Retratos da Garoupa

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Retratos da Garoupa





IARA

Retratos da Garoupa 1a Edição

Fernanda Grigolin

São Paulo 2010





A minha m茫e, Edna. A minha tia, Lu. A minha av贸, Maria Pereira Moraes, em mem贸ria.

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Meu pai morreu do coração aos 31 anos. Eu tinha quase sete meses. Catarinense, nasceu em 1949 na cidade de Rio Negrinho (SC). Passou a primeira infância em um sitio em Congonhas, Camboriú (SC). Aos dez, mudou para Porto Belo-SC com a família. Porto Belo é ponto de partida e de chegada de Retratos da Garoupa. Anotações, cartas, fotos e depoimentos me auxiliaram a reconstruir a história de vida do meu pai.

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1978 07 de fevereiro A primeira vez que estive no mar foi para catar berbigão. Cruzei a rua e lá estava ele, verde-esmeralda. A mesma cor do caderno que ganhei da minha irmã Zita esses dias. Resolvi fazer dele um diário. Meus irmãos e minha mãe vão achar engraçado quando o encontrarem. Envio poucas cartas para eles. O mais próximo que cheguei da escrita foi pintar ideias na folha de jornal. Descartadas com as notícias.

02 abril No Fantástico, o Caetano cantou São João, Xangô menino . Fiquei com Xangô na cabeça. “Quero ser sempre o menino, Xangô, da fogueira de São João Céu de estrela sem destino de beleza sem razão Tome conta do destino, Xangô, da beleza e da razão.”

14 de junho A Edna fez 22 anos. Fomos jantar em uma pizzaria no Bixiga. Só nós dois. Parecia até que éramos simples namorados. Ela estava bonita. Calça de veludo preto. Casaco vermelho. Blusa decotada. Cabelo solto. Rosto cheio de sardinha. Não parava de falar. Vamos ter um filho e a empresa de toldos está deslanchando. Na volta para casa, amassei toda a frente do Fusca. Enfiei o carro na traseira de um caminhão bem na Rua Bom Pastor.

09 de agosto A dona Maria fez peixe no almoço. Qualquer peixe tem cheiro de tainha e da Enseada das Garoupas, antigo nome de Porto Belo.

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Faz um tempo que não escrevo para a minha mãe, nem telefono. As coisas não andam fáceis por aqui. Diferente da minha família, talvez eu não seja um bom comerciante. Nada que penso vai para frente. Todos dizem que tenho boas ideias, mas sempre acabo tendo que fechar as portas das empresas que abro. São Paulo me oferece uma vida que seria impossível em Porto Belo. Por lá teria apenas a tranquilidade. Tento esconder as minhas dores no coração tanto para Edna quanto para a família dela.

07 de setembro Resolvemos ir para praia. Chegamos a Santos lá pelas dez da manhã. Em uma hora descarregamos tudo do Fusca e fomos para o mar, Edna, eu, Celso, Zita e a Bianca. Brinquei o dia todo com a Bianca. Bem ladina a minha sobrinha. Tiramos algumas fotos para a mãe. Primeira neta e única menina. Em novembro, ela faz três anos e há seis eu não vinha para Santos. Desde a morte do Zezito, um amigo que trabalhou comigo embarcado, eu não pisava aqui. Ele foi morto pela ditadura em 72. Nós dois sempre olhávamos a hora de descarregar o camarão, já que muitos donos de embarcação desregulavam as balanças de pesagem para levar mais mercadoria e pagar menos para os pescadores.

15 de outubro O ano está agitado. Os metalúrgicos do ABC estão organizados. O Pedro, amigo do meu sogro, trabalha na Volks e sempre me conta sobre as assembleias e as decisões. Talvez algo melhore. As pessoas parecem não querer mais as coisas como estão. Meu pai era uma pessoa bem envolvida em política. Em Porto Belo tinha fama de ser correto e justo. No início da ditadura, os militares o convidaram para dar uma voltinha. Depois desse dia, ele nunca mais falou de política no espaço público.

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09 de novembro Hoje enterrei minha filha recém-nascida. O caixão tão pequeno parecia de brinquedo. No mesmo corredor, velavam o Denner Pamplona. Dada a importância do morto, havia muitos fãs e curiosos. Tento abraçar a família, mostrar-me conformado. Na verdade quero me afastar dos apertos de mãos e dos pêsames, eles não me confortam em nada. Um óbvio ritual.

12 dezembro Edna e eu vamos passar o Natal e o ano novo com a minhã mãe e irmãos. Depois disso vou para Curitiba ver se consigo abrir algum negócio por lá. São Paulo nos traz más lembranças e talvez morar em Curitiba seja a solução. O meu irmão Flávio vive no Paraná e me disse que há muitas oportunidades. A cidade está crescendo e não tem mundaréu de gente como São Paulo.

24 de dezembro São poucas as brincadeiras de criança presentes na minha memória. Apenas na época em que morávamos no sítio em Congonhas, eu e Zenaide fazíamos arte. Um dia colocamos asa em uma bicicleta, queríamos voar. A sorte foi que o invento não deu muito certo. Construímos a engenhoca dentro do quarto e, quando fomos sair com ela, não passou da porta por causa da asa. Será que a minha irmã lembra dessa tolice que fizemos? Da infância em Porto Belo, eu só me recordo do dia a dia na mercearia do meu pai. Quando eu tinha 11 anos e a Zenaide, 10, meu pai nos obrigou a trabalhar o dia todo atrás do balcão na véspera de Natal. A mãe estava internada devido às complicações pós-parto do oitavo filho, o Valmor. Naquele dia, vendemos muito, muito, e na hora de dormir nem sentia minhas pernas.

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Versão virtual compacta do livro Retratos da Garoupa Sinopse: O narrador é masculino: o pai que Fernanda nunca conheceu. Um jovem catarinense que se apresenta por meio de palavras e imagens e imprime suas memórias em plena ditadura militar. Em Retratos da Garoupa, os discursos literário e fotográfico correm em paralelo e se cruzam na cidade de Porto Belo, Santa Catarina. “Fernanda Grigolin não nega a ausência, as lacunas, a morte. Nelas encontra uma possibilidade vital, criativa. Assim, a foto da mão do pai sobre ela, emblema da perda, deve ser lida também como estampa do nascimento da autora. E não só esta foto como tantas outras que o livro traz. Fotos que não se tratam de legenda do diário, mas narrativa paralela que dialoga com o texto escrito. Retratos da Garoupa, ao lidar sem pejo com a falta, presenteia-nos com presença, com ficção, com uma resposta original e ética para a dor. Estética.” Luciana Penna, escritora e crítica de arte.

Detalhes técnicos: Ano: 2010 Formato: livro Tamanho: 20×20 Nº de páginas: 64 ISBN: 978-85-911242-0-6 Impressão de alta qualidade. Costura manual. Papel: sun 52 warm white smooth 176 gr Capa dura revestida por Saphir verde-esmeralda.Impressão na capa em baixo relevo Livro virtual, versão dezembro de 2010. Informações: Publicações Iara | www.publicacoesiara.com.br Versão virtual preparada por Karina Francis Urban



Fernanda Grigolin (1980, Curitiba/PR) Fotógrafa e jornalista com especialização em Direitos Humanos (USP). Atualmente, trabalha com fotografia de palco e documental. Os dez anos de sua vida dedicados ao ativismo social, nas temáticas de juventude e mulheres com atuação no Brasil e na América Latina, enriqueceram seu olhar sobre o mundo e, hoje, são fundamentais ao seu processo criativo. Atua na Jurema Filmes e no Luz em Cena e participa de grupos de estudo de fotografia e da Edith. Desenvolve trabalhos autorais sobre fotografia e literatura e fotografia e memória. O livro Retratos da Garoupa, resultado de uma pesquisa iniciada em 2007, é um deles.

Ficha técnica

Retratos da Garoupa 2010 1ª edição.

ISBN 978-85-911242-0-6

Idealização e Pesquisa Fernanda Grigolin

Textos e Fotos Fernanda Grigolin Fernandagrigolin.com

Editora Iara

Revisão Raquel Maygton Vicentini

Encadernação Fernanda Brito e Rosana Chat

Equipe Editorial Carla Camp, Carla di Cologna, Gisele Inácio, Juliana Bonat e Karina Francis Urban.

Projeto Gráfico Estúdio lab 62

Tiragem 200 exemplares





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