Freud no divã

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Freud no Divã Uma Introdução Crítica ao Pai da Psicanálise

Beverley Clack

Tradução WALDÉA BARCELLOS

SÃO PAULO 2015



Sumário 1

A vida e a obra de Freud

2

A histeria e o desenvolvimento da psicanálise

33

3

Édipo e a sexualidade

69

4

Os sonhos, o desenvolvimento e a psique

105

5

A religião e o destino

141

6

Freud no século XXI

171

Sugestões para leituras complementares

185

Bibliografia

207

Agradecimentos

211

Índice remissivo

213

1



1 A vida e a obra de Freud As ideias de Sigmund Freud nos são familiares mesmo que nunca tenhamos lido nada que ele escreveu. A maioria terá ouvido falar do ego, do id e do superego. Quando descrevemos os atos e atitudes dos outros, podemos empregar esses termos para designar o eu consciente, o inconsciente que afeta nosso comportamento e a voz internalizada das normas da sociedade. Quando alguém comete um ato falho e revela o que de fato sente ou pensa, pode-se atribuir-lhe “lapso freudiano”. Se alguém se preocupa em excesso com a organização e a manutenção de tudo limpo e arrumado, podemos dizer que essa pessoa tem uma personalidade “anal”. E, se suspeitarmos que um de nossos amigos não se sente à vontade com sua sexualidade, poderemos nos flagrar descrevendo-o como uma pessoa “recalcada”. Esses chavões remontam direto à obra de Freud, tirando partido de categorias essenciais que moldam sua teoria para a compreensão do comportamento humano: a psicanálise. Entretanto, por mais que sua linguagem influencie nossa fala habitual, é provável que poucos tenham lido seus livros e um número ainda menor terá lido toda a sua obra. A maioria de nós veio a conhecer as ideias de Freud por meio da cultura informal. Poderia ser em clássicos de suspense, como Marnie, confissões de uma ladra (1964), de Alfred Hitchcock, filme que usa categorias psicanalíticas para identificar, no abuso sofrido na infância, a origem do medo de sexo de uma mulher jovem. Ou, num tom totalmente mais leve, poderíamos ser apresentados a Freud por meio dos filmes de Woody Allen. Em seus filmes, Allen faz frequentes referências cômicas às teorias e práticas da psicanálise.Talvez o melhor exemplo disso seja Noivo neurótico, noiva ner-


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vosa (1977), em que Allen examina o relacionamento intermitente entre o comediante Alvy Singer e a cantora de boate Annie Hall. Grande parte do humor deriva da ligação das ideias de Freud à vida desses personagens. A certa altura, Alvy descreve Annie como “perversa polimorfa”, aplicando a descrição de Freud da capacidade da criança de encontrar o prazer em qualquer parte do corpo: “se eu fizer carinho nos seus dentes ou nos seus joelhos, você ficará excitada”. Mais adiante, ao falar sobre como teria querido se suicidar, Alvy explica que estava fazendo análise “com um freudiano rigoroso; e, se você se matar, eles o farão pagar as sessões a que você faltar”. Como essa modalidade de psicoterapia pode significar cinco sessões por semana com um analista, dá para ter uma noção de como isso seria dispendioso! A imagem de Freud é reconhecível de imediato: um homem de meia-idade já avançada, grisalho, com barba, olhar inflexível, senhor de si, trajando um terno pesado de lã com colete e com um charuto na mão. É tamanha sua fama que uma série de memorabilia de bom gosto (e às vezes de péssimo gosto) reflete essa imagem, ao mesmo tempo que cristaliza nossa ideia de quem ele é. Existem inúmeros bonecos de Freud, todos usando ternos elegantes e severos, todos com barba, todos reproduzindo aquele olhar penetrante. Meu predileto é um Freud enlevado. tocando The Way We Were [Como nós éramos], a canção de Barbra Streisand.Trata-se de uma escolha adequada de música para Freud. O verso que diz “aquilo que é doloroso demais lembrar, simplesmente preferimos esquecer” reflete a afirmação de Freud de que a mente expulsa da consciência as experiências e sentimentos dolorosos. Freud chegou a ser transformado numa figura de ação, feita de plástico, com seus “poderes especiais” parecendo residir no charuto que está segurando. Freud é uma figura tão conhecida, com uma imagem tão icônica, que escrever uma introdução para suas ideias é um pouco difícil. Até podemos achar que sabemos o que Freud tem a


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dizer, quer tenhamos de fato lido seus livros, quer não. Mesmo que os tenhamos lido, nossa impressão sobre o que ele diz pode ter sido colhida de uma ou duas de suas obras mais importantes: talvez tenhamos lido Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, O futuro de uma ilusão ou A interpretação dos sonhos. O problema de ler Freud desse modo está na possibilidade de isso nos levar a considerar que ele pode ser reduzido a algumas ideias principais. No início deste livro, é recomendável deixar de lado quaisquer ideias preexistentes a respeito de Freud, para que possa vir à tona um Freud bem diferente, bem mais complexo. Pretendo demonstrar que esse Freud tem o poder de se dirigir a nós, de tratar do nosso mundo e dos nossos interesses. Para descobrir esse Freud, precisamos examinar algumas das suas afirmações menos conhecidas, além daquelas ideias com as quais já podemos ter deparado. Freud escreveu muito: seus livros e artigos compõem 23 volumes. Contudo, uma redescoberta de Freud envolve mais do que simplesmente um estudo aprofundado de uma quantidade maior desses textos. Também envolve uma atenção ao método de Freud, à medida que ele avança em seu empenho para entender o que é ser humano. Esse é um projeto que não se resume ao entendimento teórico, mas também trata de estabelecer métodos para amenizar o sofrimento decorrente da experiência humana. Freud é antes de mais nada um médico que procurou curar os que sofriam de várias formas de doença mental. Suas teorias brotam de sua experiência clínica. Além disso, essas teorias surgem num período específico na história e são influenciadas por esse período. No final do século XIX, a psicologia e a investigação do cérebro estão na tenra infância. Desse modo, ele não tem escolha a não ser a de tentar – de modo experimental – criar um vocabulário para os fenômenos com que depara. Essa tentativa de descrever os processos subjacentes à doença mental é em si uma tarefa considerável. Mas não é só isso o que


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Freud faz. Ele também associa suas investigações da doença mental a um relato mais geral dos processos mentais. Nenhuma dessas atividades é fácil. O que torna a leitura de Freud empolgante são os trechos em que deparamos com o Freud que não tem certeza das suas conclusões, que deseja brincar com ideias e ver aonde elas o conduzirão. É esse Freud que encontraremos aqui: aquele que assume a incumbência de se engalfinhar com as dores e prazeres da existência humana. O resultado é que esse Freud continua a ter muito a oferecer aos seus leitores do século XXI. Um exemplo. É frequente que Freud seja descrito como alguém com um excesso de interesse pelo sexo; e, como veremos, ele escreveu muito sobre o tema. No entanto, ele também trata da morte. Uma de suas sugestões mais controversas é a de que, exatamente da mesma forma que os seres humanos são moldados pela pulsão sexual que leva à criação de coisas novas, ao crescimento e à expansão, também existe uma “pulsão de morte” que os atrai na direção de ciclos destrutivos de repetição, desintegração e, por fim, a bem-vinda simplicidade de não-ser. Embora Freud seja fascinado por essa possibilidade e anseie por investigá-la, ele também a critica, sem ter certeza sobre seu mérito e sobre ser possível fornecer boas provas para uma noção desse tipo: Podem perguntar se estou convencido e até que ponto estou convencido da veracidade das hipóteses expostas neste trabalho. Minha resposta seria a de que eu mesmo não estou convencido e que não procuro persuadir outras pessoas a acreditar nelas. Ou, para ser mais preciso, que não sei até que ponto acredito nelas (Freud, 1920: 59)*. * As numerosas referências a trechos da obra de Freud estão identificadas pela fonte usada pela autora, a Standard Edition, organizada e traduzida para o inglês por James Strachey. Os números de páginas indicados referem-se ao texto da Standard Edition, segundo a organização por data e volume indicada na Bibliografia. (N. da T.)


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Eis um Freud totalmente mais humano do que aquele que poderíamos esperar encontrar a partir daquelas imagens icônicas; um indivíduo maduro, no apogeu de sua capacidade. Ao longo de um período de cerca de 40 anos, seus escritos nos revelam alguém que pode não estar “inventando à medida que avança”, alguém que recorre às ideias de terceiros, mas acaba tentando desenvolver um modo inteiramente novo de falar sobre o que é ser humano. Deve-se salientar que essa abertura para a discordância ao longo do processo não é a única postura que ele assume.A história do estabelecimento da psicanálise como disciplina está cheia de exemplos em que Freud dispensa os que discordam daquilo que ele considera os aspectos fundamentais da sua teoria. Entretanto, o Freud mais hesitante desse trecho insinua uma parte do prazer de lê-lo: ele nos convida a participar de seus processos de pensamento, reconhecendo as limitações de algumas das alegações especulativas que faz. Ele nos pede que o acompanhemos numa viagem pela mente humana. Se estivermos preparados para acompanhá-lo, essa aventura poderá ser tanto esclarecedora como desafiadora. O septuagésimo quinto aniversário da sua morte, em 2014, oferece uma oportunidade para revisitarmos o homem cuja obra consideramos conhecer. Se abordarmos a obra de Freud com um novo olhar, poderemos, lado a lado com seus primeiros leitores, ver a inovação bem como a estranheza de seu trabalho. Numa cultura que está tão familiarizada com as ideias “freudianas”, perdemos em grande parte essa sensação de surpresa. Na tentativa de recuperá-la, talvez possamos resgatar a natureza controversa de seu pensamento para uma época que, de modo bastante preguiçoso, aceitou suas ideias sem ter muita noção do que Freud de fato disse. Começamos a ter alguma ideia da criatividade da abordagem de Freud ao examinarmos de que modo desdobramentos importantes do seu pensamento surgiram a partir do pano de fundo da sua vida. Adotar essa abordagem consiste em trazer para o


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primeiro plano o ponto de partida de Freud para reflexão. O que é pessoal e o que é individual são dispostos solidamente no centro de sua tentativa de entender a vida e a cultura humana. Ideias e valores não são abstratos. Eles não caem já prontos no mundo humano, mas surgem a partir da experiência do indivíduo. Como veremos, isso não quer dizer que seja impossível fazer afirmações gerais sobre o que significa ser humano: longe disso. Simplesmente, é exigido de nós que aprofundemos mais nosso pensamento sobre as diferentes experiências, processos e acontecimentos que moldaram a forma pela qual nós, como indivíduos, lidamos com nosso mundo. Examinar a vida de Freud – e em particular seu início – permite que captemos parte das lutas e interesses pessoais que influenciam a forma assumida por sua teoria e sua prática. Exatamente como ele incentivava seus pacientes a deitar-se num divã e lhe contar suas histórias, não existe melhor modo para avançar do que pedir o mesmo a Freud.

Início da vida de Freud Sigismund Schlomo Freud nasceu em 6 de maio de 1856 em Freiberg, Morávia, primogênito de Jacob e Amalia Freud. Amalia teve mais sete filhos, mas Sigi sempre foi seu predileto e mais protegido. Freud era considerado uma espécie de criança prodígio por sua mãe, que o idolatrava e fazia o que podia para cultivar uma visão do filho amado como um intelectual em formação. A vida da família era adaptada às necessidades de Freud: quando o piano da família perturbou seus estudos, ele foi rapidamente retirado. Amalia, terceira mulher de Jacob, era uma jovem atraente, cerca de vinte anos mais nova que o marido. Sigmund (nome que ele adotou de início na escola e depois, de modo permanente, na faculdade) nasceu, portanto, numa família numerosa, com uma complexa rede de parentescos inter-relacionados, que transpu-



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