ANA PAULA TAVARES, "Branca Clara das Neves e os gémeos azuis"

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ANA PAULA TAVARES

Ana Paula Tavares: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


Branca Clara das Neves e os gémeos azuis

Coloca uma palavra no vale da minha nudez e planta florestas de ambos os lados para que a minha boca fique toda à sombra. Ingeborg Bachemannn

A concha furada no centro, suspensa no peito por um fino fio entrançado de couro, não queria dizer nada: nem bois, nem linhagem. O cinto de pérolas de marfim, com gravações geométricas e concêntricas, também não tinha ficado do dia de noivado, nem de uma qualquer passagem pela casa das mais velhas. Escolheu a Kihita para viver quando viu pela primeira vez as barreiras e conseguiu ficar longe da serra e esquecer o ruído das árvores em queda, e o cheiro intenso da lenha queimada. Branca Clara das Neves, a possuída do barro, como era conhecida entre os nyaneka, perdera o coração de oleiro, dado por sua mãe, durante uma travessia de que já não tinha memória. Dentro de si, a preto e branco, como numa fotografia, as cores do medo tinham nomes conhecidos: a praga, a peste, a maldição.


Por isso, ficara ali quieta a ver o sol em estilhaços no branco do barro, usando as mãos como asas, como garras a juntar fiadas de pérolas de marfim para o penteado das meninas púberes. Ninguém como Branca Clara sabia estender, pelas pontas, longe do barro, a pele de uma vaca escolhida entre as melhores do rebanho para o sacrifício e expô-la ao sol, para os banhos de sal diários. A fama de muda, artesã e curandeira livraram-na da perseguição dos vizinhos e da certa fogueira como a que vira um dia crescer sobre o corpo da sua mãe, vestida de branco e despedindo-se da vida, dona dos ventos, oiá borboleta. Quando ninguém a via, arava o barro branco e o silêncio. Ninguém soube como se arredondou a sua barriga. Talvez de tanto se alongar sobre o barro ele tivesse fermentado dentro de si e, entre um cacimbo grande e um pequeno cacimbo, dois gémeos azuis, iguais, pequenos, de um azul perfeito saíram de dentro de si. Lavou-os com barro branco protegendo-os das pragas e dos animais do mundo inferior. Saudou o grande senhor do barro, o construtor da cabeça dos homens, o que mistura no barro todas as coisas da natureza: terra, água e ar. O que sopra dentro da boca dos homens o hálito fresco das manhãs.


Continuou, muda, a tratar da vida: pequenas contas de marfim, fios de couro cada vez mais finos e mais firmes, criando os gémeos de seu próprio leite, tão branco e tão espesso como o barro, durante mais de três anos. Foi quando saiu do lugar do barro e se juntou às mulheres iniciadas, as portadoras do cinto de casca de ovo de avestruz, senhoras dos caçadores e das bonecas. Para poder ficar, deixou que os gémeos azuis aprendessem a linguagem partida dos novos senhores. Enquanto estes cresciam e ficavam pastores, devagarinho, Branca Clara, a filha da borboleta, a que um dia tinha cruzado o mar, ocupou-se das bonecas.

Substituir

uma

espiga

de

milho

por

um

corpo

entrançado em fibras, colocar por ordem os sete panos da saia, aumentar a densidade das contas do cinto. Os penteados eram a sua

ocupação

fundamental;

fiadas

de

contas

no

cabelo,

rematadas com cauris e botões pregados a couro, laços de fitas vermelhas, secas do sangue inicial e pesadas de tacula. Nunca pôde guardar nenhuma para si. Eram as bonecas da família, passadas de tia a sobrinha, continuadoras da linhagem, as que garantiam os filhos, as sementeiras e as colheitas. Quando os gémeos partiram, grandes e azuis, pela vida, amassou no barro branco uma pequena boneca que chamou a


nova filha do barro. Pela primeira vez ousou invocar os senhores das profundezas. Pediu: Coloca uma palavra no vale da minha nudez e planta florestas de ambos os lados para que a minha boca fique toda à sombra.

Ana Paula Tavares, “Branca Clara das Neves e os gémeos azuis” – na revista “Publica”, 18.3.2001 ( “Vozes em Português”)

**** Salmo

4.

Coloca uma palavra no vale da minha mudez e planta florestas de ambos os lados, para que a minha boca fique toda à sombra.

em O Tempo Aprazado, selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento, Lisboa. Assírio & Alvim, 1992, p. 59.


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