própria fragilidade das instituições públicas, em particular nas regiões, onde funcionam estruturas descentralizadas anteriores ao estado de natureza etnico-tribal, com maior afirmação nas respectivas comunidades. Esta realidade aprofunda ainda mais o antogonismo entre o direito positivo e o direito consuetudinário, entre o poder político instituido e o poder tradicional enraizado, criando assim duas dimensões da ordem juridica não complementares entre si, mas sim, sobrepostas num único estado ou espaço geográfico. Daí, resulta um dos maiores problemas de gozo e exercicio efectivo dos direitos humanos na Guiné-Bissau que fazem parte também do escopo deste diagnóstico, que além de analisar o quadro normativo internacional e nacional sobre direitos económicos da mulheres, tráfico de crianças e violência contra as mulheres, procura também avaliar os desafios no dominio de concretização prática dos direitos consagrados e reconhecidos na ordem juridica guineense. Por outro lado, ficou provado ao longo do presente diagnóstica que a situação dos direitos humanos das mulheres e crianças não devem ser vista apenas no quadro normativo porque além das disparidades existentes sobre algumas matérias, entre o Direito Internacional e Direito Interno, o direito costumeiro tem servido de principal obstáculo ao gozo e ao exercicio pleno dos direitos fundamentais na Guiné-Bissau.


Portanto, como reza o Protocolo de Maputo no seu art. 5º é preciso assegurar o direito à dignidade as mulheres em África para poderem deixar de ser reduzidas a meros instrumentos para servir os propósitos dos homens. Este desiderato precisa de ser incorporado e institucionalizado no sistema nacional de proteção dos direitos humanos porque o Direito Internacional e os sistemas jurídicos nacionais são compatíveis, entre eles prevalece uma relação de corpo e espírito, ou seja de subsidariedade e complementaridade, dado que os princípios e as normas internacionais só ganham a sua verdadeira essência e alcance, quando sejam considerados partes integrantes do Direito interno e sejam efectivamente aplicados pelas instâncias nacionais competentes para a administração da justiça. Pois, é urgente que as novas reformas no sector da justiça dediquem uma atenção particular ao ajustamento do quadro nacional ao direito internacional, associado a uma campanha nacional para a promoção de justiça ao alcance de todos através de informação e sensibilização sobre os direitos das mulheres em todos os dominio de modo, a reduzir o impacto de usos e constumes descriminatórias nas suas vidas. Igualmente, concluimos durante este diagnóstico que a situação da justiça na Guiné-Bissau tem uma dimensão complexa e transversal, sendo que muito dos problemas que ela enfrenta não são próprios do dominio jurídico ou juridiciário mas sim, têm origem noutros segmentos da vida pública, começando pela própria adminstração pública e pelo ambiente político. Os principias desafios da justiça na Guiné-Bissau prendem-se com o reflexo de sentimento jurídico e da consciência jurídica da sociedade na medida em que a maoioria dos problemas que a justiça enfrenta tem que ver com a for-

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ma como ela foi compreendida no passado e a sua configuração no aparelho de estado desde a proclamação do estado guineense, designadamente: a articulação entre a justiça e segurança, a interferência sistemática das forças de segurança na administração da justiça, a dimensão social e cultural da justiça e a relação entre a justiça formal e tradicional. Portanto os procedimentos criados e os hábitos adqueridos desde os primórios continuam a fazer parte do dia-a-dia da administração da justiça mesmo perante inúmeros diplomas legais que foram sendo adoptado para o efeito. Esta necessidade profunda de reforma no sector da justiça à semelhança de muitos outros sectores da vida pública necessita ainda de um longo caminho a percorrer com vista a criar condições efetivas para que os padrões internacionais, designadamente, os princípios de separação de poderes, da independência do poder judicial, da imparcialidade, da igualdade, da competência, enfim da legalidade seja plenamente cumprida e aplicada no sistema judiciario guineense. Esta mesma conclusão foi igualmente evidenciada pelo Governo que aprovou recentemente o Programa de Reforma para o Sector de Justiça 2015-2019. A falta de infraestruturas judiciárias e equipamentos para o funcionamente adequado nos tribuinais, bem como de segurança para os magistrados, juizes, inspectores e investigadores vulnerabilizam os responsáveis pela aplicação da lei e as tornam inoperantes e vulneráveis perante os demais poderes públicos e face aos desafios que se lhe colocam. A promoção e a proteção dos direitos humanos fazem-se necessariamente com a conjugação perfeita da aplicação das normas internas e internacionais, bem como de articulação dos mecanismos nacionais e internacionais


de defesa e promoção dos direitos humanos. Esta atribuição compete em primeira mão à Justiça, enquanto uma das atribuições mais antigas e principais do estado, que além de constituir um direito fundamental dos cidadãos, traduz-se num factor fundamental para a pacificação da sociedade e efectivação prática das leis no mundo dos factos com vista a garantir uma sintonia imperativa entre o dever ser e o ser, ou seja, a chamada, consolidação do estado de direito. Finalmente, seria lacunar não referir que a realização de justiça jamais pode ser um objectivo atengível enquanto os alicerces sobre os quais se repousa, constinuarem a apresentar fortes sinais de fragilidades ou de disfuncionamento, nomeadamente o governo, o parlamento, as forças de segurança e os serviços prisionais. Perante as considerações acima aduzidas e com base na conclusão a que chegamos ao longo do presente diagnóstico, seguem as recomendações:

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RECOMENDAÇÕES A) VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

/ Criminalização de casamento forçado e precoce para conformar o quadro legal nacional às normas previstas na CEDAW e no Protocolo de Maputo contra a discriminação e violência com base no género;

/ Redifinição de mecanismos de fiscalizaçãoo de mutilação genital feminina, envolvendo a observação médica obrigatória, desde que haja motivos fortes e fundados da prática nas crianças

/ Definição clara do âmbito de intervenção da justiça tradicional tendente a evitar extrapolações e obstáculos à boa administração da justiça, sobretudo quando estão em causa questões ligadas aos direitos fundamentais;

/ Revisão concretamente do art. 1601º de código civil para elevar a idade núbil ou a capacidade matrimonial de 16 para 18 anos em conformidade com o art 6º alinea b) do Protoco à Carta Africa dos Direitos do Homem e dos Povos relativos ao Direitos das Mulheres em África;

B) TRÁFICO DE CRIANÇA

/ Proibição e criminalizaçãoo de trabalho infantil tal como recomenda a Convenção sobre os Direitos da Criança, a qual obriga os


estados a adoptar medidas tendente à criminalização de comportamentos que se traduzem na exploração de criança;

/ Ratificação da Convenção da OIT número 138 sobre a Idade Mínima de Admissão ao Emprego com vista à proteção de menores faces aos riscos e insegurança no mercado de trabalho;

/ Revisão da Lei Geral de Trabalho para elevar a capacidade jurídico-laboral de 14 anos para 16 anos, permitindo assim o comprimento de escolaridade obrigatória e evitar casos de crianças em situação de risco ligados ao Mercado de trabalho numa idade muito tenra, em consonância com a Convenção da OIT número 138 relativa à idade mínima de admissão no Mercado de trabalho;

/ Integração na próxima revisão constitucional de normas para a protecção das crianças contra exploração, tráfico, tabalho infantil e quaisquer outras práticas nocivas ou susceptivés de pôr em risco a vida, a liberdade e a segurança do menor.

/ Aprovação urgentemente de uma lei que regulamenta a criação de centros de acolhimento das crianças vítimas de tráfico e de violência em geral;

/ Adopção de uma lei de protecção das criançs em perigo para dar respostas imprescendiveis a casos de menores em conflitos com a lei, vítimas de exploração e de abandono.

/ Harmonização de normas e conclusão de acordos judiciários para a prevenção e combate ao tráfico de criança entre a Guiné-Bissau,

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Senegal, Gambia e Guiné-Conakry em virtude da natureza transnacional deste fenómino;

C) DIREITOS ECÓNOMICOS DAS MULHERES

/ Ratifição da Convenção N˚ 189 da OIT relativa ao Trabalho Doméstico e a sua consequente harmonização com a legislação nacional;

/ Regulamentação do trabalho doméstico de acordo com a Convenção N˚ 189 da OIT no sentido de conceder esta actividade económica fundamental para as mulheres na Guiné-Bissau, maior segurança jurídica e protecção social

/ Adopção de um novo regime juridico-laboral sensível ao género, atribuindo as mulheres vantagens inerentes à sua condição especial, nomeadamente licença em caso de gravidez de risco, licença de maternidade, dispensa de amamentação entre outras;

/ Revisão urgente da Lei que regulamenta o acesso à terra por forma a proibir à aquisição do direito de uso privativo de terra por via de costumes contra-legem ou seja, através de usos e costumes incompatíveis com o principio de igualdade entre homem e mulher;

/ Criminalização do assédio sexual para garantir uma maior segurança e dignidade as mulheres no ambiente laboral, sendo que constituem as principais vitimas desta prática na Guiné-Bissau;


D) CONFORMAÇÃO E EFECTIVAÇÃO DO QUADRO LEGAL NACIONAL E INTERNACIONAL

/ Promoção de um programa justiça ao alcance de todos que passa pelo alargamento de Centro de Acesso à Justiça e campanhas de sensibilização e de informação sobre as vantagens da justiça formal;

/ Institucionalização de igualdade de género através de criaçao de verdadeiras unidades e brigadas de assistencia às mulheres vítimas de violência, com capacidade técnica e operacional para exercer as suas competências nas estruturas de segurança, em particular nas regiões;

/ Assegurar a descentralização da Polícia judiciária nas Regiões por forma a reforçar a capacidade de resposta das autoridades judiciárias no combate à violência contra as mulhere e tráfico de criança;

/ Redifinição legal das competências das Forças de Segurança na matéria de investigação criminal de modo a evitar os conflitos de competências entre elas em particular entre a Policia de Ordem Pública e a Guarda Nacional.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Estudo sobre tráfico de crianças na Guiné-Bissau – um estudo exploratório, Unicef Islândia – 2010 Relatório da Liga Guineense dos Direitos Humansos sobre a Situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau - 2010/2012 Manual de Assitência Directa a Vítimas de Tráfico de Pessoas da OIM adaptada ao contexto da Guiné-Bissau Textos Fundamentais de Direitos Humanos Volume I – Faculdade de Direito de Bissau - PNUD 2013 Um Retrato sobre a Violência contra Mulheres na Guiné-Bissau, Junho de 2011 Compreender os Direitos Humanos – Manual de Educação para os Direitos Humanos – Versão em língua portuguesa – Maio de 2013 Direito Costumeiro Vigente na Guiné-Bissau – Faculdade de Direito de Bissau Protecção Jurídica da Criança no Direito Positivo, Radda Barnen e Liga Guineense dos Direitos Humanos Colectânea Fundamental de Direito Penal e Legislação Complementar, 2ª Edição – UNIOGBIS


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ANEXOS ARTIGOS DA CONSTITUIÇÃO RELATIVOS AOS DIREITOS DAS MULHERES E CRIANÇAS ARTIGO 12° 1 - Na República da Guiné-Bissau são reconhecidas as seguintes formas de propriedade: a) (...) b) (....) c) A propriedade privada, que incide sobre bens distintos do Estado.

Art. 12º Reconhece no seu número 1 alinea c) o direito à propriedade privada na Guiné-Bissau.

O Estado reconhece direito à herança, nos termos da lei.

Art. 14º Consagra o direito à sucessão ou à herança

ARTIGO 24° Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de raça, sexo, nível social, intelectual ou cultural, crença religiosa ou convicção filosófica.

Art. 24º Principio da igualdade (a constituição não prevê o principio da universalidade mas retira-se deste mesmo artigo 24º)

ARTIGO 25° O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural.

Art. 25º Igualdade entre homem e mulher no fundo serve de fundamento para igualdade de género.


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ARTIGO 26° 1 - O Estado reconhece a constituição da família e assegura a sua protecção. 2 - Os filhos são iguais perante a lei, independentemente do estado civil dos progenitores. 3 - Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos

Art. 26º Igualdade entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento, uma vez que havia uma separação entre os filhos legítimos (nascido no casamento) e os ilegítimos nascidos fora de casamento). Estes último não tinham direito à herança ou sucessão.

ARTIGO 27° 1 -Todo o cidadão nacional que resida ou se encontre no estrangeiro goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres que os demais cidadãos, salvo no que seja incompatível com a sua ausência do País. 2 - Os cidadãos residentes no estrangeiro gozam do cuidado e da protecção do Estado.

Art. 27º estabelece igualdade entre os cidadãos nacionais, residentes no estrangeiro e na Guiné-Bissau. À luz deste artigo os nacionais que vivem na diáspora ou no estrangeiros, sejam eles ao serviço da pátria ou imegrantes gozam dos mesmos direitos.

ARTIGO 28° 1 -Os estrangeiros, na base da reciprocidade, e os apátridas, que residam ou se encontrem na Guiné-Bissau, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que o cidadão guineense, excepto no que se refere aos direitos políticos, ao exercício de funções públicas e aos demais direitos e deveres expressamente reservados por lei ao cidadão nacional.

Art. 28º Igualdade de direito entre os cidadãos nacionais e estrangeiro, mas o artigo consagra o princípio da reciprocidade ou seja, os estrangeiros só gozam dos direitos que os guineenses podem gozar no seu estado de origem. Salvo os direitos políticos e acesso à administração pública que em príncipio são reservados aos nacionais. Ex: do Direito de voto ou de participação política.

Igualmente o artigo consagra o dever de Estado de assegurar a criação de família.


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2 -O exercício de funções públicas só poderá ser permitido aos estrangeiros desde que tenham carácter predominantemente técnico, salvo acordo ou convenção internacional. ARTIGO 29° 1 -Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das demais leis da República e das regras aplicáveis de direito internacional. 2 -Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Art. 29º Este artigo é muito importante porque vem abrir o leque dos direitos fundamentais, não só para os previstos na Constituição mas também, para os que constam dos outros textos internacionais. E por outro lado, reconhece a Declaração Universal dos Direitos Humanos como parte integrante da Constituição e obriga que qualquer interpretação de direitos fundamentais previstos na constituição seja feita de acordo com a DUDH.

ARTIGO 30° 1 -Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2 -O exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais só poderá ser suspenso ou limitado em caso de estado de emergência, declarados nos termos da Constituição e da lei. 3 -As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm carácter geral e abstracto, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e não podem ter efeitos retroactivos, nem diminuir o conteúdo essencial dos direitos.

Art. 30º É um dos artigos mais importantes no capitulo de direitos fundamentais, este artigo apenas diz respeito aos direitos liberdades e garantia não abrange os direitos económicos e sociais. Consagra o princípio de não restrição de direitos liberdades e garantias, da sua exequibilidade imediata independentemente de condições sociais e económicas. E por fim, consagra o princípio da proporcionalidade e da limitação de direitos liberdades e garantias apenas em caso de estado de sitio ou de emergência. Ex: a liberdade de circulação pode ser limitado apenas em caso de estado de sítio ou de emergência.


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ARTIGO 32° Todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Art. 32º Prevê a tutela jurisdicional ou seja, a garantia de acesso ao tribunal para fazer valer o seu direito. De igual modo, reconhece o direito ao patrocinio judiciário gratuito para os que não têm capacidade financeira para suportar os custos do processo. Esta norma foi concretizada pela Lei 11/2010 Lei de Acesso ao Direito e à Justiça que permite mesmo aos cidadãos desprovidos de recursos ter acesso aos tribunais porque a justiça deve estar ao alcance de todos.

ARTIGO 34º Todos têm direito à informação e à protecção jurídica, nos termos da lei.

Art. 34º Prevê o direito à informação e à protecção jurídica. Este artigo deve ser conjugado com o artigo 32º para melhor percepção. O direito previsto neste artigo constitui a principal tarefa dos Centros de Acesso à Justiça.

ARTIGO 35º• Nenhum dos direitos e liberdades garantidos aos cidadãos pode ser exercido contra a independência da Nação, a integridade do território, a unidade nacional, as instituições da República e os princípios e objectivos consagrados na presente Constituição.

Art. 35º Integra o leque de artigos mais polémicos no capítulo de direitos fundamentais porque consagra limites aos direitos fundamentais em nome das instituições da república ou do interesse do estado. É um artigo que já vinha desde a constituição de 1973 com inspiração marxista numa clara visão de protecção de Estado. Hoje em dia, este artigo não faz sentido no quadro de estado de direito democrático por isso, deve ser interpretado de acordo com o artigo 29º da DUDH.


ARTIGO 37° 1 -A integridade moral e física dos cidadãos é inviolável. 2 -Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, desumanos e degradantes. 3 -Em caso algum haverá trabalhos forçados, nem medidas de segurança privativas de liberdade de duração ilimitada ou indefinida. 4 -A responsabilidade criminal é pessoal e intransmissível.

Art. 37º Prevê o princípio de respeito pela integridade física e moral dos indivíduos e contempla ainda que a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível. Isto significa que ninguém pode ser responsabilizado por acto criminoso que não praticou.

ARTIGO 45° 1É reconhecida aos trabalhadores a liberdade sindical como forma de promover a unidade, defender os seus direitos e proteger os seus interesses. 2 – (...)

Art. 45º Consagra os direitos dos trabalhadores e funciona como constituição de direito de trabalho. Reconhece a liberdade sindical

ARTIGO 58º Em conformidade com o desenvolvimento do País, o Estado criará progressivamente as condições necessárias à realização integral dos direitos de natureza económica e social reconhecidos neste título.

Art. 58º É único artigo que fala sobre os direitos económicos e sociais. Como é natural faz depender os direitos económicos, sociais e culturais da capacidade de resposta do estado. Para efeito é necessário recorrer a Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos outros instrumentos para identificar quais são esses direitos em função da sua natureza porque a constituição não inumera esses direitos de forma clara.

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