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O ESTADO DE S. PAULO

DOMINGO, 4 DE JULHO DE 2010

aliás J5

FOTOS: GUGA MATOS/JC IMAGEM

Nordeste não virou mar, virou tsunami É verdade que estava chovendo, havia chovido, mas daí a se transformar num rio de lama e luto, ninguém nem desconfiava

RAIMUNDO CARRERO

F

oi o padre de Palmares (128quilômetrosdoRecife, na Zona da Mata de Pernambuco) quem deu o aviso: Corram que vem água por aí.Muita.E não era profecia de Antônio Conselheiro nem anúncio do fim do mundo, era verdade. Verdade nua e crua, como se diz por aqui. Verdade cruel. Mal fechou a boca e o Rio Una arrebentou, num barulho de fazer inveja a carro elétrico no carnaval. Quem viu, quem viu mesmo de perto, disse que lembrava um tsunami. Conversa, que comparação mais louca: porque também nunca ninguém daqui viu um tsunami de perto. Que, aliás, não se vê de muito perto, nem guarda lembrança. Vai junto com as águas para as profundas e nunca mais. Quer dizer, dizem, não é? Mas quem disse ao padre? Foi o moderníssimo celular. Em plena missa? Pois é, em plena missa. Que deve ter sido uma surpresa para os paroquianos: o padre interrompendo a celebração para atender: “Quem é? Diga aí!” Ele quem disse. Ele, o sacerdote. Disse assim: o padre de Catende (142 quilômetros do Recife, também na Zona da Mata) havia telefonado avisando que vem água por aí, água muita, estourando. E as pessoas já saíram da igreja com água cobrindo os pés. É verdade que estava chovendo, havia chovido, mas daí a se transformar num rio de lama e luto ninguém nem sequer desconfiava.

Houve um tempo, sim, em que as águas subiam as margens, avançavam pelos terreiros, molha um pouco aqui, molha uma pouco ali, e só. Coisa de somenos. Quemnãofoiláeviuasimagenspelatelevisão ficou impressionado. Algo verdadeiramente arrebatador: as águas violentas rolavampelaCachoeira doUrubu(zonaturística de Pernambuco, perto da cidade de Bonito) com um vigor de mar sangrando e despejando pânico. No Recife, os estragos foram menores porque há um trabalho permanente da defesa civil da prefeitura. Mesmoassim morreram nove pessoas em desabamentos em áreas do subúrbio. Os desabrigados foram colocados em escolas e edificações públicas. Mas esse é apenas um quadro mínimo – talvez ilustrativo – do que viria a acontecer no Nordeste numa semana de terror. Tão acostumada com as secas, a região atravessou um momento de dor e agonia; frio, fome e sede. Noutros tempos, era capaz de sair uma procissão nadando para pedir o fim das chuvas a Deus, que haveria de colocar a mão no queixo, pensando: “O que é que eu faço? Mando seca, reclamam, mando chuva, reclamam também, esse povo não se contenta com nada”. É claro que chuva faz bem, mas tudo na medida exata. Também não precisa exagerar. E exagerou tanto que 57 pessoas morreram, mais de 100 mil ficaram desabrigadase centenas perderamascasas,asroças, os animais. Cidades inteiras foram transformadas em pó. Literalmente. Palmares e Barreirosvãorecomeçarnosalicerces.Estãoisoladas, quase. Pontes caíram, estradas foram destruídas,plantações devastadas. Também perderam roupas, imóveis, utensílios. Há, é claro, explicações científicas para o fenômeno que, além das mortes, deixou 26

Solidariedade. Populações atingidas não ficaram sequer com as roupas do corpo. O Nordeste está nu

Ainda mais desproteção Proposta de novo Código Florestal estimula desmatamentos ilegais e ocupação irregular de margens de rios e morros. E a população carente fica mais exposta

ANDRÉ LIMA

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xatamente um mês depois do Dia Mundial do Meio Ambiente, a bancada ruralista na Câmara dos Deputados, capitaneada pelo deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP),vaiapresentar amanhã uma propostapara alterar o Código Florestal brasileiro em acordo com o governo federal e com grandes produtores rurais do País. A proposta prevê a revogação de regras importantes de proteção das florestas, cerrados e outros ecossistemas naturais e de áreas cuja proibiçãode ocupação écrucial para amanutenção de vidas humanas, inclusive as do meio urbano. A alegação dos ruralistas é a de que a lei atual (Lei federal 4771/65) prejudicaria pequenos produtores rurais em todo território nacional por tomar-lhes (da produção) uma parte de suas terras, tais como as margens de rios, as nascentes e os morros, e um porcentual das propriedades rurais onde a vegetação nativa deve ser mantida ou recomposta. Sob o argumento de que há ocupações seculares como o café em Minas Gerais, a cana-de-açúcar em Pernambuco ou a maçã e a uva em Santa Catarina, o deputado Aldo Rebelo propõe a anistia a desmatamentos ilegais ocorridos em áreas de preservação e reservas florestais até julho de 2008 em todo o País. Essa anistia, somente nos cerra-

Efeito. Queda de barreira no Recife: eventos extremos dos e florestas da Amazônia, premiará ocupações em cerca de 40 milhões de hectares de florestas convertidas somente entre 1996 e 2008. O relator foi advertido por nós do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) de que a isenção de reserva legal florestal em áreas com até quatro módulos fiscais (outra medida proposta no projeto a ser votado) significará, somente na Amazônia, o estímulo a desmatamentos em pelo menos mais 35 milhões de hectares. Assim, entre 10,5 e 13,5 bilhões de toneladas de CO2

mildesabrigados no Rio Grande do Norte, 25 mil no Maranhão, 17 mil no Ceará, 40 mil em Alagoas e 6 mil no Piauí. Aliás, Alagoas sofreu danos iguais ou maiores que Pernambuco, cuja área atingida foi apenas a Zona da Marta, que faz quase divisa com o Recife. O sertão não virou mar nem tsunami. Ficou comsua aguinhade açude mesmo. Apesar de alguma chuva em pleno verão. Há desaparecidos ainda em números não confirmados, mas alguns voltaram para casa depois que as chuvas passaram e as águas baixaram. O presidente Lula desceu do helicóptero com o governador Eduardo Campos, testemunhou os estragados, abraçou desabrigados, liberou verbas e prometeu acompanhar a recuperação das cidades. Dizemos especialistasquetrêseventos climáticos no Hemisfério Sul são, com certeza, a causa de uma calamidade tão sem medida. Sem medida e surpreendente. Uma dessas causas, talvez a principal é o que chamam de Zona de Convergência Intertropical – ZCIT –, que provoca um encontro de ventos do Norte e do Sul e atua quase sempre na Linha

do Equador, desce para o Nordeste e depois retornaaoNorte aípelo mêsdemarço. Ocorre que a ZCIT não voltou. Pois é, gostou tanto que não voltou. Cruzou os braços e disse só saio daqui quando saci cruzar as pernas. Juntou-se à Alta da Bolívia, que transporta a umidade da Amazônia para outros locais, e às linhas de instabilidade, nuvens formadas no litoral. Juntas causaram o estrago. Nem adiantou o padre atender o celular. Restouasolidariedadebrasileira,tãosolicitada nesses momentos e sempre atendida. Além das ações governamentais, formaramse grupos em bairros, escolas, prédios, bares; escreveram-sedezenasdematériase artigos. Naverdade,aspopulaçõesatingidasnãoficaram sequer com as roupas do corpo. Sinceramente, sem as roupas. Por pouconão desfilaram peladas nas calçadas e nas televisões. No entanto, não é exagero dizer: o Nordeste está nu. Mas não fechem os olhos, por favor. ✽ RAIMUNDO CARRERO, ESCRITOR E JORNALISTA, É AUTOR DE MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS (RECORD)

hoje estocados sob a forma de vegetação locais, de cada Estado e até mesmo de cada nativa poderão ser derrubados e queima- município, o estabelecimento de novos cridos, o que representa cerca de três vezes a térios. Todos sabemos que os municípios meta brasileira de redução de emissões de sofrem com a insuficiência na fiscalização gases de efeito estufa derivados de desmata- e o ímpeto arrecadatório de impostos, comento e uso do solo. Essa meta foi apresen- mo com o IPTU. Um desastre sem precetada oficialmente em dezembro de 2009 dentes será a municipalização dos critérios pela ex-ministra Dilma Rousseff em Cope- de ocupação em áreas de risco (de preservanhague, na Dinamarca, durante a Conferên- ção permanente). cia das Partes da Convenção Quadro de MuO sofrimento do povo dos Estados de Perdanças Climáticas. nambuco e Alagoas, onde dezenas de milhaÉ inequívoca a correlação entre a legisla- res de famílias estão desabrigadas, a maioção florestal e as medidas para a contenção ria habitantes das margens de rios ou de das mudanças climáticas e a adaptação a encostas de morros, não é o suficiente para elas. É inegável que estamos vivendo com sermos mais cautelosos? mais recorrência os chamados eventos cliO Brasil “celeiro do mundo” tem mais de máticos extremos, tais como chuvas e 20% da biodiversidade do planeta e das flocheias bem acima da média, assim como restas tropicais, quase 15% de toda a água também secas. doce da Terra, centenas de povos indígenas O Código Florestal é a lei brasileira que e milhares de comunidades das florestas pode, se respeitada, contribuir de forma que nos prestam serviços ambientais muidecisiva para a redução das emissões brasi- to preciosos. Está na hora de acordarmos leiras de gases de efeito estufa. Os desma- para o fato inconteste de que somos tamtamentos e queimadas em todo o País re- bém, e sobretudo, uma grande realidade sopresentam algo em torno de 50% das nos- cioambiental de destaque no planeta. O Brasas emissões. sil merece do seu Legislativo e de seus goA anistia prevista na proposta do deputa- vernantes um tratamento à altura de sua do Aldo Rebelo, além de um estímulo a condição ímpar. mais desmatamentos Nós podemos escreilegais, constitui uma ver a nova página do deO sofrimento do povo senvolvimento limpo, injustiça infundada contra aqueles que porque temos clima, do Nordeste não é cumpriram a lei, pois florestas, solos, terras beneficia somente os suficiente para sermos agricultáveis, água, diinfratores. Trata-se inversidade socioammais cautelosos? clusive de uma medida biental e estabilidade inconstitucional, taneconômica. É uma to por falta de razoabilidade quanto por questão de escolha: queremos mais do ferir a isonomia, uma vez que quem não mesmo (crescimento com irresponsabilidesmatou não mais poderá desmatar e dade ambiental), ou a grande economia quem desmatou poderá continuar usando verde planetária? a área aberta ilegalmente. A anistia pode alcançar também ocupa- ✽ ções urbanas irregulares em fundos de vale, ANDRÉ LIMA É ADVOGADO, MESTRE EM POLÍTICA em margens de rios e em mananciais de AMBIENTAL, COORDENADOR DE POLÍTICAS PÚBLIágua, morros com alta declividade e topos CAS DO IPAM E DIRETOR DE ASSUNTOS PARLAMENde morro. São áreas que o código florestal TARES DO INSTITUTO O DIREITO POR UM PLANEbrasileiro estabelece como de preservação TA VERDE. FOI DIRETOR DE POLÍTICAS DE CONTROLE DOS DESMATAMENTOS DO MINISTÉRIO DO permanente. A proposta ora comentada delega às leis MEIO AMBIENTE ENTRE 2007 E 2008

PALMARES (PE)

MURICI (AL)

Charliston Anderson Torres, comerciário, desesperançoso

Patrícia da Silva, sobre o galpão que divide com 200 famílias

“Se continuar assim, acho que a água chega à mesma altura que chegou na semana passada. Não vai dar para começar tudo de novo”

“Até quando vou ter que ficar aqui? Eu já vivia em estado de calamidade antes da cheia, mas pelo menos tinha o meu canto”


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