Emmanuelle Laborit

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Emmanuelle Laborit (1971-)

Aqui, a imagem

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ÂŞ eli


Se tivesse um professor de francês capaz de falar língua gestual como a minha mãe (mesmo com os erros que ela ainda comete e que me fazem rir) teria menos medo do exame. Leio nos seus lábios. Tenho de deduzir daquilo que vejo na sua boca UMA palavra, em seguida outra palavra, até finalmente conseguir construir UMA frase. Ao todo, passei dez anos no Instituto Morvan. É uma escola privada, oralista, mas estou grata pelo ensino que ali recebi. Passo o tempo a folhear dicionários e livros. Para encontrar precisamente o sentido de uma frase que compreendi nos lábios de um professor. Estudo com afinco. Atiro-me aos livros por vezes até às duas ou três da manhã, como uma doida. O facto de ser bilingue ajuda-me imenso. A ortografia não vai mal. Identifico visualmente muito bem os erros. Mas quanto à construção das frases, quando entra se bem que ou enquanto… é complicado. Não temos a mesma gramática em língua gestual. E esforço-me sempre por construir bem uma frase em francês, por ter um bom estilo. Porque gostaria que saísse académico. Impecável. A minha irmã, que me bate de longe nesta matéria, a quem eu ensinei a língua gestual na perfeição, do que muito me orgulho, corrige agora os meus textos de francês. Maria diz: «O que é que queres dizer com este “porque”? Colocaste-o ali para quê? Puseste muito os quem e que, e não estão no sítio certo.» Farto-me de ler jornais, ando à volta com os livros até conseguir ver mais claro. Tenho a cabeça recheada de tantas coisas que por vezes devo ficar com um ar aparvalhado. Está na minha maneira de ser, ultrapassar-me a mim mesma, ir até ao fim das coisas que me proponho fazer. Quando decido atingir uma meta não paro. Nada me faz parar. Gaivota teimosa. Gaivota obstinada, cansada. 1991, ano do fim do liceu para Emmanuelle Laborit. Primeiro ensaio.


Tenho dezanove anos. Estou aterrorizada. Morta de medo. Quero tanto passar, trabalhei tanto, dia e noite, e estou tão aterrorizada que no dia do exame perco todas as minhas faculdades. Foi um fracasso. Foi difícil de aceitar este chumbo, assim, de forma tão estúpida. Foi o pavor que me deitou abaixo. A gaivota sentiu-se desencorajada. Pensei seriamente em desistir. No fundo, para que é que eu preciso do liceu? E se eu de facto desistisse? Os meus pais dizem-me: «Não. Não faças isso. Aguenta. Recomeça. Se desistes não terás muito por onde escolher no futuro. Vai em frente!» E eu recomeço. Primeiro acaba o liceu. Para não esmorecer completamente, para me agarrar ao que eles me dizem «Primeiro acaba o liceu», peço aos meus pais que me deixem também seguir uns cursos por correspondência, para poder recuperar os cinquenta por cento que me faltam em geografia, filosofia, história, francês, inglês, biologia e no resto. Para a matemática temos os gestos. Tenho que ler o mais possível, escrever o mais possível. Gosto da história, mas tratar um tema por escrito é preciso redigir na perfeição. No Instituto Morvan sou uma das alunas que mais lê. Em geral os surdos não lêem muito. Têm uma certa dificuldade. Misturam os princípios da língua oral com os da língua escrita. Para eles o francês escrito é uma língua para os que ouvem. Mas eu acho que a leitura está próxima da imagem, do visual. Mas este é um problema de educação. Ensinaram-me a gostar de romances, de história, e se durante a leitura há alguma coisa que me escapa, consulto o dicionário. Os meus pais gostam de ler e de escrever, transmitiram-me esse hábito.


Inflacão. Deflação. Economia mundial. Filosofia. O Minitel não pára entre os colegas finalistas. Um deles fez de resto enormes progressos em francês graças ao Minitel. Dantes, não se interessava por nada, mas aquilo obrigou-o a escrever. Agora utiliza a escrita. A sua gramática ainda tem algumas falhas, mas o vocabulário enriqueceu muito. Aquela oral põe-me lívida de pavor, como se costuma dizer. Mas posso acrescentar verde. Ou negra. 1992. Estou quase a fazer vinte anos. Última tentativa.

Emmanuelle Laborit, “Silêncio exame”, em O Grito da Gaivota

 O Grito da Gaivota Autor: Emmanuelle Laborit Editora: Editorial Caminho Ano: 2005

Emmanuelle Laborit é surda profunda. Neta do cientista Henri Laborit, actriz agraciada com o Prémio Molière, é a protagonista deste testemunho, marcado pela memória de um crescimento que se viveu diferente, testemunho de uma vida, vista pelos olhos de uma menina, contado pelo sentir de uma mulher. Relato pessoal e subjectivo de alguém que cresceu no mundo do silêncio, que nunca aprendeu a viver à distância da comunicação e que acaba por se libertar de um mundo que não precisava de ser assim. O Grito da Gaivota confronta-nos com uma realidade de que em geral pouco conhecemos e convida-nos a partilhar as experiências, tantas vezes dolorosas, do dia-a-dia dos que vivem envoltos no silêncio e na incompreensão. em dreer  Biografia ~ Wikipédia


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