Edição 295 Jornal Universitário de Coimbra - A Cabra

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9 DE ABRIL DE 2019 ANO XXIX Nº295 GRATUITO PERIÓDICO DIRETOR PEDRO DINIS SILVA EDITORES EXECUTIVOS LUÍS ALMEIDA E DANIELA PINTO

acabra

JORNAL UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA

Especial 50 anos da Crise Académica

Com o fôlego da revolta se encheram os balões


2 ensino superior 9 de abril de 2019 CRONOLOGIA HISTÓRICA: ANTES E DEPOIS DA CRISE ACADÉMICA 1962 24 de março Concentração estudantil em Lisboa culmina numa violenta carga policial, com alunos espancados e presos. Colegas decretam greve às aulas até que o Dia do Estudante seja cumprido e os estudantes sejam libertados 18 de maio Com a sede da AAC e da UC ocupadas pelas forças policiais, a crise académica alastra-se à cidade do Mondego. Seguem-se confrontos e detenções de alunos

1966 Fevereiro Mais de 20 membros das associações estudantis da capital são expulsos por prepararem as comemorações o Dia do Estudante, personificação da luta académica contra a ditadura e a Guerra Colonial

1968 Novembro É de capa e batina que os estudantes da academia coimbrã se manifestam em nome de eleições livres, autonomia universitária e liberdade de crítica

1969

O dia em que os capas negras abalaram a ditadura A História recorda Coimbra como uma cidade que desde cedo se as­ sumiu na linha da frente das reivin­ dicações estudantis. O episódio mais marcante foi a Crise Académica de 1969, data em que nem a dita­dura demoveu os estudantes de protes­ tarem em nome dos ideais em que acreditavam - POR FREDERICO MAGUETA, PAULA MARTINS E MARIANA NOGUEIRA -

Bem, mas agora fala o senhor ministro das Obras Públicas” - foi com esta frase que, sem imaginar, o último Presidente da República da dita­ dura, Américo Thomaz, desencadeou uma forte crise estudantil com início no dia 17 de abril de 1969. Esta expressão surgiu em resposta à tentativa levada a cabo pelos estudantes de intervir durante a inauguração do edifício das Matemáticas, na Universidade de Coimbra (UC). No entanto, a palavra não lhes foi dada. O rosto que deu início ao movimento académico Alberto Martins era o presidente da DireçãoGe­ral­­da Associação Académica de Coimbra (DG/ AAC) na altura da crise estudantil de 1969. Foi este que, no dia 17 de abril, pediu permissão para falar em nome da academia. “Considerei pedir a palavra, pois estava em causa a vontade da comunidade”, recorda ao identificar esta vontade como algo mais importante do que qualquer estudante a nível individual. Confessa ainda que fez o pedido de forma a que não parecesse um ato de provocação. O representante dos estudantes estava ciente dos riscos que corria. Como conta, Alberto Martins foi detido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) na madrugada do mesmo dia. “Todas as saídas da AAC estavam cercadas por agentes”, refe­re. Por volta das 3 horas da madrugada, centenas de estudantes estavam à porta da PIDE para saber o que se passava. Explica que os jovens foram, sem qualquer aviso prévio, atacados pela polícia de choque”. Alguns acabaram mesmo no hospital, dada a violência com que foram agredidos. Expectativas e realidades: Os antecedentes da crise de 1969 João Paulo Avelãs Nunes, historiador e professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra (FLUC), explica que a crise se deveu a este acontecimento. “A participação dos estudantes na inauguração foi recusada pelo Estado Novo, por se considerar que os jovens iriam protestar”, acrescenta. Tal já favorecia a mobilização da comunidade académica; facto acentuado pela saída de António de Oliveira Salazar da presidência do Conselho e do cargo de chefe da ditadura, no ano anterior. Com a mudança de governo, a DG/AAC ganhou a coragem necessária para se mostrar e dar voz às causas da academia. A realidade, contudo, não corres­ pondeu às expectativas dos estudantes. Isto porque o ministro da Educação, José Hermano Saraiva, se manteve o mesmo desde o governo salazarista. Em resultado, o sistema de Ensino Superior português não sofreu alterações significativas. Mas a luta dos estudantes recua a datas anteriores a 1969. Segundo Rui Bebiano, investigador no Centro de Estudos Sociais da UC e membro do Centro de Documentação 25 de Abril, “a Crise Académica é o culminar de um conjunto de reivindicações que vinham a ser travadas desde 1962”. Se até 1969 o movimento se prendia mais com as problemáticas dos próprios estudantes, a partir deste ano e até ao fim da ditadura adquiriu um caráter mais politizado de contrapoder. Impulsionadores da revolta A ditadura foi um dos principais motivos que levou à revolta dos estudantes, que eram, em grande parte, contra o regime opressor. Até à data, a tendência era, no entanto, adotar uma postura passiva e não contestar. O ano de 1969 representou, por isso, um ponto de viragem, no entender dos docentes. Para João Paulo Avelãs Nunes, “a grande mudança esteve na alteração do comportamento dos estudantes, que passaram a ser mais ativos no movimento de luta”. A prova desta transformação foi a grande adesão à greve estudantil, que resultou da “exigência de que o governo recuasse na decisão de castigar os dirigentes associativos que protestaram de forma pacífica na cerimónia de inauguração do Departamento de Matemática”, relata o historiador. Um dos dramas vividos pelos jovens da época era a obrigatoriedade de os estudantes do sexo masculino virem a incorporar uma comissão de quatro anos na Guerra Colonial, assim que concluíssem o ensino universitário. As vivências partilhadas entre os militares do exército e antigos estudantes, descontentes com o regime ditatorial, contribuíram para a revolução dos cravos, que viria a acontecer cinco anos mais tarde.

17 de abril A inauguração do Departamento de Matemática na UC leva a comitiva do último Presidente da República da época salazarista, Américo Thomaz, à cidade dos estudantes. Entre vaias e reivindicações de “democracia”, “diálogo” e “ensino” dirigidas ao Estado Novo, é o presidente da DG/AAC, Alberto Martins, que pede a palavra. Esta não lhe foi, no entanto, concedida

22 de abril Alberto Martins e respetiva equipa são suspensos das atividades universitárias, mesmo das próprias aulas. Num gesto de solidariedade, inicia-se uma greve geral às aulas, apoiada por cerca de 150 docentes

6 de maio UC é temporariamente encerrada 8 de maio Queima das Fitas é cancelada para apoiar os académicos castigados

2 de junho Cerca de 85 por cento dos estudantes de Coimbra aderem à greve aos exames finais. A cidade é ocupada pelas milícias do Estado que detém inúmeros alunos


9 de abril de 2019 O movimento em Coimbra A somar ao clima ditatorial, entrava também na equação o desejo de participação no associativismo académico. Durante uma década, a eleição dos dirigentes da AAC foi negada aos próprios associados, dado que era o governo quem estava incumbido desta tarefa, ao nomear quem ocupava os cargos de chefia da casa. Também dentro das estruturas reito­ rais, a hierarquia, muito vincada, sofria uma forte intervenção do Estado. Tal implicava que o minis­ tro da Educação nomeasse o reitor que, por sua vez, escolhia os diretores, revela João Paulo Avelãs Nunes. Desta forma, os estudantes pretendiam uma “democratização da gestão da universidade”, pois estavam excluídos de todo e qualquer processo de tomada de decisão, acrescenta. As bandeiras de protesto que os estudantes hasteavam dirigiam-se a várias causas. Entre elas, a alteração do processo de seleção dos alunos que viriam a ingressar na universidade, que se baseava nas condições socioeconómicas das suas famílias. Ao limitar o acesso de muitos jovens, criou-se “uma universidade elitista com uma grande segregação social”, recorda Alberto Martins. Para além disto, a academia também se queixava do teor das aulas, que estavam muito comprometidas do ponto de vista ideológico. Exigia-se, deste modo, “uma maior liberalização dos programas dos cursos”, refere João Paulo Avelãs Nunes. De Coimbra ao resto do país A cidade deu início a um processo que viria, mais tarde, a alastrar-se por Portugal. João Paulo Avelãs Nunes explica que “a UC não era a instituição mais radicalizada nos finais dos anos 60 e início dos anos 70”. O professor esclarece que a universidade mais ativa na luta contra o regime era a de Lisboa. Ain-

da assim, o facto de a crise ter eclodido na cidade dos estudantes marcou o panorama das outras ins­ tituições de Ensino Superior do país. Na sequência deste movimento, “Coimbra e Lisboa ficaram em situação de rutura até 1974”, revela. Problematiza ainda que, caso a revolta não tivesse ocorrido em Coimbra, “o mais provável era que, mais tarde ou mais cedo, tivesse acontecido na capi­ tal”. Em Lisboa, a luta dos estudantes já tinha fortes precedentes desde 1962. A Crise Académica aos olhos da classe docente e dos contrastes ideológicos estudantis Durante as investidas dos estudantes, a maioria dos professores manteve-se à margem das contestações. Houve, contudo, uma minoria de docentes que “apoiou os estudantes de forma inequívoca”, assegura João Paulo Avelãs Nunes. Muitos dos docentes que se envolveram nesta luta lecionavam na Faculdade de Direito da UC (FDUC), o que, para o historiador, é um “pormenor curioso”. Justifica a sua apreciação ao relembrar que tinha sido também nos bancos e nos púlpitos da FDUC que, anos antes, António de Oliveira Salazar ocupara o lugar de aluno e professor. Dentro do movimento contestatário, emergiram várias correntes ideológicas. Embora a essência da luta mantivesse a vontade de derrubar o regime e melhorar as condições universitárias, sobressaíram diferentes opiniões dentro do movimento comum. “Republicanos, socialistas, comunistas, extrema-esquerda e católicos progressistas” eram as principais correntes que fervilhavam na época, enumera João Paulo Avelãs Nunes. Enfatiza que nem só de pessoas que pretendiam derrubar o regime se fez este movi­ mento. Havia muitos estudantes “que defendiam a ditadura, mas que criticavam a versão marcelista do

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1972 25 de setembro Se a greve aos exames de junho beneficiou de uma adesão em massa, a greve do início do Outono viu os partidários desmobilizar depois da repressão policial e de uma Assembleia Magna ter sido proibida

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28 de fevereiro Detidos e torturados pela PIDE/ DGS, sete estudantes da UC são julgados por alegadas atividades subversivas. Um dos estudantes, que já tinha cumprido pena em Caxias, acaba mesmo por se suicidar

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regime, responsabilizando-a pelo aumento da contestação estudantil”, salienta. No entanto, nem todos os alunos aderiram ao movimento, quer por colaborarem com o regime, quer por receio das represálias que poderiam advir. Estas incluíam “prisões, expulsões da universidade e o envio para a Guerra Colonial durante quatro anos”, refere o professor. Uma flor em troca de uma revolução Distribuir flores pela população, usar o humor e debater temas com pouca expressão até à data, como os direitos das mulheres estudantes, foram algumas das alternativas escolhidas pelos estudantes para lutar por aquilo em que acreditavam. Evitavam assim o confronto direto e geravam “agendas diversificadas e formas de atuação flexíveis”, demonstra João Paulo Avelãs Nunes. Apesar das dificuldades, a captação do apoio da cidade por parte dos jovens e o recurso a meios imaginativos de luta, como é o caso das caricaturas, dificultou a ação policial. Perante a situação, “as forças repressivas ficavam sem saber como atuar”, afirma o professor. O fenómeno teve inspiração em experiências do passado, “de que o Maio de 68 em França e movimentos na Checoslováquia, Estados Unidos da América e Reino Unido são exemplo”, garante o historiador. “Pragmatismo, imaginação e radicalização”. É à boleia destas três palavras que João Paulo Avelãs Nunes define o movimento estudantil. Tal implicou que, apesar das diferenças ideológicas que imperavam dentro da universidade, foi possível juntar os estudantes para alcançar um objetivo comum de força maior. Ou seja, a Crise Académica “conseguiu aumentar a coesão, apesar das diferenças de perspetiva”, conclui.

1980 27 de maio Queima das Fitas é restabelecida na academia coimbrã, mas o reviver do cortejo académico, dez anos depois da sua suspensão, traz confrontos entre estudantes de polos políticos opostos

1992 18 de novembro Depois da aprovação da “Lei das Propinas” que previa o aumento dos custos para estudar no Ensino Superior, os alunos universitários voltam a sair à rua, cercando a Assembleia da República, em protesto


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50 anos da Crise Académica gravados nas paredes e nos corações Dirigentes sentem responsabilidade acrescida por trabalharem numa casa que caracterizam como “em­ blemática”. Funcionários veem nos estudantes de hoje desinteresse e in­ diferença perante a história da AAC

MARIANA ROSA

- POR MARIA MONTEIRO E MARIANA ROSA -

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s placas comemorativas afixadas na entrada do edifício da Associação Académica de Coimbra (AAC) não deixam esquecer os aniversários da Crise Académica de 1969. O festejo deste momento vive ainda na memória dos funcionários e de quem passou pela presidência da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC). Para o atual presidente da DG/AAC, Daniel Azenha, “o passado é a história que não deve ser apagada”. “Ter 24 anos e poder representar 24 mil estudantes numa associação académica com toda esta história é algo que não precisa de palavras”, declara Daniel Azenha. Para o dirigente associativo, “é uma grande responsabilidade estar à frente de uma casa com 131 anos”. Daniel Azenha defende que ter consciência de que “tudo o que a AAC representa para Coimbra e para Portugal” é um primeiro passo essencial para a construção do futuro da academia. Também o antigo presidente da DG/AAC, Ale­x andre Amado, concorda que é um grande compromisso “carregar nos ombros” uma associação de estudantes com tanta história e tão reivindicativa. A comemoração dos 50 anos da Crise Académica de 1969 exige, segundo o antigo presi­d ente, “olhar o presente com o mesmo espírito com que os colegas do passado olharam a realidade que tinham à sua frente”. Alexandre Amado acrescenta que a “conjuntura se alte­ rou e que as necessidades são muito diferentes”, mas garante que o espírito se mantém inalterado apesar do passar dos anos. Dada a sua história, trabalhar na AAC implica “fazer mais e melhor” do que em qualquer outra estrutura associativa do país, declara o antigo dirigente. Regina Amado trabalha na papelaria da AAC há cerca de 30 anos. Ao longo do tempo, tem visto nos estudantes uma mudança de atitude. No seu entender, no passado, “os alunos preocupavam-se mais com as pessoas, com a casa e com as secções”. A falta de associados também é um dos problemas apontados pela trabalhadora. “As secções tinham muitas pessoas e, a cada ano, o número de interessados era cada vez maior”, afirma. Neste momento, há algumas estruturas inativas e outras que sofrem com a falta de pessoal. Explica que os estudantes já não se dedicam tanto às causas e apenas priorizam acabar o curso e regressar às suas casas. Defende que, caso a situa­ç ão continue, “a AAC pode deixar de exis­ tir” e que momentos como o da Crise Académica de 1969 terão sido em vão. O aniversário dos 45 anos da crise estudantil foi algo que impactou Francisco Linhares, porteiro da AAC há 22 anos, pela presença de antigos estudantes da época que vieram prestar homenagem e recordar a data. Para o porteiro,

mais conhecido como “senhor Xico”, os estudantes perderam muito respeito pela Universidade de Coimbra, ao ignorar o seu legado e ao torná-la “apenas mais uma instituição de Ensino Superior”. De acordo com Francisco Linhares, a geração atual de estudantes de Coimbra rege-se pelo lema “faz tu por mim”. O funcionário explica que, hoje em dia, as dificuldades em mobilizar estudantes para as causas são tantas que chega a ser necessário reinventar os caminhos do associativis­ mo académico. Aponta mesmo a possibilidade de “oferecer bilhetes para a Queima das Fitas” como uma forma atrativa de devolver os alunos à mobilização. Para o senhor Xico, “os estudantes devem ser mais participativos e não deixar para outros a luta pelos seus direitos”. Rei­t era que, quando a reivindicação dos direitos estudantis é entregue às mãos de outrem, os jovens “ficam sujeitos a vontades que não são as suas”. Alda Teixeira trabalha na AAC há 37 anos e hoje ocupa a loja Ponto Já, onde todos os dias

dá informações aos estudantes e turistas que por lá passam. Apesar de referir que cada ano tem a sua política e forma específica de celebrar a data, admite que as comemorações da Crise Académica de 1969 são “passadas em branco por alguns funcionários da AAC”. Confessa viver “todo o espírito” e amar “de coração esta casa”, daí “ficar triste ao vêla perder a essência”. A lojista guarda as memórias em livros anuais dos mandatos da DG/AAC, em que arquiva notícias e fotografias. Mas guarda com ainda mais orgulho o livro de recordações que elaborou em cada celebração da Crise Académica. No entender dos funcionários da AAC, “é problemático” que o aniversário da crise de 1969 seja encarado pelos estudantes com um sentimento de indiferença. “Ninguém se deve conformar perante o desinteresse dado a este acontecimento tão simbólico para a Universidade de C oimbra”, confessa o senhor Xico.


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O pedido da palavra em nome dos estudantes de 1969 No cinquentenário da crise estu­ dantil, o homem que pediu a pa­ lavra em 1969 aponta a sua visão do desenrolar dos eventos. Alberto Martins encara o momento como o ponto de viragem para os jovens da sua geração - POR PAULO CARDOSO E GABRIEL REZENDE -

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o comemorar os 50 anos da Crise Académica, o presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) no ano de 1969, Alberto Martins, aborda a visão que ainda guarda dos movimentos estudantis que ocorreram na cidade de Coimbra durante esse ano. Advogado, ex-deputado da Assembleia da República e exminis­tro da Justiça, foi estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC) e considera que a luta foi um acontecimento importante para a história da academia. O retrato de um país Alberto Martins analisa o Portugal da época como um “país pobre, analfabeto e subdesenvolvido”, sob uma ditadura com censura política. Refere o facto de a nação estar “isolada no mundo” - recuperando a expressão de António de Oliveira Salazar, “orgulho­s amente sós” - e de a crise de 1969 surgir na transição entre este governante e o seu sucessor, Marcello Caetano. Neste período, o número de estudantes universitários em Coimbra rondava os cinco mil alunos, enquanto Portugal contava com perto de 50 mil. O ex-presidente da DG/AAC caracteriza a luta dos estudantes de Coimbra como uma “manifestação de massas” que começou, num dia simbólico, com o pedido de palavra ao Presidente da República da ditadura, Américo Thomaz.

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Uma academia particular Alberto Martins refere que a academia conimbricense era particular por ter “um número muito ele­ vado de mulheres nos bancos das universidades em comparação com o quadro nacional”. Em 2009, na edição nº 196 do Jornal Universitário de Coimbra - A Cabra, o ex-presidente da DG/AAC confessou que “a mulher teve um papel importantíssimo na luta” e classifica o ano de 1969 como uma “festa da liberdade, mas também uma festa do amor”. Dezassete de abril de 1969 era a data marcada para a inauguração do edifício do Departamento de Matemática da UC com a presença, segundo Alberto Martins, de aproximadamente 1500 estudantes. O pedido da palavra ocorreu pela voz do próprio e foi visto “como um ato de provocação e de agressividade”, acrescenta. A palavra ter-lhe-á sido negada pelo reitor da instituição coimbrã, António Andrade de Gouveia, sob o pretexto de que a reitoria seria “a verdadeira representante dos estudantes da UC”. O pedido da palavra do ex-presidente da DG/AAC foi um “momento de grande tensão” e de dificuldade pessoal, assume Alberto Martins. No entanto, confessa que o interesse dos estudantes estava sempre na linha da frente das suas preocupações. “Nessa noite, fui pre-

so ao sair da sede da AAC e estive em interrogatório durante toda a madrugada”, menciona o ex-ministro da Justiça. Recorda que a noite foi atribulada e dá o exe­ mplo de “algumas centenas de estudantes que foram violentamente agredidos” pela polícia de choque. “Os estudantes queriam tentar ganhar Coimbra” Após o momento de tensão vivido nas Matemáticas, multiplicaram-se as greves às aulas e aos exames. Na sequência das mesmas, o Gover­n o teve a necessidade de encerrar tanto a UC como a AAC. “Era uma universidade elitista e com uma grande segregação social que não corres­p ondia às necessidades de inovação e de desenvolvimento do país”, considera.

“Não tive medo de pedir a palavra. Estavam presentes o chefe de Estado, o ministro da Educação, o ministro das Obras Públicas e o ministro da Justiça Era um ato difícil e duro, mas a razão, a vontade e a coragem necessárias venceram todos os medos que existiam durante o regime sob o qual Portugal viveu por mais de 40 anos” As greves geraram, segundo o ex-ministro da Justiça, uma “grande convulsão estudantil”, o que provocou a demissão do reitor da UC e o cancelamento dessa edição da Queima das Fitas. “Houve manifestações públicas porque os estudantes queriam tentar ganhar Coimbra”, declara. Com a anulação de um dos eventos culturais de maior relevância no panorama da cidade, Alberto Martins considera que a adesão dos habitantes locais à causa foi fundamental. Para tal, os estudantes mobilizaram a operação Flor, que consistiu na distribuição de flores à polícia, e a operação Balão, uma largada de balões com palavras de ordem. Com a contraposição da ideia de paz à de violência, a população local foi convencida de que as reivindicações dos estudantes eram relevantes, acrescenta. O então dirigente da AAC considera que o minis­ tro da Educação da época, José Hermano Saraiva, “deu um grande contributo à causa dos estudantes ao explicar, em rede nacional, a provocação e o desrespeito ao chefe de Estado que ocorreram no dia 17 de abril”. No entanto, na sua opinião, o efeito obtido foi o contrário ao que seria desejado por José Hermano Saraiva. “Tratava-se de uma luta que a ditadura tentava manter em segredo, como se não existisse”, declara. Alberto Martins afirma que 1969 foi o ano que mudou não só a sua vida, mas também a de inúmeros jovens da sua geração. Para o ex-presidente da DG/ AAC, ao lutar pela democracia, os estudantes assumiram “uma consciência política na defesa de valores fundamentais, de liberdade, de solidariedade e de igualdade”. O ex-ministro constata que foram estes os valores que o guiaram durante todo o seu trajeto político. “Democracia, solidariedade e combate às desigualdades são valores que continuam a fazer parte de mim”, assume Alberto Martins.


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“O associativismo pode estar mais agitado ou mais adormecido, mas nunca está morto” A frase pertence ao antigo presidente da DG/AAC, Alexandre Amado, mas o atual dirigente reitera a ideia. Se em 1969 os estudantes pediram a pala­ vra, hoje, 50 anos depois, não dei­xam­ de ter voz, defende Daniel Azenha - POR BEATRIZ FURTADO E MARIA FRANCISCA ROMÃO -

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uando em 1969 irrompeu a Crise Académica, as palavras de ordem que os estudantes escreviam nas faixas de protesto passavam pela “democracia” e pela “liberdade de expressão”. Meio século depois, a luta pelo acesso ao Ensino Superior é uma bandeira que continua hasteada, mas não pelos mesmos motivos. O que antes impedia a entrada dos estudantes na universidade era, segundo o presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Daniel Azenha, “um regime opressor e uma sociedade pouco instruída e muito dependente do setor primário”. Nos dias de hoje, o acesso a níveis de ensino mais elevados continua a ser um degrau que nem todos conseguem subir. Propinas, residências, bolsas e questões pedagógicas são “preocupações diárias” do estudante deste século, sublinha Daniel Azenha.

“Não se pode ser saudosista ao pensar que aquilo que se vivia em 1969 se pode viver agora”, reconhece Francisco Andrade, treinador da Académica à época. Frisa, por isso, a necessidade de adaptar a identidade da casa aos tempos. Para Rui Bebiano, professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, esta adaptação passa por ver nos movimentos feministas, no apoio aos refugiados e na defesa dos Direitos Humanos uma nova forma de associativismo. O historiador considera “redutor” avaliar o envolvimento estudantil “apenas pelo número de pessoas presentes nas Assembleias Magnas”. Já o antigo presidente da DG/AAC, Alexandre Amado, defende que passar um testamento de morte ao associativismo académico é uma atitude de quem não o quer ver. Aponta a rejeição do Regime Fundacional em Assembleia Magna e a manifestação “Basta” como exemplos de mobilização estudantil do presente. Para Alexandre Amado, 21 de março de 2018, data dessa mesma manifestação, foi o dia em que a academia voltou a sair à rua, algo que, argumenta, não acontecia há muito tempo. “Se tivéssemos ficado calados, não duvido que a propina teria ficado inalterada”, afirma. A redução de 200 euros no valor da propina máxima é, para o ex-dirigente da DG/AAC, “algo histórico e pioneiro em Portugal”. Garante que o acordo parlamentar não foi alheio à voz dos estudantes que, na primavera do ano passado, se fez ouvir. Esta mudança, ambicio-

nada há 25 anos, deu-se “no meio de toda a descrença e do discurso fatalista” que rodeavam a luta pela descida das propinas, conclui. “Nem todos os 131 anos da academia foram marcados por intensa mobilização, mas a AAC sempre cumpriu o seu propósito” No seu ainda curto mandato, Daniel Azenha já protagonizou dois momentos, que apelida de “iniciativas-relâmpago”, em que foi a própria DG/AAC que alertou para lutas do quotidiano dos alunos. O primeiro teve como objetivo devolver a refeição social à Cantina Amarela, que reabriu sem esse menu. Pela hora de almoço de 19 de março, os membros da direção da casa pegaram nos tabuleiros azuis e levaram por um dia a refeição social da Cantina Azul para a Amarela. Dois dias depois, numa ação inserida no Dia do Estudante, vestiram coletes amarelos para reclamar melhores condições para as residências universitárias, salas de estudo e cantinas. Quando questionado sobre o protagonismo exclusivo que a DG/AAC assumiu nestas iniciativas, Daniel Azenha justifica que não é a primeira vez que tal acontece e considera que foi cumprido o dever de sinalizar os problemas que afetam os estudantes. O presidente da casa relembra que há momentos políticos, como a recente mudança de reitoria, que têm de ser aprovei­ tados. Destaca a visita do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, à academia

QUAIS SÃO, HOJE, AS CAUSAS QUE MAIS PREOCUPAM OS ESTUDANTES? Entre o largo D. Dinis e os Jardins da AAC, o Jornal - A Cabra procurou saber quais as principais lutas do quotidiano estudantil, provável alimento dos movimentos associativos do presente. 30 alunos foram inquiridos, podendo, cada um, nomear mais do que uma causa.

PROPINAS HORÁRIOS E ESCASSEZ DE TEMPO ALOJAMENTO CANTINAS QUALIDADE DE ENSINO (DOCENTES E INFRESTRUTURAS) FUTURO PROFISSIONAL ESCASSEZ DE BOLSAS ESCOLHA DE MESTRADO TRANSPORTES RELAÇÕES PSICOLÓGICAS E SOCIAIS EQUIVALÊNCIAS DEPOIS DE ERASMUS POLÍTICA NACIONAL E INTERNACIONAL BARREIRA LINGUÍSTICA FOTOGRAFIAS GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA


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NEM SÓ EM 1969 VIVEU O ASSOCIATIVISMO ACADÉMICO PRIMAVERA DE 1962

1992-1993

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Crise Académica de 1962 A capital portuguesa viu sair à rua universitários que reivindicavam o direito a comemorar o Dia do Estudante. A celebração da efeméride tinha sido proibida pelo regime salazarista. À medida que os alunos ocupavam a universidade e as cantinas lisboetas, ouviam-se as palavras de ordem do protesto. Imortalizado pelas imagens de arquivo da RTP ficou o lema “Ofenderam-te, enluta-te! Só unidos poderemos triunfar”.

2017-2018 D.R.

Contestação da “Lei das Propinas” dos anos 90 O ponto de partida foi a projeção de um aumento do valor das propinas. E se já o projeto tinha levado os estudantes a manifestar-se, a aprovação definitiva da lei fê-los cercar a Assembleia da República (AR) em protesto. Nas páginas da edição nº 11 do Jornal - A Cabra ficou gravada a ação dos estudantes: “Uma impressionante «maré negra» a alastrar pelos jardins de São Bento”.

coimbrã como uma oportunidade que agarraram e que permitiu que fossem recebidos pelo governo para discutir a propina. O ‘timing’ assume-se como um fator decisivo para conseguir resultados, reitera Daniel Azenha. Acrescenta que, “se a DG/AAC deixasse passar a oportunidade de lutar pela Cantina Amarela, esta nunca voltaria a ter refeição social”. Alexandre Amado admite que “nem todos os 131 anos da academia foram marcados por intensa mobilização, mas nem por isso a AAC deixou de cumprir o seu propósito”. Reconhece mesmo que seria impensável que a casa se mobilizasse de forma tão marcante como em 1969, ao defender que “não há nem condições nem motivos para tal”. No entanto, não acredita que estes movimentos tenham ficado no passado. O associativismo do presente “é feito de jovens, de novas gerações e, claro, da história da AAC”, declara o antigo presidente da casa. A responsabilidade de perceber as causas pelas quais se deve lutar e de mobilizar a academia é atribuída, por Alexandre Amado, aos seus dirigentes. Já nas palavras do atual presidente da DG/AAC, é importante não esquecer que estas lutas não se fazem apenas através de manifestações. “Coimbra de doutores e futricas” Num país onde não se podia levantar a voz, os estudantes de Coimbra não viram outra opção que não fazê-lo. Foi em nome destes que o então presidente da DG/AAC, Alberto Martins, pediu a palavra com o intuito de reivindicar a liberdade, a democra­c ia e o ensino. Nos bancos das universidades portuguesas, sentavam-se menos de 50 mil estudantes. Vivendo num contexto opressor, sem se poderem manifestar livremente, encararam a sua representação pela AAC como meio de se fazerem ouvir. A voz que na época se levantou é aquela que, hoje, recorda as lutas da sua geração. Para Alberto Martins, a universidade e o país estavam para-

21 DE MARÇO DE 2018 25 DE ABRIL DE 2018

DANIELA PINTO

“Não” à da passagem da UC a Fundação Universidade pública com regime de direito privado, modelo previsto pelo regime fundacional, pareceu não colher apoios entre a comunidade coimbrã. Em AM, quase 500 estudantes rejeitaram a passagem da UC a Fundação. A eles juntaram-se também docentes, funcionários e, por fim, o então reitor da UC, João Gabriel Silva. 25 de junho de 2018 ficaria marcado como o dia em que Coimbra rasgou a possibilidade do regime fundacional.

ANA RUA

Manifestação Basta “Propinas desta cidade carrego comigo p’rá vida”, “Mais professores”, “Coimbra não tem encanto se o abandono é a despedida” e “Propinas e Bolonha é tudo uma vergonha” eram algumas das reivindicações que os estudantes erguiam em faixas e bandeiras que davam corpo à manifestação de 21 de março de 2018. As lutas resumiam-se, contudo, no lema que abria o protesto dos universitários: “Basta. O futuro do país não pode esperar”.

dos no tempo. Relembra que as instituições de Ensino Superior eram locais “frequentados por uma elite, fonte de uma grande segregação social”. Para o presidente da Câmara Municipal de Coimbra (CMC), Manuel Machado, esta segregação media-se pela distância que sepa­ rava os doutores dos futricas, nome que a gíria conimbricense atribui a quem não é estudante universitário. É a 17 de abril que se dá uma mudança profunda na relação entre os doutores e a cidade. “Coimbra e a academia passaram a compreender-se melhor”, explica. Passados 50 anos, o presidente da CMC assegura que os estudantes se sentem cidadãos de Coimbra e que estes últimos têm gosto em receber os universitários”. Manuel Machado manifesta a vontade de assinalar a Crise Académica de forma simbólica, “pela importância que teve para a mudança de regime e para a consciencialização cívica dos estudantes, da cidade e do país”. Realça ainda a eficácia do curto discurso de Alberto Martins, que foi uma importante alavanca para o 25 de abril de 1974. É também de forma sucinta que o presidente da DG/AAC em 1969 resume os problemas que se colocam hoje aos cidadãos. Constrói uma trilo­gia assente nas “questões básicas da sociedade”: desigualdade, Direitos Humanos e altera­ ções climáticas. As preocupações dos jovens são, no entender de Alberto Martins, particularmente diferentes. A dificuldade em realizar os seus talen­tos, aspirações e objetivos profissionais são algumas das barreiras que encontram. Também Daniel Azenha considera que os estudantes são confrontados com a dificuldade em conciliar um percurso académico encurtado por Bolonha com atividades extracurriculares. Acabam por estar mais preocupados com a saída

ANDRÉ CRUJO

Manifestação em nome da revisão do RJIES Numa data que não cuja escolha não foi deixada ao acaso, os universitários manifestavam-se contra uma política que, criticavam, “não dá voz aos estudantes nos órgãos de gestão das universidades”. A manifestação de 25 de abril não dispensou os cravos vermelhos, mas regou-os com a causa de academias geridas de forma mais democrática e representativa.

para o mundo profissional e a possibilidade de virem a enfrentar insegurança e instabilidade. Identifica estes motivos como a principal razão que justifica a queda no envolvimento estudantil. “Se há 50 anos lutaram por nós, também é nossa obrigação lutar agora pela geração futura” O compromisso é assumido por Daniel Azenha e passa por uma AAC mais próxima da cidade. Reconhece que, por vezes, Coimbra se desdobra em duas cidades: a dos estudantes e a dos habitantes. O atual presidente da DG/ AAC revela que as comemorações dos 50 anos da Crise Académica envolvem uma parceria com a CMC e com a Universidade de Coimbra. A celebração da data não se esgota em abril e estende-se até outubro. Adianta mesmo que as iniciativas começam com a Assembleia Magna de dia 8 de abril, durante a qual os membros da DG/AAC de 1969 foram condecorados com o estatuto de sócios honorários da casa. Também está prevista uma recriação do dia 17 de abril, a inauguração de placas comemorativas na entrada do edifício da AAC, concertos e exposições. As festas académicas de 2019 vão estar de igual forma inseridas no programa. De olhos postos no futuro do associativismo académico, Daniel Azenha partilha a ambição de levar os estudantes a envolverem-se para além dos núcleos estudantis e da DG/AAC. Aponta, como caminho, as secções culturais e desportivas. Por seu lado, Alexandre Amado deixa uma mensagem que contraria o fatalismo que assombra a academia e o associativismo. “Em 1969, também ninguém diria que o que aconteceu seria possível”, ressalva. Em meio século, é da sua opinião que o espírito académico permanece o mesmo. Assegura, por isso, que “a AAC está viva, assim como o movimento associativo”.


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A Crise Académica escondida pelo lápis azul Desinformação combatida por meio de metáforas que escapavam à censura. Na opinião de jornalista da época, fazer jornalismo livre “é como voltar a aprender a andar”

FOTOGRAFIAS GENTILMENTE CEDIDAS PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

- POR ANDRÉ CRUJO, JÚLIA FERNANDES E CAROLINA D’OLIVEIRA -

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urante a Crise Académica de 1969, a inauguração do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra no dia 17 de abril foi noticiada, mas a revolução estudantil que a acompanhou não mereceu destaque na imprensa. O então presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Alberto Martins, foi impedido de usar a palavra em nome dos estudantes e acabou detido. Foi decretado o luto académico e seguiram-se greves a aulas e exames. Todos os artigos escritos por jornalistas eram passados a pente fino para que neles não constasse qualquer insurreição contra o Estado. Metáforas e expressões popu­lares eram utilizadas para enganar os censores, mas a maior parte da população continuava desinformada. Jorge Castilho é jornalista desde os 19 anos. No dia da inauguração, este já tinha ouvido uns “zunzuns” acerca da revolução estudantil, mas não quis acreditar – como os jornais vespertinos saíam pelo início da tarde, ti­ nham de ser redigidos pela manhã. Isto signi­ fica que a maior parte dos jornalistas teria de adivinhar o que iria acontecer para redigir o artigo previamente. “Devido à ditadura, os programas eram sempre seguidos”, assim, o jornalista estava confiante que o programa seria cumprido. “Fiz uma notícia muito seca, sintética”, explica Jorge Castilho. A sua prioridade após o envio da mesma foi impedir que fosse publi­ cada – “a minha preocupação evitar que

saísse uma notícia que não correspondesse à realidade.” Não havia hipótese de relatar a atuação dos estudantes sem ser censurado, mas era preferível não propagar a retórica do Estado. A atitude dos estudantes mereceu um discurso por parte do ministro da Educação da altura, José Hermano Saraiva, que repreendeu os alunos. “Ironicamente, foi o próprio ministro que deu a notícia ao país”, afirma o jornalista.

O Lápis Azul do Silêncio Censura é uma forma de restrição à informação e conhecimento. A repressão à liberdade de imprensa e manifestação é uma das primeiras medidas tomadas por regimes ditatoriais. Desta forma é possível manipular a opinião pública, de forma a que o controlo por parte do governo se torne mais fácil. Esta técnica foi utilizada no regime nazi na Alemanha e em muitas outras ditaduras.


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Em Portugal, a censura à imprensa foi prevista, em lei, na Constituição de 1933. As informações e notícias não podiam ser divulgadas pelas instituições de comunicação sem antes serem analisadas por uma entidade censora. A nt e s d e o j or n a l s e r pu b l i c a d o t i n h a d e s e r e nv i a d o p a r a o s e r v i ç o d e c e n s u r a d a re g i ã o. A n ot í c i a v o lt av a aut or i z a d a , r a s u r a d a ou s u s p e n s a . Ribeiro Cardoso, jornalista, conta que a situação da censura na altura da Crise Académica de 1969 era pior, mas existiam maneiras escassas e difíceis de a contornar. Na época, para burlar a entidade censora, era comum utilizar linguagens simbólicas para transmitir informação. “Tudo dependia da capacidade, vontade e orientação do jornal e dos jornalistas”, afirma Ribeiro Cardoso. Segundo Sansão Coelho, jornalista, através de linguagem figurada “havia, por norma, o escrever nas entrelinhas”, pois “toda a criatividade estava focada na transmissão de informação”. Cabia aos jornalistas decidir que caminho seguir e a opção de Ribeiro Cardoso foi não fazer entrevistas aos membros do Governo. Um mês antes do 25 de abril, o Governo ocultou um movimento militar popular. Contudo, um jornal de Lisboa deu a notícia de forma “muito simbólica”, ao aproveitar o facto de ter decorrido um jogo de futebol, entre Sporting e Porto, no mesmo dia, recorda o jornalista. Ribeiro Cardoso conta que o repórter encarregado do artigo “nunca falou de futebol, a não ser no título”. Na notícia refere-se aos “homens do norte” e “homens do sul”, simbolizando o problema do Governo por um lado e o dos militares por outro, de forma a fazer o público compreender a intenção. Sansão Coelho relembra que na altura trabalhava na RTP e tinham listas de canções proibidas. O jornalista admite que eram os jornais desportivos que mais conseguiam “dar a volta à censura”. O profissional confessa que fechar a edição do jornal era “um problema”, dado que não podia haver espaços em branco, pois isso indicava um artigo censurado. Ribeiro Cardoso relata que a população era “por natureza, mal informada”, já que todos os meios de comunicação eram controlados. Diante disso, as vozes dos padres eram a principal fonte de informação na vida das pessoas. “A população das aldeias lia pouco, era tudo muito faz de conta”, acrescenta o jornalista. No entanto, os leitores sabiam que havia a censura, “o público mais frequente estava preparado para perceber um título que poderia ter outra conotação.” No entanto, “só pessoas mais cultas é que realmente alcançavam isto”, garante o profissional. Relatos da repressão e autocensura Sansão Coelho recorda um episódio cómico. Na altura, havia um professor e treinador de basquetebol chamado Alberto Martins que escrevia artigos de desporto. No entanto, todas as reportagens da sua autoria eram cortadas por o autor ter o mesmo nome do estudante que confrontou o regime no dia 17 de abril de 1969, e se encontrava preso. Reescrever um jornal censurado era mais difícil, na altura. Se esta fosse muito pesada, teriam de ser feitas muitas alterações. Isto resultava numa perda de circuitos de distribuição e uma chegada mais tardia às mãos dos leitores. Por esta razão, os jornalistas viam-se obrigados a fazer uma autocensura que diminuísse o impacto do lápis azul nos seus textos. A iliteracia era comum e rondava os 30 por

cento da população. A maior parte da informação não chegava às pessoas e qualquer tentativa de o fazer passava por enganar uma entidade de censura. E depois do adeus “É como voltar a aprender a andar”, explica Jorge Castilho. Após a revolução dos cravos, os problemas deixaram de ser como escrever, para serem sobre o que escrever. “A dificuldade era selecionar aquilo que se devia noticiar”, explica o jornalista. Após recuperarem a liberdade de expressão, os jornais começaram a ser muito mais politizados. O jornalismo passou por uma evolução e Por-

tugal teve o seu primeiro ‘talk show’ neste âmbito, explica João Figueira, autor do livro “Jornalismo em Liberdade” e docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coim­ bra. “Os jornalistas têm a função de saber usar a liberdade”, termina Jorge Castilho. Com o desenvolvimento do jornalismo livre, várias plataformas surgiram. João Figueira explica que existe um jornalismo antes e depois da TSF, da SIC e do Público. Este último foi um jornal que começou a ser pensado do ponto de vista gráfico, o que mostra o início de uma preocupação com algo que vai além do conteúdo do mesmo.


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José Pio Abreu: “O 25 de abril nasceu em Coimbra de 1969” Apesar de o cenário em 1969 ser de pressão e controlo constan­ te, os estudantes insistiam numa universidade democrática. Ain­ da assim, faziam-se espetáculos e discursos e as mensagens eram passadas de forma indireta: “A PIDE não era mais inteligente que nós” - POR MARIA LUÍSA CALADO E ISABEL PINTO -

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oi estudante de Medicina na década de 60 e membro da Tuna Académica da Universidade de Coimbra. Residiu numa república de estudantes onde se discutia cultura, literatura, música e política. Mais tarde, foi mandado para a guerra na Guiné onde conheceu militares que desencadearam, cinco anos depois, o 25 de abril. José Luís Pio Abreu admite que o poder da argumentação é a maior valência dos estudantes para conquistar as pessoas. Nesta entrevista, o antigo estudante da Universidade de Coimbra recupera algumas experiências e memórias da época. Quando chegou a Coimbra, que contexto se vivia na cidade? Foi em 1963. Tinham saído as primeiras canções do José Afonso, existia um clima cultural importante.

Fui para as repúblicas e elas tinham um pensamento muito independente. Era um contexto de grande atividade académica. A associação académica estava fechada, mas havia uma grande atividade cultural por parte das secções. Quando chegou a Coimbra, que contexto se vivia n ­a cidade? Foi em 1963. Tinham saído as primeiras canções do José Afonso, existia um clima cultural importante. Fui para as repúblicas e elas tinham um pensamento muito independente. Era um contexto de grande atividade académica. A associação académica estava fechada, mas havia uma grande atividade cultural por parte das secções. Como foi viver numa república, o Palácio da Lou­cura, durante a década de 60? Era um ambiente de grande discussão e de grande liberdade. Éramos muito críticos e éramos críticos uns com os outros. Discutíamos e falávamos para chegar a conclusões boas. Mas éramos amigos, sempre. Tínhamos opiniões diferentes, argumentávamos… era um espaço de liberdade onde se discutia de tudo. Desde cultura a literatura, música e política, naturalmente. Como era o ambiente de pressão por parte do ­regime, durante a crise? Nós não éramos burros e, portanto, sabíamos reagir. Sabíamos dar-lhes a volta. A Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) não era mais inteligente do que nós, às vezes havia coisas que dizíamos, discursos

que fazíamos que toda a gente percebia e a PIDE não. Sentia-se um clima de medo? Não. Nós sabíamos que havia coisas que não se podiam dizer. Evitávamos isso e dizíamos outras coisas, cantávamos, fazíamos espetáculos. Tínhamos uma maneira indireta de passar as mensagens. Qual foi a maior arma dos estudantes para mudar o cenário? Em Coimbra, em vez de andarmos à pancada, dizíamos aos guardas que andávamos a trabalhar para os fi­ lhos deles poderem ir para a universidade. Andávamos a trabalhar para democratizar a universidade. Esta atitude foi, portanto, uma coisa muito importante na crise. Nós não guerreávamos com ninguém. Pelo contrário, tentámos conquistar as pessoas. Sabíamos que tínhamos razão e, pouco a pouco, outros foram-se juntando a nós. Primeiro os estudantes, depois os professores e depois toda a gente. Tínhamos capacidade de argumentação e sabíamos explicar o que queríamos. O facto de ter sido estudante em Coimbra influenciou a sua passagem pela guerra? Puseram-me com os 40 indivíduos mais ativistas que a PIDE conhecia, portanto fomos todos incorporados de castigo. Eu fui para a Guiné e, quando lá che­guei, o general Spínola dirigiu-se ao barco a pé e perguntou quem eram os estudantes de Coimbra. Recebeu-nos muito bem. Antes da Guiné, em Mafra, eu estava num pelotão e meti, pela primeira vez, uma flor no cano da espingarda. Que influência teve a crise de 1969 no 25 de abril? Toda… toda. O 25 de abril nasceu em Coimbra de 1969. Os militares sabiam que tínhamos ido para a Guiné porque éramos contra a guerra. Então, vinham ter connosco e diziam-nos que também eram contra. Quando lá cheguei, vi perfeitamente que o regime não podia continuar. Acho que a crise de 1969 foi a coisa mais importante para o 25 de abril. Foi uma revolução romântica com alegria, com as canções do Zé Afonso, com tudo isso. A maior asneira que eles fizeram foi mandar-nos de castigo para a tropa porque fomos influenciar os outros. Os militares que lá estavam, ao primeiro pretexto que tiveram, fizeram a revolução. O regime tinha de cair. Caiu de podre, aliás.

FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA POR JOSÉ PIO ABREU

Gostaria de destacar alguma história ou momento da década? Toda a década de 60 é uma história completa. Lembro-me de subir aos bancos do Mandarim durante uma festa. Começo a fazer um discurso em que citei um escritor português que dizia que vivíamos num conto de fadas. A Cinderela dava-se bem com o Rei e todos se relacionavam bem. O problema é que quem tinha feito a Cinderela era quem tinha feito o Rei. Nós vivíamos numa ilusão de que toda a gente se dava bem quando não davam de facto. Subimos às mesas, fizemos grandes discursos e todo o Mandarim aplaudiu. Depois disso, a PIDE chamou-me para eu me explicar. Disse-lhes “é um conto de fadas”, expliquei-lhes a história e eles ficaram sem saber o que eu queria dizer [risos]. Fiz deles parvos, ficaram simplesmente a olhar para mim. Fizemos também a Tomada da Bastilha, que toda a gente queria que fosse muito ativa e com gritos contra a ditadura. Nós conseguimos fazer uma Tomada da Bastilha que conquistasse toda a gente, uma Tomada da Bastilha em silêncio, só com tochas, sem dizer nada… nada, nada. E, no fim, fiz um “F-R-A” e fomos todos para casa com a cidade cheia de luzes a acompanhar-nos.


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Crise na pele da cultura de academia: o “pequeno castelo com uma voz enorme” União entre secções culturais da AAC foi fundamental para a luta académica. Alegria, medo e com­ panheirismo foram os principais sentimentos partilhados entre os ­associados - POR VASCO BORGES E DIOGO MACHADO -

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entro das paredes do edifício da Associação Académica de Coimbra (AAC), os membros dos organismos autónomos conspiravam contra o Governo de ditadura, presidido à data por Américo Thomaz. Apesar de ser a casa dos estudantes, era também frequentada por agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), o que fomentava­o secretismo. João Viegas, membro do Círculo de Iniciação Tea­ tral da Academia de Coimbra (CITAC) em 1969, relembra “um ambiente de alegria e união entre os estudantes das diferentes secções”. Dentro da AAC, ouvia-se a emissão do Centro Experimental de Rádio, atual Rádio Universidade de Coimbra, a qual passava num circuito interno através de pequenas colunas no interior do edifício e nos seus jardins. Do lado de fora, as ruas eram patrulhadas por jipes com arame farpado e agentes armados. Com todo o cuidado, a então Secção Fotográfica da AAC (SF/AAC) publicava fotografias pelos placards de cortiça distribuídos pela academia. “Muitas das ima­ gens que hoje circulam da crise são propriedade dos estudantes de Coimbra que as compravam à secção”, conta o ex-diretor da SF/AAC, José Veloso. Na sala do CITAC, ensaiavam-se diversas peças de teatro, “algumas delas consideradas um escândalo pela sociedade da altura”, explica João Viegas. O antigo membro do CITAC revela ainda que eram constantes a vigilância da PIDE e a obrigatoriedade de realizar uma demons­ À ESQUERDA, ESTUDANTES ASSISTEM A MANIFESTAÇÕES CULTURAIS NOS JARDINS DA AAC. À DIREITA, ZECA AFONSO EM CONCERTO. FOTOGRAFIAS GENTILMENTE CEDIDAS PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

tração à comissão de censura. “A nossa sorte é que as comissões eram compostas por uns coronéis analfabetos. Bastava mudar umas vírgulas e tirar umas frases e os gajos deixavam passar”, refere o membro do CITAC entre risos. A luta englobava todos os organismos. João Viegas relembra que “o objetivo do CITAC era partilhado por outras entidades da AAC, como o Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e a Tuna Académica da Universidade de Coimbra (TAUC), por exemplo”. No entanto, descreve também o momento em que, durante um ensaio no Teatro Avenida, a PIDE interrompeu e prendeu o seu encenador depois de inúmeras agressões. “Mas o CITAC conti­ nuou a lutar”, reforça. José Veloso explica que, durante a crise, “ocupavam o tempo das aulas em debates sobre a universidade e a Guerra Colonial”. Já João Viegas não esquece as sessões de “chapelada” à porta da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, “com o chapéu de chuva do meu avô à porrada” para manter o bloqueio das aulas. “Havia confusão todos os dias”, acrescenta. O ex-membro do CITAC recorda que “os espetáculos contavam com público universitário, mas também com muita gente da cidade e até alguns, muito poucos, professores que iam com um certo medo. Essa ausência de docentes acontecia porque “quase todos apoiavam o regime”. Apesar desta tendência, um professor, Orlando de Carvalho, “que era assumidamente de esquerda”, costumava assistir às apresentações, lembra João Viegas. Em finais de abril de 1969, a SF/AAC organizou uma “exposição dinâmica” na atual sala de estudo da AAC. À medida que os eventos surgiam, mais fotografias eram adicionadas à exposição. Nesta, eram expostas fotografias de todos os acontecimentos da luta estudantil, desde a inauguração do edifício das Matemáticas até à final da Taça de Portugal que aconteceu no mesmo ano, disputada entre o Benfica e a Académica. José Veloso recorda na perfeição a repor­tagem

CARTAZES NA FINAL DA TAÇA DE PORTUGAL DE 1969 FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA POR JOSÉ VELOSO

fotográfica do dia 17 de abril. “Metemo-nos dentro do Hospital Velho e, com objetivas e ‘flashes’­­­ profissionais, tirámos fotos incríveis da chegada da comitiva e de tudo o que aconteceu lá dentro”. O ex-diretor da SF/AAC admite que uma das fotografias mais marcantes foi a que tirou no momento em que Alberto Martins, presidente da Direção-Geral da AAC (DG/AAC), pede a palavra ao ministro da Educação da altura, José Hermano Saraiva. “Quando ele se levanta, levanta-se também um homem de cabelos brancos que tapa a metade inferior da fotografia”, lembra com detalhe. Refere a emoção que foi “fazer a reportagem da final da Taça de Portugal com o estádio cheio e os cadeirões reservados para o Presidente da República e membros do Governo” que, pela primeira­­­­ vez, estiveram vazios. João Viegas não esquece um tempo de união dentro do “pequeno castelo com uma voz enorme” que era o edifício da AAC. “Éramos todos amigos. O ambiente era de alegria permanente”, resume o antigo membro do CITAC. Aos olhos de José Veloso, o que vai sempre recordar é “a importância fantástica que isto teve para a formação de homens e mulheres livres com princípios de solidariedade, amizade e respeito, que se mantêm até hoje”.


12 desporto 9 de abril de 2019

Vítor Campos: o legado que se pinta com as cores da Briosa Uma identidade que não marcou apenas o futebol da Briosa e se es­ tendeu à academia universitária. Os valores do quotidiano permanecem na memória de quem o conheceu como ninguém - POR SOFIA GONÇALVES E ANA LAGE -

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os 17 anos, Vítor Campos deixou Torres Vedras, a sua terra natal, para se aventurar na vida académica coimbrã. Ingressou na licenciatura em Medicina da Universidade de Coimbra (UC) em 1964 e foi pelos relvados continuou a cons­ truir­ o seu legado. Em 1972, foi chamado à Seleção Nacional, onde era o único jogador que mantinha outra ocupação. De losango ao peito, capa aos ombros e bata branca, diziam os que o conheceram que “foi um homem com H grande”. Jogador da até então Secção de Futebol da Associação Académica de Coimbra (SF/AAC), é lembrado pela filha, Maria João Campos, como uma “pessoa afável, sorridente, divertida e cuidadosa com os outros”. Esteve presente na final da Taça de Portugal contra o Sport Lisboa e Benfica em 1969, altura em que as reivindicações estudantis ecoavam pela cidade do Mondego, naquela que a história viria a designar como a Crise Académica de 69. António Paiva, formado em Medicina e especializado em otorrinolaringologia, foi seu colega de curso e lembra-o como “um verdadeiro exemplo”. De Torres Vedras para a Seleção das Quinas Coimbra rapidamente se tornou a nova casa de Vítor Campos, casa que defendeu nos bancos universitários e nos relvados. O percurso universitário na área da Medicina levou-o a tornar-se anestesista. António Paiva conta que, quando o jogador da SF/AAC foi convocado para a Seleção Nacional, se dirigia para o estágio para ajudar outros a estudar. “Isto levantava alguma curiosidade nos restantes jogadores que, na altura, eram os melhores de todos os tempos”, confessa. José Belo, colega de equipa de Vítor Campos, relata a presença do saber jogar dentro do balneário. Digna de “um homem de convicções académicas bem definidas”, era dono de uma voz “ativa e mobilizadora”. Teve a educação como um valor muito presente durante o seu percurso. “Ele não deixava que ninguém chegasse à Académica sem que lhe fosse explicada a importância dos estudos”, esclareceu Maria João Campos. Era visto como um líder, não no sentido “de que­rer­ que o seguissem”, mas por argumentar a favor daquilo que defendia e por encaminhar aqueles que pisavam o campo com ele, recorda a filha. “Parecia que se levantasse a mão quase tocaria no céu, tal a força do momento” A final da Taça de Portugal contra o Benfica foi um dos momentos mais marcantes na vida de Vítor Campos, “por ser aquela de que mais se falava, dado todo o envolvimento”, acrescenta a filha do

JOÃO RUIVO

jogador. De capa aos ombros e não traçada como era habitual, foi assim que os onze em campo enfrentaram o regime. José Belo descreve o que sentiu assim que as suas chuteiras pisaram o relvado: “demos a cara, as pernas e o coração pela Académica nessa caminhada até ao Jamor”, onde vincaram, por Portugal fora, que a academia estava de luto. Na altura, muitos estudantes ficaram retidos, sem a possibilidade de fazer as unidades curriculares necessárias, devido à Crise Académica. Vítor Campos e António Paiva, colegas de curso, não foram exceção. “Chegámos a outubro convencidos de que o ministro da Educação de então nos daria uma época plena. No entanto, perdemos o ano, ainda que sem chumbar”, explica. Os valores de geração em geração Maria João Campos não se lembra do pai enquanto jogador pois, quando nasceu, já Vítor Campos havia deixado as competições de elite. Fruto do companheirismo que tinha com o pai, recorda algumas histórias que o mesmo lhe contava. Mário Campos era irmão mais novo do atleta e seu colega de equipa na SF/AAC. A filha do jogador contou uma história caricata, memória da presença de pai e tio numa competição europeia. “Há um atleta da outra equipa que faz uma entrada muito dura sobre o meu tio e, numa jogada seguinte, o meu pai goza com ele numa finta, ao fazer um toque de toureiro”, retrata. Termina ao acrescentar que “foi um momento precioso de irmão mais velho”. Vítor Campos era conhecido pela sua ideia de equidade e pelos ideais que defendia com a convicção que tão bem o caracterizava. José Belo lembra o

colega de equipa ao relatar “o seu espírito vivo e inteligente, bem como a frescura das suas ideias académicas”. Aos seus três filhos, dois rapazes e uma rapariga, tentou transmitir não só todos estes valores, mas também o respeito pelo losango que outrora carregou ao peito. Desta forma, o encanto pelo emblema dos estudantes ficou vincado no seio da família Campos. “O amor pela Académica não se explica, sente-se”, justifica Maria João Campos. Conclui afirmando que as “três gerações usufruíram muito dos valores transmitidos por ele”. A memória como marca de um legado Visto como um “pai compreensivo e atento”, Maria João Campos descreve a sua figura paternal como “excelente”. Realça a confiança como o principal pilar na relação que os três filhos estabeleciam com Vítor Campos, uma vez que permitia a Maria João e aos irmãos “ter liberdade a todos os níveis”. A única advertência dada por Vítor Campos é lembrada pela filha do jogador, entre alguns risos. “Quando se iniciava uma Queima das Fitas, ele dizia sempre «olho vivo e pele ligeira», era o único conselho que dava”, recorda. O ex-jogador era muito respeitado, não só pelos doentes, como pelos colegas e pela administração do hospital onde trabalhava e onde sempre assumiu, de acordo com família e amigos, “uma postura impecável”. Um mês após o seu falecimento, Vítor Campos é recordado como um exemplo a seguir pelos estudantes, pelos médicos e pelos desportistas. “Um bom estudante, um indivíduo sério e trabalhador. Em suma, um verdadeiro senhor”, nas palavras de António Paiva. Para concluir, num tom emocionado, assume que se revê muito no antigo colega de ofício. “Perdi um grande amigo”, termina. Um ícone da academia que promete perdurar nos registos da AAC.


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FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA POR MÁRIO CAMPOS

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Benfica levantou a Taça, Académica acordou Portugal

50 anos depois, o dia 22 de junho de 1969 não é esquecido. A final do Jamor ficou marcada mais pelo peso político do que pelo resultado - POR MARIA SALVADOR E PATRÍCIA SILVA -

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uvir a data de 1969 é suficiente para que, mesmo após 50 anos, os estudantes da Universidade de Coimbra (UC) sejam transportados para a manhã do dia 17 de abril. Em pleno Estado Novo, ressoavam pela cidade as críticas à ditadura vivida em Portugal. “Ensino para todos” e “Estudantes no Gover­no da Universidade” eram algumas das mensagens escritas em cartazes erguidos pelos alunos durante a inauguração do novo edifício das Matemáticas da UC. No interior do edifício, decorria a cerimónia de aber­tura, na qual se encontravam o reitor da UC, o ministro da Educação e o Presidente da República, Américo Thomaz. A dado momento ouve-se a pergunta que inicia a greve dos estudantes: “Sua Excelência, Senhor Presidente da República, dá-me licença que use da palavra nesta cerimónia em nome dos estudantes da Universidade de Coimbra?”. Quem a proferiu foi o então presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra, Alberto Martins. Este foi o acontecimento que pintou a cidade de Coim­bra de negro e deu caráter à final da Taça de Portugal de 1969, que colocou frente a frente a Académica e o Sport Lisboa e Benfica no Estádio Nacional do Jamor. “Briosa, se jogasses no céu lá iria só para te ver” Foi com entusiasmo que, no dia 22 de junho, Domingos Grilo, adepto dos “Pardalitos do Choupal”, colocou o seu cachecol de apoio à Briosa e saiu da cidade dos estudantes no seu Volkswagen carocha, rumo a Lisboa. “A minha esposa nunca tinha ido ao futebol e eu decidi levá-la”, recorda o adepto com um sorriso saudosista. Já no Jamor, a forte presença policial era sentida, em especial pelos apoiantes de Coimbra. “Todos os

eventos que levavam adeptos atrás da Académica eram encarados pelo governo como uma manifestação de contestação política”, explica o adepto. No decorrer do jogo a euforia nas bancadas foi fortemente reprimida. Faixas com frases de objeção ao regime mostradas pelos estudantes foram erguidas, mas escondidas de seguida e passadas de mão em mão para evitar a repressão da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). A passo lento e de capa aos ombros entraram em campo os jogadores estudantes, confirmando a todo o estádio e ao país que algo anormal estava a acontecer. Este não era um simples jogo de futebol. “A entrada da equipa foi a ponta da lança de contestação”, afirma Domingos Grilo, “uma das razões de estarmos ali”, acrescenta. “Os adeptos da Académica fizeram desta final uma festa”, revela. O momento foi aproveitado para protes­ tar a favor da causa estudantil, mas “o árbitro apitou, suspendeu-se a contestação e começou o futebol”. A “imparável” Académica O caminho até ao Estádio Nacional começou muito antes e não se mostrou nada fácil para os jogadores da Briosa. Vários adversários separavam os estudantes do sonho da final, mas a equipa seguiu vitoriosa. A última barreira foi o Sporting Clube de Portugal, a contar para as meias-finais da competição. No jogo em Alvalade, a equipa começou a mostrar, de forma mais evidente, as marcas do luto. Subiram ao relvado de braçadeira negra e equipamento branco. “Creio que os colegas dirigentes perceberam aí que o futebol podia ser uma arma política para ajudar o êxito da greve”, afirma António Marques, um dos ex-jogadores da Académica. A PIDE investigou as ações dos jogadores em campo. “Encontrávamos sempre maneira de contrariar as imposições das autoridades”, afirma o jogador e lembra a justificação utilizada para escapar às perguntas policiais. Esta passava por “dar desculpas” como a de que “o dia estava muito

quente e o branco não absorve tanto o calor”. A derradeira barreira não aguentou e cedeu peran­te uma Académica invencível no caminho para a final. Já no Jamor, a equipa caminhou para as quatro linhas de capa negra aos ombros. Para além deste peso, carregava também a responsabilidade de “transmitir os princípios do luto académico a todo o país”, reitera Mário Campos, antigo atleta e médico nefrologista aposentado. O medo da força do movimento transpareceu na falta de figuras de Estado. “A final de 1969 reve­l ouse uma grande machadada contra o marcelismo”, admite Mário Campos. “A governação tremeu”. O país foi impedido de assistir à icónica final pois, ao contrário do que era habitual, o jogo não foi transmitido na RTP. O nefrologista realça que “o poder do futebol enquanto arma política” foi des­ tacado nesta partida. “Não acabámos com glória nem graça, mas cantámos vitória” A menos de dez minutos do final do jogo surge o tão desejado golo da Académica. Gera-se euforia nas bancadas que, no entanto, não duraria muito. A esperança dos estudantes começa a perder-se quando aos 85’ o Benfica empata o encontro. Tudo piorou quando, no prolongamento, Eusébio encostou a bola na rede da Briosa e inverteu o resultado. Apesar disso, os atletas garantem que a equipa saiu com “o sentimento de dever cumprido”. Os tempos mudaram e a Académica também. Domingos Grilo explica que o futebol da Briosa está descaracterizado pela falta de estudantes no plantel. Durante a conversa apoiou-se nas palavras de Vítor Campos: “aqui no balneário é para estudar e jogar futebol, quem não quiser, não está cá a fazer nada”. “Hoje desapareceu a magia do futebol académico”, remata o adepto com alguma tristeza. No final do jogo, a Taça de Portugal de 1969 foi levantada pela formação lisboeta. Contudo, António Marques lembra que “não acabamos com graça, nem glória, mas ao fim ao cabo cantámos vitória”.


14 ciência & tecnologia 9 de abril de 2019

Entre a razão e a emoção: a ciência por trás do protesto Diversos fatores sociais explicam a adesão de pessoas a protestos e greves. Especialistas frisam a ne­ cessidade de analisar o enquadra­ mento histórico e cultural que carac­teriza a sociedade em perío­ dos de instabilidade

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- POR NINO CIRENZA E GABRIELLA KAGUEYAMA -

análise do comportamento humano em contexto de revolta é uma área de estudos derivada da psicologia política. Joaquim Pires Valentin, professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coim­ bra (FPCEUC), informa que, em situações de insatisfação coletiva, “ou se faz algo ou não se faz nada”. O mesmo explica que existem diversos fatores que estimulam um indivíduo a mobilizar-se, tais como a identificação “com um grupo afetado ou que esteja a promover a mudança”. Ligia Bugelli, doutoranda em Direitos Humanos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), salienta que essa identificação faz parte de um processo de cons­ ciencialização individual. “Todos os que protestam têm consciência de algo”, quer seja no domínio individual ou inserido numa demonstração de solidariedade por uma causa. A vivência e o reconhecimento de injustiças sociais são outros fatores que impulsionam a ação social e que podem afetar as emoções individu-

ais­­. Mónica Soares, doutoranda em Direitos Humanos em Sociedades Contemporâneas no CES, explica que emoções como a raiva e a indignação são catalisadoras para o processo de adesão a um movimento. A mesma salienta que “experienciar momentos de injustiça e opressão pode levar a situações de protesto espontâneos”. Segundo Mónica Soares, as emoções tanto podem mobilizar como desmobilizar. Algumas fazem com que o indivíduo se sinta retraído, por exemplo, numa situação de repressão policial. “O medo é um fator que diminui a probabilidade de o indivíduo se envolver em protestos”, constata. A perceção de que a mobilização pode ter algum resultado também é um motivo que impulsiona ações coletivas. Para Mónica Soares, a eficácia da ação prevista pelo grupo que se mobiliza “conta muito para que o indivíduo se envolva”, bem como a sensação de repartição dos possíveis riscos “caso corra mal”. De acordo com Joaquim Pires Valentim, quanto “mais longa a crise, mais as pessoas confiam na eficácia da ação coletiva”. A doutoranda reitera que a confiança nas instituições democráticas é essencial para que as pessoas acreditem que a pressão exercida se transforma em reformas que atendem às suas demandas. Por outro lado, para Ligia Bugelli, o entendimento de que mobilizar-se coletivamente pode resultar em mudanças pautou o seu envolvimento pessoal “contra a corrupção”. Adiante mesmo que chegou a participar em vários protestos no Brasil. “A falta de oportunidades é uma das razões para que as pessoas não se mobilizem”, aponta Ligia Bugelli. Sublinha ainda que são poucos os que dispõem de oito horas diárias para se in-

MARTA EMAUZ SILVA

formarem e saírem às ruas por uma causa. Essa disponibilidade “é de uma posição social muito privilegiada”, anui. Ligia Bugelli problematiza ainda o ato de rotular quem vai a manifestações como uma pessoa “revoltada”. “Pode ser-se ativista em diversas frentes, como política ou académica, sem se ser considerado revoltado”, esclarece. Joaquim Pires Valentim reforça que uma ação social não é necessariamente subversiva. “Pode ser uma ação antinormativa, ou seja, contra as normas sociais”, esclarece. O mesmo exemplifica que várias ações coletivas, como a greve, são características cívicas “perfeitamente eficientes nas sociedades democráticas”. De acordo com Joaquim Pires Valentim, é crucial analisar as “situações de contexto que levam as pessoas a protestar, em vez de achar que os sujeitos têm uma tendência para protestar individualmente”. Para o professor, “convém não psicologizar os protestos”. Mónica Soares reforça a necessidade de “perceber o papel do indivíduo no meio de todos esses contextos” para compreender a defesa coletiva de uma causa. “É essencial ter em conta que os sujeitos são constituídos em processos sociais e histórico-culturais”, alerta Mónica Soares. “Não se pode entender o indivíduo por si só”, relembra. Expõe que os protestos e outras ações coletivas são atividades partilhadas em sociedade e que “mobilizam diferentes tipos de pautas e de sujeitos”. Joaquim Pires Valentim considera que o que leva as pessoas a protestarem não são as suas características pessoais ou fatores psicológicos, mas aspetos sociais: sentir as mesmas dificuldades e injustiças de quem se manifesta.


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ciência & tecnologia 15

A retórica de quatro décadas do regime de medo Salazar cai da cadeira, levan­ ta-se a esperança. A lógica que acompanha um povo oprimido e a memória distorcida da saudade - POR RAFAELA CHAMBEL E DIANA RAMOS -

Lisboa está tomada”. Foi assim que, às sete da manhã, Manuel Alegre recebeu a notícia do 25 de abril. Ao som de “A Trova do Vento que Passa”, poema da sua autoria, na voz de Adriano Correia de Oliveira, compreendeu que “o golpe militar se estava a transformar numa revolução democrática e popular”. Do medo de uma sociedade a uma juventude democrática, a geração que viveu a Revolução dos Cravos encontrava-se entre um passado ainda presente e a ânsia por um futuro. Fernando Florêncio, professor da Licenciatura em Antropologia na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, explica que “cada indivíduo identifica, interpreta e assimila a realidade à sua volta de forma diferente, consoante o percurso que faz”. No contexto do Estado Novo, existe uma disparidade no acesso que a população tem à informação, acrescenta. Este fator faz com que, por um lado, os jovens analfabetos fiquem mais sujeitos à propaganda salazarista. Por outro, aponta que “as camadas mais abastadas têm acesso aos jornais e às ideias que circulam lá fora”, o que possibilita a construção de um pensamento crítico. Influenciada pelo regime de medo, a sociedade portuguesa teme contrariar a ideologia política imposta. Manuel Alegre manifesta-se nesta época em que protestar era proibido e resultava em tortura ou prisão. “Nunca suportei a sujeição, portanto é um imperativo quase físico e orgânico lutar pela libertação do país”, frisa o poeta. Ainda assim, viuse vítima da censura da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que o manteve preso para interrogatório durante seis meses. Por detrás de um ditador, estão traços de narcisismo, egocentrismo e a convicção de que a sua verdade é absoluta, esclarece Fernando Florêncio. O carisma é também uma característica essencial: “Hitler e Mussolini, com o vocabulário certo, eram capazes de incendiar multidões”, exemplifica. O discurso nacionalista é “apelativo, pois recorre às raízes mais profundas da identidade” e integra princípios da essência social e cultural, justifica o docente. Explica ainda que, como o medo pode colocar em perigo a integridade, resulta num conflito da base identitária. Como o ser humano se constrói ao longo do tempo, baseia-se nos temas conturbados da época. “Se não é medo do outro islâmico, é do outro negro, ou do outro refugiado”, lembra o professor. “Quando volta o patrão branco?” Segundo Fernando Florêncio, doutorado em estudos africanos, “a ditadura salazarista fez-se sentir nas colónias quando implementaram regimes que definiam o que era ser africano”. Portugal investiu no designado “território ultramarino” para evitar sanções internacionais e das Nações Unidas. Contudo, no processo de descolonização, os países africanos viram o seu desenvolvimento regredir com o choque da rutura. As consequências do colonialismo sentem-se de forma diferente consoante o estatuto social da popu­lação, reitera o antropólogo. O mesmo agrupa

as pessoas em duas categorias: o povo e a elite. A primeira sentiu mais o impacto da retirada das tropas portuguesas pela falta de orientação que se seguiu. O docente defende que ainda hoje a cultura colonizadora está vincada na vida destas populações. Relembra que, em 1994, numa visita a África, foi abordado com a questão “quando volta o patrão branco?”. Ao ser forçado a pisar solo de guerra, Manuel Alegre recorda um tempo “muito doloroso”. Nas mãos não carregava apenas uma arma, mas também um dilema: acreditar no direito à autodeterminação, mas sentir que, enquanto oficial, tinha o dever mili­ tar de proteger os soldados. “Se defendemos liberdade para nós, temos de achar que os outros também têm direito a ela”, sublinha. O “racismo” é um termo camuflado no seio da comunidade lusíada, clarifica Fernando Florêncio. Acrescenta que predomina um discurso politicamente correto, disfarçado por anos de escravização e massacres. O português criou “uma narrativa, na qual se acredita que o país aceita o outro na sua dife­ rença”, conclui o professor. Refletir sobre o passado para definir o futuro O povo português acredita que “Salazar salvou a pátria da bancarrota e que Portugal nunca esteve tão rico”, o que constrói uma mitologia em torno da sua figura, refere Fernando Florêncio. Nota que a população sofreu uma “lavagem” e ainda hoje se descura

MARTA EMAUZ SILVA

o outro lado da revolta. “Os livros de história gostam muito da revolução dos cravos e das flores, mas esquecem-se de que morreram pessoas”, enaltece o docente. Completa que “o ensino hoje obscurece em vez de esclarecer”. Numa nota atual, reconhece que a geração mais jovem nasceu num contexto em que não é necessário lutar pelos seus direitos. Porém, entende a demo­ cracia como um “produto social”, no sentido em que é mutável e nunca garantida. Enquanto produto construído pela sociedade, “é um regime instável do ponto de vista político”, completa. Com uma atual onda de crescimento da extrema-direita na Europa e no mundo, Fernando Florêncio deduz que é provável que Portugal acabe por ceder à tendência. “Absorve-se tudo o que se passa socialmente à nossa volta, interpreta-se e depois traduz-se em ação”, conclui. Na mesma ótica, Manuel Alegre alerta para a valorização da liberdade. Embora assumida como segura, sublinha que “não é um bem adquirido”.

“Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça, há sempre alguém que semeia canções no vento que passa” A trova do Vento que Passa, Manuel Alegre


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As memórias da crise pelos espaços que a acolheram Do Departamento de Matemática ao Mandarim, locais emblemáticos da cidade marcaram a efervescên­ cia política e cultural da Crise Académica de 1969. Uma das prin­ cipais vozes relata a sua perspetiva da revolta estudantil - POR JOÃO M. MARECO E INÊS MOITA -

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inauguração do edifício das Matemáticas vai ficar na memória dos estudantes como um dos mais emblemáticos acontecimentos que desencadeou a Crise Académica de 1969. Na véspera da inauguração, a 16 de abril, em reunião conjunta com os delegados de ciências, ficou decidido que o presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Alberto Martins, ia pedir a palavra. Esta decisão contrariou a vontade do reitor, que argumentava que o seu estatuto já era representativo dos estudantes da universidade. No dia da inauguração, centenas de estudantes receberam o Presidente da República, Américo Thomaz, com tarjas reivindica-

tivas onde se lia “Democratização do Ensino”, “Reintegração dos estudantes e professores expulsos”. Minutos depois da concentração dos alunos no largo D. Dinis, os mesmo entraram em alvoroço no novo edifício da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (UC). Após o discurso do último professor universitário, Alberto Martins cumpriu o desígnio a que se propôs e pediu a palavra. Américo Thomaz silenciou o estudante de Direito e deu voz ao ministro das Obras Públicas e ao da Educação. Terminados os discursos oficiais, os altos quadros do estado retiraram-se e, perante uma plateia numerosa, Alberto Martins discursou. Nesse mesmo dia, às duas da madrugada, o presidente da DG/AAC foi detido. Uma Universidade de Coimbra dos estudantes De 22 de abril a início de maio de 1969, o normal funcionamento das aulas parou e a universidade foi ocupada pelos estudantes. “Só se permitia que as aulas decorressem se fosse para discutir a reforma do ensino ou a Crise Académica. Alguns professores davam as aulas com esse sumário, outros não e vinham embora”, relembra Celso Cruzeiro, antigo estudante de Direito e repúblico. Segundo Celso Cruzeiro, houve, por parte das autoridades académicas, um certo receio que esta “medida drástica” levasse a polícia a ser mais agressiva. “As autoridades decidiram cercar a universidade e não deixar ninguém entrar” sem confirmar se eram estudantes ou funcionários da UC.

EM CIMA, CELSO CRUZEIRO CHAMA­OS ESTUDANTES A ENTRAR NO ­DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA

INÊS MOITA

FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

O papel das Repúblicas contra a asfixia da AAC Celso Cruzeiro leva-nos numa viagem ao passado da Crise Académica de 1969. Viveu na República Palácio da Loucura e ascendeu ao cargo de Louco Mor, equivalente a presidente. Na sua opinião, à data da Crise Académica, o Conselho de Repúblicas (CR) representou o apoio logístico, social e cultural às reinvindicações estudantis. A vasta rede de repúblicas partilhava uma afinidade ideológica e, como tal, as suas relações externas eram alicerçadas na entreajuda e na solidariedade. “O chamado estar à lebre” era prática comum quando o autofinanciamento das repúblicas escasseava. “Quando uma república chegava ao fim do mês e já não havia dinheiro para a alimentação, os estudantes dessa casa iam comer às outras repúblicas. Havia uma rede de solidariedade que incorporava uma afinidade ideológica, de valores pela restauração da democracia na UC e AAC”, explica com entusiasmo. Uma vez que as repúblicas não eram reconhecidas a nível jurídico mas possuíam reconhecimento de facto, existiam de forma não oficial. Apesar de representarem uma afronta ao regime e de auxiliarem os estudantes envolvidos na crise, a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) estava impedida, de forma legal, de reprimir a força das mesmas. “A PIDE não nos podia destruir porque o CR não era legal, eram apenas reuniões nas nossas casas”, esclarece Celso Cruzeiro. Este equívoco legal beneficiava as repúblicas, ao contrário dos organismos autónomos, que eram legalmente reconhecidos. Esses podiam ser objeto de encerramento através de uma decisão administrativa. “Utilizámos essa ambiguidade jurídica para criar secretariados e estruturas representativas do pensar das repúblicas, coisas que não podíamos fazer se fôssemos uma instituição legal, visto que nos fechariam logo as portas”. A divulgação do ideário estudantil era realizada


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INÊS MOITA

INÊS MOITA

através do jornal “O Badalo”, publicação do início do século restaurada pelo CR. Desta publicação saíram três números. O CR aproveitou uma brecha da Lei da Imprensa. “As publicações não periódicas, diárias ou semanais” dispensavam a revisão da Comissão de Censura. O jornal era distribuído nas faculdades durante o intervalo das aulas. “A PIDE depois invadia as repúblicas e recuperava os poucos exemplares que não tivessem sido vendidos, mas, o grosso da edição, escoava em apenas 15 minutos”. A existência deste jornal provava que a crise de 1969 transcendia as fronteiras físicas de cidade. Celso Cruzeiro esclarece que era impossível imprimir os exemplares d’ “O Badalo” em Coimbra. Através da impressão dos jornais, tipografias clandestinas localizadas em Castelo Branco e no Porto auxiliavam a divulgação das bandeiras estudantis junto da comunidade.

Académica de Coimbra, o que retira aos estudantes a escolha dos seus corpos gerentes. A inexistente representação dos alunos leva à criação de um abaixo-assinado onde são pedidas eleições livres para a direção da AAC, em fevereiro de 1969. Alberto Martins saiu vitorioso deste ato eleitoral e era apoiado pelo CR. A tomada de posição por parte deste órgão foi, na opi­ nião de Celso Cruzeiro, decisiva. “As repúblicas foram o apoio logístico de toda a luta contra as comissões administrativas durante a década de 60”, reconhece. A 28 de maio de 1969, os Jardins da AAC formam o palco de uma Assembleia Magna (AM), onde cerca de seis mil estudantes marcaram presença. Nela foi decretada a greve aos exames. Desafogados dos livros, os estudantes frequentavam os Jardins da AAC, onde eram realizados serões culturais musicados pelas vozes interventivas de Zeca Afonso, Carlos Paredes e Adriano Correia de Oliveira. Estas atividades, para além de terem um caráter cultural, serviam para “manter acesa a chama da greve e, ao mesmo tempo, tentar convencer quem estivesse mais reticente a juntar-se ao movimento”.

Greve em marcha: das repúblicas aos Jardins da AAC Entre 1965 e 1968, o Governo nomeava uma Comissão Administrativa para liderar a Associação FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO­­ DE COIMBRA

cidade 17

A Crise Académica nos cafés de Coimbra Era no café Mandarim, localizado na Praça da República, que, depois das AM, os participantes se reuniam. Para além de um espaço de convívio onde os estudantes desanuviavam da velocidade repentina dos acontecimentos, estes estabelecimentos prestavam ainda auxílio aos estudantes. Após o encerramento da AAC em setembro de 1969 e o consequente impedimento da realização das AM, os alunos revoltados realizaram uma manifestação pela rua Sá da Bandeira onde reivindicavam o direito de reunião e associação. De forma violenta, a polícia de choque tentou silenciar as vozes revolucionárias com gás lacrimogénio. Antunes, gerente do café Mandarim à data, albergou os estudantes que fugiam das autoridades, protegeu-os e fechou o café. Celso Cruzeiro reconhe­ ce, de forma inequívoca, que o Mandarim era um “centro de abrigo”. Destaca que desconhece “as convicções ideológicas e políticas” do proprietário, apenas realça o seu gesto. FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO­­ DE COIMBRA


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“Peço a palavra” FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

Os

movimentos sociais, políticos e cul­ turais que, em fins dos anos 60, percor­ reram e contestaram um modo de viver co­ letivo, sobretudo nas sociedades industriais avançadas como os EUA, França, Itália e Ale­ manha, suscitaram a esperança de mudança nas mental­­­­­i­­­­­­­dades, práticas políticas e até a queda de regimes e sistemas. Pode dizer-se que o Maio de 68 foi uma “espécie de epicen­ tro” de uma mutação social e cultural que at­ ravessou as sociedades francesa e ocidentais. Em França as crises estudantil, operária e política provocaram um sério “colapso” nas relações entre homens e mulheres, na escola, na política, na organização do trabalho, no Estado. A Portugal também esses ecos de esperança e mudança nos chegaram.

Mas a sociedade portuguesa tinha prob­­l­e­ mas muito específicos e singulares. Portugal era, então, um país subdesenvolvido (pobre, analfabeto, desigual), uma ditadura (com censura e uma polícia política torcionária), com uma guerra colonial (enfrentando movimentos de libertação nacional nessas colónias), um país isolado no mundo. A juven­ tude portuguesa e o povo português tinham, por isso, no horizonte, em tempo de ditadura, um jogo de cartas marcadas e viciadas. A luta dos estudantes em 1969 é uma luta que exprime a crise universitária portuguesa, a crise do regime que a “formou” e, sobretu­ do, o ascenso de uma consciência política do movimento estudantil de rejeição radical desse tipo de Universidade e da organização social e política que a suportava.” Excerto gentilmente cedido por Alberto Martins. O texto integra a sua mais recente obra “Peço a Palavra”, a ser lançada dia 23 de abril de 2019, na sala 17 de abril, no Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra, onde, 50 anos antes, pediu, realmente, a palavra.


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editorial 19

O brilho que (não) volta

Bem, mas agora fala o ministro das Obras Públicas”. A resposta dada por Américo Thomaz ao pedido da palavra feito por Alberto Martins espoletou a Crise Académica que sacudiu Coimbra em 1969. Com ela, surge a causa que define a irreverência de uma associação académica que transpirava cumplicidade, companheirismo, união. De mãos dadas e com um objetivo em comum, os estudantes avançaram contra o regime e prestaram um contributo essencial para que, mais tarde, caísse. Hoje, na celebração das bodas de ouro do luto estudantil, a academia continua a lembrar o passado com um brilho nos olhos. Contudo, por maiores que sejam os seus esforços, esquece-se muitas vezes de encarar o futuro e, mais grave ainda, de saber lidar com o presente. Há que reconhecer, no entanto, que os tempos são diferentes e as lutas mudaram. Mesmo assim, o associativismo de que a Associação Académica de Coimbra (AAC) tanto se orgulha vê-se a desvanecer gradualmente. Porquê? Os motivos podem ser tantos que é difícil apurar-se-lhes a verdade. As iniciativas continuam a existir mas, por cada manifestação, há uma fraude eleitoral que a contrapesa. Também a redução do tempo de licenciatura contribui para que os estudantes pensem cada vez menos no envolvimento em órgãos associativos. O próprio desinteresse por parte da comunidade, que mais facilmente enche os Jardins da AAC com copos de cerveja depois de um convívio de tunas do que com estudantes em Assembleia Magna, pode ser apontado como fator decisivo. Ao longo do tempo, a academia tem criado metas menos ambiciosas e celebrado conquistas sucessivamente menores. Com a presente edição especial, o Jornal Universitário de Coimbra – A Cabra pretende celebrar os 50 anos da Crise Académica através de FOTOGRAFIA GENTILMENTE CEDIDA PELO MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA

Diretor Pedro Dinis Silva

Jornal Universitário de Coimbra – A CABRA Depósito Legal nº183245702 Registo ICS nº116759 Propriedade Associação Académica de Coimbra

Editores Executivos Luís Almeida e Daniela Pinto Equipa Editorial Maria Francisca Romão (Ensino Superior), Joana Pedro e Pedro Dinis Silva (Cultura), Samuel Santos (Desporto), Hugo Guímaro e Pedro Emauz Silva (Ciência & Tecnologia), Luís Almeida e Daniela Pinto (Cidade), Hugo Guímaro (Fotografia) Colaborou nesta edição Vasco Borges, Maria Luísa Calado, Paulo Cardoso, Rafaela Chambel, Nino Cirenza, André Crujo, Júlia Fernandes, Beatriz Furtado, Sofia Gonçalves, Gabriella Kagueyama, Ana Lage, Diogo Machado, Frederico Magueta, João M. Mareco, Paula Martins, Inês Moita, Maria Monteiro, Mariana Nogueira, ­Carolina d’Oliveira, Isabel Pinto, Diana Ramos, Gabriel Rezende, Maria Francisca Romão, Mariana Rosa, Maria Salvador, Patrícia Silva

JORNAL UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA

opiniões e pontos de vista, sejam eles de quem protagonizou os eventos retratados ou de rostos recentes da AAC. Ao mesmo tempo, reflete sobre a evolução do envolvimento estudantil no tempo que passou entretanto. “As dificuldades em mobilizar estudantes para as causas são tantas que chega a ser necessário reinventar os caminhos do associativismo académico”, afirma Francisco Linhares, algures nas páginas deste jornal. Talvez o primeiro passo a tomar seja não deixar que esta celebração viva apenas através da tinta de qualquer impresso. - POR PEDRO DINIS SILVA -

Ficha Técnica

Morada Secção de Jornalismo Rua Padre António Vieira, 1 3000-315 Coimbra

Há que reconhecer, no entanto, que os tempos são diferentes e as lutas mudaram

Conselho de Redação Carlos Almeida, Inês Duarte, Filipe Furtado, Margarida Mota, João Diogo Pimentel, Vasco Sampaio, Paulo Sérgio Santos

Fotografia André Crujo, Inês Moita, Daniela Pinto, Mariana Rosa, Ana Rua Ilustração João Ruivo, Marta Emauz Silva Paginação Luís Almeida, Maria Francisca Romão, Pedro Dinis Silva

Impressão FIG – Indústrias Gráficas, S.A. Telf. 239499922, Fax: 239499981, e-mail: fig@fig.pt Produção Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra Agradecimentos Reitoria da Universidade de Coimbra Tiragem 2000 exemplares


Mais informação disponível em

ENSINO SUPERIOR “O associativismo pode estar mais agitado ou mais adormecido, mas nunca está morto” PÁG. 6-7

CULTURA A Crise Académica escondida pelo lápis azul

PÁG. 8-9

DESPORTO Benfica levantou a Taça, Académica acordou Portugal PÁG. 13

CIÊNCIA & TECNOLOGIA A retórica de quatro décadas do regime de medo CIDADE As memórias da crise pelos espaços que as acolheram PÁG. 16-17

PÁG. 15


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