Edição 304 Jornal Universitário de Coimbra - A Cabra

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28 DE SETEMBRO DE 2021 ANO XXXI Nº 304 GRATUITO PERIÓDICO DIRETOR TOMÁS BARROS EDITORES EXECUTIVOS FRANCISCO BARATA­­­ E CARINA COSTA

JOÃO RUIVO

EDIÇÃO ESPECIAL Caminhando pelas escadas e ladeiras de Coimbra, é preciso olhar para baixo para depois subir. As histórias aqui contadas não são nada mais que a cidade a refletir sobre si própria JOÃO RUIVO

“Há sempre alguém que ­semeia canções no vento que passa” Manuel Alegre


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Coimbra teria mais encanto sem hora da despedida

INÊS RUA

- POR INÊS RUA -

Coimbra tem mais encanto na hora da despedida” diz a balada composta por Fernando Machado Soares. A música que emociona o canto dos estudantes traduz a realidade vivida por muitos deles: a cidade que os acolheu no ensino superior é apenas um local de passagem até concluírem o seu percurso académico. O que leva as pessoas a abandonarem a cidade que os apaixonou? Catarina Martins, professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) e investigadora do Centro de Estudos Sociais da UC (CES/ UC), destaca a falta de tecido social em Coimbra. Isto significa que “há poucas possibilidades de emprego e de fixação para quem é formado pelas instituições de ensino superior, mas também para a população em geral”, explica. A existência de atividade industrial contribui para a criação de empregos e é certo que, por largos anos, Coimbra tem passado por períodos de desindustria­l ização interna. O declínio deste setor traduz-se no encerramento de muitas fábricas, na falência de inúmeras empresas e decréscimo do emprego. Catarina Martins destaca os edifícios abandonados como um dos problemas de muitos anos ”. Entre 1940 e 1960, várias linhas de montagem de cerâmica faziam parte do complexo industrial da Pedrulha, em Coimbra. O panorama foi mudando e neste momento essa zona da cidade apresenta-se como um “cemitério de fábricas”. Um exemplo deste cenário foi o encerramento da Estaco em 2001. Os destroços de paredes ruídas e pi­ lhas de cerâmicas partidas no extenso local deixam a memória do lema “a Estaco fechou, ninguém nos ajudou” dos trabalhadores que ficaram sem os seus empregos. A poucos metros da Estaco, encontra-se o esqueleto abandonado da Triun-

Maioria dos estudantes conimbrincenses não se fixa na cidade, após terminar a sua formação académica. “Há poucas possibilidades de emprego para quem é formado pelas instituições de ensino superior mas também para a população em geral”, considera Catarina Martins fo, fábrica alimentar que fechou em 2001. A empresa optou por concentrar a sua actividade em Mem Martins, no distrito de Lisboa. Este é mais um exemplo de ­­inúmeros setores que, ao longo dos anos, têm preferido centralizar-se nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Paulo Peixoto, professor associado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e pesquisador do CES/UC, confessa não se colocar “no plano daqueles que ficam a olhar para o passado e lamentam a perda das grandes indústrias”. Embora reconheça a situação lamentável desse desaparecimento industrial, considera que Coimbra tem hoje outras indústrias emergentes nas áreas da tecnologia e da saúde. “A própria Bluepharma, ainda agora em época de crise, anunciou a inauguração de uma nova unidade em Eiras”, afirma. Um dos problemas enunciados pelo pesquisador do CES/UC é a falta de investimento internacional na cidade. “Mais do que o problema de vermos desaparecer algumas empresas e indústrias, talvez seja mais de espantar a falta de um grande investimento internacional ou de investidores internacionais que quei­ ram usar a mão de obra qualificada que a Universidade produz como massa crítica”, considera. Outra componente elencada por Catarina Martins é a falta de alternativas no domínio das indústrias de criação cultural e artística. Paulo Peixoto refere que “o investimento na cultura e eventos culturais é aquilo que pode fazer a di­

ferença”. Para o pesquisador, a criação de empregos depende de uma agenda estruturada de oferta, onde exista a perspectiva de os agentes da cultura poderem programar a médio e longo prazo. Neste sentido, enquanto coordenador do “Estudo sobre práticas de participação cultural no município de Coimbra”, o professor da FEUC é da opinião que a candidatura à capital europeia da cultura em 2027, se for bem sucedida, é um factor acrescido na criação de empregos na área da cultura.O investigador dá ainda como exemplo o concerto do dia 8 de maio, em que a Praça da Canção foi um dos primeiros palcos a receber artistas conimbrincenses para os eventos teste-piloto realizados a nível nacional. Catarina Martins defende que, a par das atividades terciárias diminutas, as poucas empresas que existem encontram-se, na sua maioria, ligadas ao ensino superior e aos hospitais. “ Toda a atividade económica gira em torno da Universidade e das atividades académicas, como por exemplo o negócio da noite e o comércio em torno da comunidade estudantil, como o arrendamento de quartos”, reitera. Além da maior oferta de empregos estar direta ou indiretamente ligada ao ensino superior, manifesta-se também necessário criar condições atrativas à residência em Coimbra. A pandemia trouxe a realidade do teletrabalho, onde uma empresa sediada numa determinada cidade pode fornecer trabalho para qualquer parte do mundo. Por isso, “há


28 de setembro 2021 que criar condições, para que uma geração qualificada como a que sai das instituições de ensino superior, prefira viver em Coimbra e não noutro sítio”, explica Catarina Martins. Para a investigadora, Coimbra tem a opção de criar essas condições desde que haja políticas públicas nesse sentido. A criação de boas infra-estruturas de habitação e o urbanismo bem organizado são pontos essenciais. Com isto, é também necessário que a habitação tenha custos controlados para que se fomente a fixação. Cada vez mais as novas gerações procuram uma boa qualidade ambiental no sítio onde residem. Esta componente conduz à implementação de medidas como promover qualidade na saúde, oferta de espaços verdes e opções para agricultura biológica. Pensar no futuro abrange não só o ambiente coletivo, mas também aspetos da vida individual de cada residente. Por isso, é ainda importante que exista uma boa rede de transportes e boas opções de educação, para quem queira ter filhos. Incentivos e investimentos à criação de pequenas empresas é, da mesma forma, um importante fator a ter em conta. Neste sentido, Catarina Martins considera que “se a UC ou outras instituições, como o Instituto Politécnico de Coimbra, formam pessoas já com uma educação extremamente avançada, elas devem ser capazes de ser o motor de emprego”. Para Paulo Peixoto, Coimbra apresenta já algumas componentes que fazem dela uma boa cidade para residir. O professor associado da FEUC reforça que a cidade “não tem a oferta cultural de Lisboa e Porto, mas não tem os problemas de trânsito de Lisboa e de Porto; não tem as oportunidades de lazer de Lisboa e Porto, mas por outro lado tem bons espaços de lazer e tem um custo de vida mais baixo”. “As pessoas que mais se revoltam contra a cidade e que mais mal dela dizem são precisamente as que de repente, sentindo-se aqui integradas, percebem que acabando o curso têm de ir embora”,

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justifica o pesquisador do CES. Na sua opinião, isso não significa que seja uma cidade má para alguém se fixar , pois “a nível de oportunidades, ao nível do acesso aos ser viços essenciais e até aqueles que não são essenciais, tem uma boa oferta e é aprazível para se viver”. E o que dizem os antigos estudantes? Numa amostra de 143 antigos estudantes da UC e do IPC, com idades compreendidas entre os 21 e os 32 anos, 62 por cento declararam que não continuaram em Coimbra após terem terminado a sua formação académica. Dos motivos referidos, 38 por cento considerou que faltava emprego em Coimbra, 22 por cento encontrou trabalho noutro local, 15 por cento resolveu regressar ao local de naturalidade e os restantes indicaram outros motivos, nomeadamente optarem por seguir a continuidade para outros graus de estudo numa instituição diferente. Da percentagem que indicou ter continuado em Coimbra, 54 por cento foi motivada por ter encontrado trabalho ou estágio, 37 por cento teve como razão a naturalidade nesta cidade, seis por cento foi justificada com o gosto pela cidade e quatro por cento foi referente a outros motivos, como a continuação de estudos ou a persistência na procura de emprego. Dos antigos estudantes que permaneceram em Coimbra por terem encontrado emprego, 61 por cento declarou estar a trabalhar ou estagiar na sua área de formação académica. Sofia recorda quando se mudou de Riba de Ave para Coimbra para tirar a licenciatura em Direito. Embora ainda esteja a tirar mestrado na Faculdade de Direito da UC, acabou por deixar a cidade para residir em Aveiro. Neste momento, é também advogada estagiária num escritório em Espinho. Reconhece que, mesmo tendo oportunidade para realizar o curso de estágio da Ordem dos Advogados na cidade onde se formou, vários motivos a levaram a sair. Uma das razões foi a habitação, pois “há bastante oferta, mas não corresponde aos

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padrões do que alguém quer para o futuro, isto é, serve apenas para nos contentarmos enquanto somos estudantes”. Considera que os custos elevados de arrendamento podem ser um problema a nível nacional, mas em Coimbra “as casas não apresentam conforto para os preços que são praticados”. Embora destaque que estudar na UC é uma mais-valia, pois “cria-se um ambiente universitário que é único”, aponta que “a cidade em si, quer a nível cultural quer a nível profissional, não oferece grande coisa, não é assim tão apelativa”. Bárbara, residente em Ançã, no distrito de Coimbra, concluiu em 2016 a sua licenciatura em Marketing e Negócios Internacionais, no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra. Quando ingressou no mestrado, tinha um horário que lhe permitia conciliar os estudos com um estágio profissional na área. Como não conseguiu concretizar esse objetivo, decidiu “descruzar os braços e arranjar emprego no que quer que fosse”. Foi após mais de dois anos a trabalhar em lojas de centros comerciais que conseguiu arranjar o primeiro emprego relacionado com a sua área de formação. A antiga estudante do IPC refere que “não é fácil arranjar emprego em Marketing em Coimbra” e lamenta que “mesmo quando há, a expectativa da empresa não é ter uma técnica de Marketing, é ter uma faz-tudo”. Acrescenta ainda que o ordenado pago, em regra, é o estipulado pelo mínimo nacional, pelo que “Coimbra não oferece oportunidades para ser independente e sair de casa dos pais, pois as rendas são extremamente elevadas e os custos de vida também”. Quanto ao resto, Bárbara conclui que “Coimbra está bem, mas podia estar muito melhor, há potencial que podia ser aproveitado”.


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JOANA CARVALHO

JOANA CARVALHO

Ver o mal, ouvir o mal, falar sobre o mal Os últimos anos revelam uma maior consciência por parte da geração mais jovem para um problema que afeta várias pessoas, sobretudo mulheres. Em contexto universitário, o caminho para a tolerância zero ao assédio sexual faz-se devagar, mas com avanços positivos - POR JOANA CARVALHO -

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palavra “assédio”, segundo o dicionário, é definida como “o comportamento desagradável ou incómodo a que alguém é sujeito de forma repetida”. O termo pode englobar conceitos com significados diferentes, um dos quais o assédio sexual. No entanto, o facto de continuar a ser considerado um tópico sensível pode dificultar a sua compreensão e prevenção. O Supera é uma iniciativa europeia, cujo objetivo é “implementar planos de ação para a igualdade de género”, que teve início em 2018. Através de um inquérito, o projeto conseguiu reunir dados a volta do fenómeno do assédio sexual em ambiente académico. Do número total de respostas, cerca de 26 por cento de pessoas afirmam ter já passado por situações de assédio sexual e 23 por cento relataram momentos em que foram submetidos a assédio moral. Dos estudantes que respon­ deram ao inquérito, cerca de 26 por cento admitiram ter sido vítimas de assédio se­ xual e 15 por cento alegam ter sofrido de assédio moral. Mónica Lopes, coordenadora do projeto, considera estes números preocupantes pela discrepância entre o que o inquérito revela e os poucos casos que são reportados aos ser viços centrais da Universidade de Coimbra (UC). Muitos dos inquiridos

apontaram que “o apoio institucional não foi adequado, desde a falta de resposta, falta de informação sobre os procedimentos, falta de confidencialidade, anonimato e de independência de quem lidera o processo de denúncia”, explica. Quando questionado sobre a diferença de números, o Provedor do Estudante da UC, Paulo Peixoto, crê que esta tem origem no facto de possíveis vítimas não quererem abdicar do anonimato e na dificuldade em identificar uma ocorrência como assédio. Determinadas situações, “entendidas como ofensivas pelas pessoas, mas em que não houve uma ação reiterada assediante” são muitas vezes fator de confusão, revela. Em 2019, em virtude de uma nova lei posta em vigor, a UC procedeu à criação de um Código de B oa Conduta que visaria a fomentação de boas práticas nas relações de trabalho. O projeto Supera deixou, segundo Mónica Lopes, várias críticas e sugestões de alteração de forma “a ser uma estratégia proativa de prevenção de situações de assédio nas instituições”. Apesar de lidar com ocorrências entre estudantes e docentes, a investigadora lamenta que o protocolo não contemple, de forma direta, situações entre estudantes. “Estes casos cabem já noutro processo, que é o Regulamento Disciplinar

dos Estudantes da UC”, afirma. No entanto, Mónica Lopes espera que uma das medidas novas seja “arranjar uma forma de este documento ter também como âmbito de aplicação a população estudantil”. No que diz respeito ao atual protocolo para situações de assédio entre estudantes, Paulo Peixoto atribui essa responsabi­ lidade à Provedoria. Segundo o mesmo, “todas as formas de comportamentos são punidos, tanto de assédio sexual como moral”. Refere ainda que “o Provedor do Estudante está obrigado ao sigilo, tem o dever de tratar destes casos sem o revelar”, mas que após o processo ser iniciado, pode estar em causa “algum tipo de exposição pública”. Tanto Mónica Lopes como Paulo Peixoto reconhecem que situações de assédio são pautadas por dinâmicas e relações de poder. “As pessoas que assediam acham que têm poder sobre as outras pessoas”, explica o Provedor do Estudante. Já a coordenadora do projeto Supera classifica o fenómeno como “uma questão muito melindrosa e complexa de prevenir e gerir, em termos das suas consequências”. Segundo ela, a resposta deve ser a explicitação do processo de resolução e um protocolo “que possa ser acionado” no momento das ocorrências. Ambos identificam a impossibilidade de manter o anonimato como


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JOANA CARVALHO

um obstáculo ao encaminhamento. No e nt anto, p ara l á d as p or t as d a ­a c a d e m i a , e ste fe nóme no é e x p e r ie nci a do d e mane i r as dive rs as p or que m nel a estu d a . Na mai or i a d as ve z e s , as ag ress õ es nã o s e c i rc u ns c re ve m ap e nas ao esp a ço ac a d é m i c o, mas o c or re m e m c irc u nst ân c i as d ive rs as . Há cerca de um ano, Joana (nome fictício), uma estudante universitária, foi violada após uma saída à noite. “Na altura nem sequer me apercebi do que me tinha acontecido, apenas que algo tinha corrido muito mal”, confessa. Joana só queria “esquecer que aquilo tinha acontecido”. Impotência, raiva e frustração são algumas das coisas que a jovem sentiu ao “cair a ficha” sobre a violência a que foi submetida. De momento, Joana está a ter acompanhamento psicológico na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. “Acho que foi um passo importante para aceitar o que aconteceu e começar a curar-me”, afirma. A jovem considera imperativo que a educação dada às crianças seja diferente. “A nossa geração tem de criar as nossas filhas de forma a não terem medo de fazer determinadas coisas sem sentir culpa”, defende. Daniela Neto, doutoranda de sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de C oimbra (FEUC), manifestou, no seu segundo ciclo de estudos, o desejo de estudar como este fenómeno é visto pela comunidade estudantil. Para isso, a estudante realizou uma disser tação de mestrado cujo título foi “Afinal o que é o assédio sexual? ”. A aluna da FEUC refere que o que a motivou a fazer esta investigação foi o facto de, quando o assunto era discutido com colegas, a ideia sobre o que constituía de facto o assédio sexual diferia de pessoa para pessoa. “Aquilo que para mim era assédio sexual não era o mesmo para os colegas que estavam ao pé de mim”, explica a

doutoranda. Daniela viu uma justificação para estas divergências numa “possível lacuna de informação sobre o que era o assédio sexual”. Através de uma primeira fase de reuniões informais, com cerca de dez estudantes de ambos os géneros, foram lançadas temáticas de forma a entender “os hábitos de integração, compreender os papéis sexuais atribuídos ao masculino e feminino e investigar o que os estudantes entendem por assédio sexual”, explica Daniela. A fase seguinte consistiu em entrevistas dirigidas a várias associações que contactam de forma direta ou indireta com este tipo de problema. Uma das conclusões que Daniela Neto conseguiu tirar foi que “o conceito de assédio é muito maleável”. Vários parti­ cipantes classificaram, de forma geral, o assédio sexual como o desconforto provocado por determinados comportamentos “como toques, gestos e também os piropos”. Porém, a mestre em Sociologia considera que as situações que são mais difíceis de obter uma resposta concreta são aquelas que acontecem fora do âmbito institucional. Daniela Neto refere que muitas ve­z es é difícil identificar a pessoa como uma agravante ao encaminhamento de casos que aconteçam fora da academia. “Eu acho que, em Coimbra, a maioria das mulheres é vítima de assédio” afirma Catarina (nome fictício), outra estudante a quem o tema não passa despercebido. No decorrer da sua vida, a jovem reconta que já passou por várias situações, “inclusive violência sexual no namoro”. Em tempos mais recentes, foi assediada por um condutor da plataforma ‘B olt’ enquanto fazia uma viagem para apanhar transporte para voltar à sua terra. “Sentes-te impotente, sentes medo porque não sabes o que vai acontecer a seguir” descreve Catarina. A jovem chegou a fazer queixa às auto-

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ridades e a expor a situação nas redes sociais. Catarina admite que o que lhe deu coragem para denunciar foi a vontade de evitar que outras mulheres passassem pelo mesmo. “Várias raparigas mandaram-me mensagem a dizer que iam fazer uma viagem com esse condutor e cancelaram porque viram a minha publicação”, conta. A doutoranda considera que faltam campanhas de consciencialização, apesar de já estarem a surgir alguns projetos. “Há um lapso de informação que tem de ser resolvido o mais rápido possível”, rei­ tera. Neste sentido, a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), com especial incidência no núcleo de C oimbra, aposta em projetos que possam desper tar a atenção da população para este assunto. É esse o caso do projeto Não é Não, que, segundo Tatiana Motterle, uma das técnicas da iniciativa, “é outro bracinho que a UMAR tem de ação”. O projeto foca-se sobretudo em ações de sensibilização, mas o rebentar da pandemia obrigou a uma adaptação diferente. Uma das campanhas que se centrava nas zonas de lazer noturno, apelidada de Stand By Her, não pôde decorrer da forma que estava planeada devido à pandemia. Tatiana lamenta haver ainda muita resistência na implementação de “programas que eduquem o afeto” e como as pessoas se devem relacionar. “Vivemos num mundo que é patriarcal, onde ainda existem muitas diferenças entre homens e mulheres, o que contribui para a disparidade de poder e toda a violência que faz com que não se acredite nas vítimas”, explica. Maria (nome fictício), outra estudante, conta que muito cedo começou a reparar que existia uma tendência a sexualizar mulheres desde bastante jovens. “Eu tinha 14 anos, era uma adolescente, e era-me dada atenção por par te de homens adultos que era questionável”, admite. Maria afirma que foi aí que começaram a surgir “os comentários, a lista enorme de padrões e o estigma sobre o que é ser mulher neste mundo”. Apalpanços e piropos não são incomuns para a jovem. No entanto, Maria confessa que também foi vítima de coerção, numa situação em que foi pressionada para atos de cariz sexual. “Nos primeiros meses, senti que a culpa era minha e só depois de me informar sobre o assunto é que me apercebi de que fui vítima de uma agressão muito violenta”, afirma. A jovem acrescenta ainda que, ao falar sobre o assunto com amigos, sentiu que “a situação era desvalorizada e até mesmo levada como brincadeira”. Tatiana acredita que esta cultura ainda está muito presente na justiça e que é necessário “ir mesmo à raíz”, começar a “trabalhar na educação das crianças e a­ postar no associativismo e militância”. Esta revolução teria de ser, segundo a técnica do projeto Não é Não, transversal não só às ins­tituições de autoridade como a polícia e os tribunais, mas também em estruturas que possam acolher vítimas de violência sexual. No entanto, a falta de meios e estruturas continua a ser um problema a resolver.


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- POR JÉSSICA TERCEIRO -

De Coimbra a Tóquio: O que eles andaram para lá chegar

JÉSSICA TERCEIRO

Apesar do atual período pandémico, o extremo oriente recebeu um dos eventos com maior envergadura do mundo. Um grande controlo de emoção e pressão foi o resumo do maior sonho dos dois atletas conimbricenses - POR JÉSSICA TERCEIRO -

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om o arranque dos Jogos Olímpicos Tóquio 2020, foram muitos os atletas apurados que se mostraram ansiosos pelas competições na capital japonesa. De 23 de julho a 8 de agosto de 2021, Catarina Costa e Gabriel Lopes deram o “tudo por tudo” para voltarem ao seu país com os melhores resultados. Os estudantes de Coimbra expressaram a sua felicidade em participar nos Jogos e realizar o maior sonho das suas vidas, apesar da competição ter sido adiada uma vez devido à COVID-19. A história de dois atletas em modalidades muito distintas, mas sempre com o mesmo objetivo: obter a melhor posição possível. Amor à primeira vista Ai nd a c r i anç a, a j ogar f uteb ol c om os c ol e g as no C olé g io R ain ha S ant a Is ab el, C at ar i na C ost a ma l s abi a o que o dest ino a ag u ard ava. Foi ne ss a a ltu ra, c om 11 anos , qu e a at le t a ac e itou o de s af io do s eu atu a l t re i nador e e x p e r ie nc iou a qui lo qu e v i r i a a s e r, u m di a, o s e u f uturo. “D ep ois d a e x p e r iê nc i a, p e di- l he um s e gundo ­t rei no e p e ns o que ele aí j á s abi a que me t i n ha c at iv a d o”, re vel a C at ar ina. D es de e nt ã o, c ont i nuou a prat ic ar, e p ass a dos d ois me s e s c ome ç ou a t re inar no C ent ro Nor ton d e Matos , onde e ste ve c e rc a de d ois ano s , até p ass ar e m de f in it ivo p ara a S e c ç ã o d e Ju do d a Ass o c i aç ão Ac adém ic a d e C oi mbr a . Persistente, bem-disposta e teimosa. É assim que a conimbricense de 25 anos se descreve. A estudante de medicina na Fa­ culdade de Medicina da Universidade de

Coimbra reconhece que ficou encantada pela modalidade assim que a experimentou e admite que ainda hoje continua fascinada pelo judo e a cada dia que passa aprende mais, até porque “há sempre coisas novas a descobrir”. Decidiu seguir o caminho da medicina por ter o gosto pela saúde e pensar que pode ajudar alguém com os seus conhe­ cimentos. “Sentir que posso tratar pessoas e salvar vidas é algo muito gratificante”. Apesar do curso ser longo e trabalhoso, a atleta gosta de aprender e afirma que vale a pena todo o sacrifício que faz para combinar o desporto com os estudos. Os dias da judoca passam por ter estágio da Seleção Nacional em Coimbra, todas as semanas de sexta a domingo, e treinar de terça à quinta na Académica. “Faço dois treinos físicos nesses dias pela manhã e às 19h30, duas horas de treino de judo mais completo”, refere. Assume que no estágio, os treinos já são um pouco mais duros, mas que a partilha de experiências com os restantes atletas é ótima para a evolução de todos. Durante este tempo e com os treinos, Catarina tem ainda de encaixar as idas à fisioterapia, a sua imprescindível sesta depois de almoço e a conciliação das aulas em regime remoto. Essa conciliação passa por aprender sozinha em casa, estudar nas viagens e ter o apoio dos colegas de curso, que acabam por ser incansáveis com apontamentos e dicas de estudo. A medicina complementa-se ao judo pelo facto da judoca já estar habituada ao stress dos combates. Toda a resiliência necessária

para a modalidade acaba por transparecer na medicina por ser um curso que muitas vezes coloca os alunos à prova. “Graças a essa parte, aprendi a não desistir e a não baixar os braços”. Catarina encontra ainda pontos em comum entre a sua futura profissão e o seu desporto por estes apresentarem princípios semelhantes, como é o caso do respeito pelo próximo e pelo paciente, o espírito de entreajuda e a coragem. A combater nos Jogos Olímpicos na ca­tegoria -48kg, a atleta admite que os cuidados com a alimentação acabam por ser essenciais, mas que não se priva de muita coisa. Sabe ainda que o seu regime alimentar é mais restrito quando chega a semana da competição. C onfessa que as restrições a certos alimentos é algo que faz desde cedo e, com a ajuda de um especialista, torna-se mais fácil ficar na me­ lhor forma no dia da competição. “ Tenho o acompa­ n hamento da minha nutricio­ nista, Catarina Augusto, que me segue desde setembro de 2020 e tenho sentido uma franca melhoria, apesar de eu ter algum cuidado nessa par te”, reitera. Em relação às diferenças que existem para com os outros países, a judoca acre­ dita que Portugal é dos que consegue estar mais bem preparado para cada competição. Garante ainda que a nível de condições de treino, é dos países da Europa com me­ lhores condições de segurança. Para garantir a saúde de todos, os atletas que vêm para estágio são testados todas as semanas e acabam por ficar confinados num hotel. A estudante, que já representa Portugal


28 de setembro 2021 diariamente há algum tempo, sente um orgulho enorme em fazê-lo e diz que ouvir o hino nacional nas competições é uma sensação de trabalho reconhecido. “É muito bom partilhar as conquistas com a família, os amigos e alguns fãs que nos seguem há muito tempo, e sentir o apoio de todos é fantástico”, complementa. Ser desportista de alta competição Aos três anos, a natação na piscina da Lousã foi-lhe recomendada por um médico devido à doença da asma. A verdade é que o que começou por ser uma solução para os problemas respiratórios, acabou por se tornar naquilo que seria o seu futuro. Gabriel Lopes, de 23 anos, considera-se um rapaz calmo e lutador, e admite que o seu gosto pela natação se começou a desenvolver a partir dos sete anos, quando começou a competir na Federação Portuguesa de Natação. Foi na cidade conimbricense que o estudante de desporto na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra decidiu ligar a modalidade ao seu percurso universitário. Reconhece que é “importante perceber o processo de treino e ficar ligado ao desporto quando acabar a carreira”. Tendo a natação como prioridade, Gabriel tem feito anos parciais na universidade e garante que tenta fazer o que consegue sem prejudicar os seus treinos e competições. O regime remoto acabou por ser uma mais valia para o atleta, na medida em que já não tem que fazer tantas deslocações. O nadador que competiu nos 200 metros estilos em Tóquio, conta que para estar em paz e em harmonia nos treinos, é essencial lidar bem com tudo o resto que está à sua volta. Os dias de Gabriel passam por acordar bem cedo para estar na piscina às sete horas, aquecer e entrar na água às 7h15, onde ­t reina durante duas horas. No meio disto, tenta descansar entre o treino da manhã e o treino da tarde, se não tiver nenhuma aula. Faz a maior parte dos seus treinos em Coimbra, na piscina olímpica, e, durante uma semana, realiza em média dez treinos de água, dependendo da época. A isto junta-se o ginásio, ao qual tem de ir três vezes por semana durante uma hora e durante a tarde faz de novo o seu treino de água. Para o estudante de desporto, “os horários de descanso têm de ser religiosos e a alimentação tem de ser bem controlada”, declara. No que toca às competições, Gabriel confessa que em termos de representação, Portugal deixa a desejar face aos outros países. “No que diz respeito ao apoio e o encarar do desporto a nível nacional, estamos muito atrás”, revela. Já em relação à ida aos Jogos Olímpicos, o atleta acreditou que iria estar na sua melhor forma e que é o sonho pelo qual mais lutou na sua vida até hoje, e não podia estar mais orgulhoso de representar o seu país. Da COVID-19 às Olimpíadas de Tóquio Tal como para milhões de pessoas, também Catarina e Gabriel foram apanhados de surpresa com a chegada da COVID-19. A judoca admite que, na verdade, acabou por ser positivo na sua vida, pelo facto de ter conseguido manter uma rotina de trein-

os durante os seus dias, recuperar da sua lesão anterior e conseguir, desta forma, progredir na modalidade. Vai mais longe e afirma que “houve mais tempo para aprender coisas novas e me tornar melhor atleta”. Foi na cidade dos estudantes que os dois atletas souberam do adiamento dos Jogos Olímpicos para 2021, porém, decidiram prosseguir com os treinos e continuar a evoluir, apesar de ter sido um sonho que viram ser atrasado por um ano. “Foi sentir que aquilo que tanto ambicionámos para aquela data já não ia acontecer, contudo, ia existir e íamos ter mais um ano de preparação”, revela a estudante de medicina. A falta do público é outro aspeto que ambos os atletas têm notado e Catarina re­v ela que “sentir a vibração do público e de ser observados, é algo que faz falta”, mas espera que possa voltar à normalidade o mais breve possível. Por seu lado, o nadador diz que foi

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das poucas pessoas que teve a sorte de continuar a ter acesso a uma piscina em Portugal. Apesar disso, “os objetivos de todos os atletas, na época passada, tiveram de mudar um pouco e teve de haver uma adaptação à situação”. A terminar os Jogos Olímpicos em sétimo lugar da quar ta série de apuramento e na vigésima primeira posição da ge­ ral, com um tempo de 1:58.56 minutos, Gabriel conseguiu, desta forma, atingir um novo recorde pessoal. No futuro, o estudante de Desporto tenciona fazer mais um ciclo olímpico até Paris 2024 e deseja fazer natação enquanto carreira. Catarina, apesar de não ter alcançado a medalha de bronze em Tóquio como tanto desejava, ficou em quinto lugar, com uma vitória sobre a campeã olímpica em título pelo meio, e também vai lutar pelo apuramento para as próximas Olimpíadas. Paralelamente ao despor to, a estudante de medicina espera terminar o curso em breve, para depois poder ­e xercer a profissão.


8 edição especial 28 de setembro 2021

O perigo que soa de forma silenciosa

JÉSSICA OLIVEIRA

Quatro bombeiros, quatro rotinas e um sentimento comum: o de uma profissão que sente ter ficado esquecida. Por entre transportes de doentes infetados e hospitais, na hora da vacinação não foram considerados profissionais da “linha da frente”. Apesar das rotinas de trabalho terem sido alteradas, o socorro no concelho foi assegurado - POR JÉSSICA OLIVEIRA -

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quinta-feira. O relógio marca 10h36, o céu está nublado e o frio faz-se sentir. No quartel dos Bombeiros Voluntários de Vila Verde (BVVV), a pouco mais de dez minutos de Braga, o telefone toca. O banco do átrio do e difício, que em tempos ouvia duran­ te horas as peripécias dos que lá paravam, é hoje consumido pelo silêncio de um tempo em que os ajuntamentos estão r estritos. Do parque de viaturas avis­ ta-se a central telefónica. Lá dentro, Alexandra Martins, a centralista, atende a chamada e a sua expressão facial rapidamente se altera para desânimo. Do outro lado do telefone está mais um doente com COVID-19 que precisa de ser transportado para o hospital. A equipa escalada para o ser viço surge sem demora. “Dois fatos e duas viseiras, por favor” pede um dos operacionais. a centralista apronta-se em ceder-lhes o equipamento de proteção individual (EPI) e os dois bombeiros, devidamente equipados, seguem para a ocorrência. “A pandemia fez com que viéssemos a ter cada vez mais receio de uma emergência pré-hospitalar”. Quem o diz é Alexandra Martins. Tem 28 anos e já cá anda desde 2012, movida pela “curiosidade de querer saber o que estava por trás de um toque de sirene”. Para além do trabalho que desempenha na central telefónica, é também bombeira voluntária. Conta que o vírus chegou, e com ele se instalou o receio do desconhecido. “Fomos apanhados desprevenidos. Não sabíamos o que fazer, é uma realidade”, confessa. Por trás de um olhar pesado, a mexer o café matinal, está Vanessa Silva. Passou a noite em serviço e o cansaço toma conta de si. Às costas carrega 22 anos,

ao peito uma divisa de terceira classe. É voluntária há quase quatro anos e confessa que nunca pensou ser bombeira até ser influenciada por familiares e rapidamente se render. Quanto à pandemia, não esconde que, numa primeira fase, sentiu “muito medo” de frequentar o quartel. Ainda assim, o receio foi ultrapassado e hoje passa a maior parte do seu tempo na corporação. “É uma forma de me ocupar. Neste momento não trabalho e dedico o meu tempo a fazer voluntariado”, explica. Hélder Silva, por meio de um sorriso escondido pela máscara e de luvas calçadas, desinfeta a ambulância. Começou a trabalhar às nove horas e, “se tudo correr bem”, regressa a casa às 18 horas. Já cá anda desde 2012 e faz parte da Equipa de Inter venção Permanente (EIP) há quase cinco anos. Explica que é membro de um grupo de trabalho de cinco elementos que está destinado à primeira intervenção do concelho. “Somos a equipa da linha da frente para incêndios urbanos, florestais ou até derrocadas”, relata. O segundo comandante, Luís Morais, já há 13 anos que conhece os cantos da casa. Tem 64 anos e já lá vão quatro em que desempenha a sua função atual na corporação. No que diz respeito ao trabalho dos seus homens durante a pandemia, não esconde o seu orgulho. “Houve uma grande vontade por parte dos voluntários em estarem envolvidos na atividade dos bombeiros”. Numa altura em que o mundo foi obrigado a parar, o ser viço voluntário não teve tempo de ficar em casa. ­A lexandra Martins revela que, quanto ao trabalho dos operacionais da sua corporação, está satisfeita com o esforço que vê ser feito. “O medo está a tornar-se força para os

voluntários. Por vezes, é essa coragem que nos continua a fazer lutar contra o desconhecido”, assegura. A instituição é composta por 67 operacionais, a maioria voluntários, e conta ainda com a presença de sete estagiários. Vanessa Silva, quando questionada sobre as funções de um voluntário, responde que “são pessoas que trabalham a custo zero”. Explica que mensalmente cumprem no mínimo 24 horas de voluntariado e 40 horas de formação anuais. A adaptação à nova realidade Se com a pandemia a palavra de ordem passou a ser “adaptação”, o trabalho dos bombeiros não fugiu à regra. Da emergência pré-hospitalar ao incêndio florestal, a profissão viu a sua forma de trabalho ser “alterada de raiz”, como diz Luís Morais. Conta que, para além do uso da máscara, “houve necessidade de adquirir EPI como fatos, viseiras e óculos”. No que diz respeito ao transporte de doentes não urgentes, “foi reduzido o número de pacientes dentro das ambulâncias”, explica. Quanto aos incêndios florestais, o reajuste de trabalho foi mais complicado. “Na ocorrência em si, era quase impossível o uso de máscara”, confessa o segundo comandante. Ainda assim, explica que “todos os operacionais usavam uma cogula” e que “havia uma grande preocupação com a limpeza e descontaminação das viaturas”. A par disto, Alexandra Martins dá a conhecer outra dificuldade que adveio da pandemia. A centralista explica que, em alguns casos, os doentes que são transportados para o hospital sabem que estão infetados e ocultam essa informação.


28 de setembro 2021 “Por vezes, só sabemos que o doente está contaminado na unidade hospitalar, quando está lá verificado que é portador de COVID-19”. Por isto, Alexandra não tem dúvidas de que “o vírus ainda é visto como um bicho, um medo, uma vergonha social”. Vanessa Silva já perdeu a conta ao número de transportes de doentes com COVID-19 que fez. “No início, vestir o EPI era muito mau. Eu sentia medo porque sei que nós podemos ser os maiores portadores da doença”, confessa. Depois, expõe que há algo que desde o início da pandemia se faz sentir : “a angústia de não saber se a vítima que é transportada sobrevive”. Para a centralista, o sentimento é semelhante. “Com o equipamento, passamos a estar escondidos por trás de algo desconhecido”, reflete. Acrescenta ainda que “muitas pessoas chamam a ambulância porque precisam apenas de atenção”. No entanto, em tempos de pandemia, acaba por não ser dada da forma que os operacionais gostavam porque “o toque está limitado, o sorriso está limitado”. Com o agravamento da saúde pública do país, o número de ocorrências mensais de emergência no concelho foi-se alterando de forma inconstante. “Numa fase inicial, houve uma redução drástica: as emergências pré-hospitalares reduziram para cerca de metade”, explica o segundo comandante. Não há dúvidas que isto aconteceu pelo medo que as pessoas passaram a ter em ir às urgências. “A população estava muito assustada: achavam que por ir ao hospital ficavam logo doentes”, confidencia. Ainda assim, a partir do verão o caso mudou de figura. O número de serviços aumentou e, com a subida do pico da pandemia no fim do ano, Luís Morais revela que dezembro “foi assustador em termos de emergência”. Ainda assim, constata que o socorro continuou a ser garantido no concelho pela atividade dos bombeiros.

“No dia em que eu ligar para casa e disser que não venho, já sabem porque é” Na hora de despir a farda e regressar a casa, a consciência da realidade fazse sentir com outra seriedade. O medo toma conta de quem, depois de um dia de trabalho entre hospitais e doentes infetados, volta para junto dos seus. Para Hélder Silva, a grande preocupação sempre foi o seu filho, que tem pouco mais de um ano. Admite que com a pandemia se instalou em si o medo diário de que algum ser viço pudesse correr pior. “Desde que começaram a surgir os primeiros casos de COVID-19, reuni de imediato com a minha família. Sentei-me com eles e disse: no dia em que eu ligar para casa e disser que não venho, já sabem porque é”. Questionado sobre como é conciliar o dever de pai com a profissão que tem, responde, por entre uma respiração profunda que “é complicado”. Assume ter medo de falhar enquanto pai. “Há vezes em que temos horário para ir, nunca sabemos é a que horas voltamos ”, exprime. “Só se lembram dos bombeiros quando começa a arder” Desde o início que “transportam” o vírus, mas na hora da vacinação ficaram em lista de espera. É num tom de revolta que Alexandra Martins encara esta rea­ lidade. “Mudamos rotinas, horários, e a ter cuidados redobrados com tudo aquilo que nos envolvia. Outros profissionais foram reconhecidos por isso e nós fomos postos de lado”. Hélder questiona-se sobre a razão pela qual não foram vacinados ao mesmo tempo que os profissionais de saúde. Na sua opinião, “os bombeiros de Portugal fazem parte de uma categoria que é desprezada. Só é lembrada quando começa a arder”. O segundo comandante não duvida que havia mais a fazer pela segurança dos bombeiros na atual crise sanitária. “Cumprimos a função para a qual existi-

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mos, mas fomos sempre olhados como alguém que não estava na linha da frente”. Assume fazer “uma crítica ao país” pela população estar “habituada a ter uma força altamente competente, barata, e que nunca vira a cara à luta.” Questionado sobre o critério de seleção de operacionais para serem vacinados na primeira fase, Luís Morais esclarece que “primeiro passou pelo pessoal da emergência pré-hospitalar e pelos operacionais de transporte de doentes não urgentes”. De seguida, “foi dada prioridade à EIP e por fim aos voluntários, com presença assídua no quartel”. “Quem é voluntário uma vez, é ­v oluntário para a vida toda” Apesar do sentimento abatido, reina nos voluntários um grande orgulho à farda e espírito de camaradagem. Para Hélder Silva, ser bombeiro vai para além do que se imagina: “é, muitas vezes, tentar ser psicólogo ou até veterinário”. Exprime que a maior gratidão da profissão está em fazer a diferença em vidas como a de Dona Maria, “uma velhinha de 80 e tal anos que vive sozinha no meio do nada, em que o simples facto de lá ir conversar com ela, já vale a pena”. Ale­ xandra Martins afirma com orgulho que “ser bombeiro não se descreve”. Realça os laços de amizade que se criam e enaltece que “quem é voluntário uma vez, vai ser sempre, para a vida toda”. É já fim de dia e o silêncio da noite faz-se sentir no quartel. Passado nove horas, a rotina mantém-se: a equipa escalada para o turno da noite segue na ambulância, de sirenes ligadas, para mais um transporte de um doente infetado. (Refira-se que a realização das entrevistas para a execução da presente reportagem foram feitas de Janeiro a Abril de 2021. Atualmente, a totalidade da corporação ­ dos Bombeiros Voluntários de Vila Verde já se encontra devidamente vacinada.)

JÉSSICA OLIVEIRA


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A Alta (em) necessidade de um plano pela higiene pública Grupos ambientalistas, moradores e ERSUC concordam que características físicas da Alta são impedimento à instalação de mais contentores. Dar a conhecer problemas é um bom caminho para mudança, segundo GE/AAC e QUERCUS - POR BEATRIZ MONTEIRO MOTA -

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uma cidade geograficamente desigual, as avenidas largas, como a Sá da Bandeira ou a Fernão Magalhães, contrastam com a fraca acessibilidade das ruas estreitas da Alta. As consequências fazemse notar, tanto na limpeza das vias públicas como na rede de ecopontos. Estudantes e outros moradores convivem diariamente com uma calçada de história repleta de sacos pretos e um odor impossível de ignorar. Quer aos olhos das entidades responsáveis, quer aos de residentes e dirigentes de grupos ecológicos, Coimbra carece de diligência neste âmbito. A presidente do Grupo Ecológico da Associação Académica de Coimbra (GE/ AAC), Diana Margarida Santos, não parece surpreendida com um problema de décadas. Para a dirigente, “é necessário reforçar, sem dúvida alguma, a recolha do lixo comum”. Reconhece que as características das ruas tornam o processo mais difícil, no entanto, assegura que “o reduzido número de pequenos caixotes do lixo” e a recolha pouco frequente “contribuem para uma enorme acumulação”. Além disso, destaca a necessidade de uma lavagem e limpeza das ruas mais assídua, “que apenas é visível nas grandes avenidas”. A facilidade em deixar o lixo à porta de casa é um ritual comum aos residentes da área. Todos sabem que os dias vão passar pelos sacos e que os animais não vão tardar em saciar a fome com os restos alimenta­ res. A dispersão por ruas e ruelas é o passo seguinte. “Como a zona alta de Coimbra fica a cinco minutos do rio, é fácil que os

BEATRIZ MONTEIRO MOTA

resíduos cheguem ao Mondego, o que vai aumentar a poluição e danificar a fauna e a flora da região”, alerta com preocupação. Os moradores da zona não ficam indife­ rentes à situação. Ângela Custódio, estudante de Antropologia na Universidade de Coimbra (UC), acompanha os problemas sanitários há quatro anos, por isso, aprendeu a conviver com o panorama. Admite que entre 2017 e 2018 “a situação era mais grave, porque as pessoas nem sequer colocavam os sacos de lixo dentro dos contentores”. Alguns meses depois, a instalação de caixotes na zona ajudou a colmatar o problema, mas não o resolveu, conta. Por outro lado, Paulo Andrade, membro da direção do Núcleo Regional de Coimbra da QUERCUS, olha para o cenário com maior leveza. “As questões ambientais são mais amplas do que o assunto do papel ou do plástico no chão, não vejo isso como um problema ambiental”, justifica com certeza na voz. Dá como exemplo o uso de certos químicos na desinfeção das ruas, no caso o glifosato, como “um grave problema para o meio-ambiente”.

podem ser um fator com influência. A faixa etária elevada de muitos residentes, acompanhada de uma mobilidade mais reduzida, torna-se um impedimento para subir a calçada íngreme com o peso dos sacos. Após um momento de reflexão, Paulo Andrade sente que a pouca presença da ERSUC na Alta se deve, por um lado, “à falta de consciência da empresa no que toca às necessidades da área”. Por outro, “a questão logística, relacionada com o tamanho dos veículos” também interfere no processo. Na outra face da moeda, a administração da ERSUC argumenta que “a escolha dos locais para a localização dos ecopontos é da responsabilidade de cada município”. A distribuição é feita com base em variáveis como a acessibilidade dos moradores e o nível de segurança para os operadores na recolha do lixo. O número de habitantes a servir e o valor referência de 200 metros entre ecopontos são também decisivos. As condições precárias das ruas são o ponto de concordância. Tal como os dirigentes dos grupos ecológicos e os moradores da zona, a ERSUC justifica que o tamanho reduzido das vias públicas “não permite a ­instalação de ecopontos nem a circulação das viaturas que os recolhem”. A empresa chega até a reconhecer que “a contentorização e as viaturas utilizadas não são as mais adequadas à tipologia da área”.

Quando as ruas inclinadas não deixam reciclar Ao impacto ambiental acresce ainda a curta rede de ecopontos presente na área. Na visão da presidente do GE/AAC, “o civismo e a educação ambiental” de alguns pode influenciar o ato de reciclar. No entanto, “quem não possui a sensibilidade e o conhecimen- O poder das vozes to dessa importância não se vai deslocar Paulo Andrade garante que o Núcleo metros ou quilómetros até aos contentores”. Regional de Coimbra não tem registado Mais uma vez, as condições físicas das ruas quei­x as por parte dos moradores da Alta. Porém, incentiva os residentes a contactar a ERSUC e a propor um maior número de ecopontos, no caso de se sentirem descontentes. No que diz respeito à limpeza e à recolha do lixo indiferenciado, o dirigente fala da importância de “exigir à empresa encarregue dessa tarefa uma maior eficácia”, no caso, a SUMA, uma empresa contratada pela Câmara Municipal de Coimbra (CMC). Diana Margarida Santos também acredita que a exposição dos problemas pode ter um grande papel no caminho da mudança. “É importante que as pessoas não se indignem apenas para familiares ou amigos, mas que façam chegar as queixas à CMC, porque isso pode fazer a diferença”, ressalta. Dá como exemplo o caso de algumas residências que demons­ traram interesse em reciclar e que, após apresentarem o problema, alcançaram uma parceria entre os Serviços de Ação Social da UC (SASUC) e a ERSUC. Assegura que, de momento, “todas as residências têm ecopontos”. De acordo com Diana Margarida Santos, o papel do GE/AAC passa pela “sensibili-


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BEATRIZ MONTEIRO MOTA

zação para os comportamentos dos estudantes”. Nesse sentido, recorda os feitos do passado “com algumas lutas bem-sucedidas”, como a substituição dos copos de plástico por reutilizáveis dentro do recinto da Queima das Fitas e da Festa das Latas. Contudo, admite que a secção pode ter um papel mais ativo no âmbito da reciclagem. Com tristeza, lamenta que “muitas pessoas não reciclem porque não sabem como o fazer”. Nesse sentido, o GE/AAC está a planear uma atividade de consciencialização. A origem dos resíduos Sendo uma área com elevada presença de estudantes, muitos deles como residentes, Diana Margarida Santos relata que “o descuido das noites académicas” se faz notar. Sejam “os copos e as garrafas espalhados pela rua” ou “as imensas beatas caídas no chão”, as madrugadas de Coimbra refletem o comportamento estudantil “muitas vezes influenciado pela quantidade de álcool ingerido”. A ideia da cidade de Coimbra como “produtora de toneladas de lixo em menos de um dia durante os cortejos ou até numa noite banal” é, para a associada seccionista, um motivo razoável para a colocação de contentores nas zonas de bares e cafés. Reforça a necessidade de mais interesse por parte das entidades competentes, contudo não nega a responsabilidade que também recai sobre os jovens. Por um lado, a diminuição de festas e de ajuntamentos estudantis “veio demonstrar que o estado das ruas está muito melhor”, declara a dirigente. Por outro, acredita que a pandemia veio agravar a situação. Durante o confinamento assistiu-se a um aumento do consumo de refeições ‘take-away’ e, como consequência, “há uma maior produção de lixo por causa das embalagens e dos sacos”. Assim, Diana Margarida Santos defende a necessidade cada vez maior de uma recolha diária e constante. Afinal, quem pode fazer a diferença? No fim de contas, qual é a resposta dos di­

ferentes envolvidos a uma situação que não é nova nem desconhecida? Como organização ambientalista, o Núcleo Regional de Coimbra da QUERCUS tem uma incidência menor na zona antiga da cidade, visto que atua “de forma mais abrangente dentro do distrito”, explica Paulo Andrade. Assim, com base nas problemáticas em questão, tem como papel “encaminhar as pessoas com denúncias para as entidades competentes”. Contudo, o dirigente consegue ver algumas soluções praticáveis. No âmbito da reciclagem, sugere um “serviço de recolha porta-a-porta dos resíduos separados” ou “a colocação de ecopontos mais pequenos que facilitem o processo”. Uma possível resolução para o problema da acessibilidade passa­ ria pelo “uso de pequenos veículos elétricos capazes de aceder melhor às ruas estreitas”. Quanto ao lixo doméstico, vê potencial na recolha, mais uma vez, de porta em porta,

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dos resíduos orgânicos “para serem transformados em composto agrícola”. Por sua vez, a ERSUC informa que, “de modo a melhorar o desempenho e ao considerar as limitações da zona”, exerce um serviço de recolha porta-a-porta, contudo, apenas para comércios. Anuncia ainda que está “a estudar outro tipo de recolha seletiva de proximidade”. Já a SUMA, não quis prestar declarações. Com um papel mais ativo no seio dos estudantes, a presidente do GE/AAC conta que o assunto dos resíduos “já foi debatido dentro da secção”. No entanto, é difícil gerir e encontrar soluções, visto que esse exercício “compete à CMC e à ERSUC”. Tal como a QUERCUS, um dos contributos que o grupo pode dar é “a transmissão das queixas às entidades”. Aos olhos de Diana Margarida Santos, além da CMC, a AAC pode também desempenhar uma função preponderante no que diz respeito ao trabalho de sensibilização dos estudantes. “Seria muito importante uma posição mais marcada da AAC, porque tem mais visibilidade que a secção”, destaca. A associada seccionista encara a parceria entre os diferentes responsáveis como uma resolução ideal. “O mais adequado é quando as entidades se conseguem complementar”. Para a dirigente, o trabalho de equipa entre as organizações que reforçam a parte prática e as que demonstram as problemáticas e as atitudes que fazem a diferença pode ser a resposta que Coimbra precisa. A situação não é desconhecida, os moradores não estão indiferentes e as entidades estão conscientes dos problemas. Além disso, há quem tenha perspectivas para possíveis soluções que concedam à Alta o brilho que merece. A cidade dos estudantes necessita de um plano que faça jus aos anos de história e glória que, hoje em dia, parecem estar escondidos por baixo de sacos negros.

BEATRIZ MONTEIRO MOTA


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EDITORIAL A inédita tradição - POR TOMÁS BARROS -

O

tema pandemia, que prolificamente tem ocupado todo o espaço mediático e até o imaginário de todos, é associado àquele sentimento que só existe em português e que é também tão conimbricense: a saudade. A saudade, essa construção mental que nos eleva, a saudade de sentir a cidade, de viver a academia e de produzir em todas as áreas com a excelência que nos é associada um pouco por todo o mundo. A cidade, que é o centro da Cultura e o símbolo da resistência, em nenhum momento deixou de o ser: adaptou-se e reinventa-se em função dos tempos. Com a fantasiosa e fetichista normalidade, que se mantém ao fundo do túnel há já mais de dois anos, espera-se o regresso daquilo que garante a Coimbra este título de fortaleza íntegra e eclética. A todos os que chegaram e vão chegando, a todos os que ainda estão por viver aquela que ainda não passa de uma inédita tradição, apela-se que não se refugiem nas dificuldades para justificar a inação. A ação pode tomar várias formas e nós, enquanto jornal universitário, agimos diariamente de forma a garantir que sejam registadas todas as histórias, experiências e pontos de vista porque, parafraseando antigos diretores deste jornal, é disso que o jornalismo é feito. Por de e

um por

jornalismo, por uma cidauma academia mais fortes

Ficha Técnica

Diretor Tomás Barros

Paginação Luís Almeida

Jornal Universitário de Coimbra – A CABRA Depósito Legal nº 478319/20 Registo ICS nº116759 Propriedade Associação Académica de Coimbra

Editores Executivos Francisco Barata e Carina Costa

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Equipa Editorial Joana Carvalho & Inês Rua (Ensino Superior), Marília Lemos (Cultura), Francisco Barata & Julia Floriano (Desporto), Carina Costa & Jéssica Terceiro (Ciência & Tecnologia), Ana Rita Baptista (Cidade)

Impressão FIG – Indústrias Gráficas, S.A. Telf. 239499922, Fax: 239499981, e-mail: fig@fig.pt

Colaborou nesta edição Joana Carvalho, Beatriz Monteiro Mota, Jéssica Oliveira, Inês Rua e Jéssica Terceiro

Tiragem 1500

Morada Secção de Jornalismo Rua Padre António Vieira, 1 3000-315 Coimbra

Conselho de Redação Carlos Almeida, Luís Almeida, Inês Duarte, Filipe Furtado, Leonor Garrido, Hugo Guímaro, Margarida Mota, Bruno Oliveira, João Diogo Pimentel, Paulo Sérgio Santos, Pedro Dinis Silva, Pedro Emauz Silva Ilustração João Ruivo (capa)

Produção Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra


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