revista8

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Reitor Nival Nunes de Almeida Vice-Reitor Ronaldo Martins Lauria Sub-Reitora de Graduação Raquel Villardi Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Albanita de Oliveira Sub-Reitora de Extensão e Cultura Maria Georgina Washington Diretora do Centro de Educação e Humanidades Maricélia Bispo Diretor do Instituto de Artes Ricardo Basbaum Vice-Diretora do Instituto de Artes Maria Lúcia Galvão Concinnitas Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo ART-UERJ Co-editores Luiz Felipe Ferreira ART-UERJ Roberto Conduru ART-UERJ Equipe de Produção Adelino Gomes Bolsista Proiniciar UERJ Claudia Cerqueira Bolsista Estágio Interno Complementar UERJ Lia Gauterio Bolsista Estágio Interno Complementar UERJ Lygia Santiago Bolsista Proatec UERJ Mariana Maia Bolsista Extensão UERJ Thaís da Silva Bolsista Proiniciar FAPERJ Conselho Editorial Alberto Cipiniuk ART-UERJ / PUC-RJ Arlindo Machado USP / PUC-SP Carlos Zilio UFRJ Christine Mello SENAC-SP Cristina Salgado ART-UERJ / PUC-RJ Eduardo Kac Art Institute of Chicago Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte Gilles Tiberghien Paris I Gustavo Bonfim PUC-RJ Hélio Fervenza UFRGS Hugo Segawa USP Isabela Nascimento Frade ART-UERJ Jorge Luiz Cruz ART-UERJ José Thomaz Brum PUC-RJ Kátia Maciel UFRJ Lorenzo Mammi USP Luciano Migliaccio USP Luis Andrade ART-UERJ 2

Manuel Salgado UFRJ Márcia Gonçalves IFCH-UERJ Maria Beatriz de Medeiros UnB Maria de Cáscia Frade FAV-RJ Maria Luiza Saboia Saddi Artista plástica Mario Ramiro USP Michael Asbury Camberwell College of Art Milton Machado UFRJ Nanci de Freitas ART-UERJ Nuno Santos Pinheiro Fac. de Arq. de Lisboa Paulo Sergio Duarte UCAM Rafael Cardoso Denis PUC-RJ Ricardo Basbaum ART-UERJ Rodrigo Naves CEBRAP Rogério Luz UFRJ Sonia Gomes Pereira UFRJ Vera Beatriz Siqueira ART-UERJ Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ


Sumário

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Apresentação Dossiê arte e antropologia

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Cássio Loredano Pierre Verger

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Aby Warburg Imagens da região dos índios Pueblos da América do Norte

30

Giulio Carlo Argan Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

40

Alfred Gell A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia

64

Hans Belting Por uma antropologia da imagem

Ensaio de artista 79

Jarbas Lopes Cicloviaérea

Artigos 88

Helio Fervenza Considerações da arte que não se parece com arte

99

José Thomaz Brum O primado do artista sobre o filósofo

103

Maria Berbara A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas

110

Fernando Gerheim Este mapa é um labirinto – uma interceção entre literatura e artes plásticas

118

Beatriz Pimenta O surrealismo do aqui e agora: arte, cultura de massa e interatividade

128

Sonia Gomes Pereira História, arte e estilo no século XIX

142

Luciano Vinhosa Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

Tradução 158

Claudia Valladão de Mattos Hal Foster e o debate sobre o pós-moderno: uma introdução à tradução do texto “O retorno do real”

162

Hal Foster O retorno do real

Resenhas 187

Edson Luiz André de Souza Ainda há esperança?

189

Fábio Luiz Oliveira Bruce Nauman e a razão da experiência

194

Ricardo Gomes Lima O grande e o pequeno

198

Roberto Conduru O mundo é uma tribo

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Abstracts Sobre Concinnitas Normas para publicação

206 207

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Revisão Maria Helena Torres Projeto Gráfico Eliane Bettocchi Designer Responsável Lygia Santiago Produção Gráfica DIGARF-UERJ Capa Jarbas Lopes. Cicloviaérea, 2005 Quarta capa Aby Warburg usando uma máscara Hemis Kachina, Oraibi, Arizona, maio de 1896. Arquivo do Instituto Warburg, Londres Crânio/cabeça de Jericó (Crânio D 113), das escavações Kathleen Kenyon em Jericó, Vol. 3: The Architecture and Stratigraphy of the Tell (Londres: Escola Britânica de Arqueologia em Jerusalém, 1981), lâmina 54 John Miller. Dick/Jane, 1991

Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC C744

Concinnitas: arte, cultura e pensamento / Jorge Luiz Cruz, ed. - Vol. 0, n. 0 (nov. 1997)- . Rio de Janeiro: UERJ, DEART, 1997v. Assumiu a editoria a partir do vol.4 n.1 Sheila Cabo Geraldo. Semestral ISSN 1415-2681 1. Arte - Periódicos. 2. Cultura - Periódicos. I. Cruz, Jorge Luiz. II. Geraldo, Sheila Cabo. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. CDU 007

2005 Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Este volume recebeu apoio da Associação de Pesquisa de Arte Reis Junior – APARJ. Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.

Concinnitas 4

[http://www2.uerj.br/~revarte]


Apresentação

Arte e Antropologia é o tema do dossiê que Concinnitas publica neste número. Para esta edição a editoria selecionou artigos de Aby Warburg, Giulio Carlo Argan, Alfred Gell e Hans Belting, que, em épocas distintas e campos específicos, apontam para a relação instigante entre a arte e a cultura. Acreditamos que o debate, que remonta ao início do século XX e que vem atrelado ao conceito de modernidade em arte, seja hoje um dos mais conflitados e, portanto, mais prementes e desafiadores. O debate sobre a relação da arte com a antropologia tanto abarca as estruturas do fazer, do exibir e do interpretar, que na modernidade defrontavam-se com a complexidade das culturas não ocidentais, quanto o desafio da produção de arte diante da desestabilização da hegemonia ocidental ocorrida no bojo do fenômeno de globalização cultural. Com base nos contextos históricos, os autores apontam para a necessidade de reflexão sobre o sentido da arte e da cultura, tanto na modernidade quanto na contemporaneidade. Como forma de acirrar o debate em torno do sentido contemporâneo de arte, publicamos o ensaio que o artista Jarbas Lopes preparou para este número, ensaio que gira em torno de suas Ciclovias Aéreas, uma aventura no campo artístico, mas, sobretudo, uma afirmação da arte no campo da ética e da política: outro debate instigante e necessário. Jarbas também desenhou a capa deste número, que reproduz o projeto-muro que preparou para a edição e que será realizado juntamente com o lançamento da revista. Desta edição faz parte ainda a publicação dos textos que recebemos dos professores e ensaístas Helio Fervenza, Fernando Gerheim, Maria Berbara, Beatriz Pimenta e Luciano Vinhosa, assim como os artigos de José Thomaz Brum e Sonia Gomes Pereira, a quem agradecemos a colaboração. Da mesma maneira agradecemos a Claudia Valladão de Mattos a apresentação e tradução do texto de Hal Foster, que gentilmente nos cedeu o direito de reprodução. Como colaboração importante para o dossiê deste número, publicamos a resenha O grande e o pequeno, elaborada pelo professor Ricardo Lima, assim como a resenha O mundo é uma tribo, desenvolvida pelo professor Roberto Conduru. Não diretamente ligada ao tema, mas de total relevância para o debate sobre a arte a cultura contemporânea, publicamos a resenha Ainda há esperança?, escrita pelo professor Edson Luiz André de Souza, assim como a resenha Bruce Nauman e a razão da experiência, uma colaboração de Fábio Luiz de Oliveira, aluno da graduação do Instituto de Artes da UERJ. Sheila Cabo Geraldo 5


Aby Warburg

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Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

Cássio Loredano, Pierre Verger ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Aby Warburg

Imagem 1 - Escada ornamental esculpida de uma árvore. Dança do antílope em San Ildefonso

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Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte Aby Warburg* Considerando que o culto da serpente é uma resposta simbólica à pergunta sobre a destruição, morte e sofrimento elementar do mundo, a memória do culto da serpente é, assim, analisada em uma visão histórica, que relaciona os rituais dos Pueblo, da América do Norte aos da Grécia arcaica, mas, também, à herança simbólica pagã na cultura ocidental cristã. Dança da serpente, história cultural, culto e memória

Es ist ein altes Buch zu blättern, Athen-Oraibi, alles Vettern. É a lição de um antigo livro: o parentesco entre Atenas e Oraibi. Se devo mostrar-lhes imagens, muitas delas por mim mesmo fotografadas, da jornada empreendida há 27 anos, e acompanhá-las com palavras, então me parece ser necessário prefaciar minha tentativa com uma explicação. As parcas semanas que tive a minha disposição não me deram a oportunidade para reviver e trabalhar novamente minhas memórias a ponto de oferecer-lhes uma introdução sólida à vida psíquica dos índios. Além disso, mesmo no curso desse tempo, não fui capaz de aprofundar minhas impressões, uma vez que não consegui dominar a língua indígena. E eis, de fato, o porquê de ser tão difícil trabalhar com esses Pueblo. Apesar de viverem próximos uns aos outros, os Pueblo falam tantas e tão variadas línguas, que mesmo os estudiosos americanos têm a maior dificuldade de penetrar uma delas que seja. Além disso, uma jornada limitada a semanas não poderia conceder impressões veramente profundas. Se essas impressões agora estão mais obscuras do que já estiveram, só lhes posso assegurar que, ao partilhar minhas memórias distantes, auxiliado pela imediatez das fotografias, o que tenho para dizer oferecerá impressão tanto de um mundo cuja cultura está se apagando quanto de um problema de importância decisiva nos escritos gerais da história cultural: de que maneiras podemos distinguir traços Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru * Aby Warburg (1866-1929) foi um historiador cultural interdisciplinar alemão cujo foco de estudos (a respeito da sobrevivência e transformação da tradição clássica) e biblioteca (primeiramente em Hamburgo, e mais tarde em Londres) foram fatores cruciais, que influenciaram a obra de acadêmicos do século XX como Ernst Cassirer e Erwin Panofsky. A Biblioteca Warburg e o Instituto mudaram-se para Londres em 1933, por intermédio de um associado de Warburg, Fritz Saxl, sendo incorporados à Universidade de Londres em 1944. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

característicos da humanidade pagã primitiva? O nome dos Pueblo origina-se do fato de eles levarem vidas sedentárias em aldeias (em espanhol, pueblos), opostas às vidas nômades das tribos que, até várias décadas atrás, guerrearam e caçaram nas mesmas áreas do Novo México e Arizona, em que agora vivem os Pueblo. O que me interessou como historiador cultural foi que, no centro de uma nação que transformou a cultura tecnológica em uma arma de precisão admirável nas mãos do homem intelectual, um conjunto humano pagão foi capaz de manter-se e – não obstante a sóbria luta pela existência – iniciar-se, na caça e 9


Aby Warburg

na agricultura, com uma aderência inabalável a práticas mágicas, que estamos acostumados a condenar como meros sintomas de uma humanidade completamente retrógrada. De qualquer maneira, o que aqui chamaríamos de superstição anda de mãos dadas com o sustento; consiste de uma devoção religiosa a fenômenos naturais – animais e plantas – aos quais os índios atribuem almas ativas, que eles acreditam poder influenciar, principalmente, com suas danças mascaradas. Para nós, essa sincronia de magia fantástica e intencionalidade moderada aparece como sintoma de bipartição; para o índio, por sua vez, isso não é nada esquizóide, e, sim, uma experiência libertadora do poder de comunicabilidade entre o homem e o ambiente. Ao mesmo tempo, um aspecto da psicologia religiosa dos Pueblo requer que nossa análise prossiga com a maior cautela. O material de estudo está contaminado: foi sobreposto duas vezes. A partir do final do século XVI, o estrato nativo americano foi encoberto pelo da educação da Igreja Católica espanhola, que sofreu um recuo violento no final do século XVII. Esta última, por sua vez, retornou mais tarde, mas sem nunca mais reinstalar-se oficialmente nas aldeias Moki. Ainda assim um estudo mais detalhado da formação religiosa pagã e de suas práticas revela uma constante geográfica objetiva: a escassez de água. As ferrovias foram incapazes de alcançar os acampamentos por tanto tempo, que a seca e a procura de água levaram às mesmas práticas mágicas – com fins de domar as forças hostis da natureza – que existiam antes, nas culturas primitivas e prétecnológicas, por todo o mundo. A seca ensina a magia e a oração. O tema específico do simbolismo religioso é revelado na ornamentação em cerâmica. Um desenho que obtive pessoalmente de um indígena demonstrará como ornamentos pura e aparentemente decorativos devem, de fato, ser interpretados simbólica e cosmologicamente; e como, emparelhada a um elemento básico da imagem cosmológica – o universo concebido na forma de uma casa –, uma figura de animal irracional aparece como demônio1 misterioso e temível: a serpente. Mas a forma mais drástica de culto índio animístico (isto é, inspirado na natureza) é a dança com máscaras que mostrarei, primeiro, na forma da pura dança animal, depois na forma da dança de adoração à árvore e, finalmente, como a dança com serpentes vivas. Um olhar rápido em fenômenos similares na Europa pagã nos trará, finalmente, a seguinte questão: em que grau essa visão pagã mundial – uma vez que ela persiste entre os indígenas – dá-nos lastro para pensar o desenvolvimento a partir do paganismo primitivo, passando pelo paganismo da Antigüidade clássica, até o homem moderno? É, ao todo, um pedaço da Terra parcamente equipado pela natureza que os habitantes pré-históricos e históricos da região escolheram chamar de seu lar. À parte o estreito vale sulcado a nordeste, ao longo do qual o Rio Grande del Norte corre até o Golfo do México, o cenário aqui consiste, essencialmente, de 10

1 Cremos nunca ser demais ressaltar que vertemos a palavra inglesa demon para ‘demônio’ sem nenhuma intenção de remetê-la a qualquer paradigma ou dualidade religiosa específica (muito menos à dualidade estereotípica do bem e do mal). A palavra demônio – e todas as suas variantes e correlatas que constam neste texto – foi dessa forma traduzida tendo em mente sua relação mais direta ao termo latino ‘daemon’, originado, por sua vez, do grego ‘daimwv’ que significa “Espírito, gênio (bom ou mal)”. Cf. Saraiva, F. R. dos Santos. Novíssimo Diccionário Latino-portuguez. 2a Edição, Rio de Janeiro: B. L. Garnier, Livreiro-Editor, 1932. (NT) concinnitas


Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

platôs: massas de pedra calcária e rochas terciárias extensivas, situadas horizontalmente, que logo vão formar platôs mais altos com bordas íngremes e superfícies suaves. (O termo ‘mesa’ compara-os a mesas.) E esses são freqüentemente perfurados por correntezas... por ravinas e canyons, em alguns casos, com mil pés de profundidade ou mais, e com paredes quase verticalmente niveladas de seus pontos mais altos, como se tivessem sido cortadas por uma serra... Durante a maior parte do ano a paisagem do platô permanece inteiramente sem precipitações, e a maioria dos canyons permanece completamente seca. É apenas durante a época do degelo e dos breves períodos de chuva que as poderosas massas de água urram através das ravinas expostas.2 É nessa região do platô das Montanhas Rochosas no Colorado, onde Colorado, Utah, Novo México e Arizona se encontram, que os sítios arruinados de comunidades pré-históricas sobrevivem ao lado das aldeias indígenas atualmente habitadas. Na parte noroeste do platô, no estado do Colorado, existem as abandonadas grutas: casas construídas em fendas de rocha. O grupo oriental consiste de cerca de 18 aldeias, todas relativamente acessíveis a partir de Santa Fé e Albuquerque. As aldeias especialmente importantes dos Zuñi estão mais a sudoeste e podem ser alcançadas em um dia de viagem, partindo de Fort Wingate. As de mais difícil acesso – conseqüentemente, as mais imperturbadas na preservação das antigas tradições – são as aldeias dos Moki (Hopi), no total de seis, que brotam de três sulcos de rocha paralelos. No centro, na planície, há a colônia mexicana de Santa Fé, agora capital do Novo México, e que passou para o controle dos Estados Unidos após conflito encarniçado, que durou até o século passado. Daqui, e da cidade vizinha de Albuquerque, pode-se alcançar a maioria das aldeias Pueblo orientais sem grande dificuldade. Próximo a Albuquerque há a aldeia de Laguna que, apesar de não se situar em terreno tão alto quanto as outras, fornece um exemplo muito bom de acampamento pueblo. A aldeia vigente estende-se por sobre a linha férrea Atchison-Topeka-Santa Fé. O acampamento europeu, abaixo da planície, defronta-se à estação. A aldeia indígena consiste de casas de dois andares. A entrada fica na parte de cima: sobe-se uma escada, já que não há porta no andar de baixo. A razão primitiva para esse tipo de casa era sua defensibilidade superior frente ao ataque inimigo. Dessa maneira, os índios Pueblo desenvolveram um cruzamento entre casa e fortificação que é característico de sua civilização e, provavelmente, reminiscência da era pré-histórica norte-americana. É uma estrutura de casas terraplenadas, cujos andares térreos assentam-se sobre casas secundárias que, ainda, podem assentar-se sobre casas terciárias, formando, portanto, uma conglomeração de vivos quarteirões retangulares. 2 E. Schmidt, Vorgeschidhte Nordamerikas im Gebiet der Vereinigten Staaten, 1894. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

No interior de tal casa, pequenas bonecas ficam penduradas no teto – não são meras bonecas de brinquedo, mas algo como as figuras dos santos colocadas 11


Aby Warburg

nas fazendas católicas. São chamadas bonecas kachina: representações de fé dos dançarinos mascarados – os demoníacos mediadores de homem e natureza – que, durante os festivais periódicos que acompanham o ciclo anual de colheita, constituem-se em algumas das expressões mais impressionantes e singulares da religião desses fazendeiros e caçadores. Na parede, em contraposição às bonecas, há pendurado o símbolo da cultura americana invasora: a vassoura. Todavia o produto mais essencial das artes aplicadas, com propósitos tanto práticos quanto religiosos, é o pote de cerâmica, no qual a água é carregada em toda a sua urgência e escassez. O estilo característico dos desenhos desses potes é o da imagem heráldica esquemática. Um pássaro, por exemplo, pode ser dissecado até o ponto de suas partes componentes essenciais para formar uma abstração heráldica. Torna-se um hieróglifo: para ser lido, e não para ser simplesmente olhado. Temos aqui um estágio intermediário entre a imagem naturalista e o signo, entre uma imagem reflexa realística e a escrita. A partir do tratamento ornamental de tais animais, é possível imediatamente perceber como essa maneira de ver e pensar pode levar à escrita simbólica pictográfica. O pássaro integra uma importante parte na percepção mítica indígena, como sabe qualquer pessoa que conheça os Contos dos Desbravadores. Independentemente da devoção que ele recebe, como qualquer outro animal, o pássaro – seja como totem ou como um ancestral imaginário – comanda uma devoção especial no contexto do culto de sepultamento. Da mesma maneira, parece que o espírito do ‘pássaro ladrão’ pertenceu às representações fundamentais das fantasias míticas dos Sikyiatki pré-históricos. O pássaro tem lugar nos cultos de idolatria também por causa de suas penas. Os índios fazem um instrumento de oração especial com pequenas varas – bahos – amarradas às penas. Esses instrumentos são colocados em altares de adoração e plantados nas sepulturas. De acordo com as explicações autorizadas dos índios, as penas agem como entidades aladas que conduzem os desejos e orações dos índios a suas essências demoníacas na natureza. Não há dúvidas de que a cerâmica pueblo contemporânea demonstra influência da técnica medieval espanhola, conseqüência direta do fato de essa técnica ter sido trazida aos índios pelos jesuítas do século XVIII. Contudo, as escavações de Fewkes estabeleceram incontestavelmente que uma técnica de cerâmica mais antiga já existia, autônoma à espanhola.3 Traz os mesmos temas heráldicos dos pássaros, junto à serpente que, para os Moki – assim como em todas as práticas religiosas pagãs –, comanda a devoção ritual como o símbolo mais vital. Essa serpente, por sua vez, ainda se apresenta nos recipientes contemporâneos exatamente da maneira que Fewkes achou-a nos pré-históricos: enrolada, com a cabeça emplumada. Nas bordas, quatro conexões em forma plana trazem pequenas representações de animais. Sabemos, a partir de obras a respeito dos mistérios indígenas, que alguns animais – a rã e a aranha, por exemplo – representam os pontos do compasso e que esses 12

3 Jesse Walter Fewkes, ´Expedição Arquelógica ao Arizona em 1895, in Seventeenth Annual Report of the Bureau of American Ethnology, 1895-6. Washington, 1898, 2: 519-74. concinnitas


Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

A serpente como relâmpago. Reprodução de um piso de altar, ornamentação kiva

recipientes são colocados diante dos ídolos na sala de orações subterrânea conhecida como kiva. No kiva, no âmago da prática religiosa, a serpente aparece como o símbolo do relâmpago. No hotel, em Santa Fé, recebi de um índio, Cleo Jurino, e de seu filho, Anacleto Jurino, desenhos originais que, após alguma resistência, foram feitos em minha presença, e nos quais eles indicaram o ponto de vista de seu mundo cosmológico com lápis coloridos. O pai, Cleo, foi um dos sacerdotes e pintor do kiva em Cochiti. O desenho mostrava a serpente como uma divindade do clima – como acontece às vezes – sem plumas, mas, por outro lado, retratada exatamente como aparece na imagem do vaso, tendo na língua uma ponta de lança. O telhado da casa que representa o mundo caracteriza-se por ser um espigão no formato de degraus. Sobre as paredes estende-se um arco-íris, e, das nuvens concentradas abaixo, a chuva cai representada por pequenas peças. No meio, apresentado como o verdadeiro mestre da casa-mundo4 tempestuosa, aparece o

4 No texto em inglês lê-se worldhouse. Não conseguimos encontrar referências ao possível correlato português. Decidimos, então, criar um neologismo para tentar manter ao máximo a correspondência ao inglês. Essa palavra aparece duas vezes no mesmo parágrafo, daí julgamos ser melhor colocar o neologismo em sua segunda aparição vertendo a primeira em uma forma intermediária (traduzimos a primeira ocorrência de worldhouse como ‘o telhado da casa que representa o mundo’), uma espécie de preparação para o neologismo. (NT) ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

ídolo (que não é a figura da serpente): Yaya ou Yerrick. Sob a presença de tais pinturas, o devoto índio invoca a tempestade com todas as suas benesses, através de práticas mágicas, das quais a mais assombrosa é o manuseio de vivas e venenosas serpentes. Conforme vimos no desenho de Jurino, a serpente em seu formato de relâmpago é magicamente ligada ao próprio relâmpago. O teto na forma de degraus da casa-mundo, a serpente com língua de flecha, assim como a própria serpente, são elementos constitutivos da linguagem 13


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simbólica indígena das imagens. Eu sugeriria, sem nenhuma dúvida, que os degraus contêm um símbolo do cosmo no mínimo pan-americano, talvez até mundial. A fotografia do kiva subterrâneo de Sai, feita pela senhora Stevenson, mostra a organização do altar esculpido dedicado ao relâmpago, sendo esse o ponto focal da cerimônia sacrificial, com a serpente relâmpago acompanhada por outros símbolos relacionados ao céu. É um altar para relâmpagos de todos os pontos do compasso. Os índios agachados à sua frente depositam oferendas sacrificiais no altar e seguram em suas mãos o símbolo da oração mediadora: a pluma. Meu desejo de observar os índios sob influência direta do catolicismo oficial foi favorecido pelas circunstâncias. Foi-me possível acompanhar o padre católico Pére Juillard, que, enquanto assistia a uma dança matachina mexicana, eu havia conhecido no dia de Ano-Novo de 1895, [sic] em viagem de inspeção que o levara à romântica aldeia de Acoma. Viajamos ao longo daquele ermo de arbustos crescidos por cerca de seis horas, até que pudemos ver a aldeia emergindo do mar de pedras, qual uma Heligoland brotando do mar de areia. Antes que chegássemos ao sopé da rocha, sinos começaram a soar em homenagem ao padre. Uma turma de peles-vermelhas [Rathäute], notavelmente vestidos, veio correndo muito rápido pela trilha, em nossa direção para carregar nossas bagagens. Nossos transportes ficaram para trás, uma necessidade que se provou desafortunada: os índios furtaram um tonel de vinho que o padre havia recebido como presente das freiras de Bernalillo. Uma vez chegados à aldeia, no alto, fomos imediatamente recebidos com todos os ornamentos de pompa pelo Governador5– ainda conserva-se o uso de nomes espanhóis para os chefes da aldeia. Ele encostou seus lábios na mão do padre e aspirou-a, fazendo ruído, como se estivesse sugando a aura da pessoa saudada, em um gesto respeitoso de boas-vindas. Fomos hospedados em seu largo cômodo principal, junto com os cocheiros, e, a pedido do padre, prometi a ele que assistiria à missa na manhã seguinte. Os índios postam-se em frente à porta da igreja. Não são facilmente conduzidos para dentro. Tal empresa requer que um alto grito seja emitido pelo chefe, nas três ruas paralelas da aldeia. Assim, finalmente todos estão reunidos na igreja. Enrolam-se em roupas de lã, tecidas ao ar livre por mulheres nômades navajo, assim como pelos próprios Pueblo. Essas roupas são ornamentadas pelas cores branca, vermelha ou azul e produzem uma impressão das mais pitorescas. No interior da igreja há um pequeno altar genuinamente barroco, com imagens de santos. O padre, que não entendia uma palavra sequer da linguagem indígena, teve de usar um intérprete que traduziu a missa, frase a frase, e pode muito bem ter dito o que bem entendesse. Durante a cerimônia, ocorreu-me perceber que a parede estava coberta por símbolos cosmológicos pagãos, exatamente no estilo que Cleo Jurino havia 14

5 Transpusemos, aqui, a palavra em sua íntegra, conforme nos foi passada pelo texto em inglês. Não houve tradução. (NT) concinnitas


Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

desenhado. A igreja de Laguna é igualmente coberta por tais pinturas, simbolizando o cosmo como um telhado em forma de escada. O ornamento anexo, entalhado, simboliza uma escada e, de fato, não é uma escada perpendicular, com degraus quadrados, antes uma forma de escada muito mais primitiva, esculpida na madeira de uma árvore que ainda existe entre os Pueblo. Na representação da evolução – subidas e descidas da natureza – degraus e escadas incorporam as experiências primais da humanidade. Elas são o símbolo da luta dentro do espaço, para cima e para baixo, da mesma forma que o círculo – a serpente enrolada – é o símbolo do ritmo do tempo. O homem não se movimenta mais sobre quatro membros, e sim perpendicular ao solo, e conseqüentemente precisa de uma escora a fim de superar a gravidade enquanto olha para cima. Para isso ele inventou a escada, como meio de dignificar o que, em comparação aos animais, são dádivas inferiores. O homem, que aprende a andar ereto em seu segundo ano, distingue a felicidade da escada. Porque, como criatura que deve aprender a andar, desse mesmo modo ele recebe a graça de manter sua cabeça no topo. Ficar ereto é ato humano por excelência, a luta do amarrado à terra em direção ao firmamento, o ato simbólico único que dá ao homem que anda a pé a nobreza da cabeça ereta e erguida. A contemplação do céu é a graça e a danação da humanidade. Portanto o índio cria o elemento racional de sua cosmologia por meio da equação da casa-mundo, com sua própria casa de escadarias, na qual é preciso entrar com o auxílio de uma escada. Mas devemos ter cuidado em não considerar essa casa-mundo só como a simples expressão de uma cosmologia espiritualmente tranqüila; pois a soberana da casa-mundo continua sendo a mais fantástica das criaturas: a serpente. O índio pueblo é caçador, como também lavrador do solo – mesmo que não na mesma extensão das tribos selvagens que já viveram na região. Sua subsistência depende tanto da carne quanto do milho. As danças de máscaras, que à primeira vista parecem-nos acessórios festivos da vida cotidiana, de fato são práticas mágicas para o abastecimento social de comida. A dança de máscaras, que poderíamos usualmente considerar uma forma de jogo, em sua essência é uma medida séria, de fato belicosa, na luta pela existência. Apesar de a exclusão de práticas sangrentas e sádicas torná-las fundamentalmente diferentes das danças de guerra dos índios nômades – os piores inimigos dos Pueblo –, não podemos esquecer que elas ainda permanecem sendo, em sua origem e tendência intrínseca, danças de pilhagem e sacrifício. Quando o caçador ou lavrador se mascara, ele se transforma em uma imitação de sua presa – seja ela animal ou vegetal – e crê que essa transformação mímica e misteriosa será capaz de auxiliá-lo na obtenção daquilo que se empenha para conseguir com seu trabalho sóbrio e vigilante, como lavrador ou caçador. As danças são expressões de magia aplicada. O abastecimento de comida é esquizóide: magia e tecnologia trabalham juntas. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Aby Warburg

A sincronia [Nebeneinander] entre a civilização lógica e a causação mágica demonstra o estado peculiar dos Pueblo, de hibridez e transição. Eles claramente não são mais primitivos dependentes de seus sentidos, para os quais não pode existir ação dirigida ao futuro; mas também não são europeus tecnologicamente seguros, esperando que os eventos futuros sejam orgânica ou mecanicamente determinados. Situam-se em um meio-termo, entre a magia e o logos, e seu instrumento de orientação é o símbolo. Entre a cultura do toque e a do pensamento há a cultura da conexão simbólica. E, no que diz respeito a esse estágio de pensamento e conduta simbólica, as danças dos Pueblo são exemplares. Quando vi, pela primeira vez, a dança do antílope em San Ildefonso, ela me pareceu um tanto inofensiva, quase cômica. Mas, para o folclorista, interessado em um entendimento biológico acerca das raízes da expressão cultural humana, não há momento mais perigoso do que aquele em que é levado a rir de práticas populares que lhe soam cômicas. Em etnologia, rir do elemento cômico é errado, porque isso instantaneamente impede o insight rumo ao elemento trágico. Foi em San Ildefonso – aldeia perto de Santa Fé que tem estado há muito tempo sob influência americana – que os índios se reuniram para dançar. Os músicos foram os primeiros a se agrupar, carregando grandes tambores. (você pode vê-los de pé, na imagem 1, em frente aos mexicanos a cavalo). Então os dançarinos posicionaram-se em duas filas paralelas, assumindo o caráter do antílope, com máscaras e posturas. As duas filas moveram-se em duas direções diferentes. Do animal imitavam tanto a maneira de andar quanto de pular sobre duas pernas alternadamente – utilizando pequenas varas de madeira, cravejadas de penas, que podiam ser usadas como pernas de pau – fazendo movimentos com essas varas enquanto se mantinham parados. No início de cada fila postavase uma figura feminina e um caçador. A respeito da figura feminina, só fui capaz de saber que ela era chamada de ‘mãe de todos os animais’.6 É para ela que as mímicas animais dirigem suas invocações. A sugestão da máscara animal permite à dança da caça que simule a verdadeira caça, pela captura antecipadora do animal. Essa medida não pode ser considerada como mero jogo. Em sua ligação com o que não é humano, as danças de máscaras significam, para o homem primitivo, a mais completa subordinação a algum ente externo. Quando o índio com seu traje e costumes miméticos imita, por exemplo, as expressões e os movimentos de um animal, ele não se sugere na forma daquele animal por diversão, e sim para arrebatar algo mágico da natureza, pela transformação de sua própria pessoa. Algo que ele não pode conseguir pelos meios de sua própria personalidade, inalterada e sem extensão. Portanto, a dança pantomímica de simulação do animal é um ato cultual da mais alta devoção e do abandono de si em prol de um ente externo. A dança de máscaras dos chamados povos primitivos é, em sua essência original, documento 16

6 Pótnia Qhrwn, Cf. Jane E. Harrison, Prolegomena to the Study of Greek Religion Cambridge, 1922, 264. concinnitas


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de piedade social. A postura intrínseca do índio, no que concerne ao animal, é completamente diferente da dos europeus. Ele considera o animal um ente superior, em virtude de sua natureza animal fazê-lo criatura muito mais dotada do que o homem, sua contraparte mais fraca. Minha iniciação na psicologia da inclinação à metamorfose animal partiu, um pouco antes de meu embarque, de Frank Hamilton Cushing, explorador veterano e pioneiro da psique indígena. Pessoalmente, considerei seus achados assombrosos. Esse homem fumando um cigarro, de idade inescrutável com esparsos cabelos avermelhados e marcado pela varíola, disse-me que uma vez um índio lhe perguntara por que o homem deveria ser maior do que os animais. ‘Dê uma boa olhada no antílope, ele existe para correr, e corre tão melhor que o homem – ou o urso, que é todo força. Os homens só podem fazer em parte o que o animal, em toda a sua totalidade, é.’ Não importa o quão estranho pareça, mas essa maneira fabulística de pensar é prelúdio a nossa explicação científica e genética do mundo. Conforme os pagãos em outras partes do mundo, esses pagãos indígenas produzem uma conexão com o mundo animal – que é conhecida como totemismo – a partir do temor reverencial, acreditando em todos os tipos de animais como ancestrais míticos de suas tribos. Sua explicação do mundo como algo inorganicamente coerente não é assim tão afastada do darwinismo; pois enquanto imputamos a lei natural ao processo autônomo de evolução na natureza, os pagãos tentam explicá-la pela identificação arbitrária com o mundo animal. Pode-se dizer que é um darwinismo de afinidades míticas eletivas que determina as vidas desses assim chamados povos primitivos. A sobrevivência formal da dança da caça em San Ildefonso é óbvia. Mas, quando tomamos em consideração que o antílope já foi extinto há mais de três gerações, então pode ser que tenhamos na dança do antílope uma transição às danças kachina puramente demoníacas, cuja principal tarefa é rogar por uma boa colheita. Em nossos dias ainda existe em Oraibi, por exemplo, um clã antílope, cuja principal tarefa é a de efetuar magias climáticas. Considerando que a dança animal imitativa precise ser entendida em termos de mímica mágica inserida na cultura da caça, as danças kachina, correspondentes aos festivais cíclicos camponeses, têm temperamento inteiramente baseado em sua própria cultura. Essa dança de máscaras mágica e cultual, cujos rogos são voltados à natureza inanimada, só pode ser observada em sua forma mais ou menos original nos lugares em que a ferrovia ou não invadiu, ou ainda está para entrar. E onde – como nas aldeias moki – até mesmo o aspecto do catolicismo oficial não mais existe. As crianças são ensinadas a olhar a kachina com temor profundamente religioso,e todas elas consideram as kachinas criaturas sobrenaturais, terrificantes; o momento da iniciação da criança na natureza das kachinas, na própria sociedade de dançarinos mascarados, representa o momento de reviravolta mais ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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importante no processo educativo da criança indígena. Na praça do mercado da aldeia rochosa de Oraibi, o ponto ocidental mais remoto, tive sorte o bastante para observar a dança chamada de humiskachina. Ali, vi ao vivo os dançarinos originais das danças de máscaras que antes só havia visto em uma apresentação de marionetes, em uma sala daquela mesma aldeia de Oraibi. Para chegar a Oraibi, tive de viajar dois dias, saindo da estação ferroviária de Holbrooke em um pequeno veículo conhecido pelo nome de buggy, que, com quatro rodas leves, é capaz de avançar sobre as areias do deserto, onde apenas a urze cresce. O motorista que me conduziu por toda a viagem ao longo daquela região foi Frank Allen, um mórmon. Passamos por uma tempestade de areia muito forte, que cobriu completamente as trilhas férreas – o único auxílio e alternativa em matéria de transporte nessa estepe sem estradas. Não obstante, tivemos a boa fortuna de chegar, após dois dias de

Rua da aldeia de Walpi

viagem, em Keams Canyon, onde fomos saudados pelo sr. Keam, um irlandês dos mais hospitaleiros. A partir desse ponto pude fazer as excursões vigentes às aldeias rochosas, que se estendem de norte a sul por entre três formações rochosas paralelas. Cheguei primeiro à formidável aldeia de Walpi. Situa-se, romanticamente empoleirada, no cume da rocha, com suas casas em forma de degraus elevandose da rocha em massas pétreas, qual torres. Um caminho estreito em pedra alta conduz até o conjunto de casas. A ilustração demonstra a desolação e o rigor da rocha e suas casas, à medida que elas se protejam para o mundo. Em sua impressão total, a aldeia de Walpi é muito similar a Oraibi, onde pude observar a dança humiskachina. No ponto alto da região do mercado dessa aldeia rochosa, onde se senta um velho cego acompanhado por sua cabra, a área de dança estava sendo preparada. Essa dança humiskachina é a do crescimento do milho. Na noite anterior à dança efetiva estive dentro do kiva, onde acontecem cerimônias secretas. Não havia nenhum altar de ídolos; os índios simplesmente sentavam-se e fumavam de maneira cerimoniosa. De vez em quando descia pela escada, um par de pernas marrons, seguidas pelo resto do homem a elas ligado. Os jovens estavam ocupados pintando suas máscaras para o dia seguinte. Usam seus grandes elmos de couro por muitas e muitas vezes, já que novos seriam muito dispendiosos. O processo de pintura envolve levar água à boca e borrifá-la sobre a máscara de couro, enquanto as cores são nela esfregadas. Na manhã seguinte o público, incluindo dois grupos de crianças, reuniu-se ao longo dos muros. O relacionamento dos índios com suas crianças é extraordinariamente encantador. São criadas com gentileza, porém com disciplina, e são muito amáveis com quem quer que ganhe sua confiança. Logo as crianças se reuniram, com determinada antecipação, nos arredores do mercado. As figuras humiscachina, com cabeças artificiais, induzem as crianças ao terror real; 18

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sobretudo à medida que aprendem, com as bonecas kachina, a respeito das qualidades temíveis e inflexíveis das máscaras. A dança foi realizada por 20 ou 30 dançarinos e 10 dançarinas – sendo estas últimas homens representando figuras femininas. Cinco homens formam a vanguarda da configuração da dança em duas filas. Apesar de a dança ser executada na praça do mercado, os dançarinos possuem um foco arquitetônico: uma estrutura de pedra em que um pequeno pinheiro fora colocado e adornado com penas. Esse é o pequeno templo onde são oferecidos as orações e os cânticos que acompanham as danças de máscaras. A devoção jorra desse pequeno templo em sua forma mais notável. As máscaras dos dançarinos são verdes e vermelhas, atravessadas diagonalmente por uma faixa branca salpicada por três pintas. Disseram-me que essas pintas são as gotas de chuva, e que as representações simbólicas no elmo também demonstram o cosmo em forma de degraus, sendo a fonte da chuva novamente representada pelas nuvens semicirculares e por pequenas peças delas emanadas. Esses símbolos também aparecem nos agasalhos tecidos e usados pelos dançarinos, que os volteiam ao redor de seus corpos: ornamentos verdes e vermelhos, graciosamente tecidos sobre fundo branco. Em uma das mãos, cada dançarino segura um chocalho feito com uma cabaça oca e pedras. E em cada joelho amarram um casco de jabuti com seixos, de modo que o chocalhar também brota de seus joelhos. O coro realiza dois atos diferentes. Em um deles as moças sentam-se em frente aos homens e fazem música com o guizo e uma peça de madeira, enquanto a configuração de dança dos homens consiste em uma volta após a outra, em rotação solitária; ou, em outro ato alternativo, as mulheres levantam-se e acompanham os movimentos rotatórios dos homens. Durante toda a dança, dois sacerdotes aspergem farinha consagrada sobre os dançarinos. O traje de dança das mulheres é constituído de uma malha que cobre o corpo inteiro, de modo a não mostrar que são, de fato, homens. Em cada um dos lados, a máscara é adornada com um curioso penteado que se assemelha a uma anêmona, que é o penteado especificamente usado pelas moças pueblo. Tufos de crina de cavalo pintados de vermelho, pendurados nas máscaras, simbolizam a chuva, e a ornamentação referente à chuva também aparece nos xales e em outros agasalhos. Durante a dança, farinha sagrada é aspergida sobre os dançarinos por um sacerdote, enquanto as linhas de dançarinos, em sua coreografia, mantêm-se com suas extremidades direcionadas ao pequeno templo. A dança dura de manhã até a noite. Nos intervalos, os índios deixam a aldeia e vão até o parapeito rochoso para descansar por um momento. Qualquer um que vir um dançarino sem sua máscara deverá morrer. De fato, o pequeno templo é o ponto focal da coreografia da dança. Consiste de uma pequena árvore, adornada com penas. São chamadas nakwakwocis. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Fiquei perplexo com o fato de a árvore ser tão pequena. Fui até o chefe ancião, que estava sentado na borda do retângulo, e perguntei-lhe o motivo. Ele respondeu: já tivemos uma grande árvore, mas agora escolhemos uma pequena porque a alma da criança é pequena. Estamos, aqui, no território do culto perfeitamente animístico, sobre o qual a obra de Mannhardt já deu mostras de pertencer ao patrimônio religioso dos povos primitivos, e que sobreviveu, a partir do paganismo europeu, até os dias de hoje nos costumes de colheita desses povos. Há aqui a questão do estabelecimento de um laço entre as forças naturais e o homem, de criar um símbolo que atue como agente conector, assim como a questão do rito mágico, que alcança a integração ao enviar um mediador que tenha laços mais estreitos com a terra do que o homem, como no caso da árvore, uma vez que ela cresce da terra. Essa árvore é o mediador dado pela natureza, que abre o caminho para o elemento subterrâneo. No dia seguinte, as penas são levadas a determinada nascente, no vale, onde são ou plantadas, ou penduradas como oferendas votivas. Tal ato é feito para dar vigência à oração pela fertilização, que resultará em uma colheita de milho abundante e saudável. Mais tarde, os dançarinos retomam seu cerimonial persistente e determinado, e continuam a executar seus movimentos de dança inalterados. Quando o sol estava prestes a se pôr, presenciamos um espetáculo assombroso, algo que demonstrou, com esmagadora clareza, como a compostura silente e solene retira suas formas mágicas e religiosas das profundezas elementares da humanidade. Sob essa luz, nossa tendência a vislumbrar somente o elemento espiritual nessas cerimônias deve ser rejeitada, como sendo um modo de explicação unilateral e trivial. Seis figuras surgiram. Três homens quase nus borrados com barro amarelo, seus cabelos dispostos na forma de chifres, vestindo apenas peças de roupa na altura dos quadris. Então vieram três homens em roupas femininas. E, enquanto o coro e seus sacerdotes prosseguiam com seus movimentos de dança, imperturbáveis e com imaculada devoção, essas figuras iniciaram uma paródia daqueles movimentos do coro, totalmente vulgar e desrespeitosa. E ninguém riu. A paródia vulgar não foi tida como zombaria cômica, mas, antes, como um tipo de contribuição periférica da parte dos foliões, no esforço para assegurar um ano de colheitas proveitoso. Qualquer um conhecido da tragédia antiga verá aqui a dualidade do coro trágico e da peça satírica, ‘ramificações de uma mesma base’. A maré e a correnteza da natureza aparecem em símbolos antropomórficos: não em um desenho, mas na dança mágica dramática, que de fato retorna à vida. A essência da insinuação mágica para o divino, para a porção de seu poder sobre-humano, é revelada em outro aspecto terrivelmente dramático da devoção 20

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religiosa mexicana. Em um determinado festival, uma mulher é adorada por 40 dias como a deusa do milho e depois sacrificada, quando então o sacerdote retira suavemente a pele da pobre criatura. Comparados a essa tentativa mais elementar e frenética de aproximar-se do divino, os eventos que observamos junto aos Pueblo são de fato a ela relacionados, mas infinitamente mais refinados. Ainda assim, não há garantias de que a mesma seiva neles não corra, secretamente, vindos como vêm de tais raízes embebidas em sangue. Afinal de contas, o mesmo solo que sustenta os Pueblo também testemunhou as danças de guerra dos índios selvagens e nômades, com atrocidades que culminavam com o martírio do inimigo. A aproximação mais extrema desse desejo mágico de unidade com a natureza por intermédio do mundo animal pode ser observada entre os Moki, em suas danças com serpentes vivas, em Oraibi e Walpi. Eu mesmo não observei essa dança, mas algumas poucas fotografias darão uma idéia dessa que é a mais pagã de todas as cerimônias de Walpi, ao mesmo tempo, uma dança sazonal animal e religiosa. Nela, a dança animal individual de San Ildefonso e o ritual de fertilidade individual da dança humiskachina de Oraibi convergem em intenso esforço expressivo. Pois em agosto, quando chega o momento crítico para a lavra do solo, a fim de evitar a submissão da colheita inteira a tempestades, são evocadas essas tempestades redentoras, pela dança com serpentes vivas, celebradas alternadamente em Oraibi e Walpi. Se em San Ildefonso só é visível uma versão simulada do antílope – pelo menos ao não iniciado – e a dança do milho realiza a representação dos demônios do milho apenas com máscaras, o que se vê em Walpi é um aspecto muito mais primevo dessa dança mágica. Nesse ponto os dançarinos e os animais vivos formam uma unidade mágica, e o surpreendente disso tudo é que os índios encontraram, nessas danças cerimoniais, uma maneira de lidar com o mais perigoso dos animais, a cascavel, de modo que ela é domada sem violência, a ponto de a criatura concordar em participar – ou pelo menos, a não ser que seja provocada, sem fazer uso de suas habilidades agressivas – de cerimônias que duram dias. Essa mesma situação, nas mãos de europeus, com certeza levaria a uma catástrofe. Dois clãs moki fornecem participantes para a cerimônia da serpente: os clãs do antílope e da serpente, ambos folclórica e totemisticamente ligados a esses dois animais. É provado aqui que o totemismo possa ser levado de maneira séria até mesmo nos dias de hoje, quando vemos humanos não só aparecerem mascarados como animais, como também entrarem em troca cultual com a besta mais perigosa, a serpente viva. A cerimônia da serpente que ocorre em Walpi, portanto, permanece entre a empatia mímica e simulada e o sacrifício sangrento. Ela não envolve somente a imitação do animal, como a mais dura confrontação com eles, na forma de participante do ritual – não sendo ele uma vítima sacrificial, mas, como no baho, um parceiro criador de chuva. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Para as cobras em si, a dança da serpente em Walpi é uma súplica forçada. Elas são capturadas vivas, no deserto, em agosto, quando as chuvas são iminentes. E, durante a cerimônia de 16 dias de Walpi, elas são colocadas em um kiva subterrâneo, guardadas pelos chefes dos clãs da serpente e do antílope, em uma série de cerimônias ímpares, das quais a mais significante e espantosa para os observadores brancos é a cerimônia da lavagem das cobras. A cobra é tratada como um noviço dos mistérios, e, não obstante sua resistência, sua cabeça é mergulhada em água medicinal consagrada. Então ela é jogada sobre um desenho feito em areia, sobre o chão do kiva, representando quatro cobras relâmpago e um quadrúpede no meio. Em outro kiva, o desenho descreve uma massa de nuvens, da qual emergem quatro raios diferentemente coloridos e que correspondem aos pontos do compasso, na forma de serpentes. Cada serpente viva é arremessada com grande violência sobre o primeiro desenho, de modo que o desenho seja apagado, e a cobra, absorvida na areia. Estou convencido de que se pretende que esse arremesso mágico force a serpente a invocar os relâmpagos ou provocar chuva. Fica evidente que o significado da cerimônia inteira, e das cerimônias que a seguem, prova que essas serpentes consagradas juntam-se da maneira mais rigorosa aos índios, como provocadoras e pedintes de chuva. Elas são as serpentes-santas vivas da chuva, em forma animal. As serpentes – que chegam a 100 e incluem um número distinto de cascavéis genuínas, com suas presas venenosas mantidas intactas, conforme apurado – são guardadas no kiva e, no dia final do festival, são aprisionadas em um forro, tendo a seu redor uma tira que o ata. A cerimônia culmina nos seguintes atos: captura e carregamento das serpentes vivas, despachando-as às planícies como mensageiras. Pesquisadores americanos descrevem o arrebatamento das cobras como algo incrivelmente excitante. Ele é executado da maneira descrita a seguir. Um grupo de três aproxima-se do forro de cobras. O alto sacerdote do clã serpente puxa uma cobra do forro, enquanto outro índio, de rosto pintado, e tatuagens, carregando sobre as costas uma pele de raposa, agarra a cobra e a coloca na boca. Um companheiro, segurando-o pelos ombros, distrai a atenção da serpente ondulando um bastão com penas. A terceira figura é o guarda e apanhador de serpentes, que permanece em prontidão para o caso de a serpente escorregar da boca do segundo homem. Essa dança é conduzida por cerca de meia hora, na pequena praça de Walpi. Quando por fim todas as cobras são carregadas, acompanhadas pelo chocalhar – produzidos pelos índios que usam chocalhos e cascos de jabuti repletos de seixos – elas são muito rapidamente conduzidas pelos dançarinos para a planície, onde desaparecem. Pelo que sabemos da mitologia walpi, essa forma de devoção remonta à lenda cosmológica ancestral. Uma saga conta a história do herói Ti-yo, que empreende uma jornada subterrânea para descobrir a fonte da tão desejada água. Ele passa por vários kivas de príncipes do mundo subterrâneo, sempre 22

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acompanhado por uma aranha fêmea, que se senta invisivelmente sobre sua orelha direita – um Virgílio indígena (o guia de Dante ao submundo) – e finalmente guia-o ao longo das duas casas do sol do Ocidente e do Oriente, rumo ao grande kiva da serpente, onde ele recebe o baho mágico que evocará o clima. Ti-yo retorna do mundo subterrâneo com o baho e duas damas-serpente, que dão à luz duas crianças serpentinas – criaturas muito perigosas que finalmente forçam as tribos a mudar o local de suas moradias. As serpentes são tecidas nesse mito como divindades do clima e como totens que causam a migração dos clãs. Nessa dança das cobras, a serpente não é sacrificada, mas transformada em mensageira – pela consagração e pela sugestiva dança de mímicas – e despachada de modo que, uma vez regressa às almas dos mortos, possa produzir tempestades nos céus, na forma do relâmpago. Temos aqui uma amostra da penetração do mito e da prática mágica na humanidade primitiva. *** Essa forma elementar de liberação emocional, por meio de práticas mágicas indígenas, pode chegar ao leigo como característica única de um estado primitivo, do qual nada sabe a Europa. E, ainda assim, há dois mil anos, no berço mesmo de nossa própria cultura européia, na Grécia, havia em voga hábitos cultuais cuja crueza e perversidade em muito ultrapassavam o que temos visto entre os índios. No culto orgiástico de Dioniso, por exemplo, as Mênades dançavam tendo cobras em uma das mãos e colocavam serpentes vivas, como diademas, em seus cabelos, segurando, na outra mão, o animal que seria rasgado em pedaços durante a dança sacrificial ascética, em honra ao deus. Em contraste com a dança dos Moki de hoje em dia, o sacrifício sangrento em estado frenético é culminação e significação fundamental dessa dança religiosa. O resgate advindo do sacrifício sangrento, como ideal recôndito da purificação, penetra a história da evolução religiosa do Oriente ao Ocidente. A serpente tem parte nesse processo de sublimação religiosa. Seu papel pode ser tido como marco para a natureza da mudança da fé, do fetichismo à pura religião da redenção. No Antigo Testamento, como visto no caso da serpente primordial Tiamat, na Babilônia, a serpente é o espírito do mal e da tentação. Assim como na Grécia, em que é a impiedosa criatura devoradora do submundo: as Erínias são rodeadas por serpentes, e quando os deuses emitem punições enviam a serpente como executora. Essa idéia da serpente como força destruidora vinda do submundo encontrou seu símbolo mais poderoso e trágico no mito e no grupo de esculturas do Laocoonte. A vingança dos deuses, manifestada sobre seu sacerdote e dois filhos na forma de uma serpente estranguladora, se materializa nessa renomada escultura, em encarnação evidente do suplício humano extremo. O sacerdote ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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vidente que desejava ir em auxílio de seu povo, avisando-o dos ardis gregos, cai vítima da vingança dos deuses parciais. Dessa maneira, a morte do pai e de seus filhos vem a ser um símbolo do suplício ancestral: morte nas mãos de demônios vingativos, sem justiça e esperança de redenção. Eis o pessimismo sem esperanças e trágico da Antigüidade. A serpente como demônio, na visão de mundo pessimista da Antigüidade, tem uma contraparte na divindade-serpente, na qual podemos reconhecer finalmente a beleza humana, transfigurada, da era clássica. Asclepius, o antigo deus da cura, carrega uma serpente que se enrola em seu cajado curativo como um símbolo. Suas feições são aquelas identificadas ao salvador do mundo, na arte plástica da Antigüidade. E esse, que é o mais exaltado e sereno, o deus das almas partidas, tem suas raízes no reino subterrâneo, onde a serpente tem sua morada. E é justamente na forma da serpente que se consente que seja sua mais primitiva forma de devoção. É ele quem rodopia o cajado: isto é, a alma ida do falecido, que sobrevive e reaparece na forma da serpente. Pois a cobra não é somente, como diriam os índios de Cushing, a mordida fatal pronta e realizada, destruindo sem piedade. A cobra também revela a continuidade, pela habilidade de deixar cair sua pele, deslizando, como se, a partir de seus próprios restos mortais, demonstrasse como um corpo pode deixar sua pele e ainda assim continuar a viver. Ela pode escorregar para dentro da terra e dela emergir novamente. Seu retorno de dentro da terra, onde os mortos descansam, juntamente a sua capacidade de renovação corporal, faz da cobra o símbolo mais natural da imortalidade e do renascimento a partir da doença e do sofrimento mortal.7 No templo de Asclepius em Kos, na Ásia Menor, o deus está transfigurado em sua forma humana, uma estátua segurando um cajado com a serpente enrolada. Sua essência mais vera e poderosa não foi revelada contudo em sua máscara de pedra sem vida, mas, em vez disso, viveu na forma da serpente no sanctum mais secreto do templo: alimentada, cuidada e assistida em devoção cultual, como só os Moki são capazes de cuidar de suas serpentes. Aspectos significativos do culto da serpente asclepiana são revelados, tanto em sua grosseria quanto em refinamento, em uma folha de um calendário espanhol do século XIII, que encontrei em um manuscrito do Vaticano, representando Asclepius como o regente do mês sob o signo de escorpião. Podemos ver aqui, indicados em hieróglifos, atos rituais que remontam ao culto de Kos em 30 seções, todas idênticas ao desejo bruto dos índios de entrar no reino da serpente. Podemos ver o rito da incubação, e a serpente sendo carregada por mãos humanas e adorada como a divindade das nascentes. Esse manuscrito medieval é astrológico. Em outras palavras, ele mostra essas formas rituais não como prescrições para práticas devotas, como era o caso anterior; mais propriamente, essas figuras tornaram-se hieróglifos para aqueles nascidos sob o signo astral de Asclepius. Uma vez que Asclepius se havia tornado 24

7 [Nota da edição alemã de 1988] No primeiro esboço dessa passagem, Warburg falou a respeito do poder simbólico da imagem da serpente da seguinte maneira: Por quais qualidades a serpente aparece na literatura e na arte como um impostor usurpador [ein verdrängender Vergleicher]? 1. Ela experimenta ao longo do curso de um ano o ciclo da vida completo, desde o mais profundo, letárgico e mortal sono à total vitalidade. 2. Ela muda sua superfície e permanece a mesma. 3. Ela não utiliza membros para sua locomoção, não obstante, impulsionase com grande velocidade, equipada com seus dentes venenosos absolutamente mortais. 4. Ela é minimamente perceptível pela visão, especialmente quando suas cores agem de acordo com as leis da camuflagem, ou quando ela se catapulta para fora de seus buracos secretos da terra. 5. Phallus. Essas são as características que mantêm a serpente como o símbolo ameaçador do ambivalente na natureza: morte e vida, visível e invisível, sem aviso precedente e mortal à vista. concinnitas


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precisamente uma divindade estelar, sofrendo transformação mediante um ato de imaginação cosmológica, que o destituiu completamente de sua suscetibilidade real e direta para influenciar o subterrâneo, o baixo. Como estrela fixa, ele se esconde no zodíaco como escorpião. É rodeado por serpentes e agora só é lembrado como um corpo celeste cuja influência determina o nascimento de profetas e físicos. Por meio dessa elevação às estrelas, o deusserpente torna-se um totem transfigurado. Ele é o pai cósmico daqueles nascidos no mês em que sua visibilidade é a maior. Na astrologia antiga, magia e matemática convergem. A figura da serpente nos céus, também encontrada na constelação da Grande Serpente, é usada como esquema matemático; os pontos de luminosidade são ligados à maneira de uma imagem terrestre, de modo a conferir compreensão a um infinito que não podemos compreender de nenhuma outra maneira, sem algum esquema de orientação. Assim Asclepius é, de uma só vez, um sinal de esboço matemático e um transportador de fetiche. A evolução da cultura na direção da era da razão é marcada, na mesma medida, pela textura tangível e grosseira da vida que desaparece rumo a uma abstração matemática. Há cerca de 20 anos em Elbe, no norte da Alemanha, encontrei um estranho exemplo da elementar indestrutibilidade da memória do culto da serpente, apesar de todos os esforços da cultura religiosa; um exemplo que demonstra o caminho por onde anda a serpente pagã, ligando-nos ao passado. Em uma excursão a Vierlande [perto de Hamburgo] numa igreja protestante em Lüdingworth, descobri, adornando a assim chamada tela do crucifixo, ilustrações da Bíblia que foram claramente originadas de uma Bíblia ilustrada italiana e que teriam chegado até aquela localidade pelas mãos de um pintor andarilho. E foi ali que repentinamente divisei Laocoonte com seus dois filhos no terrível abarcar da serpente. Como ele veio parar nessa igreja? Mas esse Laocoonte encontrou sua salvação. Como? Assomando a sua frente estava o cajado de Asclepius, e nele a serpente sagrada, correspondendo ao que lemos no quarto livro do Pentateuco: que Moisés havia ordenado os israelitas no ermo a curarem mordidas de cobra erigindo uma serpente de bronze para devoção.8 Temos aqui uma sobra da idolatria no Antigo Testamento. Sabemos, de qualquer maneira, que isso pode ser somente uma inserção ulterior, tentando dar conta, retroativamente, da existência de tal ídolo em Jerusalém. Pois o principal fato que permanece é o de que uma serpente de bronze foi destruída pelo rei Ezequias, sob a influência do profeta Isaías. Os profetas lutaram mais severamente contra os cultos idólatras que envolviam sacrifício humano e adoração de animais; e essa luta é a essência dos movimentos de reforma cristã e oriental até os tempos mais recentes. Está claro que a conjuração da serpente está na mais franca contradição aos 10 mandamentos, em mais lancinante oposição à 8 Cf. Bíblia, em Números 21,4, o trecho sob o título A Serpente de Bronze. (NT) ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

hostilidade relativa a imagens que motiva, essencialmente, os profetas reformadores. 25


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Mas há outra razão pela qual todo estudante da Bíblia deve considerar a serpente o mais provocante símbolo de hostilidade: a serpente na árvore do paraíso domina a narrativa bíblica da ordem do mundo como a causa do mal e do pecado. Tanto no Velho quanto no Novo Testamento, a serpente se agarra à árvore do paraíso como um poder satânico que convoca toda a tragédia da humanidade pecadora, assim como sua esperança pela redenção. Na batalha contra a idolatria pagã, a visão da cristandade primitiva, no que tange ao culto da serpente, foi mais inflexível. Aos olhos dos pagãos Paulo foi um emissário impenetrável quando atirou ao fogo a víbora que o mordera, sem morrer com seu veneno. (A víbora venenosa diz respeito ao fogo e é tida como dele nascida!) A impressão da invulnerabilidade de Paulo às víboras de Malta foi tão durável que, até períodos tardios do século XVI, impostores enredavam-se em cobras em festivais e feiras, dizendo-se homens da casa de São Paulo e vendendo solo de Malta como antídoto para veneno de cobras. Aqui o princípio da imunidade do que é forte na fé termina novamente na prática mágica supersticiosa. Na teologia medieval encontramos o milagre da serpente de bronze curiosamente mantido como parte de uma devoção religiosa legítima. Nada atesta mais a indestrutibilidade do culto animal que a sobrevivência do milagre da serpente de bronze na visão de mundo cristã medieval. A memória teológica medieval do culto da serpente e a necessidade de superá-la foram tão duradouras que – tendo por base uma passagem completamente isolada e inconsistente com o espírito e a teologia do Velho Testamento – a imagem da devoção da serpente tornou-se paradigmática nas representações tipológicas da própria crucificação. A imagem animal e o cajado de Asclepius, como objetos reverenciais para o ajoelhar-se da multidão, são tratados e representados como um estágio, embora a ser superado, na busca humana por salvação. No empreendimento de um esquema tripartite da evolução e das eras – qual seja, da Natureza, Lei Antiga e Graça – um estágio ainda anterior nesse processo é a representação do impedimento do sacrifício de Isaac, como um análogo à crucificação. Esse esquema tripartite é ainda evidente nas imagens que adornam a catedral de Salem. Na própria igreja de Kreuzlingen, essa idéia evolucionária gerou um paralelismo espantoso que pode não fazer sentido ao não iniciado teologicamente. Aqui, no teto da famosa capela Monte das Oliveiras, imediatamente acima da crucificação, encontramos uma adoração desse ídolo dos mais pagãos, com um grau de pathos que não padece em comparação ao grupo do Laocoonte. E, sob a referência às tábuas das Leis, as quais, como conta a Bíblia, Moisés havia destruído por causa da adoração do bezerro de ouro, encontramos Moisés forçado ao exercício de portador da serpente. *** 26

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Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

Ficarei satisfeito se essas imagens da vida cotidiana e festiva dos Pueblo tiverem conseguido convencê-lo de que suas danças de máscaras não são brincadeiras infantis, e sim um modo primário e pagão de responder às mais amplas e urgentes questões acerca do porquê das coisas. Dessa maneira, o índio confronta a incompreensibilidade dos processos naturais a sua vontade de compreender, transformando-se pessoalmente em agente primário e causal na ordem das coisas. Para o efeito inexplicado, ele instintivamente substitui a causa por uma forma mais tangível e visível. A dança das máscaras é causalidade dançada. Se religião significa vínculo,9 então o sintoma de evolução, longe de seu estado primitivo, é a espiritualização do elo entre humanos e seres estranhos, de modo que o homem não mais se identifique diretamente com o símbolo mascarado, mas, preferivelmente, gere aquele vínculo pelo pensamento em si, progredindo rumo a uma sistemática mitologia lingüística. A vontade de zelo devocional é uma forma enobrecida de colocação da máscara. No processo, ao qual chamamos progresso cultual, o ente que exige tal devoção gradualmente perde sua concretude monstruosa e, ao fim, torna-se um símbolo espiritualizado, invisível. O que significa isso? No território da mitologia, a lei da menor unidade não se sustenta. Não há busca do menor agente da racionalidade no curso natural dos fenômenos; ao contrário, um ente um tanto quanto possível saturado de poder demoníaco é postulado, a despeito de uma verdadeira posse das causas das ocorrências misteriosas. O que presenciamos nesse anoitecer do simbolismo da serpente deve nos dar, pelo menos, uma indicação superficial da passagem do simbolismo, cuja eficácia ocorre diretamente a partir do corpo e da mão, para aquele simbolismo que se desdobra apenas em pensamento. Os índios realmente agarram suas serpentes e tratam-nas como agentes vivos que geram relâmpagos, ao mesmo tempo em que representam o relâmpago. O índio leva a serpente à boca para criar uma verdadeira união da serpente com a figura mascarada ou, pelo menos, com a figura pintada como serpente. Na Bíblia a serpente é a causa de todo o mal, e como tal é punida com a expulsão do paraíso. Não obstante, essa serpente desliza de volta a um capítulo da Bíblia, como um símbolo pagão indestrutível – como o deus da cura. Na Antigüidade, a serpente representa igualmente a quintessência do mais profundo sofrimento, na morte de Laocoonte. Mas a Antigüidade também é capaz de transmutar a fertilidade inconcebível da divindade-serpente, representando Asclepius como o salvador e senhor da serpente, colocando-o definitivamente – o deus-serpente com a serpente domada em sua mão – como uma divindade estelar nos céus. Na teologia medieval, a serpente arrasta, de sua passagem na Bíblia, a 9 Lactantius, Divinae Institutiones, 4-28. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

habilidade de reaparecer como símbolo do destino. Sua elevação – apesar de 27


Aby Warburg

expressamente considerada estágio evolucionário que já foi ultrapassado – situa-a em par com a crucificação. No fim, a serpente é uma resposta simbólica internacional à questão: de onde vem a destruição, morte e sofrimento elementar do mundo? Vimos em Lüdingworth como o pensamento cristológico faz uso da imagética pagã da serpente para simbolicamente expressar a quintessência do sofrimento e da redenção. Poderíamos dizer que a serpente, como imagem e explicação de causalidade, não pode estar longe onde quer que o sofrimento humano desamparado procure redenção. A serpente merece seu próprio capítulo na filosofia do ‘como se’. Como a humanidade se liberta desse elo forçado com um réptil venenoso ao qual atribui poderes de agente? Nossa era tecnológica não necessita da serpente para entender e controlar os relâmpagos. Relâmpagos não mais aterrorizam o habitante da cidade, que não mais almeja uma tempestade benigna como sua única fonte de água. Ele tem seu suprimento de água, e a serpente relâmpago é desviada rumo ao solo por pára-raios. A explicação científica desembaraçou-se da causação mitológica. Sabemos que a serpente é um animal que deve sucumbir, se assim a humanidade quiser. A substituição da causação mitológica pela tecnológica remove os medos sentidos pela humanidade primitiva. Mas o fato de essa liberação da visão de mundo mitológica auxiliar genuinamente a fornecer respostas adequadas aos enigmas da existência é outro assunto, um tanto diferente. O governo norte-americano, assim como a Igreja Católica anteriormente havia feito, tem levado ensino moderno aos índios com notável energia. Seu otimismo intelectual resultou no fato de que as crianças índias vão para a escola em garbosas roupas de mangas e não mais acreditam em demônios pagãos. E nisso concentra-se a maioria das metas educacionais. Isso pode muito bem denotar progresso. Mas eu seria avesso a afirmar que isso faz justiça aos índios que pensam em imagens e a suas, digamos, almas mitologicamente ancoradas. Uma vez convidei as crianças de tal escola a ilustrarem o conto de fadas alemão ‘Johnny-Head-in-the-Air’ [Hans-Guck-in-die-Luft] – que elas não conheciam – porque nele consta uma tempestade, e eu desejava ver se as crianças desenhariam o relâmpago realisticamente ou na forma da serpente. Dos 14 desenhos – todos muito alegres, mas também sob influência da escola norte-americana – 12 foram desenhados realisticamente. Mas dois deles de fato retrataram o indestrutível símbolo da serpente de língua de flecha, conforme encontrada no kiva. De qualquer maneira, não queremos que nossa imaginação caia sob o encanto da imagem da serpente, que leva aos seres primitivos do submundo. Queremos ascender ao teto da casa-mundo, nossas cabeças empoleiradas na parte de cima, em lembrança dos versos de Goethe: 28

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Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte

Wär nicht das Auge sonnenhaft – Die Sonne könnt’es nie erblicken. Se o olhar não fosse de sol, Não poderia contemplá-lo Toda a humanidade resiste em devoção ao sol. Reivindicá-lo como símbolo que nos guia, das profundezas noturnas para cima, é prerrogativa tanto do selvagem quanto da pessoa educada. Crianças postam-se em frente a uma caverna. Erguê-las rumo à luz é a tarefa não só das escolas americanas, como da humanidade em geral. A relação do aspirante à redenção da serpente se desenvolve, no ciclo da devoção cultual, da interação bruta, baseada nos sentidos, para a transcendência. É e sempre foi, como mostrou o culto dos Pueblo, um padrão significativo na evolução da interação instintiva, mágica, rumo a uma tomada espiritualizada da distância. O réptil venenoso simboliza as forças demoníacas interiores e exteriores que a humanidade deve superar. Esta noite, pude mostrar a vocês, de maneira muito superficial, a sobrevivência efetiva do culto mágico da serpente, como um exemplo da condição primordial, a partir da qual o refinamento, a transcendência e a substituição são obra da cultura moderna. O conquistador do culto da serpente e do medo do relâmpago, o herdeiro dos povos indígenas e do rastreador de ouro que os desalojou, foi capturado em uma fotografia que tirei em uma rua de San Francisco. É o Tio Sam, de cartola e passeando com seu orgulho em frente a uma rotunda neoclássica. Sobre a ponta de seu chapéu corre um cabo elétrico. Nessa serpente de cobre de Edison, ele aprisionou o relâmpago da natureza. O norte-americano de hoje não tem mais medo da cascavel. Ele a mata. De qualquer maneira, ele não a idolatra. Ela agora defronta-se com o extermínio. O relâmpago aprisionado em cabo – eletricidade capturada – produziu uma cultura que não tem necessidade do paganismo. O que o substituiu? As forças naturais não têm mais modos antropomórficos ou biomórficos; são antes ondas infinitas obedientes ao toque humano. Com essas ondas, a cultura da era da máquina destrói o que as ciências naturais, nascidas do mito, tão arduamente conquistaram: o espaço para devoção, que envolvia, a seu turno, um espaço requerido para a reflexão. O Prometeus e os Ícaros modernos, Franklin e os irmãos Wright, que inventaram a aeronave dirigível, são precisamente aqueles destruidores funestos do senso de distância, que ameaça levar o planeta de volta ao caos. O telegrama e o telefone aniquilam o cosmo. O pensamento mítico e simbólico esforça-se por formar elos espirituais entre a humanidade e o mundo que a rodeia, moldando a distância no espaço requerido pela devoção e reflexão: distância desfeita pela conexão elétrica instantânea.

ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Giulio Carlo Argan

Romuald Hazoumé. Galão armado, assemblage (galão de plástico e metal) e 1 fotografia cor, 380 x 110 x 100cm, 2004 30

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Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

Crítica de arte – uma perspectiva antropológica* Giulio Carlo Argan** Discutindo a relação entre arte e antropologia, Argan questiona tanto a abordagem historicista quanto o enfoque culturalista do objeto artístico e propõe uma revisão da arte contemporânea a partir da crise que a separou do sistema cultural. Antropologia da arte, morte da arte, aculturação

A redução da história da arte ou mesmo da crítica de arte à antropologia pode ser incluída na lógica dos fatos. No mundo contemporâneo, a história costuma ser acusada de não ser rigorosamente científica. Considerando-se que a estrutura da cultura moderna é constituída pela ciência, a história assume uma posição marginal ou é posta fora do sistema. Sendo a história a interpretação e o julgamento dos fatos, ela pressupõe a escolha, em meio à confusa massa dos eventos, daqueles que são mais interessantes. Mas que critérios orientam essa escolha? A acusação que se faz à história é a de ser fundada sobre uma “petição de princípio”, ou seja, os historiadores fazem a história daquilo que já é histórico. A história da arte, considerando-se que ela seja a disciplina que se ocupa da arte, participa da decadência geral da história; o historiador de arte deveria ocupar-se daquilo que é artístico; mas qual o critério para se estabelecer uma discriminação entre o que é e o que não é artístico? Deve-se acrescentar que a história pressupõe também a correlação, a coerência entre os fatos e, portanto, uma tendência de todos os fatos em direção a um único objetivo; mas quem fixou essa finalidade e suas regras de correlação? É preciso reduzir os fatos à pura fenomenologia, à époché, ou seja, colocar no mesmo nível as manifestações consideradas artísticas (ou que se apresentam como tal) e proceder a sua análise total para assegurar-se das características comuns que podem estar contidas na mesma categoria. Atualmente, os sistemas de informação permitem conhecer o estado cultural de todos os grupos humanos, mas é completamente arbitrário afirmar-se que alguns deles ainda se encontram em estado pré-histórico ou na Idade Média e que outros, ao contrário, estão mais próximo do estado cultural do mundo ocidental: ninguém está autorizado a acreditar que a existência do gênero humano no mundo seja uma longa marcha em direção a um nível de perfeição Tradução Felipe Ferreira * Texto apresentado na AICA, 1976. ** Giulio Carlo Argan (1909-1992), foi um dos maiores historiadores e críticos do século XX. Argan também foi prefeito de Roma e elegeu-se senador pelo Partido Comunista Italiano. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

ou de felicidade, do qual nosso estado de civilização se aproximaria cada vez mais, ainda que reste muito caminho a percorrer. Considerando-se mais avançada que as demais no caminho da civilização, nossa cultura pretende instruí-las. Na realidade ela dissimula, sob esse aspecto missionário e didático, a vontade de 31


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exploração e dominação. Não parece estranho que ela busque ser ouvida e cultivar o resto do mundo quando não pode mais ignorar sua própria crise, suas próprias contradições, o provável fim do qual se aproxima? A antropologia, que é seguramente a mais moderna e completa das ciências humanas, contesta a prioridade ou o privilégio da cultura do mundo ocidental e, sobretudo, nega a uniformidade da civilização e o fato de que as diferenças entre os diversos grupos étnicos constituem mera diversidade quantitativa. Compreende-se perfeitamente que, nesse contexto, o problema da criação artística seja fundamental, dado o atual reconhecimento de que não existe evolução ou progresso na arte e que, ao contrário, na cultura ocidental, presumida como a mais avançada, a arte está em regressão, numa crise talvez irreversível e final. Deveríamos deduzir daí que o nível da arte decresce à medida que o nível da civilização aumenta? A concepção teleológica da história, característica da cultura clássica cristã, não é a única possível: radicalmente diferente, embora derivando do mesmo tronco, a ela pode-se opor a concepção materialista e marxista, segundo a qual o progresso não é automático, mas determinado pelo contraste de forças constituídas no interior da sociedade. Em uma cultura que se encontra totalmente liberada de qualquer tipo de dogmatismo e teologismo, de todo princípio de autoridade e de hierarquia, ou seja, uma cultura inteiramente laica, a fenomenologia já tomou o lugar da metafísica, e a descrição, o da interpretação de fenômenos. A história, que não pode ficar limitada às vicissitudes políticas e nem às esferas consideradas culturalmente privilegiadas e que sobretudo não pode exprimir-se através de um julgamento, tende a identificar-se com a antropologia. A historiografia, porém, como qualquer disciplina e como a própria antropologia, renova continuamente sua própria metodologia. Ligando-se ou, melhor, identificando-se com a antropologia, ela modifica apenas o processo ou sua própria estrutura? Em outros termos, ela cessa de ser história ou reduz a história ao nível científico da antropologia? Não acreditamos que a antropologia possa constituir essa kunstwissenschaft que atualmente alguns pesquisadores desejam colocar no lugar da kunstgeschichte; o fato de a Antropologia ter permitido que se conhecesse a arte de povos comumente considerados fora da história (e cuja arte, somos obrigados a reconhecer, é muitas vezes melhor, mesmo em função de nossos parâmetros, do que aquela de países que se consideram mais avançados) não é suficiente para justificá-lo. Nessa cultura dita “primitiva”, o topo da civilização – que a nossa identifica com o progresso tecnológico – não seria a arte? Mas, se é evidente que a cultura artística de povos culturalmente avançados só pode ser estudada de um ponto de vista histórico, visto que somente desse modo temos a possibilidade de integrá-la ao sistema global da cultura, não é completamente garantido que possamos fazer a história da África ou da Polinésia. Existem, antes de tudo, 32

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Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

dificuldades objetivas, como o conhecimento limitado da cronologia e de circunstâncias exteriores em que essa arte foi produzida. Nada impede acreditarmos que, após um minucioso trabalho de pesquisa, conseguíssemos reconstruir a cronologia da produção artística de tribos primitivas; mas é bastante duvidoso que, uma vez estabelecida essa cronologia, a compreensão dessa arte se tornasse mais fácil. Seria igualmente difícil, embora não impossível, compreender o significado de imagens de arte indígena em relação à celebração de ritos, a crenças religiosas ou, simplesmente, aos costumes da vida cotidiana; mas, mesmo assim, não conseguiríamos captar o sentido artístico profundo dessas obras. Na verdade, saber que uma determinada estátua negra representa uma divindade da chuva ou da fecundidade pouco acrescenta a nossa compreensão, considerando-se que ela não nos aproxima do mundo interior dos indígenas, para os quais tal estátua nada mais é do que um objeto mágico supostamente capaz de produzir certos efeitos, sem nenhuma possibilidade de um valor que ultrapasse a função ritual. Mesmo que o pesquisador europeu ou americano tente adequar-se à objetividade absoluta, ele não poderá jamais encarar a cultura “primitiva” abstraindo a sua própria cultura; e a objetividade científica, que deveria colocálo ao abrigo da unilateralidade do eurocentrismo, é uma forte característica do próprio eurocentrismo. A necessidade de absorver essas culturas que estão afastadas de nossa experiência é própria de uma cultura como a nossa, que tende a se expandir, a comunicar, a se impor. Isso se prova pelo fato de, no início do século XX, o conhecimento da arte negra ter tido por função dar à cultura artística européia a possibilidade de tomar consciência de seus limites; assim como a exploração da arte ocidental nos países do Terceiro Mundo só serviu para dispersar os últimos traços de sua autonomia cultural e reafirmar sua inferioridade de países colonizados. Dado que a antropologia descreve as diferentes culturas sem discriminação, é igualmente lógico procurar-se uma perspectiva crítica antropológica no momento em que discutimos a crítica e a destruição de todos os princípios de autoridade e de todas as ordens hierárquicas que são características da nossa cultura: e não se pode deixar de agir assim, uma vez que atualmente é preciso convir que, a despeito de sua pretendida universalidade, a nossa é uma cultura de classe e, mais ainda, uma cultura em declínio, que tende a dissimular seus próprios limites e contradições, mostrando-se superior às divisões de classe. Aquilo que se apresentava como conceitos fundamentais para não importa que discursos sobre a arte (atualidade, valores, originalidade ou unicidade da obra) e como o único meio válido de reconhecer a qualidade artística de critérios unilaterais, de meios pelos quais a classe dirigente, a burguesia, assume uma fruição privilegiada, é apenas a transposição para um nível artificialmente ideal dos interesses econômicos para os quais o produto artístico é um bem de valor ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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que se presta à capitalização ou a trocas vantajosas. A burguesia, no entanto, não é mais a única protagonista da história, ela não pode mais afirmar o direito hegemônico de uma classe que detém o poder de orientar a cultura oposta a uma classe inferior de executantes manuais, de operários. Pouco a pouco desenha-se o projeto, ainda incipiente, de uma cultura diferente pertencendo à classe operária, do mesmo modo que a cultura atual é característica da burguesia. É certo que essa nova cultura procurará superar a divisão de trabalho que domina a cultura burguesa e seu sistema de produção, e que ela o fará sem eliminar a especialização e a autonomia disciplinares que são exigências necessárias da pesquisa científica moderna. É preciso se colocar em contato com esse processo de destituição progressiva de tudo que constituía privilégio, tanto na produção quanto no consumo da arte. A relação até agora fundamental da arte com a estética, considerada a filosofia dos valores, assim como da escolha e do julgamento, encontra-se atualmente anulada. Eliminou-se o princípio segundo o qual a arte deve necessariamente produzir obras de arte, ou seja, objetos de valor que representam a própria idéia do objeto; e, dado que a idéia do objeto implica o paralelo com aquela do sujeito, é lógico que ao produtor privilegiado que é o artista corresponde um consumidor privilegiado. Sem dúvida, no curso da história, a arte foi um elemento de prestígio e de autoridade dos grandes detentores do poder enquanto depositários de valores ideais que eles administravam (e ainda administram), teoricamente em nome da coletividade. Discute-se o próprio conceito de arte, apresentando-a como categoria de conceitos estabelecidos ‘de cima’ para afirmar, ao contrário, que o conceito de arte só pode ser realizado na própria prática. Afirma-se ainda a indefinição da arte e, portanto, a impossibilidade de estabelecer a priori uma distinção entre arte e não-arte na vasta sucessão de intervenções por meio das quais os homens atuam sobre o ambiente e o determinam. Se admitirmos o princípio segundo o qual todos os atos humanos, ou ao menos um grande número deles, determinam o meio material da existência, torna-se claro que o único modo de valorizar a arte é pela constatação da positividade ou negatividade de sua relação com o meio. Existe, na arte contemporânea, muitos sinais dessa tendência que desembocam no “urbanístico” ou na ecologia. Poderíamos dizer que, uma vez eliminada toda disparidade de nível entre as artes maiores e as artes menores, uma vez superada a dificuldade de conciliar a produção da arte com a tecnologia industrial, a esfera fenomenológica da arte coincidirá com aquela da antropologia, de modo que, entre o estudo antropológico e o estudo da arte, não haverá mais nenhuma diferença de meios, mas apenas (e eventualmente) de método. A ultrapassagem da concepção idealista da arte e a distinção entre o artístico e o estético são resultado do estudo dos fatos artísticos de um ponto de vista sociológico. Existiria uma relação entre aquilo que chamamos de crítica sociológica e a 34

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Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

crítica antropológica sobre a qual acabamos de falar? A antropologia moderna é estrutural, o que significa que ela tende à identificação de estruturas profundas da cultura e, em última análise, a demonstrar que, mesmo se certas culturas parecem tecnicamente mais desenvolvidas do que outras, toda cultura é, em si, completa e autônoma. Em sua primeira fase, a sociologia da arte considerou os produtos artísticos determinados pela situação cultural e, especialmente, pelos grandes poderes religiosos, políticos ou econômicos, admitindo, assim, que os artistas nunca foram plenamente responsáveis pela orientação ideológica de seus trabalhos. A estrutura ou, melhor ainda, a composição de um produto artístico seria então facilmente individualizável, considerando-se que todos os seus componentes pertenceriam à cultura de seu tempo e ao lugar em que ele foi realizado: a arte seria, substancialmente, apenas um meio de comunicação visual. Como imaginar, então, que o produto artístico seja aceito e valorizado como tal por uma cultura longínqua no espaço e no tempo e, por isso mesmo, absolutamente incapaz de acolher a mensagem que um tal produto tivesse transmitido em sua época? Como explicar, por exemplo, que a escultura egípcia ou a escultura grega arcaica sejam vistas como obras-primas artísticas, se nem ao menos sabemos o que elas representavam e a que função eram destinadas? Considerando-se que esses objetos nos interessam inicialmente como obras de arte e só depois como representações de soberanos ou de deuses da Antigüidade, chega-se facilmente àquele lugar-comum segundo o qual a obra-prima artística não possui nem tempo, nem lugar definidos, estando além da história e das diferenças entre as diversas culturas. Qual será, então, a disciplina que estudará as vicissitudes (que não estamos seguros a priori de poder chamar de histórica) das obras de arte? Essas vicissitudes serão constituídas apenas pela vida das obras de arte? ou pelas fases, pelos momentos de sua formação no pensamento e pela obra de seus autores? A distância, que parecia impossível superar, entre uma sociologia desejosa de dissolver inteiramente o produto artístico na situação cultural e uma semiologia cujo interesse é o de fixar a estrutura profunda e constante de obras artísticas foi ultrapassada graças às pesquisas modernas (Mukarovisky, Panofsky, Francastel, Goldmann e outros), que demonstraram não haver estrutura que não pudesse ser explicada como fatos caracteristicamente culturais e, portanto, históricos, com a condição de nos lembrarmos de que a historicidade da arte não é, como pensaram Hauser e Antal, o reflexo da história religiosa, política ou econômica do tempo; ela é antes específica e intrinsecamente artística. O que equivale a dizer que ela é a história de uma cultura que foi elaborada em sua origem pela arte – e só pela arte –, mesmo que inevitavelmente tenha tido contatos com a cultura institucionalizada de seu tempo. Assim como Lévi-Strauss, Francastel considera a arte um sistema de signos que vale mais por sua estrutura do que por seu conteúdo, que serve para comunicar. Riegl já afirmara, no final do século XIX, ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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que as formas artísticas continham e comunicavam uma experiência ou uma instituição do mundo, além de todo conteúdo para o qual haviam sido

Romuald Hazoumé. A Boca do Rei, s/d Foto do artista

concebidas. A verdadeira mensagem, o conjunto de informações comunicadas pelo retrato de Charles V, de Ticiano, ou por uma igreja de Palladio não é certamente a estratégia política e militar do imperador ou o tipo de funções religiosas assumido por aquela igreja. Toda obra de arte é suscetível de múltiplos níveis de interpretação. É certo que à medida que os aprofundamos, tudo aquilo que na obra de arte é mais ocasional, contingente, ligado ao tempo, aos lugares, às circunstâncias desaparece em favor do elemento social que constitui sua estrutura mais profunda e mais fundamental. A obra de arte decerto não contém, sob as camadas culturais, um núcleo unitário e indivisível que constituiria sua unicidade e no qual veríamos a expressão mais original e mais livre da personalidade do artista. É claro que essa “personalidade” não existe e que a própria noção de indivíduo é determinada por sua existência num contexto social. Não é a soma de indivíduos que faz a sociedade, mas é a sociedade que faz os indivíduos. Entretanto, não creio que se encontrem dificuldades em considerar a história da arte uma antropologia e, naturalmente, a antropologia uma ciência que compreende em seu domínio não apenas as culturas primitivas, mas também as mais progressivas. 36

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Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

Não podemos, entretanto, negar que na relação real entre as diferentes culturas do mundo o problema da arte se coloque de um modo totalmente novo. Existe um processo de “aculturação” relacionado com a exportação de alguns aspectos secundários da arte moderna para países do Terceiro Mundo: é necessário dizer-se, objetivamente, que isso não teve nenhum efeito positivo, mas, ao contrário, contribuiu para a destruição final da cultura artística indígena. Por outro lado, os patrimônios artísticos locais foram, eles próprios, quase inteiramente subtraídos pelos países que pretendiam propagar a civilização. A arte negra pode estar hoje exclusivamente em coleções públicas ou privadas da Europa e da América. O processo inverso, a absorção de vários elementos da arte primitiva pela cultura artística européia, particularmente nos primeiros 10 anos do século XX, foi bem mais positivo. Não se tratava nem de um movimento de “exotismo” romântico, nem de uma evasão da cultura européia excessivamente sofisticada. Foi, ao contrário, uma verdadeira reação à hegemonia imposta pelo sistema cultural europeu. Nas artes dos povos “primitivos” os artistas europeus reconheceram uma perfeita “integridade da imagem” e uma unidade absoluta entre os processos de criação e de execução. Aquela arte realizava de um modo “absoluto”, ou seja, não por meio de uma relação dialética com o valor oposto de “quantidade”, a pura “qualidade”, enquanto a civilização industrial ainda procura, em todos os níveis, o contrário, ou seja, a quantidade ilimitada. Encontramos a causa dessa “artisticidade” absoluta na concepção mitomágica do mundo, própria das sociedades tribais. Essa concepção implica a unidade perfeita entre indivíduo e ambiência, entre o sujeito e o objeto, entre a idéia e a execução, ou seja, não existe a dualidade, que se vê na cultura ocidental, entre o espírito e a matéria, entre o indivíduo e o mundo. Apesar de o industrialismo apresentar-se como uma perspectiva de igualdade e universalidade, ele trouxe a dicotomia fundamental da cultura ocidental até o ponto de rompê-la, posto que o industrialismo impôs a divisão do trabalho, com a separação em duas etapas (a concepção e a execução) e, conseqüentemente, a emergência de duas diferentes classes sociais que não possuem nenhuma possibilidade de relacionamento, mas apenas de luta. No passado, quando a arte fazia parte do sistema produtivo, o trabalho comportava certa medida de iniciativa e responsabilidade do operador, que encontrava satisfação na contemplação de sua obra. No sistema industrial, ao contrário, o momento criativo, representado pela iniciativa do patrão e pela metodologia do projetista, encontra-se completamente separado do momento de execução, que se transformou em simples prestação de trabalho ou na venda de forçatrabalho por parte da classe operária. Só restam duas possibilidades: ou a arte se divorcia (uma suposição teórica, intelectual, sem nenhuma finalidade ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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prática), ou se transforma em modelo operativo totalmente diferente do sistema industrial gerado pelo capitalismo. Esta última hipótese é atualmente irrealizável em razão da hegemonia, mais opressiva a cada dia, do capitalismo. A influência da pura capacidade artística da arte negra não resolveu a crise da arte no mundo ocidental. Em conseqüência, ela só produziu um áspero contraste entre a profunda vitalidade da “barbárie” e a perda de toda criatividade pela “civilização”. Temos a dramática prova disso na violenta contraposição de culturas, visível na obra Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, o artista que, mais do que qualquer outro, representa as contradições trágicas da consciência européia. Naquele momento – começo do cubismo –, a arte curva-se sobre si mesma, engajando-se na análise do próprio processo e de seus instrumentos; ela se transporta do plano da linguagem para o da metalinguagem. Isso, porém, não seria suficiente para remediar esse tipo de crise que tem origem interna. Para reencontrar tudo aquilo que resta da concepção mitomágica da arte primitiva, a arte européia descerá do consciente para o inconsciente (o Surrealismo), reafirmando com isso o dualismo de espírito e matéria (ou do bem e do mal) e obrigando-se a reconhecer que a faculdade criativa perdida só pode ser recuperada mergulhando-se nas profundidades do inconsciente, com a exclusão da vida consciente. Desde então, em todo o mundo industrializado, a arte se transforma numa disciplina em crise, a ponto de se ter falado (o que ainda acontece) em sua morte. É preciso lembrar, porém, que falar em morte da arte, ou de qualquer outra disciplina, é um contra-senso. O que chamamos de morte da arte é apenas a perda de sua função social concreta e sua separação do sistema da cultura ativa. Excluída do ciclo de atividades sociais, a arte tende a passar para o inconsciente, como ocorreu com a alquimia ou a astrologia, uma vez que a criatividade, que era considerada própria e exclusiva da arte, se transformou num valor negativo, ou seja, algo que se opõe a todos os valores socialmente aceitos atualmente. Desse modo, toda esperança de reencontrar a integridade, o caráter absoluto, a plenitude criativa, pelo puro e simples contato com a arte negra (que a mesma civilização destruiu), só pode ser uma ilusão, provavelmente uma hipocrisia. A perspectiva antropológica justifica-se, na minha opinião, como a extensão necessária e a generalização da perspectiva sociológica. Mas, para que essa perspectiva unitária (que coloca toda atividade artística num mesmo nível, possibilitando, desse modo, seus estudos científicos) se possa realizar, é indispensável que a cultura ocidental assuma, com relação ao Terceiro Mundo, a posição que assumiu perante sua própria arte, até mesmo sob o plano ético. Tratando de um problema estritamente cultural, eu não gostaria de assumir uma posição moralista: mas, no final das contas, trata-se de lógica 38

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Crítica de arte – uma perspectiva antropológica

Owusu-Ankomah. Mouvement n. 39, acrílica sobre tela, 190 x 250cm, 2004

e não de moral. Antes de poder organizar uma verdadeira antropologia da arte é necessário que os países do Terceiro Mundo assumam, com relação a seu próprio patrimônio cultural, a atitude que os países ocidentais adotaram no que concerne a seus patrimônios. É certo que eles não poderão fazê-lo antes de ter reencontrado a plena disponibilidade de seus patrimônios artísticos, que se encontram hoje, e quase inteiramente, fora dos países que os produziram. A cultura ocidental não tem, com efeito, nenhum direito de falar a respeito da antropologia da arte até ter entregue aos países colonizados os patrimônios artísticos dos quais ela se apropriou.

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Tábua de proa de canoa das Trobriand; Ilha Kitava, província Milne Bay, Papua Nova Guiné Fotógrafa: Shirley F. Campbell, maio de 1977. O conjunto da proa é adornado com conchas e objetos de valor Kula (Cf. Campbell, 1984)

Alfred Gell

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A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia

A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia Alfred Gell* O autor propõe que a antropologia da arte considere a arte um componente da tecnologia, e seu produto, resultado de um arranjo de técnicas – o conjunto de todas as artes formando a tecnologia do encanto. O objeto de arte personifica os processos técnicos, e aí reside seu poder de fascinação; a tecnologia do encanto fundada no encanto da tecnologia. A magia está na transubstanciação do material por intervenção humana e que transcende as possibilidades de realização do espectador – o artista como técnico oculto, e a obra, “entidade física que transita entre dois seres”, razão social entre eles e chave para um fluxo de relações posteriores. No contexto social, o virtuosismo técnico capacita a obra a criar assimetrias nas relações interpessoais e das pessoas com as coisas. Em sociedades sem tradições em ‘belas artes’, a arte surge como ritual político ou meio de trocas (cerimoniais ou comerciais). Nestas, a transformação radical do material agrega valor ao objeto. A atividade técnica é fonte de eficácia no domínio das relações sociais, e a mão-de-obra pode carregar postura mágica. Toda atividade produtiva é medida pelo padrão mágico, o contorno negativo da técnica. Os objetos de arte resultam do encontro de características de objetos produzidos tanto pela tecnologia encantada da arte quanto pela tecnologia encantada da magia. Quando a existência do objeto supera uma explicação, fascinando o espectador, nota-se que sua tecnologia real alcança o ideal mágico. Antropologia da arte, arte e tecnologia, arte e magia

Introdução: filistinismo metodológico Comumente ouve-se a queixa de que a arte é um tópico negligenciado na antropologia social dos dias atuais, especialmente na Grã-Bretanha. A marginalização dos estudos acerca da arte primitiva, em contraste com o imenso Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru * Alfred Gell foi tutor em Antropologia na London School of Economics and Political Science, além de ser um Fellow of the British Academy. A London School of Economics and Political Science concedeu-lhe postumamente uma cadeira, posto que ele recusara em vida. Publicou três livros enquanto vivo: Metamorphosis of the Cassowaries (1975), The Anthropology of Time (1992) e Wrapping in Images: Tattooing in Polynesia (1993). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

volume de estudos sobre política, rituais, permuta, e assim por diante, é um fenômeno óbvio demais para deixar de ser percebido, especialmente quando se ressalta um contraste frente ao cenário predominante antes do advento de Malinowski e Radcliffe-Brown. Mas por que isso deve ser assim? Creio ser mais do que o caso de uma simples mudança de padrões dentro da empreitada que é a seleção de tópicos para estudo – como se, por algum capricho coletivo, antropólogos simplesmente decidissem devotar mais tempo de estudo aos casamentos entre primos e menos tempo a esteiras, potes e esculturas. Ao 41


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contrário, a negligência no que diz respeito à arte na antropologia social moderna é necessária e intencional, e surge do fato de que a antropologia social é, essencial e constitutivamente, antiarte. Isso pode soar como uma asserção chocante: como pode a antropologia, tida em consenso universal como uma Boa Coisa, ser oposta à arte; também universalmente considerada Boa Coisa, mesmo uma Coisa Melhor? Porém, temo que assim seja, porque essas duas Boas Coisas assim o são de acordo com critérios fundamentalmente diferentes e conflitantes. Quando digo que a antropologia social é antiarte, é claro que não quero dizer que a sabedoria antropológica prefira demolir a National Gallery, transformando o espaço remanescente em um estacionamento. Quero apenas dizer que a atitude do público amante da arte, no que diz respeito ao que está contido na National Gallery, no Museum of Mankind e em outros – e assim por diante (e com um assombro estético que beira o religioso), é uma atitude irredimivelmente etnocêntrica, não obstante ser louvável em todos os outros aspectos. Nosso sistema de valores dita que, a menos que sejamos filistinos, devemos atribuir valor a uma categoria de objetos de arte culturalmente reconhecida. Essa atitude de esteticismo é atada à cultura, mesmo que os objetos em questão derivem de muitas culturas diferentes, como quando passamos sem esforço da contemplação da escultura taitiana a uma de Brancusi, e vice-versa. Mas a prontidão para colocarmo-nos sob o enlevo de todas as formas de obras de arte, apesar de muito contribuir para a riqueza de nossa experiência cultural, paradoxalmente também é o grande obstáculo no caminho da antropologia da arte, o objetivo definitivo do que deve ser a dissolução da arte; da mesma maneira que a dissolução da religião, da política, do parentesco e de todas as outras formas sob as quais a experiência humana é apresentada à mente socializada deve ser o objetivo definitivo da antropologia em geral. Talvez eu possa esclarecer mais um pouco as conseqüências advindas da atitude do esteticismo universal em relação ao estudo da arte primitiva1 por meio da descrição de uma série de analogias entre o estudo antropológico da arte e o estudo antropológico da religião. Com a ascensão do funcionalismo estrutural, a arte desapareceu quase completamente da lista de temas antropológicos neste país [Inglaterra]. Mas o mesmo não ocorreu no estudo da crença ritual e religiosa. Por que as coisas aconteceram dessa forma? Para mim a resposta parece estar numa diferença essencial entre as atitudes – no que concerne à religião – características da intelligentsia do período e das atitudes dessa mesma intelligentsia no que diz respeito à arte. Parece-me incontestável que a teoria antropológica da religião dependa do que tem sido chamado por Peter Berger de ‘ateísmo metodológico’ (Berger, 1967; p.107). Esse é o princípio metodológico em que crenças místicas e teístas são submetidas ao escrutínio sociológico – quaisquer que sejam as convicções 42

1 A expressão ‘não ocidental’ surgiu-me sugestivamente como uma alternativa preferível ao ‘primitivo’, nesse contexto. Mas essa substituição dificilmente poderia ser feita, haja vista as tradições artísticas das civilizações orientais também conterem, precisamente, as características que o termo ‘primitivo’ pretende aqui excluir e que, no entanto, também não podem ser chamadas de ‘ocidentais’. Espero que o leitor aceite o uso da palavra ‘primitivo’ em um sentido neutro, sem depreciação, no contexto deste ensaio. É justo notar que os escultores das Trobriand, que produzem a arte primitiva aqui tratada, não são primitivos; eles são educados, cultos, conhecem várias línguas e são familiarizados com muita coisa da tecnologia contemporânea. Eles continuam a fabricar a arte primitiva porque é característica de uma economia de prestígio etnicamente exclusivo, a qual têm motivos racionais para continuar querendo preservar. concinnitas


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religiosas do analista ou mesmo a falta delas – sob a hipótese de que elas não são literalmente verdadeiras. Apenas a partir do momento em que essa hipótese é erigida é que as manobras intelectuais, características das análises antropológicas de sistemas religiosos, tornam-se possíveis; quais sejam, por exemplo, a demonstração de ligações entre idéias religiosas e a estrutura de grupos corporativos, hierarquias sociais, e assim por diante. A religião passa a ser uma propriedade emergente das relações entre os vários elementos do sistema social, deriváveis não da condição em que existem as verdades genuinamente religiosas, mas exclusivamente da condição em que existem as sociedades. As conseqüências da possibilidade de haver verdades genuinamente religiosas repousam fora do campo de referências da sociologia da religião. Essas conseqüências – filosóficas, morais, políticas, entre outras – são território da disciplina intelectual da teologia, estabelecida há muito mais tempo, e cujo declínio relativo nos tempos atuais origina-se das mesmas mudanças no clima intelectual que produziram a florescência da corrente da sociologia em geral e, em particular, da sociologia da religião. Concorda-se amplamente com a idéia de que a ética e a estética pertencem à mesma categoria. Eu sugeriria que o estudo da estética está para o domínio da arte, assim como o estudo da teologia está para o domínio da religião. O que é o mesmo que dizer que a estética é um ramo do discurso moral, que depende da aceitação dos artigos iniciais da fé: de que no objeto esteticamente valorizado reside o princípio da Verdade e do Bem, e de que o estudo de objetos esteticamente valorizados constitui-se em caminho rumo à transcendência. Na medida em que almas modernas possuam religião, essa religião é a religião da arte, a religião cujos santuários consistem em teatros, livrarias e galerias de arte; cujos padres e bispos são pintores e poetas; cujos teólogos são críticos, e cujo dogma é o do esteticismo universal. A não ser que eu esteja muito enganado, creio estar escrevendo para um público leitor que é composto principalmente por devotos do culto da arte e, mais, para um público que partilha da suposição (de maneira nenhuma incorreta) de que eu também pertença a essa fé; de modo que, se nós fôssemos de uma congregação religiosa e eu estivesse proferindo um sermão, a pressuposição seria a de que não sou ateu. Se eu fosse discutir algum sistema de crença religiosa exótica, do ponto de vista do ateísmo metodológico, isso não seria problema nem mesmo para os não ateus, simplesmente porque ninguém espera que um sociólogo da religião adote as premissas da religião em questão; de fato, ele é obrigado a não fazer tal coisa. Mas a atitude equivalente à que assumimos, no que tange a crenças religiosas, no discurso sociológico, é de realização muito mais difícil no contexto de discussão de valores estéticos. O equivalente ao ateísmo metodológico no domínio religioso, no domínio da arte, seria o filistinismo metodológico, e essa ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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é uma pílula amarga, que poucos querem engolir. O filistinismo metodológico consiste em assumir uma atitude de indiferença resoluta no que diz respeito ao valor estético das obras de arte – o valor estético que elas possuem, seja do ponto de vista local ou do esteticismo universal. Porque admitir esse tipo de valor é o mesmo que admitir, por exemplo, que a religião é verdade. E, na mesma medida em que essa admissão torna a sociologia da religião impossível, a introdução da estética (a teologia da arte) na sociologia ou antropologia da arte imediatamente transforma o empreendimento em algo diferente. Mas nós estamos bem relutantes em romper com o esteticismo – tanto quanto em romper com a teologia – simplesmente porque, como venho sugerindo, nós sacralizamos a arte: a arte realmente é nossa religião. Não podemos entrar nesse domínio, e fazê-lo nosso por completo, sem experimentar uma profunda discordância que provém do fato de que nosso método – se é que ele deve ser aplicado à arte com o grau de rigor e objetividade com o qual estamos perfeitamente preparados para contemplar quando o assunto é religião e política – obriga-nos a lidar com o fenômeno da arte com um espírito filistino, contrário aos nossos mais estimados sentimentos. Não obstante, continuo a acreditar que o primeiro passo a ser tomado no projeto de uma antropologia da arte é efetuar uma completa ruptura com a estética. Assim como a antropologia da religião começa com a negação explícita ou implícita das reivindicações que as religiões proferem aos seus seguidores, também a antropologia da arte deve começar com a negação das reivindicações que objetos de arte produzem naqueles que vivem sob seu enlevo, assim como em nós mesmos, que até este momento nos confessamos devotos do Culto da Arte. Mas, se apóio a ruptura com as preocupações estéticas de grande parte da atual antropologia da arte, isso não significa que eu pense que o filistinismo metodológico seja adequadamente representado por outros acessos possíveis. Por exemplo: o sociologismo de Bourdieu (e.g. 1968), que nunca olha realmente o objeto de arte mesmo como um produto concreto do engenho humano, mas apenas o seu poder de marcar distinções sociais; ou a abordagem iconográfica (e.g. Panofsky, 1962), que trata a arte como uma espécie de escrita e que falha, igualmente, em levar antes o objeto apresentado em consideração que seus significados simbólicos representados. Não nego, em nenhum momento, as descobertas de que esses meios de estudo da arte são capazes. Nego apenas que eles se constituam na tão buscada alternativa à abordagem estética do objeto. Devemos, de alguma maneira, antes manter a capacidade da abordagem estética de iluminar as características objetivas específicas do objeto de arte como objeto que mantê-la como veículo para mensagens simbólicas e sociais exteriores; sem sucumbir à fascinação que todos os bem consumados objetos de arte exercem sobre a mente afinada às suas propriedades estéticas. 44

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A arte como um sistema técnico Neste ensaio, proponho que a antropologia da arte pode proceder dessa maneira, considerando a arte um componente da tecnologia. Reconhecemos obras de arte, como uma categoria, porque elas são o resultado de processo técnico, a espécie de processo técnico no qual os artistas são peritos. A principal deficiência da abordagem estética é a de que os objetos de arte não são os únicos objetos esteticamente valorizados: há belos cavalos, belas pessoas, belos ocasos, e assim por diante; mas os objetos de arte são os únicos que são belamente produzidos ou feitos belos. Parece haver toda a justificativa, logo, para considerar inicialmente os objetos de arte aqueles que demonstram um certo nível de excelência alcançado tecnicamente, considerando que ‘excelência’ seja a função não simplesmente de suas características como objetos, mas de suas características como objetos produzidos, como produtos de técnicas. Considero as várias artes – pintura, escultura, música, poesia, ficção, e assim por diante –componentes de um sistema técnico vasto e freqüentemente não reconhecido, essencial para a reprodução das sociedades humanas, ao qual eu chamarei de tecnologia do encanto. Ao falar em ‘encanto’, estou fazendo uso de uma terminologia que quer expressar a premissa geral de que as sociedades humanas dependem do consentimento de indivíduos propriamente socializados por meio de uma rede de intencionalidades. Embora cada indivíduo busque (o que cada indivíduo assume ser) seu interesse próprio, todos esses indivíduos engendram algo a atender a necessidades que não podem ser compreendidas no nível do ser humano individual, mas somente no nível das coletividades e suas dinâmicas. Como primeira aproximação, poderíamos supor que o sistema de arte contribui para assegurar o consentimento dos indivíduos dentro da rede de intencionalidades na qual eles estão incluídos. Essa visão da arte, que é a da publicidade2 em favor do status quo, é a tomada por Maurice Bloch em seu livro Symbols, Song, Dance, and Features of Articulation (1974). Ao chamar a arte de tecnologia do encanto estou, acima de tudo, destacando esse ponto de vista, o qual, por mais que possa ser refinado, permanece como um componente essencial da teoria antropológica da arte do ponto de vista do filistinismo metodológico. De qualquer modo, o vislumbre teórico de que a arte fornece um dos meios técnicos pelos quais indivíduos são persuadidos em prol da necessidade 2 A palavra que consta no original inglês, ‘propaganda’, foi (e cremos ainda ser) muito utilizada para descrever o tipo de publicidade promovida, durante o século XX, pelos regimes totalitários fascistas. Utilizamos uma palavra menos ‘carregada semanticamente’ por tais significações. Deixamos a cargo do leitor escolher a melhor maneira de a entender – e junto a isso tudo este pequeno esclarecimento. (NT) ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

e ânsia por uma ordem social que os cinja não nos aproxima do objeto de arte como tal. Como sistema técnico, a arte é orientada na direção da produção das conseqüências sociais que decorrem da produção desses objetos. O poder dos objetos de arte provém dos processos técnicos que eles personificam objetivamente: a tecnologia do encanto é fundada no encanto da tecnologia. O encanto da tecnologia é o poder que os processos técnicos têm de lançar uma fascinação sobre nós, de modo que vemos o mundo real de forma encantada. A 45


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arte, como uma classe diferente de atividade técnica, apenas leva além, por meio de uma espécie de envolvimento, o encanto que é imanente a todas as classes de atividades técnicas. A meta de meu ensaio é elucidar essa declaração – reconhecidamente – um tanto enigmática.

Batalha psicológica e eficácia mágica Começarei, contudo, falando um pouco mais sobre a arte como a tecnologia do encanto, em vez de falar da arte como o encanto da tecnologia. Há um caso exemplar óbvio que podemos considerar, no que diz respeito a uma boa parcela da arte do mundo existir como meio de controle. Em alguns casos, os objetos de arte são criados com a intenção explícita de funcionar como armas na batalha psicológica; como no caso das tábuas3 de proa das canoas das Ilhas Trobriand (fig. de abertura) – certamente um exemplo prototípico da arte primitiva advinda de bases antropológicas prototípicas. A intenção por trás da colocação dessas tábuas de proa nas canoas Kula4 é a de fazer com que os parceiros Kula de alémmar, das Ilhas Trobriand, que vigiam a chegada da esquadrilha Kula do litoral norte, abandonem a cautela e ofereçam, aos membros da expedição, braceletes ou colares mais valiosos do que eles tenderiam, normalmente, a oferecer. As tábuas são presumivelmente usadas para fascinar quem as admira e enfraquecer o domínio de si. E elas realmente são fascinantes, especialmente considerandoas visualmente em relação ao cenário dos arredores que as cercam, ao qual o melanésio comum é acostumado, que é muito mais uniforme e uníssono que o nosso próprio. Mas se a desmoralização de um oponente em uma contenda de força de vontade é a real intenção por trás da tábua da canoa, pode dar o direito de perguntar como o truque deve funcionar. Por que a visão de certas cores e formas exercem um efeito desmoralizante em alguém? O primeiro lugar em que se pode procurar uma resposta a tal pergunta está no domínio da etologia, ou seja, em disposições inatas nas espécies a responderem a estímulos particulares de percepção, de formas predeterminadas. Além disso, se alguém mostrar tal tábua a um etólogo, esse poderia, sem sombra de dúvida, murmurar “ocelos!” e imediatamente começaria a sacar fotografias de asas de borboletas, igualmente marcadas com círculos encorpados e simétricos, feitos para terem mais ou menos o mesmo efeito em pássaros predatórios: assim como as tábuas devem agir sobre os parceiros trobriandeses do Kula, ou seja, deixá-los fora de si em um momento crítico. Penso que há todos os motivos para acreditar que os seres humanos possuem sensibilidade inata a padrões como os dos ocelos, assim como para contrastes fortemente tonais e cores brilhantes, especialmente vermelho; e tudo isso também caracteriza o desenho das tábuas de canoa. Esses elementos sensitivos podem ser experimentalmente demonstrados em crianças e no repertório comportamental de macacos e outros mamíferos. 46

3 Seguimos, nessa palavra e em todas as relacionadas ao tema da cerimônia ritual Kula (tradições, costumes e congêneres), a tradução de Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri para uma das edições de obras de Malinowski publicadas no Brasil. Cf.: Malinowski, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Central – um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. 2a edição, São Paulo: Editora Abril, 1976. (Coleção Os Pensadores) (NT) 4 O Kula é um sistema cerimonial de trocas de objetos de valor que interliga as comunidades das ilhas do distrito Massim, a leste da ilha da Papua Nova Guiné (Cf. Maiakowsky, 1922; Leach e Leach, 1983). Os participantes do Kula (todos homens), em canoas, empreendem expedições Kula às ilhas vizinhas, com o propósito de trocar dois tipos de objetos de valor tradicionais: colares e braceletes, os quais só podem ser trocados uns pelos outros. O sistema Kula é um circuito de comunidades ilhoas interligadas que tem a forma de um anel, por onde os colares circulam no sentido horário. Os membros do Kula disputam com outros membros da mesma comunidade a possibilidade de assegurar parcerias Kula rentáveis com outros membros do além-mar, das comunidades vizinhas, tanto no sentido horário quanto no inverso. O objetivo é o de maximizar o volume de transações ocorridas entre os seus integrantes. Os objetos de valor Kula não são amealháveis. É suficiente que seja de conhecimento público que um famoso objeto de valor, em algum estágio, esteja sob a guarda de alguém. Um homem que tenha conseguido ‘atrair’ muitos objetos cobiçados torna-se famoso em todo o circuito Kula (Cf. Mann, 1986). concinnitas


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Mas ninguém precisa aceitar a idéia de uma sensibilidade filogenética profundamente arraigada a padrões de ocelos, assim como encontrar mérito na idéia de que a tábua de proa da canoa de Trobriand seja um padrão tecnicamente apropriado para seu propósito pretendido de ofuscar e perturbar o espectador. A mesma conclusão pode ser deduzida de uma análise das propriedades Gestalt do desenho da tábua de proa. Se se fizer o experimento de tentar fixar o padrão por alguns momentos fitando os olhos nela, começa-se a experimentar sensações ópticas peculiares, devido à instabilidade intrínseca ao desenho de suas espirais opostas, ambas tendendo a levar os olhos a direções opostas. Há inúmeros exemplos de desenhos, nos cânones da arte primitiva, que podem ser interpretados como sendo ‘exploradores’ de tendências características da percepção visual humana, e que nos enredam em reações involuntárias, algumas das quais podem ser comportamentalmente significantes. Devemos, portanto, assumir a visão de que a significância da arte, como componente da tecnologia do encanto, origina-se do poder que determinados grupos de estímulos têm de perturbar o funcionamento cognitivo normal? Lembro-me de que Believe It Or Not,5 de Ripley (em certo momento, meu livro favorito), continha um desenho, o qual alegava hipnotizar ovelhas: essa deveria ser considerada a obra de arte arquetípica? Será que a arte exercita sua influência por uma forma de hipnose? Penso que não. Não porque essas perturbações não sejam fenômenos psicológicos reais; são, como já disse, facilmente demonstráveis por meio de experiências. Mas não há suporte empírico à idéia de que as tábuas de proa, ou tipos similares de objetos de arte, realmente consigam seus efeitos produzindo perturbações visuais ou cognitivas. A tábua de proa da canoa não interfere seriamente – se é que interfere – nos processos de percepção da vítima em que pretende interferir, mas consegue seu propósito de um modo muito mais envolvente. A tábua de proa é uma arma psicológica poderosa, mas não por conseqüência dos efeitos visuais que produz. Sua eficácia pode ser atribuída ao fato de que essas perturbações, por si só tenras, são interpretadas como evidência do poder mágico que emana da tábua. Esse poder mágico é que pode privar o espectador de sua razão. Se, de fato, ele se comporta de maneira inesperadamente generosa, isto é interpretado de forma esperada. Sem as idéias mágicas associadas à presença da tábua, o ofuscar não ocorre nem aqui, nem acolá. Considera-se o fato de que uma tábua de proa impressionante é um símbolo físico da destreza mágica da parte do dono da canoa, assim como se considera o fato de que ele tem acesso aos serviços de um escultor cuja destreza artística também é resultado de seu 5 Não conseguimos tomar conhecimento da existência da tradução e edição desse livro no Brasil, mas, apenas a título de curiosidade, ele foi adaptado ao formato de série televisiva — e fez relativo sucesso no país durante a década de 1980 — sob o título de Acredite Se Quiser. (NT) ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

acesso à magia superior da escultura.

O efeito-halo da ‘dificuldade’ técnica E isso nos leva ao ponto principal a que desejo chegar. Parece-me que a eficácia dos objetos de arte como componentes da tecnologia do encanto – 47


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uma função que é particularmente bem exposta no caso da canoa Kula – é, ela própria, o resultado do encanto da tecnologia; o fato de processos técnicos, como a escultura de tábuas de proa para canoas, serem pensados como elaborados magicamente de modo que, nos encantando, façam com que os produtos desses processos técnicos pareçam ser portadores encantados de poder mágico. O que é o mesmo que dizer que a tábua de proa não é ofuscante como objeto físico, mas como uma amostra da vocação artística só explicada mediante termos mágicos, algo que tenha sido produzido por meios mágicos. E é a maneira como é elaborada a vinda do objeto de arte ao mundo que pode vir justamente a ser a fonte do poder que tais objetos exercem sobre nós, ou seja, mais propriamente o processo de suas formações que dos próprios objetos em si mesmos. Permitam-me apontar outro exemplo de um objeto de arte que pode esclarecer mais esse ponto. Quando tinha 11 anos, fui levado a conhecer a Catedral de Salisbury. A construção em si não me causou grande impressão, de forma que dela nem me lembro. Entretanto, lembro-me muito vivamente de uma mostra que as autoridades da catedral haviam colocado em algum canto desbotado da capela: era uma impressionante maquete da Catedral de Salisbury, com aproximadamente dois pés de altura6 e aparentemente completa em todos os detalhes, toda construída com palitos de fósforos colados uns aos outros; certamente um exemplo virtuosístico de seu autor miniaturista, apesar de não ser nenhuma grande obra-prima segundo os critérios dos Salões, e calculada para tocar os acordes mais profundos no coração de um menino de 11 anos. Palitos de fósforo e cola são importantes constituintes do mundo de qualquer garoto dessa idade, e a proposta de reunir esses materiais numa construção tão impressionante provocou os mais profundos sentimentos de reverência e temor. Com muita disposição, depositei meu tostão na caixa de coleta que as autoridades, com uma avaliação certeira da real função das obras de arte, tinham colocado em frente à maquete para ajudar o Fundo de Construção da Catedral. Sendo totalmente indiferente como era, na época, aos problemas de manutenção da catedral, nada mais pude fazer, a não ser pagar tributo a tão esmerada destreza objetivada em forma. Em um determinado nível, eu já tinha perfeita consciência dos problemas técnicos enfrentados pelo gênio que havia feito a maquete, tendo eu mesmo lidado com fósforos e cola, tanto separadamente como em combinações várias. Enquanto isso, continuava mantendo-me completamente perdido na tentativa de imaginar a magnitude dos graus necessários de habilidade na manipulação e de extensão da paciência para completar a obra final. Segundo o ponto de vista de um pequeno garoto, essa era a obra de arte definitiva, de fato muito mais fascinante que a própria catedral, e, suspeito, que era vista também dessa forma por uma proporção significativa de visitantes adultos. Nesse caso a tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia andam juntas. A maquete de palitos de fósforos, essencialmente funcionando como 48

6 Dois pés eqüivalem a aproximadamente 0,61m ou 61 centímetros. (NT) concinnitas


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publicidade, é parte da tecnologia do encanto, mas alcança seu efeito pelo encanto lançado por seus meios técnicos, a maneira que essa maquete passa a existir ou, antes, a idéia que se forma para imaginar como foi construído tal objeto, uma vez que construir uma maquete em palitos de fósforos da Catedral de Salisbury pode não ser tão difícil, ou fácil, quanto se imagina. Simmel, em seu tratado Philosophy of Money (1979), promove um conceito de valor que pode ajudar-nos a formar uma idéia mais geral sobre o tipo de influência que os objetos de arte exercem sobre nós. Resumidamente, Simmel sugere que o valor de um objeto dá-se na proporção da dificuldade que nós pensamos que enfrentaremos para obter aquela coisa em particular mais do que qualquer outra. Não queremos o que não pensamos que obteremos sob qualquer conjunto de circunstâncias julgadas realizáveis. Simmel segue dizendo: Só desejamos certos objetos se eles não nos são imediatamente dados para uso e deleite, ou seja, até o ponto em que eles resistem a nosso desejo. O conteúdo do nosso desejo torna-se um objeto tão logo nos é oposto não apenas no sentido de estar longe dos sentidos, mas também em termos de sua distância, como algo que ainda não foi usufruído, sendo o desejo o aspecto expressivo. Como dito por Kant: a possibilidade da experiência é a possibilidade dos objetos de experiência – porque ter experiências significa que nossa consciência cria objetos a partir de impressões dos sentidos. No mesmo caminho, a possibilidade do desejo é a possibilidade dos objetos do desejo. O objeto assim formado – o qual é caracterizado por sua separação do sujeito – e que ao mesmo tempo estabiliza-o e busca sobrepujá-lo através do desejo é para nós valor. Ele segue argumentando que a troca é o primeiro meio empregado no sentido de sobrepujar a resistência oferecida pelos objetos desejados, o que os torna desejáveis, e que o dinheiro é a forma pura do meio, tendo como objetivo empenhar-se na troca e realizar o desejo. Não estou preocupado aqui com as idéias de Simmel sobre valor de troca e dinheiro; quero sim focalizar a idéia de que objetos valorizados apresentam-se para nós rodeados por uma espécie de resistência de efeito-halo, e que é essa resistência a nós que é a fonte de seu valor. Da maneira que se afirma, a teoria de Simmel faz supor que é a dificuldade de acesso a um objeto que o torna valioso; um argumento que obviamente se aplica, por exemplo, aos objetos de valor Kula. Mas, se supusermos que o valor atribuído às obras de arte, o efeito encantador que elas têm em nós, é função – pelo menos em algum grau – não apenas de suas características como objetos, mas das dificuldades que possamos esperar encontrar para as obter, então o argumento não pode ser aceito sem ser modificado. Por exemplo, se ocuparmo-nos novamente do caso da maquete de palitos de fósforos da Catedral de Salisbury, poderemos observar que a fascinação lançada por esse objeto em mim foi independente de qualquer desejo, de minha parte, de ganhar a posse dessa propriedade pessoal. Nesse sentido, eu não o ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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valorizei ou desejei, já que a possibilidade de posse não pôde surgir: da mesma forma em que hoje sou ciente da impossibilidade de remover das paredes e carregar comigo as pinturas da National Gallery. É claro que realmente desejamos obras de arte – aquelas dentro das nossas posses financeiras – como propriedades pessoais, e obras de arte têm enorme significância como itens de troca. Mas creio que o poder peculiar das obras de arte, nesse ponto, não reside nos objetos como tais; são justamente objetos como tais que são comprados e vendidos. Seu poder reside nos processos simbólicos que eles provocam no admirador, e esses possuem características sui generis que são independentes dos próprios objetos e do fato de que eles são possuídos e trocados. O valor de uma obra de arte, como sugere Simmel, é a função da maneira pela qual ela resiste a nós, mas essa ‘resistência’ ocorre em dois planos. Se estou contemplando a pintura de um mestre antigo, cujo valor de mercado – o qual incidentalmente venho a saber – é de dois milhões de libras, isso certamente altera minha reação a ela; torna-a mais impressionante do que seria, caso eu soubesse que ela é uma reprodução inautêntica ou uma falsificação de muito menor valor. Mas a pura e simples incomensurabilidade entre meu poder de compra e o preço de oferta de um grande mestre autêntico significa que eu não posso considerar tais obras como itens de troca significativos: elas pertencem a uma esfera de trocas da qual eu sou excluído. Não obstante, tais pinturas ainda são objetos de desejo – o desejo de possuí-las em um certo sentido –, mas não necessariamente ter posse material delas. A resistência que elas oferecem, e que cria e sustenta esse desejo, é a de serem possuídas num sentido antes intelectual que material: a dificuldade que tenho em abarcar mentalmente seu vir-a-ser como entes, em um mundo acessível a mim, por meio de um processo técnico que, uma vez que transcende meu entendimento, sou forçado a explicar como sendo mágico.

O artista como um técnico oculto Consideremos, agora, como um passo além da maquete da Catedral Salisbury, a notoriamente famosa pintura trompe-l’oeil Old Time Letter Rack, de J. F. Peto, também ocasionalmente conhecida como Old Scraps, com vários alfinetes apresentados de forma artística, além de assinaturas apagadas, cartas com endereços ainda legíveis e em envelopes nos quais selos como que reais estão colados, folhas de jornal cortadas, livros, uma pena, um pedaço de corda e assim por diante. Essa pintura normalmente entra em discussão dentro do contexto de denúncias aos excessos do ilusionismo na pintura do século XIX. Contudo, é claramente tão querida agora quanto sempre foi, e de fato ganhou prestígio – ao invés de perdê-lo – com o advento da fotografia; já que agora é possível ver o quanto ela é fotograficamente real, o que a torna mais notável. Se de fato essa pintura fosse a fotografia colorida de uma escrivaninha, ninguém 50

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daria por ela um tostão. Mas porque é uma pintura, real qual uma fotografia, é uma obra famosa, que poderia valer – se o voto popular contasse na determinação do valor de pinturas – um armazém cheio de Picassos e Matisses. A estima popular que essa pintura detém não se origina de seu mérito estético – se é que há algum – já que ninguém olharia para o que ela representa (ou seja, uma escrivaninha) por uma segunda vez. Seu poder de fascinação provém do fato de que as pessoas têm grande dificuldade em entender como pigmentos coloridos (substâncias com as quais todo mundo é amplamente familiarizado) podem ser aplicados a uma superfície e transformar-se em um conjunto de substâncias aparentemente diferentes, nomeadamente, selos, pedaços de cordas, entre outros. A magia manifestada no espectador, por essa pintura, é uma reflexão da magia que é manifestada na pintura, o milagre técnico que realiza a transubstanciação de pigmentos oleosos em tecido, metal, papel e pena. Esse milagre técnico precisa ser distinto de um processo meramente misterioso, é miraculoso porque é realizado com intervenção humana, mas ao mesmo tempo com uma intervenção que transcende o senso normal de possibilidades próprias do espectador. Assim, a imagem da escrivaninha não teria tal prestígio se fosse uma fotografia, visualmente idêntica em cor e textura: lidemos com essa afirmação. Seu prestígio depende do fato de que é uma pintura, e, em geral, a fotografia nunca alcança o prestígio popular da pintura em sociedades que adotaram a fotografia, rotineiramente, como uma técnica de produção de imagens. Isso ocorre porque os processos técnicos envolvidos na fotografia são articulados à nossa noção de intervenção humana de maneira bem distinta da que conceituamos o processo técnico da pintura, escultura e assim por diante. A alquimia envolvida na fotografia (na qual cartuchos de filmes são inseridos em câmeras, botões são apertados, e as fotos de Tia Edna emergem em seu devido curso) é considerada fantástica, mas tão fantástica quanto preferivelmente natural, dentro de uma ordem humana, como no caso da metamorfose de lagartas a borboletas. O fotógrafo, um modesto apertador de botões, não tem prestígio. Ao menos até que a natureza de suas fotografias seja tal, que faça alguém começar a ter dificuldades em conceituar os processos que as tornaram executáveis com o familiar aparelho fotográfico. Nas sociedades que não são extremamente familiarizadas com a câmera como um meio técnico, a situação é, claro, um tanto diferente. Como muitos antropólogos que trabalharam sob tais condições terão como saber, a habilidade de tirar fotografias é freqüentemente tida como especial, uma faculdade oculta do fotógrafo, que se estende à posse das almas dos fotografados, por meio das fotos resultantes. Julgamos essas atitudes inocentes, quando se trata da fotografia, mas a mesma atitude é persistente, e aceitável, quando expressa no contexto da pintura e do desenho. A habilidade em capturar o retrato de alguém é um poder oculto do retratista, seja em tinta ou em bronze, e quando ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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desejamos dispor de um ícone que substituirá uma pessoa – um diretor aposentado da Escola de Ciências Econômicas de Londres, por exemplo – insistimos em um retrato pintado; porque somente dessa forma a essência capturada do não mais presente Professor Dahrendorf continuará a exercer uma influência benigna sobre a coletividade que deseja eternizá-lo e, assim fazendo, receber benefícios contínuos de seu mana. Permitam-me sumariar minha posição a respeito dos Old Scraps de Peto e seu prestígio paradoxal. A população, em sua maioria, tanto admira quanto pensa que essa pintura emana alguma espécie de virtude moral, no sentido em que ela resume o que os pintores ‘devem’ ser capazes de fazer (ou seja, representações exatas, ou, preferivelmente, transubstanciações ocultas dos materiais dos artistas em outras coisas). É portanto um símbolo de significância moral geral, conotando, entre outras coisas, o cumprimento da vocação do pintor no sentido ético-protestante e inspirando outras pessoas mais a cumprirem suas vocações igualmente bem. Mantém-se como exemplo da vocação artística enquanto poder, tanto no mundo como além dele, e promove o verdadeiro artista a uma função simbólica como técnico oculto. Junto a esse estereótipo popular do verdadeiro artista está o estereótipo negativo do artista falso (‘moderno’) das caricaturas humorísticas, o qual supõe-se não saber desenhar; cujas telas desordenadas não são melhores que o trabalho de uma criança; e cuja moralidade lassa é proverbial. Duas objeções podem ser feitas à sugestão de que o valor e a significância moral das obras de arte são funções de sua excelência técnica, ou, mais geralmente, à importância do fato de que o espectador olha para essas obras e pensa “minha nossa, eu não conseguiria fazer isso nem em um milhão de anos”. A primeira objeção seria a de que Old Scraps, qualquer que seja seu prestígio entre hoi polloi, não dobra os críticos nem os que cultuam a arte em geral. A segunda objeção que pode ser levantada é a de que, como exemplo de ilusionismo em arte, a escrivaninha representa não só uma tradição artística particular (propriamente nossa), como também um breve interlúdio nessa tradição, e por isso deve ter pequena significância geral. Particularmente, ela não pode dar-nos nenhum caminho ou inferência na direção da arte primitiva, desde que essa arte é notadamente isenta dos embustes ilusionistas. A posição que desejo determinar é a de que a atitude do espectador, no que concerne à arte, é fundamentalmente condicionada por sua própria noção dos processos técnicos que promoveram sua ascensão a tal status, e pelo fato de que foi criada por intervenção de outra pessoa, o artista. A significância moral da obra de arte origina-se a partir do desencontro entre a consciência interior do espectador, acerca de seus próprios poderes como agente, e a concepção que ele forma dos poderes possuídos pelo artista. Ao reconstruir os processos que levaram a obra de arte à existência, ele é obrigado a exercer uma intervenção criativa que transcende a sua própria e, pairando no fundo, o poder da coletividade em cujo benefício o artista exercitou sua maestria técnica. 52

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A obra de arte é inerentemente social de um modo que o objeto meramente belo ou misterioso não é: ela é uma entidade física que transita entre dois seres, e por essa razão cria uma razão social entre eles, o que por sua vez fornece um canal para relações e influências ulteriores. Assim é quando, por exemplo, o escultor real, por meio de seu poder mágico sobre o mármore produz um análogo físico para o poder menos facilmente compreensível e palpável empunhado pelo rei; e, em conseqüência disso, acentua a autoridade do rei. O que Bermini pode fazer ao mármore (e não se sabe exatamente o quê e como), Luís XIV pode fazer a você (por meios que estão igualmente além de nosso alcance mental). O homem que controla tal poder, como incorporado na maestria técnica do busto de Luís XIV, de Bermini, é realmente poderoso. Há vezes em que o artista ou artesão de fato é completamente apagado no processo, e a autoridade moral que as obras de arte geram acumula-se inteiramente sobre os indivíduos ou instituições responsáveis pela encomenda da obra. Como ocorrido aos escultores e artistas metalúrgicos anônimos que contribuíram para a glorificação da Igreja medieval. Em outros casos os artistas são verdadeiramente considerados com desdém particular pela elite dominante, e são obrigados a ter vidas separadas e isoladas; de modo a dispor de camuflagem ideológica para o fato de que é deles a maestria técnica que medeia a relação entre os dominantes e os dominados. Mantenho, por essa razão, a afirmação de que o virtuosismo técnico é intrínseco à eficácia das obras de arte em seu contexto social e sempre tende em direção à criação de assimetrias nas relações entre as pessoas ao colocá-las em uma essencial relação assimétrica com as coisas. Mas esse virtuosismo técnico precisa ser especificado cuidadosamente; ele não é de nenhuma maneira idêntico ao simples poder de representar objetos reais de maneira ilusória: essa é uma forma de virtuosismo que pertence, quase exclusivamente, à nossa tradição de arte (apesar de não subestimarmos seu papel na manutenção do prestígio dos antigos mestres, como Rembrandt). Um exemplo de virtuosismo na arte ocidental moderna não ilusória é fornecido pela famosa obra de Picasso O Babuíno e o Filhote, na qual o rosto de um macaco é criado por molde direto da carcaça de um carro de brinquedo. Ninguém ficaria muito impressionado pelo carro de brinquedo em si, nem pela verossimilhança do macaco de Picasso como um modelo de macaco, a não ser que se reconhecesse o procedimento técnico que Picasso costumava efetuar, qual seja, a requisição de um dos brinquedos de seus filhos. Mas a transubstanciação engenhosa do carro de brinquedo em face de macaco não é operação fundamentalmente diferente da que transforma os materiais dos artistas em componentes de uma escrivaninha, o que, por sua vez, é considerado um tanto tedioso, porque é para isso que os materiais artísticos, genericamente, servem. Não importa qual escola vanguardista leve-se em conta, sempre há o caso de os materiais, e as idéias associadas a esses materiais, serem tomados e transformados em alguma outra coisa; mesmo que seja somente, ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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como no caso do notório urinol de Duchamp, colocando-os numa exposição de arte e dando-lhes um título (Fonte) e um autor (‘R. Mutt’, pseudônimo de M. Duchamp, 1917). Amikam Toren, um dos mais engenhosos artistas contemporâneos, toma objetos como cadeiras e bules, mói e usa as substâncias resultantes para criar imagens de cadeiras e bules. Esse é um procedimento menos radical do que o de Duchamp – o qual só pode ser usado efetivamente uma vez –, mas é meio igualmente adequado para dirigir nossa atenção à alquimia essencial da arte, que é a de fazer o que não existe do que existe, e fazer o que existe do que não existe.

A transferência esquemática fundamental entre a produção de arte e o processo social Dirijamos nossa atenção, porém, à produção de arte em sociedades sem tradições e instituições de ‘belas artes’ do tipo das que educaram Picasso e Duchamp. Em tais sociedades, a arte surge particularmente em dois domínios. O primeiro deles é o ritual, especialmente ritual político. Os objetos de arte são produzidos com o objetivo de ser mostrados naquelas ocasiões em que o poder político está a ser legitimado pela associação de várias forças sobrenaturais. Em segundo lugar, os objetos de arte são produzidos no contexto das trocas cerimoniais ou comerciais. O artístico é prodigalizado em objetos que estão prestes a fazer parte do sistema de trocas nas esferas de permuta mais prestigiosas, ou cuja pretensão é a de resultarem em altos preços no mercado. O tipo de sofisticação técnica envolvida não é o da tecnologia do ilusionismo, e sim a da transformação radical de materiais; no sentido em que o valor das obras de arte é condicionado ao fato de que é difícil conseguir tal valor dos próprios materiais de que essas mesmas obras são compostas. Se tomarmos, uma outra vez, o exemplo das tábuas de proa das canoas de Trobriand, ficará claro que é muito difícil obter a arte de transformar as grossas raízes de sustentação de uma árvore de madeira resistente, utilizando as ferramentas deveras limitadas que os nativos de Trobriand têm à disposição, transformando-as em um produto tão suave e refinado. Se tais tábuas pudessem ser simplesmente moldadas em algum material plástico, elas não teriam tal potência, apesar da possibilidade de ser visualmente idênticas. Mas é também claro que na definição do virtuosismo técnico também precisam ser incluídas considerações que, pode-se pensar, pertençam à estética. Consideremos a posição de um escultor nativo das Ilhas Trobriand, encarregado de acrescentar mais uma peça ao corpus de tábuas de proa já existente. À sua frente o escultor não tem só o problema de moldar fisicamente materiais um tanto árduos: também há o de visualizar o desenho que ele mentalmente seguirá na escultura, um desenho que deve refletir os critérios estéticos apropriados a esse gênero de arte. Pode-se supor que ele deve exercitar a faculdade do julgamento estético, mas não é como isso realmente aparece ao artista das Ilhas Trobriand, que esculpe dentro de 54

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um contexto cultural no qual a originalidade não é valorizada por si mesma, e de quem é esperado, tanto por seu público quanto por ele mesmo, que siga um modelo ideal de tábua de proa, aquela mais magicamente eficaz, que pertence a sua escola de escultura e a seus feitiços e ritos mágicos associados. O escultor de Trobriand não se dispõe a criar um novo tipo de tábua de proa, e sim um novo emblema de um tipo existente. De modo que ele não busca ser original, mas, por outro lado, não quer iniciar-se na tarefa da escultura simplesmente para desafiar sua habilidade com os materiais; ao contrário, ele vê isso, primariamente, como um desafio aos seus poderes mentais. Talvez a analogia mais próxima, em nossa cultura, seja a de um músico tecnicamente preparado para oferecer a interpretação perfeita de uma composição já existente, como, por exemplo, a ‘Sonata ao luar’. Os escultores passam por procedimentos que abrem os canais de suas mentes, de modo que as formas a serem inscritas nas tábuas de proa fluirão livremente de dentro para fora e vice-versa. Campbell, em um estudo (1984) ainda não publicado sobre uma escultura de Trobriand (Vakuta), recorda-se de que o rito final da iniciação do escultor é a ingestão do sangue de uma cobra conhecida por ser escorregadia. Do começo ao fim da iniciação, a ênfase é sobre a garantia do fluxo livre (de conhecimento mágico, formas, linhas e assim por diante), pelo uso metafórico da água e de outros líquidos, especialmente sangue e sucos da semente de betel. É verdade, claro, que o estilo de escultura curvilinear melanésio é dominado pela estética das linhas sinuosas, bem representadas pelas próprias tábuas de proa das canoas; mas o que para nós é um princípio estético, o qual apreciamos na obra terminada, do ponto de vista do escultor é uma série de dificuldades técnicas (ou bloqueios do fluxo) as quais ele deve superar a fim de bem esculpir. De fato, um dos ritos iniciáticos representa justamente isso: o mestre escultor faz uma pequena barragem, atrás da qual a água do mar é presa. Depois de alguns afazeres mágicos, a barragem é quebrada, e a água corre de volta ao mar. Após isso, a mente do iniciado será limpa e rápida, e as idéias para esculpir fluirão de modo similarmente desimpedido para sua cabeça, descendo por seus braços, pelos dedos, em direção à madeira. Vemos aqui que a habilidade em internalizar o estilo de esculpir, de inventar as formas apropriadas, é considerada parte da aquisição de um tipo de destreza técnica, inseparável do tipo de destreza técnica que deve ser dominado a fim de que essas formas imaginadas venham a ser realizadas em madeira. A magia escultórica dos nativos de Trobriand é uma magia de destreza técnica. A imaginação artística e o manuseio de ferramentas de arte são dois aspectos de uma mesma coisa. Mas há um ponto mais importante a ser falado aqui: a respeito da significância mágica da arte e da relação próxima entre essa significância mágica e suas características técnicas. Recordemos que essas tábuas são colocadas nas canoas Kula, e seu propósito é o de induzir os parceiros Kula das outras ilhas do arquipélago Trobriand a ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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jogarem seus objetos de valor mais preciosos, sem se conterem, da maneira mais desprendida possível. Além disso, essas tábuas e outros componentes esculpidos da canoa Kula (a tábua de proa e o flutuador externo ao longo da lateral) têm o propósito adicional de fazer a canoa viajar suavemente pelas águas, tanto quanto a canoa voadora original, da mitologia Kula. Campbell, em sua análise iconográfica dos temas encontrados nos componentes esculpidos das canoas, é capaz de convincentemente demonstrar que o aspecto escorregadio, o movimento suave e uma qualidade interpretada como ‘sabedoria’ são características de animais reais e imaginários, geralmente representados em um único aspecto, a arte nas canoas. Um animal ‘sábio’ como, por exemplo, a águia marinha, é um tema onipresente: a águia marinha é sábia porque conhece quando abalroar os peixes, capturando-os com precisão infalível. As técnicas de pesca da águia marinha, suas qualidades de eficiência precisa e suave, é que a qualificam como sábia, não o fato de que isso é conhecido. A mesma qualidade suave e eficaz é desejada para a expedição Kula. Outros animais, como borboletas e morcegos frutíferos, evocam movimentos rápidos, leveza e idéias similares. Também são representadas ondas, água e coisas afins. O sucesso dos Kula, assim como o sucesso da escultura, depende do fluxo desimpedido. Existe uma série complexa de homologias, as quais Bourdieu (1977) chamou de ‘transferências esquemáticas’, no percurso da superação dos obstáculos técnicos que se postam no caminho para alcançar uma performance perfeita ao esculpir a tábua de proa e na superação dos obstáculos técnicos, tanto físicos quanto psíquicos, que se postam no caminho da realização de uma expedição Kula bem-sucedida. Da mesma forma que as idéias do escultor devem conseguir fluir suavemente tanto para dentro de sua mente como para fora, para o caminho de seus dedos, também os valores Kula devem conseguir fluir suavemente pelos canais de troca, sem encontrar obstáculos. E o conjunto de imagens metafóricas da água fluida, de cobras escorregadias, de borboletas esvoaçantes aplica-se a ambos os domínios, como já vimos. Vimos anteriormente que seria incorreto interpretar a tábua de proa da canoa etologicamente, como mera padronagem de ocelos ou, do ponto de vista da psicologia da percepção visual, como uma figura instável não porque ela não seja uma dessas duas coisas (ela pode encaixar-se nas duas), mas porque interpretá-la dessas maneiras seria perder de vista sua característica mais essencial, nomeadamente, a de que é um objeto que foi criado de uma maneira particular, ou seja, não são os ocelos ou as instabilidades visuais que fascinam, mas o fato de que criar tais coisas, que produzem esses efeitos notáveis, repousa nos poderes do artista. Podemos ver agora que a atividade técnica que vai na produção das tábuas de proa não é somente a fonte de seu prestígio como objeto, também é a fonte de sua eficácia no domínio das relações sociais. O que é o mesmo que dizer que há uma transferência esquemática fundamental – e, posso sugerir, 56

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aplicável – em todos os domínios da produção de arte; entre os processos técnicos envolvidos na criação de uma obra de arte e a produção das relações sociais por meio da arte. Em outras palavras, há uma homologia entre os processos técnicos envolvidos na arte e os processos técnicos de forma geral, sendo cada um deles visto sob a luz do outro. Como, por exemplo, o fato de o processo técnico para criar uma tábua de proa ser homólogo aos processos técnicos envolvidos nas operações Kula bem-sucedidas. Só temos tendência a negar isso porque temos tendência a depreciar a significância do domínio técnico na nossa cultura, a despeito de sermos expressamente dependentes da tecnologia em todos os departamentos da vida. Supõe-se que a tecnologia seja embotada e mecânica, oposta à verdadeira criatividade e aos tipos de valores autênticos que se supõe que a arte represente. Mas essa visão distorcida é um subproduto do status semi-religioso da arte em nossa cultura, além do fato de que o culto da arte, assim como os outros cultos, está, tanto quanto possível, sob uma forçosa necessidade de esconder suas reais origens.

O encanto da tecnologia: magia e eficácia técnica Mas apenas apontar a homologia entre o aspecto técnico de uma produção de arte e a produção das relações sociais é insuficiente em si mesmo, a menos que possamos chegar a um melhor entendimento da relação entre arte e magia, o que, no caso da arte da canoa de Trobriand, é explícito e fundamental. E é a respeito da natureza do pensamento mágico e sua relação com a atividade técnica – incluída aí a atividade técnica envolvida na produção das obras de arte – que eu quero discorrer na última parte deste ensaio. As produções de arte e de relações sociais são ligadas por uma homologia fundamental; mas, o que são relações sociais? Relações sociais são aquelas geradas por processos técnicos os quais, pode-se dizer amplamente, constituem a sociedade, ou seja, de maneira lata, os processos técnicos de produção de subsistência e outros bens, e de produção (reprodução) de seres humanos, os socializando e alimentando. Portanto, ao identificar uma homologia entre os processos técnicos de produção de arte e de relações sociais, não estou tentando dizer que a tecnologia da arte é homóloga a um domínio que não é, por si mesmo, tecnológico, pois as relações sociais são, por si mesmas, características emergentes da base técnica sobre a qual a sociedade repousa. Mas seria enganador sugerir que, pelo fato de as sociedades repousarem sobre uma base técnica, a tecnologia seja uma ocupação vulgar, sobre a qual todo mundo, com alguma atenção, tenha perfeito entendimento. Tomemos como exemplo a espécie de atividade técnica, relativamente incontestável, envolvida na horticultura – incontestável no sentido em que todo mundo admitiria que isso é uma atividade técnica, uma concessão que não haveria se falássemos a respeito dos processos envolvidos no arranjo de um ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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casamento. Três coisas podem ser distinguidas quando se considera a atividade técnica da horticultura: primeiro, que ela envolve conhecimento e habilidade; segundo, que ela envolve trabalho; terceiro, que ela é acossada por um resultado incerto, além de depender dos caminhos remotos da natureza. A sabedoria convencional sugeriria que o que faz a horticultura ser considerada uma atividade técnica é o seu aspecto que exige conhecimento, habilidade e trabalho. E que o aspecto da horticultura que a motiva a ser assistida com ritos mágicos, nas sociedades pré-científicas, é o terceiro, ou seja, o resultado incerto e a remota base científica. Mas não creio mesmo que as coisas sejam simples assim. A idéia de magia como acompanhamento da incerteza não significa que ela seja oposta ao conhecimento. Isto é, se há conhecimento, não há incerteza, por isso, não há magia. Ao contrário, o mundo não é incerto, mas sim o conhecimento que dele temos. De uma maneira ou de outra, a horta tornar-se-á o que terá de ser; nosso problema é que não sabemos ainda como isso se dará. Tudo que temos são certas crenças mais ou menos divisadas a respeito de um espectro de resultados possíveis, sendo que tentaremos fazer acontecerem os mais desejáveis deles seguindo procedimentos, sobre os quais temos um certo grau de crença, mas que poderiam estar igualmente errados ou ser inapropriados às circunstâncias. O problema da incerteza não é, por conseguinte, oposto à noção de conhecimento e à procura de soluções técnicas racionais para os problemas técnicos – é, sim, inerentemente parte delas. Se considerarmos que a postura mágica é um subproduto da incerteza, então, estaremos comprometidos também com a proposição de que a postura mágica é um subproduto da busca racional dos objetivos técnicos, usando meios técnicos.

Magia como a tecnologia ideal Mas a conexão entre os processos técnicos e a magia não acontece apenas porque o resultado dos esforços técnicos é duvidoso e provém da ação das forças da natureza a respeito das quais somos parcial ou totalmente ignorantes. Mas o trabalho em si, mera mão-de-obra, pode chamar para si um postura mágica, porque a mão-de-obra é o custo subjetivo incorrido no processo de colocação das técnicas em ação. Se retornarmos à idéia de Simmel de que ‘valor’ é uma função da resistência que deve ser superada a fim de ganhar-se acesso a um objeto, então poderemos ver que essa ‘resistência’, ou dificuldade de acesso, pode assumir duas formas. (i) O objeto em questão é de difícil obtenção, porque tem um alto preço de mercado ou porque pertence a uma esfera de troca enaltecida. (ii) O objeto pode ser difícil de ser obtido por ser de difícil produção, requerendo um processo técnico complexo e sujeito a riscos, e/ou um procedimento técnico que tem custos de ocasião altos e subjetivos, ou seja, o produtor é obrigado a despender uma grande porção de tempo e energia 58

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produzindo aquele objeto em particular, a custa de outras coisas que ele poderia produzir, ou a custa do emprego de seu tempo e recursos em atividades mais agradáveis e livres. A noção de ‘trabalho’ é o padrão que usamos para medir o custo de ocasião de atividades como a horticultura; a qual é comprometida não consigo mesma, mas em transmitir segurança a alguma outra coisa, como uma eventual colheita. Nesse sentido, para um nativo das Ilhas Trobriand, a horticultura não tem custo de ocasião, porque não há muitas outras coisas que esse nativo poderia supostamente estar fazendo. Mas a horticultura ainda é subjetivamente trabalhosa, sendo a colheita valiosa por sua dificuldade de obtenção. A horticultura tem um custo de ocasião no sentido em que poderia ser menos trabalhosa e mais certa em seus resultados do que de fato é. O padrão para computar o valor da colheita é o custo de ocasião na obtenção da colheita resultante não pelos meios técnicos e de mão-de-obra que são de fato empregados, mas por magia. Todas as atividades produtivas são medidas pelo padrão mágico, a possibilidade de que o mesmo produto possa ser produzido sem esforço, e a eficácia relativa das técnicas é uma função do grau de proximidade que elas têm com o padrão mágico de trabalho nulo pela aquisição do mesmo produto. Do mesmo modo que, para nós, o valor de objetos no mercado é uma função da relação entre o desejo de obter esses objetos a custo de ocasião nulo (abandonadas, assim, compras alternativas) e os custos de ocasião que vão verdadeiramente incorrer na compra pelo preço de mercado. Se há alguma verdade nessa idéia, então podemos ver que a noção de magia, como um meio de proteger um produto sem a relação de trabalho e custo a que está realmente vinculado, usando os meios técnicos em voga, é efetivamente construída no padrão de avaliação que é aplicado à eficácia das técnicas e à computação do valor do produto. A magia é a base contra a qual o conceito de trabalho como custo toma forma. As canoas Kula reais (que são postas para navegar de maneira arriscada, laboriosa e lenta entre as ilhas do circuito Kula) são avaliadas em relação ao padrão estabelecido pela canoa voadora mítica, que alcança os mesmos resultados instantaneamente, sem esforços e nenhum dos riscos normais. Da mesma maneira, a horticultura dos nativos de Trobriand realiza-se no cenário suprido pelas litanias do mágico horticultor, para o qual todos os obstáculos normais a uma colheita bemsucedida são anulados pelo poder mágico das palavras. A magia habita a atividade técnica como uma sombra; ou, preferivelmente, a magia é o contorno negativo do trabalho, como se – na lingüística saussureana – o valor do conceito (digamos, o de ‘cão’) fosse a função do contorno negativo dos conceitos circunvizinhos (‘gato’, ‘lobo’, ‘mestre’). Assim como o dinheiro é o instrumento ideal da troca, a magia é o instrumento ideal da produção técnica. E, assim como os valores monetários penetram o mundo dos produtos – de modo a ser impossível pensar em um objeto sem pensar ao mesmo tempo em seu preço de mercado –, a magia ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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também, como a tecnologia ideal, penetra o domínio técnico das sociedades pré-científicas.7 O que isso tudo tem a ver com o tema da arte primitiva pode não estar muito nítido. O que eu quero sugerir é que a tecnologia mágica é o lado reverso da tecnologia produtiva, e que a tecnologia mágica consiste em representar o domínio técnico de forma encantada. Se retornarmos à idéia já expressa, de que o que realmente caracteriza os objetos de arte é a maneira pela qual eles tendem a transcender os esquemas técnicos do espectador, seu senso normal de possibilidades próprias, então poderemos ver que há aí uma convergência entre as características dos objetos produzidos pela tecnologia encantada da arte e os objetos produzidos pela tecnologia encantada da magia, e que, de fato, essas categorias tendem a coincidir. Esse é freqüentemente o caso em que os objetos de arte são considerados transcendentes dos esquemas técnicos de seus criadores, assim como aqueles dos meros espectadores, que é quando o objeto de arte tende a surgir não a partir das atividades do indivíduo fisicamente responsável por ela, mas da inspiração divina ou do espírito ancestral que o anima. Podemos ver sinais disso no fato de que artistas não são pagos para ‘trabalhar’ para nós, pelo menos não da maneira como pagamos a um encanador. A remuneração dos artistas não é pelo seu suor, da mesma maneira que as moedas colocadas no prato do ofertório, na igreja, não são pagamento pela oração do pároco em favor das nossas almas. Se os artistas são, de alguma forma, pagos, o que é muito incomum, assim o são como um tributo à sua ascendência moral sobre o resto do público, e tais pagamentos na maior parte das vezes vêm de instituições ou de indivíduos agindo como patronos das artes, não de consumidores individuais egoisticamente motivados. A posição ambígua do artista, parte técnico, parte místico, coloca-o em desvantagem em sociedades como a nossa, que são dominadas por valores impessoais de mercado. Mas essas desvantagens não aparecem em sociedades como as dos nativos das Ilhas Trobriand, onde todas as atividades são, simultaneamente, procedimentos técnicos e ligados diretamente à magia, e há uma transição imperceptível entre a atividade mundana, que é compelida às exigências da produção de subsistência, e as performances mágico-religiosas mais evidentes.

A horta trobriand como uma obra de arte coletiva A interpenetração dos elementos da atividade técnica produtiva, magia e arte é maravilhosamente documentada na obra Coral Gardens and Their Magic (1935), na qual Malinowski descreve a extraordinária precisão com a qual os nativos das Trobriand, tendo removido não só o mato, como toda e qualquer folha de grama de sua horta, preparam-na meticulosamente em quadrados, com estruturas especiais chamadas de ‘prismas mágicos’ em cada um dos cantos, de acordo com um padrão simétrico que não guarda relação com a eficiência 60

7 Em sociedades tecnologicamente avançadas, em que existem diferentes estratégias técnicas, diferentemente de sociedades como as das Ilhas Trobriand, onde apenas uma espécie de tecnologia é conhecida ou praticada, a situação é diferente: porque as estratégias técnicas diferentes opõem-se umas às outras, em vez de estar opostas ao padrão mágico. Mas os dilemas tecnológicos das sociedades modernas podem, de fato, ser traçados como a busca da quimera que é equivalente à do padrão mágico: a produção ideal ‘livre de custos’. De fato, isso não é de maneira nenhuma livre de custos, mas a diminuição dos custos para a corporação mediante a maximização dos custos sociais não aparece na folha de balanço, levando à geração técnica do desemprego, ao esgotamento dos recursos naturais, à degradação do meio ambiente etc. concinnitas


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técnica, e sim com o alcance da transcendência da produção técnica e de uma convergência em direção à produção mágica. A horta só crescerá bem se tiver as feições certas; a horta é, de fato, uma enorme obra de arte coletiva. Decerto, podemos pensar na horta quadrangular de Trobriand como a tela de um artista cujas formas misteriosamente crescem, por um processo oculto que em parte repousa sobre nossa intuição. Essa não seria uma má analogia, porque é isso que acontece à medida que os inhames proliferam e crescem, e cujas vinhas são cuidadosamente podadas e encaminhadas em mastros que seguem princípios que não são menos ‘estéticos’ que os dos criadores dos jardins convencionais da Europa.8 As hortas Trobriand são, portanto, o resultado de um certo sistema de conhecimento técnico e, ao mesmo tempo, uma obra de arte coletiva que produziria inhames por meio de magia. A responsabilidade mundana por essa obra de arte coletiva é compartilhada por todos os horticultores, mas é ao mago horticultor e seus associados que os deveres mais onerosos são impostos. Normalmente não pensaríamos no mago horticultor como um artista. Mas, do ponto de vista das categorias operadas pelos nativos das Trobriand, sua posição é exatamente a mesma, considerando a produção da colheita. Dá-se da mesma forma com relação à posição do escultor quanto as tábuas de proa, isto é, ele é a pessoa magicamente responsável, por meio de sua sopi ou essência mágica, herdada dos ancestrais. Os mago horticultor não tem instrumentos físicos, como a habilidade do escultor com as ferramentas e a madeira, a não ser no fato de que é ele quem originalmente arruma a horta e constrói (e sabemos que com uma boa dose de esforço) os prismas mágicos para os cantos. Sua arte é exercida pelo discurso. Ele é o mago da arte verbal poética, assim como o escultor é o mestre do uso das formas metafóricas visuais (águias, borboletas, ondas, entre outros). Levaria muito tempo – e também nos apresentaria muitas dificuldades novas – para lidarmos adequadamente com a relação tripartite existente entre linguagem (a tecnologia mais fundamental de todas), arte e magia. Mas creio ser necessário, mesmo assim, destacar o fato elementar de que os encantamentos dos nativos das Trobriand são poemas, usando todos os recursos usuais da prosódia e da metáfora, sobre hortas ideais e técnicas de jardinagem e horticultura idealmente eficazes. Malinowski [(p. 169, 1935)] dá-nos o seguinte exemplo (‘Fórmula 27’): I 8 Da mesma maneira, nos Sepik o cultivo de longos inhames é uma forma de arte – e não só metaforicamente – porque pode-se induzir o seu crescimento a direções particulares, pela manipulação cuidadosa do solo dos arredores: é verdadeiramente uma forma de escultura vegetal (Cf. Forge, 1966). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Golfinho, aqui agora, golfinho, sempre aqui! Golfinho, aqui agora, golfinho, sempre aqui! Golfinho do sudeste, golfinho do noroeste. Brinca no sudeste, brinca no noroeste, o golfinho brinca! O golfinho brinca! 61


Alfred Gell

II O golfinho brinca! No meu kaysalu, meus suportes de ramos, o golfinho brinca. No meu kaybudi, meu poste-guia que se deita, o golfinho brinca. No meu kamtuya, minha base salva da poda, o golfinho brinca. No meu tala, meu bastão de partição, o golfinho brinca. No meu yeye’i, meu suporte flexível, o golfinho brinca. No meu tamkwaluma, meu poste leve de inhame, o golfinho brinca. No meu kavatam, meu poste forte de inhame, o golfinho brinca. No meu kayvaliluwa, meu poste principal de inhame, o golfinho brinca. No meu tukulumwala, minha linha divisória, o golfinho brinca. No meu karivisi, meu triângulo divisório, o golfinho brinca. No meu kamkokola, meu prisma mágico, o golfinho brinca. No meu kaynutatala, meus prismas sem encanto, o golfinho brinca. III O bojo da minha horta fermenta, O bojo da minha horta sobe, O bojo da minha horta reclina, O bojo da minha horta cresce do tamanho dos grandes arbustos, O bojo da minha horta cresce como um formigueiro, O bojo da minha horta cresce e é curvado, O bojo da minha horta cresce como uma palma de pau-ferro, O bojo da minha horta deita-se, O bojo da minha horta aumenta, O bojo da minha horta aumenta como uma criança. Seguem os comentários: “A invocação do golfinho... transforma, mediante um símile ousado, a horta Trobriand, com sua folhagem balouçando e ondeando ao vento, mar adentro... Bagido’u [o mago] me explicou... que assim como os golfinhos sobem e descem por dentro e por fora das ondas, as ricas grinaldas da colheita, por toda a horta, irão adejar por cima e por baixo, por dentro e por fora dos suportes.”9 Está claro aqui que esse hino não é só uma folhagem superabundante, animada pelos artifícios poéticos da metáfora, da antítese, de palavras arcanas, e assim por diante, todas meticulosamente analisadas por Malinowski. Também é firmemente integrada a um catálogo de postes e barras usados na horta, e a construções ritualmente importantes, os prismas mágicos e triângulos divisórios que também lá são encontrados. A tecnologia de encanto do mago horticultor 62

9 Tanto na fórmula mágica quanto no comentário posterior de Malinowski, citados pelo autor, tentamos seguir o estilo do trabalho feito pelos tradutores já citados (Cf. referência bibliográfica acima), até no que tange ao aspecto estilístico usual das fórmulas mágicas agregadas à obra original de Malinowski. (NT) concinnitas


A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia

também é reflexo do encanto da tecnologia. A tecnologia é encantada porque os instrumentos técnicos ordinários empregados na horta apontam inexoravelmente na direção da magia, e também da arte, que no caso é uma forma idealizada de produção. Assim como, confrontados a alguma obra-prima, fascinamo-nos porque fracassamos em explicar como tal objeto chega a existir no mundo, as litanias do mago horticultor expressam o fascínio dos nativos das Trobriand pela eficácia de sua tecnologia real, a qual, convergindo em direção ao ideal mágico, delineia esse ideal no mundo real.

Bibliografia BERGER, Peter (1967). The Social Reality of Religion. Harmondsworth, Middx.: Penguin. BLOCH, Maurice (1974). “Symbols, Song, Dance, and Features of Articulation: Is Religion an Extreme Form of Traditional Authority?”. Archives Européennes de Sociologie, 15/1: 55-81. BOURDIEU, Pierre (1968). “Outline of a Sociological Theory of Art Perception”. International Social Science Journal, 20/4: 589-612. — (1977). Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press. CAMPBELL, Shirley (1984). “The Art of the Kula”. Ph.D. thesis, Australian National University, Canberra. FORGE, Anthony (1966). “art and Environment in the Sepik”. Proceedings of the Royal Anthropological Institute for 1965. London: Royal Anthropological Institute, 23-31. LEACH, Jerry W., and LEACH, Edmund (1983). The Kula: New Perspectives on Massim Exchange. Cambridge: Cambridge University Press. MALINOWSKI, Bronislaw (1922). Argonauts of the Western pacific: An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea. London: Routledge. — (1935). Coral Gardens and their Magic: A Study of the Methods of Tilling the Soil and of Agricultural Rites in the Trobiand Islands. 2 vols. London: Allen & Unwin. MUNN, Nancy (1986). The Fame of Gawa: A Symbolic Study of Value Transformation in a Massim (Papua New Guinea) Society. Cambridge: Cambridge University Press. PANOFSKY, Erwin (1962). Studies in Ichonology: Humanistics Themes in the Art of the Renaissance. New York: Harper & Row. SIMMEL, Georg (1979). The Philosophy of Money. Boston: Routledge & Kegan Paul.

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Hiroshi Sugimoto (japonês, residente nos EUA, nascido em 1948), The Royal Family, da série “Wax Museums”. Cortesia da Galeria Sonnabend, Nova York

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Por uma antropologia da imagem

Por uma antropologia da imagem Hans Belting*

Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru * Hans Belting é diretor da recém-criada Internationales Forschungzentrun Kulturwissenschaften, em Viena, tendo assumido anteriormente cargo de professor nas universidades de Heidelberg, Munique e no Hochschule für Gestaltung, em Karlsruhe. Ele é fortemente comprometido com a reorientação da história da arte no sentido de um estudo interdisciplinar de imagens ou como uma antropologia de imagens. Suas publicações estendem-se ao longo de uma dimensão diacrônica da história da criação de imagens européia, desde as mais antigas máscaras mortuárias, seguindo pelos ícones bizantinos, até os primórdios das pinturas em cavalete ocidentais e das práticas de arte contemporâneas. Entre suas numerosas publicações, muitas delas traduzidas para muitas línguas, estão Bild und Publikum im Mittelalter (1981), Das Ende der Kunstgeschichte? (1983), Bild und Kult: Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst (1990), and Bild-Anthropologie: Entwürfe für eine Bildwissenschaft (2001). Atualmente ele está escrevendo um novo estudo chamado Bild und Mask: Eine Bildfrage. 1 Hans Belting. Bild-Anthropologie. Entwürfe für eine Bildwissenschaft. Munich: Wilhelm Fink, 2001. Tradução francesa no prelo: Paris: Editions Gallimard, 2004. 2 Robert Frank, The Lines of My Hand. London: Secker and Warburg, 1989.

Hans Belting propõe neste artigo uma abordagem antropológica da imagem, extrapolando o âmbito artístico, para analisar a questão “o que é uma imagem?”. Para tanto, observando os estudos de Jean-Pierre Vernant a respeito da idéia de imagem concebida pela cultura grega, separa o meio físico em que a imagem se estabelece e aquilo que ele denomina imagem mental, ou seja, não material. É na cultura grega, afirma Belting, que surge o conceito de imagem, inserido na distinção entre a aparência e o ser. E é na condição da imagem como “presença de uma ausência” que ela se relaciona com a morte – e o autor recorre a máscaras, efígies ou aos crânios enfeitados evocadores da pessoa falecida. Esse processo de evocação é aspecto que perdura até hoje em nossa concepção de imagem. É a distinção entre imagem e medium que permite ao autor falar sobre uma “evolução mediológica” e de iconoclastia – esta como tentativa de destruição da presença de um medium, em que se estabelece determinada imagem, por ele tornada pública. Imagem, antropologia, fotografia

Na capa de meu livro Bild-Anthropologie, originalmente deveria ter aparecido uma fotografia que Robert Frank tirou em 1977. Foi uma imagem que ele finalmente incluiu na segunda edição de sua peculiar autobiografia, The Lines of My Hand, em que esse retrato apareceu em meio a outras fotografias que ele rearrumou e republicou naquela ocasião.1 A mesma fotografia, lá, introduz uma nova fase de sua vida, que começou quando ele se mudou para Nova Scotia. A paisagem representa a vista de sua nova moradia, mas o primeiro plano é fechado por uma antiga fotografia de sua série “The Americans”. No mesmo plano, ali aparece uma impressão em negativo de uma folha de papel com a inscrição “words”, um plural em um singular: words [palavras], que na autobiografia são substituídas por retratos.2 Palavra e imagem são partes de uma mise-en-scène muito pessoal de seu próprio passado. O mesmo arranjo também fornece a questão: o que, então, é uma imagem? Ou: onde está a imagem? Está em nosso olhar ou apenas em sua memória, e até que grau ela está no impresso? Robert Frank questionou a identidade da impressão e da imagem fotográfica, a qual nós tão fácil e impensadamente tomamos como natural. Desse modo, ele enfatizou a distinção entre o meio visual, que no seu caso era a fotografia, e a imagem que não é igual a seu suporte artístico, e que também transcende a uma identificação

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como mero assunto ou matéria. Casualmente, meu próprio livro já havia sido impresso quando Frank inesperadamente retirou sua permissão para a reprodução da imagem da capa. De modo que o mesmo livro foi republicado com uma capa inteiramente nova. A questão “O que é uma imagem” precisa de uma abordagem antropológica, já que uma imagem, como veremos, em último caso atinge uma definição antropológica. A história da arte normalmente responde a outras questões, já que ela estuda a obra de arte (seja ela uma imagem, escultura ou impressão), um objeto tangível e histórico que permite classificação, datação e exibição. Uma imagem, por outro lado, desafia tais tentativas de reificação, mesmo naquela escala em que ela geralmente flutua entre a existência física e mental. Ela pode viver em uma obra de arte, mas não coincide com ela. A distinção inglesa entre image [imagem] e picture [gravura]3 é pertinente no meu caso, mas apenas no sentido em que essa distinção permite-nos aguçar a busca da imagem no retrato. Em um nível mais geral, a questão diz respeito à imagem em um dado meio, seja ele fotografia, pintura ou mesmo vídeo. Mas ela só faz sentido quando somos nós que a perguntamos, porque vivemos em corpos físicos, com os quais geramos nossas próprias imagens e, por conseguinte, podemos contrapô-las a imagens do mundo visível. Parecerá evidente, agora, que não uso o termo “antropologia” no sentido de etnologia, e sim que sigo uma definição européia, sobre a qual devo a vocês alguma explicação. Do mesmo modo, não falo exclusivamente de “arte”, o que exigiria um discurso levemente diferente, mas de “imagens”. Insisto nessa distinção a fim de evitar expectativas errôneas. Como historiador da arte, lido com a arte ocidental, à qual não se aplica o famoso debate da arte com a etnologia – qual seja, a questão de a arte etnográfica necessitar de um museu de arte ou de documentação etnográfica. Antropólogos ingleses recentemente acusaram a chamada antropologia da arte de carecer de qualquer matéria ou tema distintivos. Logo, Jeremy Coote e Anthony Shelton propuseram um rompimento com a estética, a fim de superar “um respeito exagerado pela arte”.4 Não desejo interferir nesse debate, uma vez que ele não diz respeito ao meu tópico, nem me sinto competente o suficiente para interferir nas mais recentes discussões em estudos culturais e cultura visual. Além do fato de que meu campo de embate tem sido na Europa, onde outras disciplinas tomam parte. Na Alemanha, muitas disciplinas orientadas para o texto, como a crítica literária, recentemente descobriram meios visuais como o filme, a fotografia ou a internet como seu novo domínio. Elas são apoiadas por novos tipos de estudo de mídia que definem cultura em termos de tecnologia e comunicações, e usualmente reaplicam antigas teorias de semiologia. Seu canto de guerra é o Bildwissenschaft, visão de um novo gênero de iconologia, conforme anunciado por W.J.T. Mitchell. Mas esse gênero, por sua vez, não chegou a solo seguro. É 66

3 No texto em inglês, a distinção é formada pelas palavras image e picture; a diferença é sutil. Image significa “imagem; figura; símbolo, representação, retrato, reprodução; estátua; ídolo; imagem mental, idéia, concepção”; picture “pintura, quadro, painel, retrato; cena; gravura, desenho, estampa, ilustração; fotografia, semelhança, imagem, descrição; fita de cinema”. Uma vez que ambas significam ‘retrato’, entendemos que a palavra image estaria mais diretamente relacionada ao aspecto ‘mental’ da imagem, já que também significa ‘imagem mental’ e ‘idéia’. A palavra picture, por sua vez, remeteria mais ao aspecto concreto; material; palpável; no que julgamos ser mais correlata à palavra ‘retrato’ que, a nosso ver, remeteria ao ato concreto de ‘gravar’, materialmente, uma imagem (antes idealizada) em algum material concreto e tangível. Por isso, relacionamos a palavra image a ‘imagem’ e picture a ‘gravura’. (NT) 4 Jeremy Coote e Anthony Shelton (orgs.). Anthropology, Art and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992, I-II concinnitas


Por uma antropologia da imagem

menos preocupado com um método do que com a reivindicação em prol da competência relativa à mídia icônica que não é baseada em textos. De qualquer maneira, deve ser dito que a produção visual e a experiência geralmente tendem a ser confundidas com a imagem em particular. Mas, em minha visão, a imagem deve ser identificada como uma entidade simbólica (portanto, também um item de seleção e memória) e distinta do fluxo permanente em nossos ambientes visuais. O subtítulo de meu livro é: “Propostas para uma Bildwissenschaft”, já que considero o esforço do que venha a ser um projeto interdisciplinar do futuro (e portanto sem interesse especial para a história da arte, que continua a ter seus próprios territórios). O debate alemão, de qualquer maneira, diz respeito ao assim chamado dilema da história da arte: se ela deve – sem perder seu perfil herdado – contribuir para esse debate transdisciplinar ou se deve manter-se longe e, portanto, deixar o terreno para outros. Não posso partilhar dessa falsa alternativa, já que mesmo historiadores de arte famosos têm vivido facilmente com as duas opções, como Ernst H. Gombrich, que lida com a história da arte clássica e com sua própria versão de uma psicologia da percepção. Aby Warburg teria desenvolvido uma antropologia das mais importantes, no que diz respeito a imagens (tanto imagens da cultura ocidental quanto além), se não tivesse sido interrompido por sua saúde e drasticamente reduzido ao nível de uma iconologia nos termos de Erwin Panofsky e de Edgar Wind, os quais desagregaram a parte mais perigosa de sua visão inicial, transformando suas idéias em um mero método de prática da história da arte. Na Alemanha, o grupo Historische Anthropologie de Berlim, situado na Freie Universität, tem insistido firmemente na tradição filosófica da antropologia, como uma ferramenta analítica para discussão da própria cultura. Christoph Wulf e Gunther Gebauer identificaram protagonistas como Norbert Elias, Helmuth Plessner e Victor Turner, cuja antropologia da performance tem freqüentemente servido de inspiração. Wulf e seus colegas investigam temas como o ritual da vida cotidiana ou a mimese como uma atitude transcultural; assim como uma vasta gama de aspectos do corpo. Seu objetivo mais amplo é a reorientação das ciências humanas, cujo conhecimento acumulado haverá de ser testado no espelho de nossa reflexão atual e experiência de mundo.5 Na França, um grupo similar trabalha na Maison de l´Homme (École des Hautes Études), onde Jacques 5 Gunther Gebauer. “Überlegungen zur Anthropologie”, in Gunther Gebauer. Anthropologie. Leipzig: Reclam, 1998, 7-21; Christoph Wolf e Dietmar Kamper. Logik und Leidenschaft. Erträge historischer Anthropologie. Berlim: eimer, 2002, 1-8. 6 Jean-Claude Schmitt. Le Corps, les rites, les rêves, le temps. Essais d’anthropologie médiévale. Paris: Editions Gallimard, 2001; Marc Augé. An Anthropology for Contemporary Worlds. Palo Alto: Stanford University Press, 1999. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Le Goff, Jean-Claude Schmitt e Marc Augé têm atuado como principais fundadores. Le Goff e Schmitt consolidaram-se em história medieval enquanto Augé fixou-se na etnologia.6 A posição atual de Marc Augé é mais bem revelada em seu livro An Anthropology for Contemporary Worlds. Sua antropologia social é mais centrada no que ele chama de “supermodernidade” do que no pós-modernismo. Seus temas lidam muito proximamente com o status das imagens tanto na história quanto nos dias de hoje, e alguns de seus tópicos favoritos dizem respeito à redefinição atual do espaço, ao futuro da imaginação ou ao novo poder da 67


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ficção. Em seu livro La Guerre des rêves, Augé refere-se explicitamente à obra La Guerre des images, de Serge Gruzinski; em que o autor traça a história das imagens no México durante e além dos limites temporais da colonização.7 A edição de 2003 de L´Homme, editada por Carlo Severi, reúne uma gama de colaboradores de disciplinas como etnologia, história social, e história da arte, sob o título “Image et Anthropologie”.8 No Collège de France, Jean-Pierre Vernant

iniciou uma nova atividade

na “chaire d’étude comparée des religions antiques”, nos anos 70. Ele concentrou sua “anthropologie historique de l’image” na Grécia antiga onde, em suas próprias palavras, “le statut de l’image, de l’imagination et de l’imaginaire” foram suas principais preocupações.9 Para esse propósito, ele divulgou as relações contíguas que existem entre a história dos artefatos visuais e a evolução do pensamento grego que discutiu as imagens no que diz respeito ao símbolo, semelhança, imitação e aparência. A Grécia é um caso singular, porquanto suas imagens primevas estão refletidas no pensamento contemporâneo, cuja linguagem ainda surge em nossa terminologia e epistemologia. Particularmente, Vernant devotou muita energia ao significado de eidolon e kolossos no pensamento pré-clássico. Eidolon era entendido como a imagem de um sonho, a aparição de um deus ou o fantasma de ancestrais mortos. Também abrange largamente o significado de imagens mentais e mnemônicas no pensamento simbólico, assim como imagens projetadas sobre o mundo exterior. Oposto a essa natureza transitória, kolossos representa o artefato de pedra ou metal que hoje chamaríamos meio [ou medium], no qual as imagens se materializam, apesar de kolossos ser também adotada no sentido moderno da palavra.10 Tanto o eidolon quanto o kolossos remontam ao ser humano, como um terceiro parâmetro nesta configuração: uma pessoa vivendo em um corpo físico, que experimentou o eidolon e fabricou o kolossos, sendo o primeiro um produto da imaginação, enquanto o segundo o resultado de artefatos criadores. Minha meta é generalizar a configuração de Vernant e propor uma inter-relação triangular, em que imagem, corpo e meio poderiam conjugar-se como três marcos.11 Contudo, um aspecto merece atenção especial. É a questão do que é e o que faz uma imagem. Vernant fala de uma ruptura no pensamento grego que teria sido necessária para causar a nossa compreensão do conceito de imagem. A ruptura ocorreu por volta de 500 d.C., quando a língua grega usou, pela primeira vez, o termo eikon; incidentalmente ao mesmo tempo em que o termo mimesis faz sua primeira aparição. Eikon desvalorizou, imediatamente, o eidolon, que a partir de então adotou uma significação negativa: no sentido de cópia ou imitação inerte. Enquanto eikon atraiu a necessidade de definições ontológicas. Vernant supõe a definição da imagem apenas após essa ruptura, enquanto reserva os termos “duplo” ou “substituto” para os artefatos precedentes a essa 68

7 Marc Auge. La Guerre des rêves. Exercices d’ethno-fiction. Paris: Editions du Seuil, 1997; Serge Gruzinski. La Guerre des imagens. Paris: Fayard, 1990. 8 Carlo Sevei. “Pour une anthropologie des images”, in L’Homme. Revue francaise d’anthropologie, 165, 2003: 7-9. 9 Jean-Pierre Vernant. Mythe et pensée chez les Grecs. Paris: Gallimard, 1990, 349 ss.; JeanPierre Vernant. Figures, idoles, masques. Paris: Julliard, 1990, 13. 10 Vernant, Figures, 25-30 e 34-41. 11 Belting, Bild-Anthropologie, 7-9 e 11-18. Cf. Hans Belting et alli. Quel Corps? Eine Frage der Repräsentation. Munique: Wilhelm Fink, 2002, IX-X (discutindo acerca do programa de pesquisa do grupo Karlsruhe). concinnitas


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divisão. Segundo seu ponto de vista, a distinção filosófica entre aparência e ser era necessária antes de as imagens tornarem-se possíveis e pensáveis. Não obstante, eu não me admiraria se as imagens não estivessem lá desde o início, mesmo quando elas não se encaixavam nas definições platônicas. Foi a criação das imagens que estabeleceu seu lugar no pensamento humano. Mas, como Vernant corretamente enfatiza, é assunto diverso que essa mesma imagem tenha necessitado de um momento crítico na cultura grega, quando elas foram pela primeira vez debatidas, justamente por terem sido questionadas. O teatro grego também contribuiu para esse novo debate emergente. O público do teatro ático riu quando estátuas começaram a correr pelo palco ou, de repente, começaram a falar. Soube-se que as imagens não eram capazes de comportar-se como pessoas vivas e, portanto, experimentou-se um gesto de esclarecimento, cujo porta-voz era aquele que viria a ser o grande mediologista Platão, que incluiu imagens em sua crítica violenta à escrita, em oposição à língua viva.12 Efetuei meu próprio ingresso no discurso antropológico com o tópico da imagem e morte, quando, em 1995, participei de um colóquio dedicado ao significado da morte em diferentes religiões e culturas no mundo.13 Logo tornouse claro que eu havia por acaso encontrado um exemplo crucial para o entendimento da criação das imagens. O corpo e o meio estão igualmente envolvidos no sentido das imagens em funerais, à medida em que é no lugar do corpo ausente do morto que são instaladas as imagens. Mas essas imagens, por sua vez, permaneciam na carência de um corpo artificial, para ocupar o lugar vago do falecido. Aquele corpo artificial pode ser chamado meio (não só material), no sentido em que as imagens necessitavam de corporificação para adquirir qualquer forma de visibilidade. Nesse sentido, o corpo perdido é trocado pelo corpo virtual da imagem. É nesse ponto que alcançamos a origem da exata contradição que para sempre caracterizará a imagem: imagens, como todos concordamos, fazem uma ausência visível ao transformá-la em uma nova forma de presença. A presença icônica do morto, todavia, admite, e até mesmo encena intencionalmente, a finalidade desta ausência – que é a morte. Logo, a medialidade de imagens é originada da analogia ao corpo físico e, incidentalmente, do sentido em que nossos corpos físicos também funcionam como meios – meios vivos contra meios fabricados. As imagens acontecem entre 12 Belting, Bild-Anthropologie, 173. 13 Hans Belting. “Aus dem Schatten des Todes. Bild und Körper in den Anfängen”, in Constantin von Barloewen Der Tod in den Weltkulturen und Weltreligionen, (ed.). Munique: Diederichs, 1996, 92-136. Cf a versão revisada e ampliada in Belting, Bild-Anthropologie, 143-88. 14 Belting, Bild-Anthropologie, 150-54. Kathleen M. Kenyon. Excavations at Jericho. Londres: British School of Archaeology in Jerusalem, 1981, 3: lâminas 51-60. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

nós, que as olhamos, e seus meios, com os quais elas respondem ao nosso fitar. Elas se fiam em dois atos simbólicos que envolvem nosso corpo vivo: o ato de fabricação e o de percepção, sendo este último o propósito do anterior. Permitam-me, neste momento, introduzir brevemente as descobertas da chamada Cultura Neolítica B (para usarmos a terminologia de Kathleen Kenyon) no Oriente Médio, datada por volta de 7000 a.C. e que recebeu muita atenção em tempos recentes.14 Porém, a atenção tem sido concentrada em apenas um dos três tipos de imagens que, nesse primeiro caso específico de assentamentos 69


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humanos, representam os ancestrais mortos. Os famosos crânios que foram transformados em vivas imagens ou cabeças, ao nelas adicionar-se uma nova pele de barro, toques de cor viva e inserirem-se olhos capsulares, antes de ser montadas em pequenas figuras de suporte. Nesse caso, o corpo perdido da pars pro toto do crânio foi restaurado à guisa de imagem. O crânio age como imagem e ao mesmo tempo como um meio autêntico que suporta a imagem de sua vida perdida. Podemos até ir um passo além e deduzir, a partir deste ato (a permuta de uma nova imagem em contraposição à antiga imagem cobrindo o crânio vivo), a hipótese de que a face, criada via essas pessoas, poderia ser tida como uma imagem viva por sobre os ossos. Mas existem dois outros tipos de imagens que merecem igual atenção. Uma delas é o tipo de efígie ou boneco, representando o corpo como um todo e construído como um corpo natural, por um estranho símile de entranhas embrulhadas em uma espécie de pele, um tipo utilizado, provavelmente, para funções efêmeras no ritual do sepultamento. O outro, um terceiro tipo de imagem que, entre os três, teria sucesso duradouro, é a máscara que cobriu tanto o crânio do morto quanto, posteriormente, a face de atores vivos que representavam a presença do morto. A máscara é a invenção mais brilhante que já ocorreu na criação de imagens e encena uma narração a respeito de seu significado. Ela compendia belamente a simultaneidade, como também a oposição, entre ausência e presença que tanto tem caracterizado a maioria das imagens em uso humano. A máscara expõe uma face nova e permanente (porque não é perecível) ao esconder outra face, cuja ausência é necessária para criar essa nova presença. Mesmo a máscara com as órbitas vazias e um espaço de boca aberta já estava pronta para servir como imagem falante. Helmuth Plessner discutiu as implicações antropológicas da máscara em seu famoso ensaio sobre a antropologia do ator.15 Podemos ir um passo além e arriscar a visão de que toda a imagem, de uma maneira, poderia ser classificada como máscara, seja transformando um corpo em imagem, seja existindo como uma entidade separada, ao lado do corpo. Decoração facial e tatuagem podem transformar a face humana efetiva em máscara. Nesse ponto, a metamorfose como a origem da imagem é altamente relevante. O significado antigo da máscara como persona recebeu muita atenção no pensamento humanista. Nesse caso, em um artigo recente, discuti a respeito da cobertura que restou de um retrato perdido da Renascença, do qual a máscara, paradoxalmente coberta com cores vivas, pretendia também denunciar o mesmo retrato que ela, em seu tempo, como tal serviu para ocultar. Lê-se no epigrama que acompanha: “Sui cuique persona”, ou, “Para todos seu [ou sua] persona”, o qual conscientemente joga com o duplo sentido do termo persona, significando tanto máscara quanto pessoa.16 No sentido em que é a máscara mais peculiar de um rosto, o retrato também pertence à história da relação que eu chamo imagem e morte. 70

15 Helmuth Plessner. “Zur Anthropologie des Schauspielers”, in Gebauer, Anthropologie, 185202. 16 Hans Belting. “Repräsentation und AntiRepräsentation. Grab und Porträt in der frühen Neuzeit”, in Belting, Quel Corps?, 41-43. concinnitas


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Mudando para os tempos modernos, eu gostaria de lembrar-lhes a opinião de Julius von Schlosser, publicada em 1911, de que a fotografia herdou, de alguma maneira, aquelas funções das figuras de cera, que àquela época se haviam tornado obsoletas. Naquele tempo, o gabinete da figura de cera havia depreciado a tradição das antigas efígies simbólicas, mesmo que estas ainda fossem usadas em funerais reais ou na forma de estátuas votivas, em igrejas. O gabinete continuou um meio antigo na descontinuidade de seu significado, o que nos diz algo a respeito das complexidades inerentes a qualquer medialidade.17 Hiroshi Sugimoto aumenta essa complexidade em suas fotografias de figuras de cera. Essa interação de dois meios subverte intencionalmente e desestabiliza o caráter de índice da fotografia. Os corpos que esperaríamos ver em tal retrato submetemse aos seus duplos sem vida, que, não obstante, aparentam estar muito vivos.18 Somos ou pegos na armadilha dessa confusão, ou convidados a apreciar a ambígua referência cruzada. A ambigüidade, paradoxalmente, auxilia a enfatizar um meio na evidência do outro, mediante a contra-referência. Sugimoto também salienta involuntariamente um ponto colocado por Roland Barthes. Ao ver-se em uma fotografia, Barthes escreveu, “tornei-me todo-imagem, i. e. morte em pessoa”, e acrescentou com a declaração de que essa “microexpérience de la mort” foi precedida por uma longa obsessão pelo duplo.19 A fotografia tornou-se um novo tipo de cunhagem. Não mais a modelagem ou desenho da superfície do corpo como volume, e sim a impressão da aparência plana do corpo sob luz e subseqüentemente no papel. Esse tipo de impressão fixou o momento na permanência e, desse modo, reencenou aquele hábito de desenhar a sombra lançada sobre a parede que levou Henry Fox Talbot, durante algum tempo, a pensar em chamar seu invento de “ciografia” antes de decidir nomeá-lo “fotografia”.20 Em seu livro, Secure the Shadow, Jay Ruby publicou uma fotografia norte-americana do século XIX, na qual uma família posa com a fotografia de seu falecido marido e pai. Dessa maneira, com inocente precisão, o fotógrafo repetiu um antigo ritual que tem servido, em qualquer época, à reintegração social do morto por meio de sua imagem. O retrato parece conter 17 Julius von Schlosser. Tote Blicke. Gerschichte der Porträbildnerei in Wachs. Thomas Medicus (ed.). 1911, reimpresso em Berlim: Akademie Verlag, 1993, 119-30. 18 Thomas Kellein. Hiroshi Sugimoto: Time Exposed. Basel: Hansjörg Mayer, 1995, 17-28 (“Wax Museums I”) e 97-108 (“Wax Museums II”). Para Sugimoto, cf. também Hans Belting. “The Theater of Illusion”, in Hiroshi Sugimoto Theaters. Nova York: Sonnabend Sundell, 2000, 1-7. 19 Roland Barthes. La Chambre Claire. Note sur la photographie. Paris: Gallimard, 1980, 31. 20 Belting, Bild-Anthropologie, 181 e 185-86. 21 Jay Ruby. Secure the Shadow. Death and Photography in America. Cambridge: MIT Press, 1995. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

não só outro retrato, como também encena uma imagem da memória como uma relíquia do tempo perdido.21 Não posso discutir o suficiente sobre nossas experiências contemporâneas acerca da imagem e da morte. Apenas para apontar um caso, esperamos que a morte de uma personalidade pública seja alvo das notícias. A gravura do morto, de qualquer modo, não é mantida à vista para permanecer posteriormente em nossa memória, e sim para introduzir o morto em seu novo status (baseado apenas em gravuras). A gravura ocupa o lugar nos meios de massa que os indivíduos mortos teriam continuado a ocupar, caso ainda estivessem vivos. Portanto, temos que distinguir dois propósitos radicalmente opostos. Enquanto a gravura de tal pessoa, ainda viva, seria um mero instantâneo natural, essa 71


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mesma gravura, morta a pessoa, muda seu significado completamente. Ela agora representa a ausência de alguém, ou seu espaço vazio, no mesmo ambiente de que essa pessoa, até aquele momento, era parte integrante. Mesmo em tais práticas residuais, experimentamos a sobrevivência daquela “troca simbólica”, a qual Jean Baudrillard dedicou seu famoso livro.22 De qualquer modo, não é o significado da morte e sim a busca da imagem que justifica o tópico, em meu caso. Uma perspectiva um tanto similar – pelo menos em parte – é a que caracteriza o livro de Régis Debray Vie et mort de l’image, que me fornece a oportunidade de introduzir ainda outro nome.23 Debray é mais conhecido por seu programa, chamado “médiologie”, ao qual retornaremos. Todavia, nesse livro ele se concentra na imagem. No prefácio, ele chama a imagem de “terreur” domesticado, já que sua origem “é fortemente ligada à morte”. Ele insiste com justeza na importância da evolução mediológica, e, por essa razão, pode dizer que “qualquer imagem fabricada é datada tanto por sua fabricação quanto pela recepção que se segue”. Mas ele também empreende uma igual discussão acerca de todas aquelas imagens que vivem apenas em nosso pensamento e imaginação. Conseqüentemente cita a fórmula de Gaston Bachelard “a morte foi primeiramente uma imagem, e sempre persistirá como tal”, uma vez que não sabemos o que a morte realmente é.24 Poderíamos falar em termos similares a respeito do tempo e do espaço. Para lidar com esse outro tipo intangível de imagem mental Debray introduz, em seu lugar, o fitar, pois é, segundo sua visão, o fitar que transmite imagens de natureza mental. Enquanto David Freedberg, em seu livro The Power of Images – como anuncia o próprio subtítulo – aponta a resposta às imagens, Debray insiste no fitar como sendo a força que transforma um quadro numa imagem.25 “Praticar o fitar não é simplesmente acumular recepção, mas serve ao propósito de ordenar (ordoner) o visível. A imagem retira seu significado do fitar, tanto quanto o texto vive da leitura”. O fitar, para ele, não é apenas uma técnica social próxima à violência, tal qual a existente entre os sexos, mas implica o corpo vivo como um todo. O termo francês regard, com a implicação de prendre garde, tem conotações diferentes dos termos gaze, look e glance,26 se usarmos as distinções na língua inglesa que têm sido discutidas por Norman Bryson.27 As palavras inglesas regard e regardful28 aproximam-se mais do que aqui é significado, o que também se aplica às expressões watch ou watch out,29 que aparecem na vizinhança lingüística do termo francês regard. Estamos condenados a viver no labirinto de nossas próprias linguagens, que tão freqüentemente restringem e mesmo cerram partes do espectro semântico que desejamos descrever, estreitando não só nossa terminologia como também nosso pensamento. O mesmo tipo de aporia se aplica, na outra margem, à experiência da imagem. Normalmente, não falamos em transmitir imagens, apesar de isso se circunscrever exatamente ao que aqui venho falando. Não é por acaso que Debray dedicou outro livro muito político 72

22 Jean Baudrillard. L’Échange symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976. 23 Régis Debray. Vie e mort de l’image. Une histoire du regard en Occident. Paris: Editions Gallimard, 1991, 12, 16-41. 24 Gaston Bachelard. La Terre et les rêveries du repos. Paris: Corti, 1948, 312. 25 David Freeberg. The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response. Chicago: University of Chicago Press, 1989. 26 Fitar, olhar e relancear, respectivamente. (NT) 27 Norman Bryson. “The Gaze and the Glance”, in Gryson. Vision and Painting: The Logic of the Gaze. New Haven: Yale University Press, 1983, 87-132. 28 Atentar/olhar firme e atencioso, respectivamente. (NT) 29 Vigiar e estar alerta, respectivamente. (NT) concinnitas


Por uma antropologia da imagem

ao tópico da transmissão (transmettre), cujo significado ele opõe ao senso banal de comunicação.30 Em regra, encontramos imagens em situação de performance; mas sua qualidade performática é depreciada pelas atuais terminologias do discurso. Podemos lembrar que as imagens não estão simplesmente ali, mas chegam com uma mise-en-scène predeterminada, que também inclui um lugar predeterminado para sua percepção, o qual elas guiam por meio de performance. Em termos antropológicos eu contestaria qualquer dualismo rígido, que tão freqüentemente separa a representação interna da externa – utilizando-nos aqui da terminologia atual em pesquisa neurobiológica – e que, portanto, as designa para duas áreas inteiramente distintas. Certamente nosso cérebro é local de representação interna, mesmo no processo que simplificamos ao chamar simplesmente de percepção. Tais imagens endógenas, porém, também reagem a imagens exógenas que tendem a assumir o encargo de parte dominante nessa cooperação. As imagens não existem só na parede (ou na tevê) nem somente em nossas cabeças. Elas não podem ser desembaraçadas de um exercício contínuo de interação que deixou tantos vestígios na história dos artefatos. Essa antiga e nova interação continua mesmo na era das imagens digitais (images discrètes), conforme justamente apontado por Bernard Stiegler. “Nunca houve imagens físicas [images objet] sem a participação de imagens mentais, uma vez que uma imagem, por definição, é algo que é visto (e só é algo quando é visto). Reciprocamente, as imagens mentais também dependem de imagens objetivas, no sentido em que aquelas são o retour ou a rémanence destas. A questão da imagem sempre diz respeito ao vestígio e à inscrição.”31 Em outras palavras, as imagens mentais são inscritas nas externas e vice-versa. Augé fala a respeito disso quando menciona os “sonhos” que o indivíduo tem em oposição aos “ícones” do domínio público que aparecem nos sonhos.32 O seu dar e receber transforma o coletivo imaginaire em uma área altamente controvertida, que também atrai o desejo do controle político. A interação entre nossos corpos e as imagens externas, de qualquer modo, inclui um terceiro parâmetro, que chamo “medium”, no sentido de vetor, agente, dispositif (como dizem os franceses) ou suporte, anfitrião e ferramenta de imagens. Esse termo pode encontrar alguma resistência, dado que estamos familiarizados com os media apenas no sentido dos atuais ‘mass media’. Portanto, eu gostaria de introduzir duas premissas que podem esclarecer meu argumento. Primeiro, poderia ser dito que não falo de imagens como media, como normalmente 30 Régis Debray. Transmettre. Paris: Editions Jacob, 1997. 31 Bernard Stiegler. “L’image discrete”, in Jacques Derrida e Benard Stiegler. Échographies de la télévision. Paris: Editions Galilée, 1996, 165-82. 32 Augé, La Guerre des rêves, 45-40 e 91-110. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

fazemos, ao contrário, gostaria de argumentar que as imagens usam suas própria media, a fim de transmitir-nos suas mensagens e tornar-se, em primeiro lugar, visíveis para nós. As imagens até mesmo migram entre media diferentes ou combinam as características distintivas de vários media. E há a segunda premissa: nomeadamente, a assunção de que mesmo nosso corpo opera por sua conta 73


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como um medium vivo. É com essa capacidade inata (a do corpo que representa) que ficamos em posição de fazer uso dos media fabricados e facilmente distinguilos das imagens inerentes; no sentido de que não assumimos tais media como simples objetos, nem como corpos reais. Platão já estava ciente da diferença entre corpos – como medium natural – opostos à escrita e pintura – medium artificial –, ao argumentar contra as últimas, chamando-as de memórias mortas, enquanto defendia a memória viva ou corporal. O grupo de Debray, embora com ênfase diferente da minha, também insiste na importância mediológica tanto do passado quanto do presente. O periódico e os livros carregam a indicação “Le champ mediologique”. O projeto de Debray vira-se contra o monopólio da semiologia francesa, sendo, portanto, montado na direção de outros aspectos da cultura, como sua face histórica, simbólica e material. Em seu livro Dieu, un itinéraire, Debray discute o impacto mediológico da escritura na evolução do monoteísmo, enquanto Monique Sicard investiga a fabrique du regard, a respeito da ciência da imagem e tecnologias da visão.33 Simpatizo com essa abordagem, apesar de minhas metas estarem mais centradas na imagem, a qual discuto dentro da evolução mediológica e do arranjo mental. Apenas para distinguir um caso que me é muito familiar, falar em evolução mediológica significa identificar o painel da gravura européia como uma invenção muito especifica e culturalmente localizada desde os primórdios da perspectiva, uma vez que ela não existia em nenhuma outra cultura. Por outro lado, arranjo mental significa a mesma apropriação do medium, para fins de representação, conforme esteja imediatamente aparente a partir do retrato. O campo de observação enquadrado, como seria herdado pela tela de tevê e outros, primeiramente confiou em uma arquitetura mais específica baseada em panoramas, que se desenvolveu na Idade Média européia, e, depois, confiou numa mentalidade européia correspondente, ansiosa por controlar o mundo através de uma televista a partir de uma posição interior, o que significa a partir de uma posição à parte (um dualismo separando interior e exterior, sujeito e mundo). A distinção entre imagem e medium depende de nossa mudança de atenção, seja para um ou para outro, ou seja, depende mais de nossa escolha do que de uma precondição inerente a um dado artefato. Isso pode ser demonstrado por dois exemplos, escolhidos aleatoriamente. Podem ser parecidos, já que em cada um dos casos o espectador escrutina uma obra com uma lente de aumento, embora com intenções diferentes. Um caso é o do historiador de arte Bernard Berenson, que examina as pinceladas de Dürer em um quadro, sem prestar nenhuma atenção à imagem retratada nessa tela. A pintura, nesse caso, reduz-se ao espécime do estilo de Dürer, ou seja, a um medium histórico em seus próprios termos. Logo Berenson, em sua atenção profissional, está recortando a imagem do medium. E há o caso do repórter no filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, que inspeciona uma impressão fotográfica sua com o único propósito de detectar 74

33 Régis Debray. Dieu, un itinéraire. Materiaux pour l”histoire de l’eternel en occident. Paris: Editions Jacob, 2001; Monique Sicard. La Fabrique du regard. Images de science et appareils de vision. Paris: Editions Jacob, 1998. concinnitas


Por uma antropologia da imagem

Bernard Berenson na Villa Borghese, Roma, 1955

o vestígio de um crime ocorrido no local e que poderia ter passado despercebido; inspeciona tanto quanto Berenson procura o vestígio da arte de Dürer. Nós, entretanto, costumamos fazer o oposto, e tendemos a ignorar o medium enquanto olhamos para uma imagem, como se as imagens pudessem existir por si mesmas. Imagem e medium, tão inseparáveis no resultado, novamente separam-se em nosso olhar. Artistas contemporâneos, como Cindy Sherman, usam essa ambivalência para criar confusas referências cruzadas entre diferentes media (efetivamente tão usados quanto aqueles mencionados), chegando ao ponto em que não podemos mais seguramente discriminar imagem e medium. Menciono apenas seus pseudoquadros de filmes, que simulam filmes, mas são meras fotografias, ou penso em suas máscaras, as quais ela realiza utilizando a si mesma como modelo dessas fotografias, da mesma maneira que os modelos em antigas pinturas.34 Dois tópicos muito discutidos na história das imagens convidam-nos à distinção da imagem e do medium, ainda, a partir de um outro lado. Iconoclastia, como sendo violência contra as imagens, realizada apenas para destruir seu suporte-medium, ou seja, seus corpos tangíveis e visíveis. Essa prática pretendeu despojar as imagens de sua presença midiática e, portanto, de sua presença pública. Os atos iconoclastas de destruição simbólica apenas refletem os atos igualmente solenes de instalação que tais imagens experimentaram no espaço público. Esses atos também servem à intenção de aniquilar as imagens mentais que por elas foram inspiradas. A ambição dos iconoclastas leva-os a querer

34 Rosalind Krauss e Norman Bryson. Cindy Sherman, 1975-1993. Munique, Paris e Londres: Schirmer/Mosel, 1993. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

erradicar os ícones do inimigo da imaginação de uma dada sociedade. Mais uma vez, presenciamos isso recentemente na destruição das estátuas de Saddam 75


Hans Belting

Hussein em Bagdá, executada como vitória simbólica sobre o tirano. Contudo, a purificação do imaginário coletivo nunca pode controlar aquilo que, em

Cena do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, 1966

última instância, intentaria: o apagamento ou desprezo, nas mentes das pessoas, das imagens destruídas. A distinção entre imagem e medium aplica-se igualmente à definição incontestável do que seja uma imagem: a presença de uma ausência. Sua presença certamente é uma em nosso fitar, um fitar de reconhecimento que nos ajuda a animar imagens como seres vivos. Mas a presença e a visibilidade factual das imagens dependem de sua transmissão por um dado medium, no qual elas aparecem ou são realizadas, seja em um monitor ou incorporadas em uma antiga estátua. Em seu próprio nome, as imagens com sucesso atestam a ausência do que elas fazem presente. Graças a seus media, elas já possuem a presença daquilo de que elas precisam para representar. Portanto o enigma das imagens – ser ou significar a presença de uma ausência – resulta, pelo menos em parte, de nossa capacidade de distinguir imagem de medium. Estamos dispostos a creditar imagens em referência a alguma coisa ausente: de fato, podemos ver aquela ausência que se repagina na visibilidade paradoxal que pode ser chamada de medium. Pode-se objetar que isso também se aplica ao significante e significado da semiologia, mas é preciso ser dito que a semiologia, por sua vez, obteve essa mesma relação do antigo discurso da imagem. A diferença pode ser esclarecida ao contrastarmos imagem e discurso: a palavra visível não pertence à mesma categoria da ausência visível, uma vez que imagens não têm um código seguro que as conecte a seu modelo. Melhor, é aqui que a analogia do corpo físico entra novamente em jogo. A relação entre ausência – entendida como invisibilidade 76

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Por uma antropologia da imagem

Nam June Paik (norte-americano, nascido na Coréia em 1932). TV Buddha (estátua Buda, câmera, monitor), 160 x 215 x 80cm. Stedelijk Museum, Amsterdã, 1974

– e presença – entendida como visibilidade – é a última instância baseada em nossa experiência física. O mesmo se aplica a nossa memória física, que gera imagens com o propósito de representar eventos ausentes ou pessoas de outros tempos, então relembradas. Tendemos a imaginar como presente o que de fato há muito se tornou ausente e aplicamos a mesma capacidade às imagens externas que fabricamos. A medialidade é o elo perdido entre as imagens e nossos corpos. Para concluir a exposição um tanto breve de um tópico que tenho chamado Bildanthropologie, eu gostaria de consultar uma obra de arte contemporânea, a fim de descobrir se meu argumento ajuda ou não a investigar um caso concreto. Para esse propósito, escolho a obra de Nam June Paik, a primeira obra recriada como uma instalação de circuito fechado pelo artista coreano e a primeira a aparecer de sua longa série de TV Buddhas, datadas de 1974.35 Essa obra tem sido tema de muitos textos que venho publicando ao longo dos últimos 10 anos, sendo o mais recente o ensaio “Beyond Iconoclasm”, para a exposição

35 Hans Belting. “Beyond Iconoclasm: N. J. Paik, The Zen Gaze, and the Escape from Representation”, in Bruno Latour e Peter Weibel. (ed.). Iconoclash. Cambridge: MIT Press, 2002, 391-411. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Iconoclash de Karlsruhe, em 2002. A imagem em circuito interno, produzida por uma câmera de vídeo que projeta a mesma imagem do Buda 25 vezes por segundo na tela da tevê, ainda reflete a antiga fascinação com as imagens de vida nos noticiários da tevê que J. C. Bringuier chamou de “mystique du direct”. 77


Hans Belting

O espaço de tempo usual a partir do qual as imagens têm sempre vivido foi quebrado (ou pelo menos parece) nesse caso. Ao contrário, somos lembrados a respeito de uma situação de espelho. O espelho ofereceu uma antiga experiência de imagens, na qual qualquer reflexo acontece no tempo presente. Contudo mesmo a imagem refletida é suficientemente complicada. A simetria absoluta entre o corpo físico que olha e a superfície do vidro é uma ficção. O espelho, como tal, é vazio e, portanto, necessita de um corpo para gerar uma imagem, mas a imagem, por sua vez, precisa de nós, que a identificamos como sendo o nosso “outro”, uma capacidade que adquirimos no famoso estágio do espelho. Mas a analogia do espelho, na obra de Paik, por sua vez, confia na ficção. O Buda (que é, casualmente, um monge) não olha, e o espelho é operado por controle remoto. Paik cria uma tautologia falsa entre a velocidade do novo medium (tevê) e a imobilidade escultural do medium antigo (Buda), ambos de origem japonesa, porém divididos por um tempo abismal. Como vemos (ou parece que vemos) duas vezes a mesma imagem (uma antiga e tridimensional, a outra nova e eletrônica), somos novamente introduzidos à não-identidade entre a imagem e o medium. A imagem que por duas vezes vemos não está nem em frente nem dentro da tela da tevê (para a qual, por sinal, chega a partir de uma fonte externa). A imagem é de uma ambigüidade paradoxal, se estamos dispostos a esquecer, por um momento, a causalidade técnica respectiva: ela transgride as fronteiras entre dois media opostos por uma diferença radical. E há, finalmente, um corpo cuja imagem vemos duas vezes, na imagem primária da estátua e na imagem secundária da tela: um corpo representado (na estátua) e representando (refletindo).

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PARTINOGENESES


Orgulho e Sabedoria Jorge Melodia Nasciclovia Aérea tem para você Diversão, arte e lazer bis Orgulho e sabedoria para fenômenos que construíram a nasciclovia aérea Parabéns Luis Andrade por sua linda matéria Você foi feliz em lembrar da Nasciclovia Aérea bis Cuidado não atravesse e não insista Porque tem bicicleta na pista Eu vim de longe Eu vim Eu vim de longe Eu vim No ponto destino e chegada Roda, roda Gira, gira Gira, gira bis






Miami - Date - Transit (Prefeitura de Miami)

Bike and ride on metro bus Bike and ride on metro rail

A cicloviaérea é uma pista suspensa, com um suave declive em sua extensão que proporcionará uma leve força a frente, facilitando: no fluxo e em longas distâncias de bicicleta, dentro do cotidiano de transações urbanas. É uma construção futurista para hoje, não precisamos esperar por ela para percebermos a grande invenção da bicicleta, 50% máquina, 50% homem, utilidade e desfrute. Vou ali e volto. A pista já esta sendo construída, e chegaremos a ela na real, um dia breve, passiando juntos com diversos conhecimentos, experimentados e simples. Arquitetura, física, simpatia, engenharia da disposição vão compor o mutirão. Uma sugestão de possibilidade, seria a de acoplar a pista aos prédios já construídos, e todo andar que ela passar se transformará em estrutura de acolhimento para os ciclistas. Alimentação, banho e sauna, dormitório, massagem, leitura, vícios, meditação, luta-livre. Uma outra dimensão para a cidade. O álcool combustível é uma invenção desenvolvida no Brasil, a partir da cachaça, é renovável, menos poluente e pode substituir a gasolina e o petróleo. Mas como dá muito trabalho produzir álcool ou cavar petróleo algumas cidades incentivam e proporcionam a integração da bicicleta nos meios de transporte. Miame nos EUA, cidade assumidamente automobilística, não se ausenta de adotar em suas políticas publicas,o ciclismo, pode-se transportar bicicleta em trens, metro e ônibus sem se pagar mais por isso. Alguns ônibus possuem um bagageiro fácil de por e tirar até duas bicicletas. Rio de Janeiro, facilita, entendemos da tecnologia do corpo. Jarbas Lopes




Helio Fervenza

Cildo Meireles. Inserções em Circuitos Ideológicos - Projeto Coca-Cola, 1970

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Considerações da arte que não se parece com arte

Considerações da arte que não se parece com arte Helio Fervenza* Tratarei nesta apresentação de um pequeno conjunto de produções – incluindo aí textos – de alguns artistas oriundos do campo das artes plásticas e visuais, em que, de forma muito específica, são discutidos e propostos certos valores, práticas, concepções e vivências da arte. 1 Meu propósito, aqui, não é o de desenvolver um relato exaustivo dessas práticas e desses pensamentos. Nem o de fazer a análise de uma certa situação social no campo das artes plásticas como um todo. Mas o de indicar alguns momentos, detectar a emergência em algumas criações realizadas em diferentes contextos históricos e culturais de um pensar e de um pensar como ação para além da arte. Essas produções podem ser muito úteis para ajudar-nos a entender como a arte atualmente se relaciona com a sociedade contemporânea e os meios que ela utiliza nessa relação. Arte e não-arte, arte e cotidiano, arte e ficção

Pois, de fato, como a arte se relaciona com essa sociedade? Em que pensamos quando nos referimos à noção de sociedade nos dias que correm? Será esta sociedade assim, singular e homogênea? E a arte, então, será singular e homogênea? Quando pensamos em artes plásticas, em que pensamos exatamente? Será que essa relação entre arte e sociedade só se dá mediante realização de * Helio Fervenza é artista plástico. Concluiu doutorado em Artes Plásticas na Université de Paris I Panthéon-Sorbonne em 1995. Professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS. Pesquisador do CNPq. Coordena o grupo de pesquisa Veículos da Arte. Suas atividades artísticas utilizam diversos meios em que noções como as de apresentação ou vazio são recorrentes. Realiza exposições individuais e coletivas em diferentes países desde 1983. Desenvolve atividades junto ao programa FPES - Perdidos no Espaço e ao Projeto Areal. Autor do livro O + é deserto, Escrituras Editora, São Paulo, 2003. 1 Este texto foi escrito inicialmente para a palestra proferida pelo autor durante o Colóquio Internacional de Estética – Estética na sociedade contemporânea, realizado em Porto Alegre, de 01 a 03 de setembro de 2004 pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

imagens, pinturas ou esculturas? O campo de atuação da arte deveria ficar restrito? Restrito a permanecer como algo separado das outras atividades sociais? A arte teria de ficar isolada, enquanto ficção dessas outras realidades sociais? E essas realidades sociais seriam realmente reais? Seria possível falar em ficções sociais? Por outro lado, considerar a arte um campo isolado e em conformidade ao socialmente aceito não seria uma ficção social? Qual a situação social da arte contemporânea? Para quem ela produz? E o que ela produz e a maneira como o faz não seriam decisões que afetam sua concepção e, portanto, sua relação com esse social? Será que as diferentes concepções da arte afetariam não só essa relação, mas a própria concepção de sociedade, a percepção de suas formas de vida e da economia de sua formação? Será que a mesma noção de público é igual e contínua em todos os lugares e situações? Mas, afinal, em que consiste uma parte importante da produção artística nos dias de hoje? Posso listar de memória e de uma forma breve algumas produções artísticas realizadas a partir dos últimos 30 ou 40 anos. Assim, por exemplo, um artista 89


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propõe que participantes experimentem, vistam, movimentem-se ou dancem com alguns tipos de capas e objetos em tecido, criando sensações e abrindo sentidos nessa experimentação. Outro conecta fios de cobre e zinco a alguns quilos de batata transformando-as em baterias ou pilhas e fazendo funcionar um relógio digital. Um terceiro interessa-se em inscrever mensagens em circuitos de circulação de objetos, signos ou mercadorias. Outros artistas interessam-se pelo ato de caminhar, respirar ou cozinhar. Talvez abrir um restaurante. Alguns realizam viagens. Uns escrevem, outros fazem livros, discos ou filmes. Alguns se dedicam à ação política ou à educação. Outros ainda são atraídos pelo campo, pela terra e pelas árvores. Um artista elaborou um projeto para colorir nuvens no céu, nuvens reais e não representações pintadas de nuvens. Outros colocaram sua atenção nas cidades, para aí intervir nas arquiteturas e nos fluxos urbanos ou descobrir e catalogar plantas consideradas daninhas encontradas em calçadas. Uns utilizaram a economia ou a sociologia, a cartografia e a aeronáutica, a física ou a matemática, a genética ou a informática, máquinas, produtos químicos, lixo. Outros trabalham utilizando processos de comunicação em rede. Outros intervêm em grupos ligados por questões étnicas, econômicas ou sociais. Outros fazem do diálogo seu motor, realizando propostas construídas coletivamente numa comunidade. Nessas ações, atividades e produções que cito, não há necessariamente uma especialização. Elas podem também ser desenvolvidas alternadamente, sem que uma tenha mais importância, estabelecida a priori sobre as outras. Às vezes, não há de fato um autor, mas um grupo ou grupos. Outras vezes, não se trata de produzir um objeto, mas uma experiência. Como, então, pensar a arte quando ela parece constantemente extravasar, transbordar seus limites socialmente estabelecidos? De que maneira ela se pensa, assim, em constante expansão e deslocamento? Por que ocorrem esses deslocamentos e a que eles correspondem? Hoje em dia, uma simples banca de revista ou a televisão, ou a televisão a cabo, ou ainda a internet possuem uma quantidade inimaginável de imagens e informações, conectáveis com outras tantas imagens e informações, as quais podem ser alteradas, transformadas, copiadas, transmitidas ou armazenadas. Desde a invenção da fotografia, pintores ou escultores perderam progressivamente aquilo que poderíamos chamar de monopólio na produção de imagens. Na atualidade, qualquer pessoa com uma simples câmera fotográfica pode produzir ou manipular imagens. A partir da fotografia, passando pelo cinema, pela televisão, pelo vídeo, pelo computador, essa produção, bem como sua circulação, cresceu e continua crescendo em proporções astronômicas, impulsionada pela indústria e pelas possibilidades de reprodução. Entre outras coisas, isso colaborou para um constante reposicionamento da arte diante dessas mesmas imagens e, sobretudo, quanto a suas práticas, suas concepções e suas relações sociais. 90

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Considerações da arte que não se parece com arte

Além do advento da fotografia, devemos também considerar as revoluções industriais e tecnológicas ocorridas a partir de meados do século XIX e a maneira como alteraram e deslocaram profundamente, desde então, a posição social do artista e suas condições de produção. Essas circunstâncias encontraram importantes desdobramentos nas obras de alguns artistas a partir do início do século XX. Assim, o historiador da arte Thierry De Duve, em seu livro Ressonâncias do readymade, observa que Marcel Duchamp, por volta de 1912, percebe que a pintura muito possivelmente havia perdido sua significação histórica: “Você faria outra coisa senão ceder ao hábito de um artesanato no fundo perfeitamente obsoleto? Pois, numa sociedade industrializada, o saber-fazer específico que nós chamamos pintura poderia muito bem ter-se tornado inútil. A mecanização e a divisão do trabalho substituíram o artesão na maior parte de suas funções sociais e econômicas; por que poupariam elas o pintor?”2 Além disso, o abandono da representação nas obras dos primeiros artistas abstratos e as problemáticas aí relacionadas vão ao encontro da inclusão progressiva dos contextos de produção e apresentação. Podemos verificar isso na concepção e na constituição das criações de artistas como Alexandre Rodtchenko ou Marcel Duchamp. O espaço do objeto artístico era, de distintas maneiras, permeável e inseparável de sua relação com seu espaço contingente físico e com seus sentidos. Esses artistas e, portanto, a produção e o pensamento a eles relacionados não são meros exemplos seminais de uma arte que nascia da interpenetração de espaços internos e externos ao objeto artístico, mas que se inseria cada vez mais em espaços, objetos e situações considerados não artísticos. A ação, num determinado contexto, gerava sentidos para além do objeto. Segundo o crítico Benjamin Buchloh, alguns aspectos ligam certas obras do construtivista Rodtchenko a Marcel Duchamp, como o interesse pela transparência e pelo reflexo como meio de revelar o “caráter contingente da escultura em relação a seu contexto. Contrariamente à noção tradicional de espaço autônomo da escultura, confrontamo-nos com construções que se definem numa relação ternária entre o objeto construído pelo artista, a interpretação perceptiva desse objeto pelo espectador e as particularidades do espaço arquitetural”.3 Outro aspecto a ser considerado é o fato de “Duchamp e os construtivistas terem-se mostrado também atentos à especificidade material da escultura, preocupados em tornar visíveis seus métodos de produção, suas propriedades e suas funções físicas”.4 2 Thierry De Duve. Résonances du readymade. Nîmes: J. Chambon, 1989, p. 128. 3 Benjamin H.D. Buchloh. Construire (l’histoire de) la sculpture. Qu’est-ce que la sculpture moderne? Paris: Centre Georges Pompidou – Musée National d’Art Moderne, 1986, p. 258. 4 Paris: idem, ibidem, p. 257. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

No caso específico do construtivismo, a historiadora Margit Rowell lembranos também que ele era “em teoria e na prática, a expressão de um ideal político profundamente utópico. Para os construtivistas, a sociedade do futuro demandaria uma nova linguagem artística, desobstruída de símbolos ou ilusões, e que seria fundada sobre um princípio de realidade: materiais ‘reais’ existindo 91


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num espaço ‘real’. Esses materiais, assim como suas formas, seriam portadores de sentido em sua própria substância e na dinâmica de suas relações concretas”.5 Podemos evocar ainda outras experiências ocorridas nesse mesmo período das primeiras décadas do século XX. Assim, antes de abordar o trabalho de alguns artistas mais recentes, gostaria que nos detivéssemos sobre uma produção que merece certamente uma visita mais prolongada, fazendo-nos retroceder no tempo. Estamos em Leningrado, em 1923, e alguém que conhecemos há pouco nos convida para tomar chá. Sentamo-nos e, para nossa surpresa, os utensílios colocados na mesa não se parecem com o que temos visto até então. Difícil identificá-los de imediato. Difícil descrevê-los. Imaginem ver o líquido fumegante escorrer do interior de um objeto branco o qual parece uma interseção e um desdobramento de cilindros e cubos e cair num outro objeto meio nave, meio lua. Eclipse de brancos. Pensem nessa experiência. Tomar chá nunca será a mesma coisa, nem a realidade imediata desse ato e, no entanto, trata-se de tomar chá, um ato relativamente simples inscrito no cotidiano. Os objetos em questão são xícaras e bule produzidos a partir de projetos do artista russo Kazimir Malevitch, pela então chamada Fábrica do Estado de Petrogrado. Esses utensílios em porcelana foram uma tentativa de implementar sua concepção de um suprematismo volumétrico.6 Pois bem, esses objetos são utilizáveis, mas seriam eles de fato utilitários? Por que um artista que se posicionava a favor de uma dimensão espiritual e contra a transformação da vida sob uma ótica puramente materialista e funcional, em determinado momento, produz objetos utilitários? Mera circunstância política ou econômica? Seria importante notar, por exemplo, que Malevitch, em 1915, mesmo ano da realização de seu “Quadrado negro” e após abandonar a representação, irá se referir ao que poderia ser traduzido por realismo pictórico, e não a uma noção como a de abstracionismo, para falar a respeito de suas novas obras. O realismo de Malevitch não deve ser considerado em termos de uma percepção direta, objetiva e funcional do mundo, mas como uma tentativa de ultrapassar o mimetismo ilusionista e a ilusão dos sentidos. Assim, no manifesto “Do cubismo e do futurismo ao suprematismo. O novo realismo pictórico”, Malevich propõe a realidade da cor, do plano e da superfície numa criação não objetiva. Chamam a atenção outras passagens nesse texto, como, por exemplo: “Eu cheguei na superfície-plano e eu posso ainda chegar na dimensão do corpo vivo”.7 Ao analisar alguns textos de Malevitch, escritos em 1918, o historiador Andrei Nakov fará o seguinte comentário: “A mutação conceitual da qual procede Malevitch apóia-se sobre a visão dos diferentes estados da manifestação energética da matéria e enfatiza sua relatividade, pois é o ponto de vista sob o qual se considera o mundo que lhe constitui a imagem. Assim, o pensamento 92

5 Margit Rowell. Qu’est-ce que la sculpture moderne? , op. cit., p. 65. 6 E.A. Ivanova. “Porcelain”, catálogo Kazimir Malevich / 1878-1935, State Russian Museum, Leningrad / Tretiakov Gallery, Moscow / Stedelijk Museum Amsterdam, 1988, p. 30. 7 Kazimir Malevitch. Du cubisme et du futurisme au suprématisme. Le nouveau réalisme pictural. Écrits, apresentados por Andrei Nakov, Éditions Gérard Lebovici, 1986, p. 200. concinnitas


Considerações da arte que não se parece com arte

pictórico de Malevitch não tem mais necessidade de passar pelo visível enquanto experiência cognitiva preliminar a toda mudança; é a reflexão conceitual que precederá a partir de então a realização pictórica”.8 É notável, na grande produção textual de Malevitch, o interesse por um enorme leque de assuntos, tais como arquitetura, poesia, educação, economia, religião e a maneira como a criação poderia emergir em todas as atividades humanas no que foi o período revolucionário pelo qual passou a sociedade russa da época. Num dos manifestos do grupo Unovis, fundado por Malevitch em 1920 e relacionado ao suprematismo, podemos ler a seguinte declaração: “Nossos ateliês não pintam mais quadros, eles constroem as formas da vida; não serão mais os quadros, mas os projetos que se tornarão criaturas vivas”.9 É importante referir aqui que os artistas desse grupo, em um dado momento, voltaram-se para uma arte que se realizasse fora dos limites do ateliê, e, ao mesmo tempo, em acordo com o espírito revolucionário da época, empenhado na mudança dos modos de vida. Por outro lado, o que hoje chamamos de desenho industrial iniciava-se, e o contexto político e econômico na União Soviética de então era totalmente diferente do que é praticado hoje em dia numa sociedade de consumo. Ao abandonar a representação da realidade, a arte, de uma certa forma, investia diretamente na realidade, tentando recriá-la ao mesmo tempo em que reinventava seus meios. Por limitadas que tenham sido essas tentativas, elas parecem querer introduzir uma dose de subjetividade, ou de conhecimento subjetivo, como queria o suprematismo, nas atividades do dia-a-dia, na realidade da vida cotidiana. Por razões políticas essas experiências foram abruptamente interrompidas na União Soviética no início dos anos 30. Posteriormente, grande parte da produção de Malevitch foi fragmentada e isolada do contexto, das finalidades e do pensamento que a gerou, e os readymades de Duchamp, apesar de serem objetos industriais, foram isolados dos demais objetos do mundo cotidiano e identificados como arte a partir dessas circunstâncias. Na medida, porém, em que as escolhas e os interesses de alguns artistas foram avançando cada vez mais no espaço do mundo, houve maior permeabilidade na relação entre o espaço artístico e o espaço não artístico, fazendo com que essas distinções se tornassem mais complexas. O espaço físico do museu ou da galeria não coincidia e não coincide com sua abrangência institucional ou econômica. Na atualidade, um claro exemplo disso pode ser encontrado em exposições, como a última Documenta de Kassel, em que produções de artistas participantes ocorreram na internet, na rua ou em 8 Andrei Nakov. Comentário sobre “Déclaration (Manifeste blanc)” de Malevitch, em Malevitch, op. cit., pp. 222-223. 9 Kazimir Malevitch, op. cit., p. 264. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

outras cidades. Por sua vez, o espaço das produções artísticas também não coincide necessariamente com o espaço, as concepções e os valores estabelecidos por instituições e mercados. 93


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Essa não-coincidência foi o que permitiu a riqueza de práticas que temos hoje em dia e não o contrário. Isso é o que nos mostra em parte a história da arte ao longo de todo o século XX se soubermos ver. Nessa história, posições minoritárias não são exceções, como podem tentar nos fazer crer setores mais refratários. Além disso, essas posições deslocam-se constantemente. Isso quer dizer que as concepções e produções artísticas são muito mais diversas e abrangentes do que o espaço institucional ou econômico tradicionalmente voltado para a arte ou para um certo tipo de arte. Elas são como o pensamento que flui ou como o tempo que faz. Isso quer dizer, também, que produções em acordo ou que se instalem mesmo que temporariamente dentro de um campo hegemônico da arte terão uma certa forma de circulação social e econômica. Outras, que se interessem por atuar em situações e espaços fora dessa posição, terão outro circuito ou outra forma de circulação, outros desenvolvimentos ou relações sociais. Algumas formas de produção, que não existem a priori nem são identificáveis como tais, poderão abrir outros espaços e outras formas de vivenciálas, se elas não existem, pode ser necessário criá-las, e isso é uma realidade. Nesses casos, a própria idéia de circuito da arte, dito assim no singular e utilizado no sentido de sistema de veiculação da arte, talvez não seja a melhor noção ou forma de pensarmos a atuação da arte, aqui compreendida como de seu pensamento, suas práticas e suas experiências. Veiculação e experiência podem ser noções inter-relacionadas e gerar situações afins, mas elas não necessariamente se confundem ou coincidem. A própria noção de dentro e fora depois de um trabalho como Caminhando, de Lygia Clark, pode ser instrutiva nesses casos. Afinal, o que está dentro e o que está fora do campo da experiência da arte? Como determinar isso com exatidão? Até que ponto uma parcela abrangente da arte que se produz hoje ainda é identificável como arte? Será que o artista é ainda reconhecível e identificável? E com o que exatamente? Uma boa introdução à resposta seria colocar a seguinte situação: é importante e imensamente significativo que muito do que de melhor se produziu em arte no século XX não parece arte. Assim, o porta-garrafas de Duchamp é um ready-made, um objeto industrial e não artístico produzido aos milhares. Do ponto de vista de sua constituição formal, nada o distingue de um outro portagarrafas. Certas músicas não parecem música, como algumas composições de John Cage. O poético de alguns poemas é não ser poético nem os deixar parecerem poemas. Por outro lado, na sociedade do espetáculo em que vivemos, muito do que se considera poético é assim compreendido pela aplicação de convenções com efeitos culturalmente condicionados. Aproximadamente 50 anos depois que Malevitch realizou seus pratos e suas xícaras, outro artista, do outro lado do mundo, prepara um chá gelado. Ele coloca um recipiente no fogo para aquecer a água e observa quando esta 94

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Considerações da arte que não se parece com arte

começa a ferver, sente o calor e vê as nuvens de vapor que se formam. Depois derrama o líquido num bule e coloca folhas de chá. Uma vez resfriada a infusão, ele acrescenta cubos de gelo. Ele sente o frio desses sólidos e observa seus gestos ao manipulá-los. Ele faz chá, observa e se observa. O artista é o norte-americano Allan Kaprow, e a preparação dessa bebida surgiu como uma resposta ao que ele considerou ser uma sugestão contida num dos textos de Events (Eventos), de George Brecht. Esses textos eram extremamente sucintos e foram impressos em pequenos cartões entre 1959 e 1962. Eles podem ser compreendidos como partituras destinadas a ser utilizadas em diferentes situações. A maneira como deveriam ser utilizadas permanece em aberto de uma forma ambivalente. Assim, o texto no cartão pode ser percebido apenas como uma lista de nomes ou como uma instrução ou sugestão para uma ação, diante de um público ou sozinho no espaço privado. O cartão escolhido por Kaprow intitula-se Três eventos aquosos, e abaixo do título estava escrito apenas gelo, água, vapor. A maneira como ele considerou essas palavras e como isso o levou a fazer um chá tem a ver com sua concepção da arte. Para esse artista o ato de prestar atenção e estar consciente da realização de atividades cotidianas, como preparar chá ou amarrar os cordões dos sapatos, pode ser mais fundamental do que produzir objetos convencionalmente identificados como artísticos. Ao comentar o período em que essas mudanças começaram, Kaprow escreve: “Supunha-se que as pequenas coisas da vida cotidiana poderiam servir para contrabalançar as abstrações em que os ‘grandes’ problemas se transformam quando lhes damos um nome”.10 Em seu artigo intitulado “A verdadeira experimentação”,11 Kaprow estabelece uma distinção entre “arte que se parece com arte” e “arte que se parece com a vida”: “a arte parecida com a arte considera que a arte é separada da vida e do restante, enquanto a arte parecida com a vida considera que a arte está em ligação com a vida e com o restante”. A arte que se parece com arte constituiria uma prática inscrita dentro da “principal corrente da tradição da história da arte ocidental, em que o espírito é separado do corpo, o indivíduo da coletividade, a cultura da natureza, e na qual cada arte é separada da outra”. Por outro lado, a arte que se parece com a vida “não está interessada pela grande tradição ocidental, pois ela tende a misturar as coisas: corpo e espírito, indivíduo e coletividade, cultura e natureza, e assim por diante”, da mesma forma como pode misturar as categorias da arte ou evitá-las totalmente. Para Kaprow foram os sucessivos desenvolvimentos e aprofundamentos do modernismo que conduziram a arte a dissolver-se em suas fontes no mundo real. 10 Allan Kaprow. Oublions l’art. Kanal Europe, Paris, 2º trimestre 1992, p. 25. 11 Allan Kaprow. La véritable expérimentation. L’art et la vie confondus. Paris: Centre Georges Pompidou, Coleção Supplémentaires, p. 238. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

As diferentes percepções do mundo e a subjetividade nas abordagens, bem como a possibilidade de agir sobre diferentes contextos não artísticos, gerar gestos e comportamentos, estariam presentes em artistas e produções desde as primeiras décadas do século XX. 95


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“Nos dias de hoje”, afirma ele, “ser um artista significa conhecer-se, conhecerse significa esquecer-se (do que seja a imagem que se faz de ‘si mesmo’). Esquecer a arte (o ‘si mesmo’) significa ter uma clareza ou uma realidade. E ter essa clareza significa reduzir a distância entre si mesmo e todos os fenômenos”.12 A maneira como a arte que não se parece com arte se relaciona com a sociedade passa pela atenção a qualquer aspecto das formas, dos meios e situações de vida dessa sociedade. A atuação desse tipo de arte produz-se através da vida social. Aproximadamente no mesmo período em que Kaprow fazia chá gelado, outro artista em outro país e em outro contexto bem diferente, ocupava-se também com uma bebida. Dessa vez não era uma bebida feita em casa, mas produzida e engarrafada aos milhares industrialmente. Mais precisamente, ele questionava sua distribuição, os significados por ela veiculados e sua onipresença econômica e cultural. Ao mesmo tempo, indagava-se sobre o sistema de circulação que tornava isso possível. Este se constituía na venda, no consumo da bebida e na devolução de sua embalagem. Assim, produzia-se um ciclo, um circuito: a embalagem saía da indústria para o distribuidor, do distribuidor para o consumidor e depois, num movimento inverso, este último a devolvia ao distribuidor, que a fazia retornar à indústria para ser de novo reutilizada. O artista percebe que pode inserir nesse sistema outras informações as quais seriam veiculadas pelo próprio circuito. Quer dizer, utilizar o próprio sistema de distribuição como veículo de outras proposições que o abram à percepção e à atuação crítica. O artista em questão é o brasileiro Cildo Meireles. A esses atos de inserir informações em determinados meios de circulação, ele chamou de “Inserções em Circuitos Ideológicos”. No caso específico das inserções em garrafas, ele denominou “Projeto Coca-Cola”, que foi levado a cabo a partir de 1970. Cildo utilizava, aqui, decalques sobre a garrafa, impressos com tinta branca vitrificada, onde se lia, além do título do projeto, a seguinte proposta: “Gravar nas garrafas, opiniões críticas e devolvê-las à circulação”. Embaixo viam-se as iniciais C.M. e a data. Quando a garrafa está vazia não se percebe o texto, que só aparece contra o fundo escuro da bebida. Em relação às “Inserções”, existe um depoimento de Cildo Meireles, registrado por Antônio Manuel para sua pesquisa “Ondas do Corpo”, o qual é muito importante para entendermos essas ações e suas circunstâncias. Nesse depoimento, Cildo diz o seguinte: “Eu me lembro que em 1968-69-70, porque se sabia que estávamos começando a tangenciar o que interessava, já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo tendia a se volatilizar – e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social”.13 96

12 Kaprow, 1992, op. cit., p. 26. 13 Cildo Meireles. Coleção Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p.24. concinnitas


Considerações da arte que não se parece com arte

O artista sublinha o fato de que os circuitos de veiculação de mercadorias ou informações carregam a propaganda ideológica do produtor, e que seria função da arte tornar conscientes essas práticas, em oposição à função anestesiante dos circuitos industriais numa sociedade capitalista. Para Cildo, as “Inserções” visavam atingir um número indefinido de pessoas, um público no sentido mais amplo do termo, e não limitar ou substituir essa noção pela de consumidor, que é ligada ao poder aquisitivo. Elas só teriam sentido enquanto fossem praticadas por outras pessoas, numa possibilidade real de transgressão. Como ele sugere: “Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora – trabalhar com a pólvora mesmo”.14 Essa sua preocupação com uma arte que se construa no mundo vê-se claramente refletida em outro texto, também de 1970, intitulado “Cruzeiro do sul”, em cuja conclusão ele declara: “Quero algum dia que cada trabalho seja visto não como um objeto de elucubrações esterilizadas, mas como marcos, como recordações e evocações de conquistas reais e visíveis”.15 Antes de terminar gostaria de deter-me, mesmo que brevemente, nas idéias e produções de dois outros artistas: Robert Filliou e Lygia Clark. Pensei em Robert Filliou pela maneira como ele criou certas propostas a partir de uma relação com a economia, como, por exemplo, seus “princípios de economia poética”. Sua idéia da “Verdadeira Taxa de Troca”, em que ele observa que “nós temos todos as mesmas diferenças e que é isso precisamente que nós temos em comum”. Ele propõe então que, para chegarmos “a uma otimização do nível social, seria necessário uma situação em que a diferença de um em relação à diferença do outro fosse igual a zero”.16 Filliou inventa também o conceito de “Criação Permanente – Princípio de Equivalência: Bem feito. Mal feito. NãoFeito”, em que, segundo ele, o segredo residiria na fórmula “seja o que for que fizeres, faz outra coisa, seja o que for que pensares, pensa outra coisa”.17 Para ele, a “Arte é uma função da Vida mais Ficção, a ficção tendendo à zero”.18 Pensei também em Lygia Clark por sua ênfase nas proposições, como quando, por exemplo, ela afirma em 1968: “somos os propositores: nossa proposição é o diálogo”.19 Nesse sentido, interessa-me sua relação com certos gestos, entre os quais adquire grande intensidade a proposta de execução do “Caminhando”, de 14 Idem. 15 Cildo Meireles. Cruzeiro do sul. In: Brito, Ronaldo e Venancio Filho, Paulo. O moderno e o contemporâneo (O novo e o outro novo). Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p. 28. 16 Robert Filliou. Temps. In: Espaces Affranchis – Robert Filliou, coleção Cahiers Danae, número 4/5, Pouilly, 1989, p. 38. 17 Robert Filliou. La vitesse de l’art. In: Espaces Affranchis – Robert Filliou, op. cit., p. 37. 18 Idem. 19 Lygia Clark. Coleção Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p. 31. 20 Idem, ibidem, p. 26. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

1964. Para Lygia, “o único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu ato”.20 As produções que nos interessam neste estudo, como nos exemplos enfocados a partir de Allan Kaprow e Cildo Meireles, extravasam constantemente as práticas artísticas tradicionais ou o espaço de uma concepção circunscrita da arte. Elas são desviantes. Elas produzem movimentos, um deslocamento constante, evitando posições fixas e o isolamento de outras atividades e conhecimentos. Elas evitam posições identificáveis de uma forma unívoca, ao recair sobre situações não consideradas artísticas numa sociedade marcada pela divisão do trabalho. Elas são propositivas no sentido em que não há um objeto artístico pronto para 97


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ser apreciado, mas, antes, um processo. A frase de Duchamp “aqueles que olham

Kasimir Malevitch. Bule e xícara, 1923

são os que fazem os quadros” parece estar de alguma maneira ainda relacionada a uma separação entre produtor e observador. Em outras palavras, existe alguém que produz um objeto e alguém que produz um certo olhar sobre esse objeto apresentado. Ela supõe, num certo sentido, uma noção de público, como no teatro ou no cinema. Nas propostas e nas ações a respeito das quais nos falam Kaprow ou Cildo Meireles não há um público, não há ninguém assistindo, não há testemunhas oculares. Dessa forma, ocorre aqui algo que poderíamos chamar de auto-apresentação. Aquele que toma parte nesse processo inclui-se como alguém que produz uma experiência de fazer e abre uma experiência de sentir e pensar, ou pensar, sentir, fazer, encontrando-se os termos inter-relacionados e não necessariamente numa ordem estabelecida. Essas produções ou proposições possuem também em comum uma ênfase nas relações e investem sobre o mundo, aí inscrevendo possibilidades de crítica ou autoconhecimento, subjetividades e questionamentos. Elas são meios e não fins, formas de pensar, de viver e de agir.

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O primado do artista sobre o filósofo

O primado do artista sobre o filósofo José Thomaz Brum* Este artigo procura apresentar a obra póstuma do filósofo alemão Schelling (1775-1854) intitulada Filosofia da Arte. Lançada no Brasil pela Edusp, com tradução e prefácio de Márcio Suzuki, ela constitui um verdadeiro “compêndio do saber romântico”. Schelling, idealismo alemão, filosofia da arte

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), filósofo guia da escola romântica, pertence – segundo a história da filosofia – àquela corrente de pensamento denominada “idealismo alemão”. Partindo de Kant, os idealistas Fichte, Schelling e Hegel desrespeitaram os limites que aquele impusera à razão humana. Se a razão kantiana (Vernunft) estava limitada aos fenômenos, ao mundo tal como aparece para a consciência, o espírito idealista (Geist) buscava o Absoluto, a essência que Kant designou como incognoscível, sob o nome de “coisa-em-si”. Fichte, com a idéia de um Eu absoluto e ativo, e Hegel, com sua dialética histórica que busca o Absoluto, são exemplos de um pensamento que transgride os conselhos kantianos de prudência quanto ao Absoluto. O Geist dos idealistas alemães sonha com a totalidade do real, e foi sobretudo Schelling quem ilustrou essa opção por uma metafísica da infinitude, oposta à finitude kantiana. A vida de Schelling merece ser narrada: destinado pelo pai, pastor, à carreira eclesiástica, o jovem Schelling foi colega de Hoelderlin e de Hegel Correggio. Natividade (Noite Santa), 1528-30

no célebre seminário de Tübingen. Lá forjou sua cultura artística, sobretudo a literária, com a leitura dos trágicos gregos, de Shakespeare e dos contemporâneos Goethe e Schiller. Após publicar sua primeira obra importante, Da alma do mundo (Von der Weltseele), em 1798, atrai a atenção de Goethe e consegue um posto na Universidade de Jena, onde passará cinco anos fecundos, publicando e freqüentando sobretudo o círculo dos irmãos Schlegel, a matriz do romantismo alemão. Em 1803, Schelling casa-se com Caroline MichaelisSchlegel. Sua filosofia – uma metafísica do absoluto – teorizará concepções essenciais dos primeiros românticos: a idéia de que a imaginação é o fundamento da realidade e a noção de que a existência

* José Thomaz Brum é doutor em Filosofia pela Universidade de Nice (França), professor de Estética no Curso de Especialização em História da Arte da PUC-RIO. Publicou Nietzsche – as artes do intelecto (Porto Alegre, LPM, 1986) e O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche (Rio de Janeiro, Rocco, 1998). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

do universo é semelhante à do poema e não à da máquina. Períodos A obra de Schelling atravessou várias fases, que os comentadores costumam dividir em quatro: inicialmente, o “período fichtiano” (1794-1801), depois 99


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o da célebre “filosofia da identidade” (1801-1808), seguido de uma “fase mística ou teosófica” (1809-1817) e, por último, o da chamada “filosofia positiva” ou “Schelling tardio”, em que o filósofo elabora um pensamento que se fundamenta na noção de “existência”. Essa filosofia tardia, que tem como marco os monumentais cursos “Filosofia da mitologia” e “Filosofia da revelação”, possui tonalidade abertamente cristã, que contrasta com o “panteísmo” ou “spinozismo” de seus anos de Jena. Kierkegaard, o pai dinamarquês do existencialismo, foi ouvinte do velho Schelling em Berlim, cujas idéias sobre o caráter abissal da liberdade marcaram para sempre o que se denominou “as filosofias da existência” (Heidegger, Jaspers...). A obra agora lançada em português, excelentemente traduzida e prefaciada por Márcio Suzuki, pertence à fase da “filosofia da identidade”. Cronologicamente situada entre a fundamental Crítica da faculdade do juízo, de Kant (1790), e os famosos Cursos de estética, de Hegel (1818-1830), a Filosofia da arte de Schelling foi publicada postumamente por seu filho Karl Friedrich, em 1859. São notas de um curso sobre a matéria, que Schelling ministrou em Jena (1802-1803) e em Würzburg (1804-1805). As idéias estéticas aí expostas devem ser, antes de tudo, referidas à obra imediatamente anterior, o Sistema do idealismo transcendental (1800), em cuja última parte Schelling afirmara que a arte, enquanto atividade produtora, realiza “a coincidência inesperada da atividade inconsciente e da atividade consciente”. Concluindo que a arte realiza, em obra finita, o infinito que o filósofo busca especulativamente, Schelling faz da “identidade dos opostos” o núcleo da arte. Retomando e ampliando a noção kantiana de gênio, Schelling anuncia aí o primado do artista genial sobre o filósofo. Essência No curso sobre a Filosofia da arte – partindo da essência mitológica da arte – Schelling faz da arte o “órgão” ou o “instrumento” privilegiado da filosofia. Essa vasta obra (407 páginas na edição brasileira) merece atenção por vários motivos. Nela se encontra, por exemplo, uma importante formulação que repercutirá em autores tão distintos quanto Luckács, Benjamin e Heidegger: “o mundo moderno começa quando o homem se desprende da natureza, mas se sente abandonado, já que ainda não conhece outra terra natal”. Essa idéia de separação, do “exílio metafísico” resultante do mundo moderno (tema que Schelling compartilha com Hoelderlin), é referida na Filosofia da arte à questão da mitologia. Os deuses gregos, simbolizados na estatuária antiga que Schelling tanto admira, revelam um mundo coeso, um mundo em que a arte é sagrada e em que todo fenômeno artístico é epifania. 100

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O primado do artista sobre o filósofo

As referências artísticas de Schelling são as mais conformes à tradição: o Laocoonte, o Apolo de Belvedere, a Madona Sixtina e a Noite, de Correggio (lembrança de suas andanças pela romântica galeria de Dresden). Winckelmann, o mestre do sereno classicismo, é o mentor de Schelling nessa obra, pelo menos no que se refere às ilustrações artísticas. A escultura antiga, em que os deuses “existem” – calmos e absolutos – envoltos em um halo de eternidade, simboliza muito bem a “concepção schellingiana do belo”: “a beleza reenvia à unidade e à indiferença como à sua verdadeira essência”. Metamorfose Assim como Hegel, o classicista Schelling não teve sensibilidade para reparar em seus contemporâneos da pintura romântica, embora Friedrich e Carus, entre outros, possam ser ditos seus “filhos espirituais” em sua visão da metamorfose da natureza em espírito. Os exemplos e as ilustrações que a Filosofia da arte apresenta não são novos; nova, porém, é sua idéia de que a arte salvaguarda uma unidade de forma e conteúdo que a filosofia busca reconstituir especulativamente. Apesar de sua riqueza em análises de pintores (Leonardo, Ticiano, Michelangelo, Rafael e o favorito de Schelling, Correggio), é na escultura que o filósofo encontra a “identidade”, que, nas páginas sobre a poesia, ele opõe à fragmentação do discurso científico. Há pelo menos uma passagem célebre nessa riquíssima Filosofia da arte: aquela em que Schelling associa a arquitetura à música: “Se a arquitetura em geral é música petrificada...”. A idéia de que ritmos percorrem as colunas dóricas aparece na quarta seção, o que fez Goethe replicar em uma de suas Máximas e reflexões: “a arquitetura é uma harmonia expirada” ou uma “arte muda dos sons”. Paul Valéry, mais perto de nós, explorará a analogia schellingiana entre música e arquitetura em Eupalinos. Mme de Stäel (1766-1817), escritora francesa admiradora do romantismo alemão, fez uso dessa expressão em sua obra Corinne (1807). Referindo-se à Basílica de São Pedro, em Roma, a escritora observou: “a vista de um tal monumento é como uma música contínua e fixada”. Mme de Stäel introduzira-se às idéias estéticas de Schelling graças a aulas particulares de filosofia alemã ministradas por um jovem escritor inglês, estudante em Jena, Henry Crabb Robinson. Em 1804. Poesia O pensamento de Schelling exposto na Filosofia da arte sustenta ser a mitologia a matéria da arte, e que será pelo mito que a ciência – depois de ter dissociado o mundo uno em sujeito e objeto – retornará à poesia. A arte ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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pode ser o guia da filosofia para uma missão de reunificação da realidade atualmente fragmentada. A idéia de que a arte implica uma experiência de “presença metafísica”, de que ela é um tipo de linguagem na qual o infinito pode surgir no finito de maneira concreta (como na mitologia), faz da Filosofia da arte não apenas uma obra meramente estética ou reflexivamente artística (embora também o seja). Refletindo sobre a arte, Schelling pensa a perda de “lar”, o “exílio moderno”: a separação de sujeito e objeto. E sugere uma linguagem que neutralize a dissociação moderna, como a daqueles artistas que – “através de sua individualidade” – são capazes de criar “um círculo fechado de poesia”. Essa passagem permite-nos ver que a estética de Schelling não está exilada, ela própria, em um remoto museu das idéias estéticas. A Filosofia da arte, de Schelling, embora não possua a coesão e o sistematismo dos Cursos de estética, de Hegel, traz em seu bojo importantes reflexões sobre a dualidade moderna, extraviada em conceitos sem alma; discorre sobre uma linguagem (a artística) que poderia resgatar a unidade entre o sensível e o inteligível, e, sobretudo, apresenta uma profunda consideração sobre a futura união de poesia e filosofia através do mito.

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A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas

A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas Maria Berbara* O artigo examina a correspondência direta de Michelangelo no contexto da tradição epistolar renascentista italiana, com especial ênfase na relação entre esta e a produção artística do mestre. Particular atenção é dada à célebre carta – cuja tradução inédita é apresentada ao final do artigo – enviada por Buonarroti ao historiador, literato e acadêmico florentino Benedetto Varchi, na qual se considera a questão do paragone entre a escultura e a pintura. Renascimento, Itália, epistolário

Um dos primeiros comentários a ser elaborado em relação à correspondência buonarrotiana diz respeito à categoria na qual ela não se enquadra, a saber, a assim chamada epistolografia humanista dos séculos XV-XVI, concebida enquanto um ramo da atividade literária e destinada à publicação. Os epistolários, basicamente definidos como uma coleção de cartas privadas de e para um Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Cabeça dea sátiro, 13 x 13cm

determinado correspondente, reunidas, seja pelo próprio, seja por outrem, tendo como objetivo sua divulgação (com ou sem o consentimento/participação do autor principal) em um meio mais ou menos selecionado, remontam ao período imperial romano – Cícero, Sêneca e Plínio, o Jovem, são, quiçá, seus mais notórios e influentes expoentes. Durante a Idade Média, a ars dictaminis ou dictandi, isto é, a arte de redigir cartas, de alguma maneira substitui a oratória no âmbito do estudo da retórica, continuando a ser ensinada nas universidades renascentistas; a epístola humanista, contudo, embora procurando manter uma certa estrutura determinada pelo tradicional princípio de unidade, supera as estritas partições retóricas estabelecidas pela ars dictandi, revelando, por meio da crescente busca de elegância expressiva, uma marcada preocupação estilística. É Petrarca quem, no século XIV, inaugura um novo gênero da epistolografia, o qual haveria de imprimir um selo em praticamente toda a literatura epistolar

* Maria Berbara é doutora em história da arte pela Universidade de Hamburgo (Alemanha), tendo escrito sua dissertação sobre a assimilação de temas e motivos sacrificiais greco-romanos à iconografia cristã durante o Renascimento Italiano. Fez seu pós-doutoramento junto à FAU/ USP sobre o epistolário direto de Michelangelo Buonarroti. Atualmente, é professora de história da arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

renascentista italiana; suas cartas, concebidas como obras de arte, são zelosamente copiadas e colecionadas por ele próprio com vistas à publicação. Durante o Quatrocentos, pensadores tão destacados como Ficino ou Lorenzo Magnífico cultivaram a composição epistolar em latim como um gênero literário, o qual lhes permitia expressar suas concepções teológicas, artísticas e filosóficas mediante um estilo apurado e eficiente. Essa tradição epistolar de inspiração ciceroniana, adotada pelos humanistas quatrocentistas, encontrou notáveis 103


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herdeiros em princípios do século XVI, entre os quais Bembo, Castiglione e Iacopo Sadoleto. Simultaneamente, crescia o número das composições em italiano: em 1537, Aretino pela primeira vez redige uma coletânea de cartas (próprias) vernáculas, seguido por diversos outros epistológrafos italianos. O vívido interesse pela epistolografia vernácula que se difunde na Itália a partir da década de 1530 propicia a edição de diversas antologias de cartas escritas por pessoas ilustres: Paolo Manuzio, em 1542, publica a primeira coletânea de cartas em italiano, precedendo a de Lodovico Dolce (1554) e as duas de Dionigi Atanagi (1554 e 1561). Os epistolários individuais, por sua vez, começam igualmente a ser publicados; entre os mais célebres poder-se-ia citar o de Bembo (Roma e Veneza, 1548-1552), Anton Francesco Doni (Veneza, 1552), Annibal Caro (Veneza, 1572-1575) ou Tasso (Bergamo, 1588). A partir da segunda metade do Quinhentos, portanto, gera-se uma densa produção epistolar humanista, concebida mais enquanto composição literária do que correspondência pessoal; paralelamente, contudo, subsiste a carta vulgar, escrita por exigências práticas e destinada a comunicar, de modo geralmente seco e direto, uma mensagem específica. A correspondência michelangeana, como foi dito inicialmente, corresponde majoritariamente à segunda das supracitadas categorias. O artista jamais pretendeu colecionar suas cartas e, muito menos, prepará-las para publicação. A maioria delas – sendo as mais notáveis exceções, provavelmente, aquelas destinadas a Tommaso Cavalieri – cumpre uma função imediatamente comunicadora, ora técnico-prática, ora puramente narrativa, sendo redigida de modo simples e completamente alheio à sofisticação retórica. Nunca foi sua intenção produzir um corpus de documentos que de alguma maneira espelhasse mais ou menos metodicamente suas concepções artísticas ou literárias; Buonarroti, de resto, parecia avesso a discorrer ou escrever sobre arte, como transparece não apenas no próprio epistolário, mas também no testemunho de diversos contemporâneos.1 Embora, nos Dialogi de Giannotti e nas Vite de Vasari e Condivi,2 o artista expresse o desejo de redigir um tratado sobre a arte, tal projeto, se é que ele de fato o cultivou, jamais chegou a realizar-se.3 Vasari comenta, na edição giuntina, que Michelangelo, julgando-se pouco treinado nel dire, isto é, no discurso, jamais escreveu porque não confiava em sua habilidade de expressar por escrito o que gostaria.4 Em sua correspondência, Michelangelo refere-se diversas vezes a essa falta de inclinação pela escritura: lo scrivere mi è di gran noia e fastidio; quand’io vi scrivo, se io non scrivessi così rettamente chome si conviene, o se io non ritrovassi qualche volta el verbo principale, abiatemi per iscusato; la maggior noia che io abbi a Roma è d’avere a rispondere a lectere; lo scrivere m’è di grande affanno, perché non è mia arte.5 Esta última frase, non è mia arte, ou non è mia professione, recorre no epistolário; Michelangelo, como se sabe, consideravase fundamentalmente um escultor em mármore, de maneira que a pintura, a arquitetura e a escultura em bronze costumavam ser entendidas por ele como um 104

1 Por exemplo, Francisco de Hollanda, quem, no primeiro de seus diálogos, relata como Vittoria Colonna tencionava convencer o mestre a discorrer sobre a arte, o que não era tarefa das mais fáceis: “Porque eu conheço mestre Micael Ângelo, tornou ela.(...) não sei de que maneira nos hajamos com ele para que o possamos enganar a que fale em pintura”, ao que acrescenta Ambrósio Senes: “Não creio eu (...) que se Micael conhece por pintor ao Espanhol [isto é, Francisco de Hollanda], que queira falar da pintura em nenhum modo” (Diálogos de Roma de Francisco de Hollanda, ed. de M. Mendes; Lisboa: Sá da Costa, 1955, pp.10-11). 2 D. Giannotti, Dialogi de’ giorni che Dante consumò nel cercare l’Inferno e l’Purgatorio, ed. por D. Redig de Campos (doravante Dialogi); Florença, Sansoni, 1939, pp. 41-42; G. Vasari, La Vita di Michelangelo nelle redazioni del 1550 e del 1568 (doravante Vasari/Barocchi), ed. de P. Barocchi; Milão: Ricciardi, 1962 (vol. I: texto; vols. II-IV: commento; vol. V: índice analítico), I, p. 120, e Rime e lettere di Michelagnolo Buonarroti, precedute dalla vita dell’autore scritta da Ascanio Condivi (doravante Condivi); Florença: G. Barbèra, 1860, LX, pp. 128-129. 3 Há, no entanto, uma misteriosa menção a um “diálogo” de Michelangelo em uma carta de Caro a Varchi: “Col conte Cesare Ercolano feci l’officio e gli feci vedere il dialogo di Michelagnolo” (Com o conde Cesare Ercolano conferenciou e mostrou-lhe o diálogo de Michelangelo; apud Vasari/Barocchi, IV, p.1975). 4 (…) si difidava per non poter esprimere con gli scritti quel ch’egli arebbe voluto, per non essere esercitato nel dire (idem). O aretino especifica, nessa passagem, que a Michelangelo teria comprazido escrever sobre anatomia, o que ecoa ainda a supracitada passagem condiviana. Também Giannotti faz referência ao desejo michelangeano de escrever especificamente sobre questões relativas à anatomia (Dialogi, pp.41-42). Esses três textos vinculam o propósito de Buonarroti, ainda, à pouca apreciação que ele nutria pelos escritos de Dürer – especificamente seus tratados Underweysung der Messung..., publicado em 1515 em Nuremberg e traduzido ao latim na década de 1530, e Von menschlicher Proportion, publicado postumamente, também em Nuremberg, em 1528, e traduzido quase concomitantemente ao latim por Camerarius – assim como à sua convicção de poder realizar uma obra superior à do alemão. 5 “O escrever é um grande aborrecimento e fastídio para mim”; “Se não vos escrevo corretamente, como se deve, ou se algumas vezes não encontro o verbo principal, perdoai-me”; “O maior aborrecimento que tenho em Roma é o de precisar responder a cartas”; “O escrever me é de grande afã, porque não é minha arte”. concinnitas


A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas

desvio de seu verdadeiro ofício. Mesmo depois do êxito universal da Sistina, o artista jamais se referia a si mesmo como pintor, assinando suas cartas quase sempre como “Michelangelo, escultor”. Também em campo poético, malgrado sua abundante e altamente elaborada produção, Buonarroti julgava-se não mais que um amador; Condivi refere que a questo [escrever sonetos] egli ha atteso più per diletto che perché egli ne faccia professione, sempre se stesso abbassando ed accusando in queste cose l’ignoranza sua.6 Como esplendidamente sintetiza em um belo soneto cuja imagem central sem dúvida ecoa os mais célebres versos do canzoniere – “Sì come nella penna e nell’inchiostro / è l’alto e ’l basso e ’l mediocre stile, / e ne’ marmi l’imagin ricca e vile, / secondo che ’l sa trar l’ingegno nostro”7 –, Buonarroti parecia ver uma analogia entre a excelência figurativa e a literária e os seus respectivos processos criativos; assim como acreditava firmemente em sua profissional competência no campo escultórico, julgava-se inepto ao manejar a pena. Em sua primeira, celebérrima carta a Cavalieri, citando um verso de Petrarca o artista manifesta ainda sua convicção no descompasso entre os afetos e o alcance da escrita: Leggiete il cuore e non la lectera, perché ‘la penna al buon voler non può gir presso.8 Entre Michelangelo e as diversas formas de expressão literária houve, portanto, uma relação aparentemente pouco íntima e, em certa medida, caracterizada pela insegurança e desconfiança com relação tanto à potência expressiva da pluma quanto à sua própria aptidão como escritor. Especialmente no tocante ao epistolário, repita-se, jamais houve de sua parte quaisquer intentos de sistematização e publicação, constituindo a maioria das cartas documentos de caráter pragmático alheios seja às obras de arte produzidas concomitantemente, seja a reflexões de cunho artístico, teológico ou filosófico. A importância do estudo epistolar michelangeano, portanto, não se relaciona, ao menos de maneira direta, à compreensão de sua Weltanschauung, ou, mais especificamente, a uma “explicação” de suas realizações artísticas e dos conceitos filosófico-religiosos que as permeariam; seu grande valor, como vêm 6 “Dedicou-se a escrever sonetos mais por diletantismo do que para disso fazer sua profissão, sempre se diminuindo e acusando, nestas coisas, sua própria ignorância”. O biógrafo finaliza sua Vita, no entanto, afirmando ser sua intenção publicar uma compilação de sonetos e madrigais michelangeanos que lhe haviam, em parte, sido entregues pelo próprio Buonarroti (Condivi, LXIX, p.149). Tal projeto, evidentemente, jamais se levou a cabo. 7 Le Rime di Michelangelo Buonarroti, pittore, scultore et architetto, ed. de C. Guasti; Florença: Le Monnier, 1863, XVI, p.174. 8 “Lede o coração, e não a carta, pois ‘a pluma é incapaz de alcançar o afeto’”. Rime e Lettere di Michelangelo, ed. de P. Mastracola; Turim: UTET, 1992, carta 141, p.469; Petrarca, Rime, XXIII, 91. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

notando os – relativamente poucos – estudiosos que se têm dedicado ao epistolário, é fundamentalmente autobiográfico, histórico e “psicológico”, na medida em que aporta um notável conhecimento sobre a personalidade buonarrotiana, sua transformação ao longo dos anos, sua reação a algum evento pessoal ou historicamente relevante, e naturalmente sobre o desenvolvimento cronológico de suas obras. É por meio de suas cartas que se percebe claramente a predominância do sentimento de solidão e isolamento em sua juventude (“Aqui vivo em enorme ansiedade e com imensa fadiga física; não tenho amigos de nenhuma espécie, e nem os quero”); a obsessão pela morte na velhice (“estou em minha vigésima quarta hora, e não nasce em mim pensamento onde não esteja dentro esculpida a morte”); o desenvolvimento de uma concepção teológico-filosófica de formação savonaroliana que se precisa, na década de 1530, pelo contato com o círculo valdesiano e Vittoria Colonna em particular (“a graça de Deus não se pode comprar”; “embora não tenha 105


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recebido todos os sacramentos ordenados pela Igreja, teve no entanto uma boa contrição, e esta para a salvação basta”); a influência neoplatônica (“pareceis-me haver estado mil vezes no mundo”), e, mesmo disseminadamente, fragmentos de suas concepções artísticas: (“pinta-se com o cérebro, e não com as mãos”; “É portanto certo que os membros da arquitetura derivam dos membros humanos”). Nesse sentido, não poucos pesquisadores elevam o epistolário, em detrimento de sua por vezes precária elaboração, à magnitude das Rime, reconhecendo em ambos expressões paralelas e complementares de uma vocação literária menosprezada pelo próprio artista.9 Cabe ressaltar, finalmente, que o epistolário constitui, ao menos desde os discursos de Varchi e a edição torrentiniana de Vasari,10 um componente essencial na fabricação do que se poderia chamar mito michelangeano, dialogando constantemente com suas duas biografias e corroborando, quando conveniente, certos topoi relativos à sua personalidade e a episódios emblemáticos de sua vida; assim, a carta de 1506 a Giuliano da Sangallo ilustra sua primeira fuga de Roma e acena ao embate titânico que, no imaginário das gerações seguintes, constituiria a tônica de sua relação com Júlio II; o pós-escrito da carta, de 1542 a um misterioso prelado reforça energicamente o argumento da rivalidade entre o mestre e o dueto Bramante/Rafael; e suas cartas ao pai e irmãos escritas durante o primeiro período sistino cimentam a imagem do artista solitário, fatigado e perseguido.11 *** Atualmente, a maioria dos manuscritos originais das cerca de 490 cartas michelangeanas – quase sempre autógrafas – que chegaram aos nossos dias encontra-se dividida entre o British Museum e o Archivio Buonarroti, em Florença. Os manuscritos conservados neste último foram doados em 1858 à cidade de Florença por Cosimo Buonarroti, o último descendente direto de Michelangelo, enquanto os londrinos foram vendidos ao British Museum em 1859 por Michelangelo Buonarroti, sobrinho de Cosimo. Em 1875, por ocasião do quarto centenário do nascimento do artista, o investigador florentino Gaetano Milanesi publicou, pela primeira vez, o conjunto do epistolário direto.12 Além de reunir as cartas, o estudioso atualizou sua ortografia e deu caráter cursivo a palavras que haviam sido abreviadas no original. Seu livro permaneceria sendo a principal obra de consulta relativa ao epistolário até 1965, quando começa a ser publicada, em cinco volumes, uma monumental edição da correspondência buonarrotiana, contendo aproximadamente 1.400 missivas de e para Michelangelo. Essa publicação, encarregada pelo Istituto Nazionale sul Rinascimento de Florença a Paola Barocchi e Renzo Ristori, a partir do trabalho póstumo de Giovanni Poggi, sem dúvida constitui, até hoje, a mais completa edição do epistolário.13 A aparição desses volumes, contudo, parece haver surtido efeito contrário ao desejado, visto que, em vez de estimular a pesquisa relativa ao carteggio, calou quase completamente os estudiosos italianos no tocante a esse tema: com exceção da obra de P. 106

9 Cf, por exemplo, E. N. Girardi, Studi su Michelangelo Scrittore; Florença: Leo S. Olschki (Biblioteca di Lettere Italiane, XIII), 1974, capítulo I. 10 O primeiro inclui em suas Due Lezzioni a missiva que se traduz ao final do presente artigo, enquanto o segundo reproduz na Vita diversas cartas que o artista lhe enviara. 11 O processo de construção da personalidade michelangeana – sua terribilità, seu caráter extremamente irritável e desconfiado, sua preferência pelo isolamento e pela solidão, sua tendência melancólica, sua suposta predileção afetiva e sexual por jovens de seu próprio sexo – inicia-se, como se sabe, ainda durante o período de maturidade do artista, amplificandose enormemente após sua morte, quando novos diálogos e tratados citam-no – quase sempre arbitrariamente como suprema autoridade, e multiplicam-se as obras de arte que o representam em variados momentos de sua vida. 12 Alguns anos antes – concretamente em 1863 – publicaram-se por Cesare Guasti os poemas michelangeanos preservados no Museo Buonarroti e na Biblioteca Vaticana. Até essa data, o canzoniere era conhecido fundamentalmente por meio da versão profundamente modificada que lhe conferira Michelangelo, o Jovem, sobrinho-neto do artista, em uma edição de 1623 das Rimas. 13 Il Carteggio di Michelangelo Buonarroti, ed. de P. Barocchi e R. Ristori, a partir da edição póstuma de G. Poggi; Florença: Sansoni (vols. I-III) e SPES (vols. IV-V), 1965 (vol. I); 1967 (vol. II); 1973 (vol. III); 1979 (vol. IV) e 1983 (vol. V). concinnitas


A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas

Mastracola – a qual depende enormemente da de Barocchi/Ristori – não foram posteriormente publicadas quaisquer edições ou mesmo estudos exclusivos a seu respeito. Fora da Itália, as cartas michelangeanas receberam, similarmente, pouca atenção, não havendo nenhuma tradução completa do epistolário posterior à edição de Barocchi/Ristori e apenas escassas traduções parciais ao inglês e alemão. As cartas buonarrotianas podem, grosso modo, ser divididas em três grupos: as “cartas de trabalho”, que narram as vicissitudes relativas à realização de suas obras; 14 Um dos mais ativos membros da Accademia Fiorentina, Varchi escreveu diversos comentários sobre as obras de Dante e Petrarca, além de um tratado sobre a proporção e um libreto intitulado Della beltà e grazia. De Varchi, igualmente, é a oração fúnebre em honra de Michelangelo, a qual narra os acontecimentos principais da vida do mestre enfatizando sua aproximação ao neoplatonismo; para o literato, assim como para Vasari, as realizações artísticas buonarrotianas constituíam o vértice de uma evolução eminentemente toscana, a qual tinha nas obras de Giotto e Cimabue sua arché. O primeiro a propor uma exegese das Lezzioni de Varchi naturalmente é Panofsky, em seu celebérrimo Idea (Leipzig: Teubner, 1924); cfr., posteriormente, os textos de G. Manacorda, Benedetto Varchi; Pisa: Nistri, 1903; U. Pirotti, Benedetto Varchi e la cultura del suo tempo; Florença: Olschki, 1971; L.Mendelsohn, Paragone: Benedetto Varchi’s Due Lezzioni and Cinquecento Art Theory; Michigan: Ann Arbor, 1982, e F. Quiviger, “Varchi and the Visual Arts”; Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. 50, 1987, pp. 219-224. Alguns trechos da obra varchiana, incluindo as Lezzioni e o Della beltà e grazia, são publicados e comentados nos sempiternos Scritti e Trattati d’arte del Cinquecento editados por Barocchi (em ambos, vol.I). 15 A publicação aparece datada de janeiro de 1549 ab Incarnatione, seguindo o estilo florentino. 16 “Duas lições de messer Benedetto Varchi, na primeira das quais declama-se um soneto de messer Michelangelo Buonarroti, e na segunda discute-se qual arte seja mais nobre, a escultura ou a pintura”. 17 O mais influente e difundido estudo a respeito desse soneto ainda é o capítulo 6 do supracitado Idea de E. Panofsky. Sobre a atividade poética de Michelangelo, cfr. o recente estudo The Poetry of Michelangelo; Londres, Athlone Press, 1998, de C. Ryan, que analisa inclusive a fortuna crìtica dos poemas durante o Novecentos. Cfr. também M. Pepe, “Il paragone tra pittura e scultura nella letteratura artistica rinascimentale”; Cultura e Scuola, VIII, n.30, abril/junho de 1969, pp.120-131, além dos artigos sobre Varchi mencionados na nota 14. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

as “cartas familiares”, endereçadas a seu pai, irmãos e sobrinho, que tratam sobretudo de temas financeiros e patrimoniais; e as assim chamadas “cartas sociais”, enviadas quase sempre a amigos, mas também a príncipes, literatos, prelados, etc. Desses três grupos, aquele que possivelmente ofereça menos cartas de interesse seja o segundo – muito embora algumas delas sejam reveladoras do ponto de vista da aproximação ao seu temperamento, como as furiosas missivas que envia a seu irmão Giovan Simone e a seu pai em 1509 e 1523, respectivamente. O primeiro grupo, por sua vez, fornece uma das principais fontes – possivelmente mesmo a mais importante, junto com as biografias de Vasari e Condivi – para a reconstrução da vida e carreira artística de Michelangelo, enquanto o terceiro, contendo igualmente missivas de alto valor biográfico, as quais oferecem um vívido retrato das relações pessoais entabuladas pelo artista, comporta, de um ponto de vista literário, as mais elaboradas composições epistolares buonarrotianas. Entre estas últimas encontra-se o que sem dúvida poderia ser apontado como o mais célebre escrito michelangeano não pertencente ao canzoniere, a saber, a missiva que o mestre envia em 1547 ao historiador, literato e acadêmico florentino Benedetto Varchi (Florença, 1503 -1565).14 As razões que lhe vêm conferindo intensa fama desde a sua publicação até o momento presente são evidentes: à margem das rimas, esse possivelmente é o documento em que Michelangelo mais se aproxima de questões relativas ao que contemporaneamente se poderia chamar de teoria artística; ademais, essa é talvez a única missiva que o mestre escreve plenamente consciente de que seria destinada à publicação imediata. A carta, cuja tradução ao português será apresentada ao final deste artigo, faz referência ao segundo dos celebérrimos discursos proferidos por Varchi em Santa Maria Novella sob os auspícios da Accademia Fiorentina – ou Accademia degli Umidi, como era conhecida originariamente – em março de 1547 e publicados em Florença por Lorenzo Torrentino em 155015 sob o título “Due lezzioni di messer Benedetto Varchi, nella prima delle quali si dichiara un sonetto di messer Michelagnolo Buonarroti, nella seconda si disputa quale sia più nobile arte, la Scultura o la Pittura”.16 Em seu primeiro discurso, o humanista florentino realiza uma detalhada exegese do célebre soneto michelangeano ‘Non ha l’ottimo artista alcun concetto’,17 analisando exaustivamente seu vocabulário, indicando a influência de Dante e Petrarca, e concluindo com uma louvação de Michelangelo vinculada à doutrina do amor platônico. O segundo discurso compreende três disputas, baseadas no 107


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Livro VI da Ética a Nicômano, sobre a nobreza das artes (“Della maggioranza e nobilità dell’arti”), os méritos da pintura e da escultura (“Qual sia più nobile, o la scultura o la pittura”), e as diferenças e semelhanças entre poetas e pintores (“In che siano simili et in che differenti i poeti et i pittori”), respectivamente. A pedido de Varchi, oito artistas – Vasari, Bronzino Tribolò, Pontormo, Cellini, Francesco da Sangallo, Battista di Marco del Tasso e, naturalmente, Michelangelo – enviaramlhe cartas comentando a questão do paragone, isto é, a comparação entre as artes, tal qual foi apresentada no libreto; essas cartas, incluindo a de Buonarroti, serviram como uma espécie de apêndice à edição original das Due Lezzioni. A carta michelangeana apresentada a seguir foi requisitada ao mestre por intermédio do engenheiro e literato Luca Martini (de quem sobrevive um belo retrato de Bronzino, conservado no palazzo Pitti), ele próprio notório membro da Accademia Fiorentina e patrono das artes.18 Seu ponto culminante, ao menos no que diz respeito à sua fortuna crìtica, é a famosa definição da escultura como o que se faz per forza di levare, a qual por sua vez retoma e sintetiza magistralmente uma tradição expressa já na tratadística do Quatrocentos por Alberti – Alcuni altri incominciarono a far questo [esculturas] solo con il levar via, come che, togliendo via quel che in detta materia è di superfluo, scolpiscono e fanno apparir nel marmo una forma o figura d’uomo, la quale vi era prima nascosa ed in potenza. Questi chiamiamo noi scultori19 – e posteriormente retomada por Leonardo e pelo próprio Vasari em seu tratado Della Scultura. O tema, de resto, naturalmente já havia sido tratado por Buonarroti, em chave neoplatônica, em seus sonetos ‘Sì come per levar, donna’ e ‘Non ha l’ottimo artista alcun concetto’, comentados por sua vez por Varchi, que ressalta a derivação aristotélica do conceito da forma in potenza nella materia. Aqui, Michelangelo confronta a escultura per forza di levare à pintura per via di porre, elaborando uma imagem de extrema eficácia gráfica cuja eloqüente simetria a torna de dificílima tradução: a levar’ opõe-se porre assim como a forza opõe-se via, o que sugere uma concepção do operar escultórico como um processo dinâmico e de certa maneira violento – visto que deve vencer a resistência da pedra – por oposição à ausência de tensão que caracteriza a pintura.20 Como já notou mais de um estudioso, ambas as cartas, porém especialmente aquela a Varchi, têm um matiz irônico: a inverossimilhança da afirmação buonarrotiana segundo a qual o artista deveria ao libreto varchiano sua mudança de opinião quanto à superioridade, ou preponderância, da escultura sobre a pintura – a me soleva parere che la scultura fussi la lanterna della pictura, isto é, a referência fundamental desta última; sem dúvida sua verdadeira opinião – converte-se manifestamente em sarcasmo ao concluir que, parlando filosoficamente, quelle cose che hanno un medesimo fine sono uma medesima cosa, e que portanto se maggiore giudicio e dificultà, impedimento e fatica non fa maggiore nobiltà, che la pictura e scultura è una medesima cosa. Conforme o observado por Barocchi, assim, Michelangelo põe em planos distintos a “filosofia” 108

18 A editio princeps das Lezzioni inclui a carta na qual Varchi roga a Martini que envie o libreto a Michelangelo e peça-lhe o comentário; essa é reimpressa por Barocchi, Trattati d’Arte del Cinquecento fra Manierismo e Controriforma (3 volumes, doravante Trattati); Bari: Laterza, 19601962, I, p.1. 19 “Alguns outros começaram a fazer isto [esculturas] somente com o retirar, de modo que, extraindo o que em dita matéria há de supérfluo, esculpem e fazem com que apareça no mármore uma forma ou figura humana, a qual ali estava antes escondida e ‘em potência’. A esses nós chamamos escultores”. Della statua (ed. Giusti-Ferrario; Milão, 1804), p.8 (apud Vasari/Barocchi, II, p.229). 20 Cfr. tradução abaixo. 21 Trattati, I, p. 385, nota 1 à página 82. 22 No original lanterna, o que poderia traduzirse tanto por lanterna, enquanto objeto que projeta luz ao seu redor, quanto por farol em seu sentido náutico, sendo este ultimo, a meu ver, o sentido correto: a escultura não é o que ilumina a pintura, mas a sua estrela polar, sua referência e guia (“a concinnitas


A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi: considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buonarrotianas

pintura é tanto melhor quanto mais se aproxima do relevo”). 23 Sugestivamente, uma imagem semelhante aparece na carta a Varchi de Benvenuto Cellini: La differenza che è dalla scultura alla pittura è tanta quanto è dalla ombra e la cosa che fa l’ombra (“A diferença entre a escultura e a pintura é a mesma que há entre a sombra e o que produz a sombra”, Trattati, I, p. 81), isto é, o objeto “verdadeiro” e o projetado; a mesma metáfora repete-se no Disegno partito in più ragionamenti (1549) de Anton Francesco Doni, que a põe em boca do próprio Michelangelo: Io dico con Michelagnolo che è intelligente della scoltura, della pittura e del disegno perfettamente, ch gl’è differenza tanto dalla pittura alla scoltura, quanto è da l’ombra al vero (Eu digo, juntamente com Michelangelo, que é perfeitamente inteligente [nos campos] da escultura, da pintura e do desenho, que há tanta diferença entre a pintura e a escultura quanto da sombra aos objetos reais”; apud Pepe, op.cit. p. 127). 24 Refere-se à passagem da segunda disputa varchiana: Dico dunque, procedendo filosoficamente, che io stimo, anzi tengo per certo, che sostanzialmente la scultura e la pittura siano una arte sola, e conseguentemente tanto nobile l’una quanto l’altra, et a questo mi muove la ragione allegata da noi di sopra, cioè che l’arti si conoscono dai fini e che tutte quelle arti c’hanno il medesimo fine siano una sola e la medesima essenzialmente (…) (“Procedendo filosoficamente, portanto, afirmo acreditar – ou antes, tenho por certo – que substancialmente a escultura e a pintura são uma só arte, e conseqüentemente igualmente nobres; a isto me leva a razão supracitada, isto é, que as artes se conhecem pelos seus fins, e que todas aquelas que têm um mesmo fim são, essencialmente, uma só e a mesma (...)”. Trattati, I, pp.43-44). 25 No original giudicio: o anticanonico giudizio dell’occhio indicado por Barocchi, que lembra uma carta de 1570 enviada por Vasari a M. Bassi: Onde diceva il gran Michelagnolo che bisognava avere le seste negli occhi e non in mano, cioè il giudicio (“Onde dizia o grande Michelangelo que era preciso ter o compasso nos olhos e não na mão, isto é, o juízo”. Trattati, I, nota 2 à página 82). 26 No original: Io intendo scultura quella che si fa per forza di levare; quella che si fa per via di porre è simile a la pictura. 27 Segundo Barocchi (Carteggio, op.cit. IV, p. 266), esta é uma referência ao Libro del Cortegiano, I, XLIXLII (pp. 81-86 em Opere di B.Castiglione, G. della Casa, B.Cellini, editadas por C.Cordiè; Milão/Nápoles, 1960), onde o alter ego de Castiglione, o conde Ludovico de Canossa, afirma ser “(…) la pittura più nobile e più capace d’artificio che la marmoraria” (“(...) a pintura mais nobre e mais capaz de artifício que a marmoraria (isto é, a escultura em mármore)”). Para M. Pepe, contudo, tratar-se-ia de uma alusão a Leonardo (op.cit., p. 126). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

de Varchi, em cujo sistema a pintura e a escultura são concebidas como entidades abstratas, e a experiência individual do artista.21 A parte final da missiva, por sua vez, revela explicitamente a impaciência do mestre por ver-se pressionado a discorrer sobre a arte – ao que, como aqui já se apontou repetidas vezes, não parecia sentir-se inclinado – em vez de dedicar-se à sua realização. A carta michelangeana, assim, ao mesmo tempo em que procura evadir a discussão acadêmica sobre o paragone ao reconduzi-la à sua dimensão “real”, estritamente artística, uma vez mais exprime sua íntima e imutável predileção pela escultura; a equivalência entre as duas artes tal qual expressa por Varchi, porém, sem dúvida parece-lhe, ao menos do ponto de vista “filosófico”, convincente, servindo-lhe portanto como ocasião de far fare loro [pintura e escultura] una buona pace insieme, e lasciare tante dispute, perché vi va più tempo che a far le figure. ***

Carta de Michelangelo Buonarroti a Benedetto Varchi Roma, abril-junho de 1547 Messer Benedetto, A fim de tornar manifesto que de fato recebi o vosso libreto, procurarei responder, ainda que de maneira ignorante, às perguntas a mim dirigidas. Digo que a pintura parece-me tanto melhor, quanto mais se aproxima ao relevo, e o relevo, tanto pior, quanto mais se aproxima da pintura; parecia-me, assim, que a escultura fosse o farol22 da pintura, e que a ambas separasse a mesma distância que há entre o sol e a lua.23 Agora, porém, após haver lido em vosso libreto que, filosoficamente falando, as coisas que têm um mesmo fim, são uma mesma coisa,24 mudei de opinião e sustento que, se o mais elevado juízo25 e as maiores dificuldades, empecilhos e fadigas não implicam maior nobreza, então a pintura e a escultura são uma mesma coisa, e, portanto, nenhum pintor deveria desprezar a escultura em favor da pintura, e, similarmente, nenhum escultor deveria desprezar esta em favor daquela. Por escultura entendo o que se faz pelo trabalho de retirar, e o que se faz através do agregar assemelha-se à pintura.26 Basta dizer que, sendo ambas, ou seja, pintura e escultura, provenientes de uma mesma inteligência, dever-se-ia permitir que fizessem as pazes e abandonar tantas disputas, visto que se perde mais tempo com essas do que com a execução das figuras. Se quem escreveu que a pintura é mais nobre do que a escultura houvesse compreendido da mesma maneira as outras coisas que escreve, minha criada teria escritos superiores aos seus.27 Infinitas coisas restam ainda por dizer acerca de semelhante tema, mas, como disse, para isso seria necessário muito tempo, e eu tenho pouco, pois não apenas sou velho, mas quase me conto entre os mortos. Rogo, portanto, o vosso perdão. Recomendo-me a vós e agradeço-vos o mais e melhor que posso pela excessiva honra que me fazeis, a qual não mereço. Vosso Michelangelo Buonarroti, em Roma. 109


Fernando Gerheim

Fernando Gerheim. Placa poema, 2004 Foto: Jorge Emmanuel. Trabalho realizado dentro do “Projeto Faixas-Etc”, de Jorge Emmanuel, na rede viária do Rio de Janeiro (Zona Oeste), Vargem Grande Apoio: Rio Arte

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concinnitas


Este mapa é um labirinto – uma intercessão entre literatura e artes plásticas

Este mapa é um labirinto – uma interseção entre literatura e artes plásticas Fernando Gerheim*

Este ensaio pertence ao labirinto de uma interrogação maior, especulativa e filosófica, sobre a linguagem. Discutindo as origens icônicas da escrita, a cultura do alfabeto, a teoria dos signos e a filosofia fenomenista ou sensualista de George Berkeley, é proposta uma visão do cruzamento entre o verbal e o visual/material/ espacial, da poesia concreta, neoconcreta e de uma poética da escrita que atua sobre as próprias bases materiais dos sistemas e códigos que a inscrevem. Linguagem, materialidade, arte

“Pensar não é nenhum processo incorpóreo.” “A linguagem é um labirinto de caminhos. Você entra por um lado e sabe onde está; você chega por outro lado ao mesmo lugar, e não sabe onde está.” Wittgenstein, Investigações filosóficas1 Entro no labirinto da linguagem pela porta aberta por Adorno em Posição do narrador no romance contemporâneo:2 o filósofo via como fator crucial da (frutífera) crise de representação do romance o fato de a linguagem verbal, por sua própria natureza, não poder emancipar-se completamente do objeto. Havia uma exigência de objetivação dos materiais na arte em geral e anti-realista no romance que passara a se caracterizar por um “encurtamento da distância entre o narrador e o leitor”. “O narrador não pode mais narrar, mas a forma do romance exige a narração”, constatava o pensador. Disso resultavam, na expressão de Adorno, “epopéias negativas”. A aventura de um Ulisses anti-homérico só com sua linguagem. O que o filósofo detecta em relação à posição do narrador no romance pode ser extrapolado para a * Fernando Gerheim é doutor em Literatura Comparada pela UERJ. Professor do curso de jornalismo na Universidade Estácio de Sá, lecionou no Instituto de Artes da UERJ. Publicou textos jornalísticos, ensaios, contos e poemas; participou de exposições de artes plásticas. 1 Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Ed. Abril, 1979. Os Pensadores. 2 Adorno, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. São Paulo: Ed. Abril, 1980. Os Pensadores. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

literatura em geral, pois a raiz de tudo é a mesma condição moderna de imanência. De Un Coup de Dés, de Mallarmé, ao homem-tipográfico de Raoul Hausmann, da neolíngua “transmental” ou “transracional” da poesia “Zaum”, de Klébnikov, às invenções óptico-fonéticas de Kurt Schwitters, guardando as diferenças, vemos a poesia nesse cruzamento do verbal com o visual/material diante da mesma questão, para a qual foram dadas diferentes respostas ao longo da história. Fazendo uma transposição transcultural, da Europa para o Brasil, podemos ver essa vertente da linguagem verbal relacionada com alguma forma de materialidade em O Primeiro Caderno do Alumno de Poesia (1927), de Oswald de 111


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Andrade, que concebe o livro como objeto (caderno escolar) e mescla desenhos aos poemas modernistas. E na prosa antropofágica de Serafim Ponte-Grande (1933), que intervém no copyright, rompendo a fronteira dos espaços ficcional e real e alterando o sistema em que está inserida. Essa vertente deságua na poesia concreta, cujo plano piloto é publicado no mesmo ano do ensaio de Adorno, 1958. Segundo o filósofo, o romance sofria um encurtamento na distância entre o narrador e o leitor à medida que a linguagem se tornava mais presente, captando a realidade em “epopéias negativas”. A poesia concreta buscava responder à mesma questão tornando sua linguagem uma “comunicação de formas”, e não de significados, uma “estrutura-conteúdo” em que ocorreria a “coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não verbal”. Numa Europa devastada pela guerra, o mundo moderno de esferas separadas e fragmentação era visto com pessimismo por Adorno; mas, num país onde tudo estava por fazer, a integração da arte na sociedade industrial era vista com idealismo otimista. Se a pintura concreta elaborava conceitualmente os elementos plásticos sobre a superfície, a poesia concreta preocupava-se com o espaço gráfico. No branco da página, a palavra, livre de seu passado semântico, teria que fundar seu sentido no tempo mecânico e no espaço objetivo. A palavra (em geral combinada a outras palavras parecidas na grafia e no som, mas diferente no sentido) era a unidade formal mínima do poema concreto. Numa primeira fase, como ocorria na pintura, as formas verbais assumiam a forma geométrica, mas a poesia concreta produziu uma ruptura, antes de mais nada, com a ordem fonográfica da escrita alfabética. Introduziu a percepção sensível no campo da linguagem verbal. Foi a busca de uma estrutura universal que fez com que o espaço fosse pensado geometricamente, aspirando à pura idéia; mas, se a linguagem era trabalhada matematicamente pelo poeta, ganhava, pelo lado do leitor, uma realidade sensível. Olhar para as palavras, em vez de olhar ‘através’ delas. Na poesia, a própria linguagem é o objeto da comunicação. A definição mais básica de estética, segundo a teoria dos signos, é que o centro da atenção recai sobre a própria linguagem. As teorias estéticas que seguem essa linha semiológica partem de uma visão do signo como algo no lugar de alguma coisa para chegar ao signo em si mesmo, quando ele deixa de ser um espaço de projeção.3 Diante da imanência moderna, a palavra no poema concreto não quer ser mediadora, mas imediata. Entramos em um novo corredor do labirinto: o filósofo e lingüista Peirce chamou o “ícone” de “primeiridade”, o que quer dizer uma “pura qualidade” (ou um “qualissigno”). Em sua divisão do núcleo da linguagem (o signo), o cientista viu que essa “pura qualidade” não era um processo perceptivo isolado, mas já intelectual, próprio da linguagem. O qualissigno não era símbolo de um conceito, não apontava para nada além dele mesmo, no entanto já fazia parte do processo da linguagem. 112

3 A ficção já inventou uma máquina de linguagem que cria vida (um sistema de signos multissensorial animado) em La Invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares. Madrid: Cátedra, 2001. concinnitas


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Deduz-se de sua descoberta que tudo o que o homem percebe já é um signo. Desse ponto de vista, a função estética da linguagem é aquela em que o signo mais se aproxima do ícone, passando a ser, lingüisticamente falando, aquilo que ele significa. O ícone transforma a linguagem em objeto. O lingüista Saussure estava preocupado em definir os contornos de sua nova ciência e em esboçar uma ciência geral dos signos, a Semiologia. No afã de descobrir a estrutura universal da língua – um sistema de signos –, entretanto, deixou de lado o sujeito e o mundo, que teriam de ficar a cargo da psicologia e da moribunda metafísica, respectivamente. Depois que ele isolou a linguagem, o colega Hjelmslev pôde indagar-se: afinal, o que é o signo? Uma palavra, um fonema ou uma letra? E responder: só um sistema reduzido e limitado de nãosignos poderia sempre produzir novos signos, novas palavras, novas raízes, correspondendo à finalidade da linguagem que é, antes de mais nada, a de sistema de signos. Para atender à exigência de uma potência ilimitada, os signos da linguagem têm de ser formados por um número limitado. Por razões de comodidade operacional, ele chama de “figuras” os não-signos que entram como partes de signos num sistema de signos. E escreve: A linguagem, portanto, é tal que a partir de um número limitado de figuras, que podem sempre formar novos arranjos, pode construir um número ilimitado de signos. Uma língua que não fosse assim constituída não poderia preencher sua finalidade. Portanto, temos inteira razão de pensar que encontramos na construção de signos a partir de um número bem restrito de figuras um traço essencial e fundamental da estrutura da linguagem.4 Hjelmslev afirma que as línguas são, conforme sua estrutura interna, “sistemas de figuras que podem servir para formar signos”. A definição da linguagem como sistema de signos presta contas de suas funções externas, das relações da língua com seus fatores extralingüísticos, mas não de suas funções internas. Para o lingüista, a escrita não se reduz a mero fonograma. Em sua teoria, o sistema de signos da linguagem é estruturado pela escrita alfabética. Em Les origines iconiques de l’écriture,5 Anne-Marie Christin diz que as origens icônicas da escrita foram esquecidas pelo sistema fonográfico dominante no Ocidente. Ela afirma que a escrita nasce da combinação aleatória de dois modos de comunicação heterogêneos: a imagem, artefato visual fazendo apelo à receptividade de um expectador, e a língua, meio sonoro cuja eficácia implica, ao contrário, a intervenção ativa de um locutor. A maior parte das teorias lingüísticas, porém, é fundada na apreciação do visível mais segundo um léxico do que pela retina. O sistema ideográfico 4 Hjelmslev, Louis Trolle. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Editora Abril, 1978, p. 197. Os Pensadores. 5 Christin, Anne-Marie. Les origines iconiques de l’écriture. In Dossier pour la science – Du signe à l’écriture, out.-jan., Paris, 2002. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

é considerado apenas uma etapa preliminar e provisória. A impossibilidade de generalizar o princípio de representação icônico tornou necessária sua evolução para o princípio fonográfico. Assim, a escrita é apreendida como conhecimento de conceitos – e a língua é privilegiada em detrimento da imagem. Essa concepção de representação fonográfica da palavra oral implica uma dupla restrição, arbitrária, do domínio da 113


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imagem: de uma parte, limita-se às figuras, ignorando seu suporte; de outra, considera essas figuras pura ‘cópia’ do real. Christin parece de acordo com a idéia de que a escrita é uma espécie de anteparo ou suporte para a reflexão, o que equipara linguagem e percepção.6 Existe, portanto, uma relação necessária entre linguagem e materialidade. A autora afirma que diante de um ser simbólico “toda figura se dá a ver como artificial”, o que significa várias coisas: Primeiro, que essa figura participa inteiramente da superfície em que se inscreve, do ponto de vista material, pois que não pode ser dissociada do suporte físico de sua superfície; mas também que compartilha o conjunto de motivações sociais, culturais e estilísticas, que levou a escolher uma tal superfície como suporte da imagem. Isso significa igualmente que a imagem não é um dado imediato da experiência: mesmo a imagem mais realista repousa sobre convenções.7 O Ocidente planifica-se e redescobre formas claramente identificáveis e distintas, como as letras do alfabeto. A China, acostumada a interrogar o valor sutil e múltiplo dos ideogramas, aprecia primeiramente a superfície por si mesma,

Joan Brosa. Poema visual, 1971-1982 (Imagem reproduzida do catálogo “España XXII Bienal de São Paulo Brosa / Moraza / Prada”)

como o lugar do nascimento das formas e do sentido. Anne-Marie Christin afirma que o suporte ou a “tela” da imagem determina a natureza das figuras. Para compreender como a imagem pode acolher as mensagens lingüísticas e criar, combinando-as ao olho, esse produto misturado que é a escrita, ela a considera uma tela. Imagem e língua, cada qual a seu modo, agem em conjunto nesse meio híbrido. Se a língua tem por função estruturar uma sociedade e transmitir de uma geração à outra a tradição, a imagem (material ou virtual) dá a essa mesma sociedade acesso ao mundo invisível em que a língua não está em curso. Para Christin, o que traz a originalidade da imagem é o fato de que ela repousa sobre o princípio de uma “comunicação transgressiva” visando estabelecer um elo entre dois universos heterogêneos: este mundo e o do além. Seu modelo, diz ela, é o céu estrelado. Os homens descobriram um sistema de “signos” do qual não podem conhecer nem a fonte, nem o projeto, mas ao qual propõem conscientemente o enigma de ler o seu destino. Ao pintar ou gravar as figuras sobre as paredes das cavernas pré-históricas, o homem tentava um modo novo de comunicação com o invisível. Que essas figuras fossem indiferentemente simbólicas, realistas ou abstratas prova-nos que as referências próprias a cada uma delas importavam menos em sua concepção do que seu [“assemblage”] conjunto futuro, e que elas só podiam exprimir “criadores de sentidos”.8 O ‘suporte’ da escrita está ligado ao papel da predição em sua gênese. Instaurar uma “tábua de predição, definir o espaço no interior do qual os deuses vão manifestar sua vontade, é um ato fundador em todas as culturas orais”. A predição é a última mudança na metamorfose da imagem em escrita. A passagem da imagem à escrita é 114

6 Em seu ensaio, Christin cita o pré-historiador e etnólogo André Leroi-Gourhan, para quem o que está na origem do grafismo é um pensamento simbólico, e não realista. “Podese dizer que a ferramenta é conhecida em exemplos animais e que a linguagem simplesmente rearruma os signos vocais do mundo animal, mas o traço e a leitura de símbolos eram inexistentes até a aurora do homo sapiens (...) A reflexão determina o grafismo.” Christin, op. cit., p. 13. T. do A. 7 Idem. 8 Christin, op. cit., p. 15. T. do A. concinnitas


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a passagem do enigma à predição. O recurso a objetos de valor social e simbólico particularmente intenso (chifre de carneiro na Mesopotâmia, carapaça de tartaruga na China) introduziu duas noções fundamentais, que, embora não sejam indispensáveis à imagem, dela podem ser deduzidas: a da leitura – a função social do adivinho de decifrar os textos e não mais de contemplar enigmas – e a de um sistema de signos transformando esses enigmas em texto. Com a emergência dessas noções, as condições necessárias ao nascimento da escrita se acham reunidas. A escrita deseja beneficiar a comunicação entre os homens das mesmas capacidades de transgressão com que eles se ligam aos deuses. Ela transpõe este sistema para aquele da língua. Mas essa transposição não poderia ser feita adaptando-se, a cada vez, a expressão verbal à sintaxe pela contaminação que o sistema de signos divinatórios herdara da imagem. A escrita é também o meio de tirar maior proveito, pois que a vocação desse novo medium deve ser não mais representar uma língua, mas, e nisso reside seu maior efeito de transgressão e sua verdadeira utilidade, ser igualmente acessível aos leitores que não praticam a mesma língua. A escrita tem papel fundante, e não de acessório da linguagem oral. Christin lança a tese de que o sistema de escrita de uma civilização é que determina sua concepção de imagem. O que pode haver de tão ruim em aceitar as imagens para que a cultura do alfabeto tenha se desligado das origens icônicas da escrita? A linguagem alfabética, nas palavras de Anne-Marie Christin, fez-nos “cegos em matéria de escrita.” Seria possível objetar: cegos não, uma vez que o alfabeto braile, constituído por pontos perfurados no plano, é lido pelo tato, utilizando a percepção sensível. Foi a falta de percepção da materialidade da escrita que levou a tradição ocidental a criar uma concepção de imagem abstrata projetada no plano, tornando possível ao sujeito abarcar o mundo do seu ponto de vista central, com a ilusão de ser dotado de uma substância fixa e imutável. Seria preciso, ao contrário, que aquele terceiro olho que vê de fora, concebendo o mundo a partir de idéias abstratas, ficasse cego. Então a linguagem seria como aquele super-herói cego de história em quadrinhos, o Demolidor (Daredevil), que, tendo os demais sentidos superampliados, lê o mundo pelos batimentos cardíacos, cheiros e outros signos não visuais. Em An essay towards a new theory of vision, o filósofo George Berkeley (16851743) demonstra a idealidade do mundo visível e afirma que simplesmente ao olharmos para qualquer coisa já estamos interpretando signos. A distância não é visível imediatamente, mas resultado de uma adaptação mental a partir da experiência. Na verdade, somos cegos, e o Demolidor seria uma metáfora da mente humana, cujas idéias não podem ser separadas da percepção sensível. Assim como cada um sente o próprio corpo pelo contato com as coisas exteriores a ele, sente a si mesmo em contato com os signos. Podemos dizer que a linguagem é a matéria que nos dá contorno e forma. Somos cegos, a linguagem é um sensor. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Ao defender a supremacia da percepção sensível sobre o conceito abstrato como fundamento do conhecimento, Berkeley é considerado fenomenista e sensualista. Ao sustentar que a matéria é o conjunto das idéias e que toda realidade é espiritual, é considerado idealista. Em seu Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, o filósofo demonstra que a linguagem é aquela capacidade de formar idéias gerais, construídas a partir das abstrações, que consistem em separar aquilo que está junto. Conceber idéias gerais é reunir (fazer unidades) por um critério de semelhança. Ou, como diz o escritor Jorge Luiz Borges, pensar é apagar diferenças. Mas, adverte Berkeley, não se pode querer que uma idéia, geral e abstrata – por exemplo, a idéia de mão –, defina a essência, muito menos o ser mais verdadeiro de uma mão particular e concreta. “Ser é perceber”, diz o pensador. Afirmar o contrário seria supor a existência de realidades externas e estabelecer uma falsa distinção entre espírito e matéria, interioridade e exterioridade, subjetividade e objetividade. Para o filósofo, a crença no poder e na realidade da abstração gerou uma aberração filosófica: afirmar a existência de realidades externas ao espírito. Mas elas têm a substância de um fantasma, são meros nomes que nada denotam. A significação do termo substância, diz ele, baseia-se inteiramente na imaginação de qualidades. O

Giovanni Anselmo. Particulares visíveis e invisíveis ao longo do caminho para ultramar, 1994 (Imagem reproduzida do catálogo “Giovanni Anselmo XXII Bienal Internacional de São Paulo”)

externo é fundamentalmente a idéia que é percebida. A convergência entre idéia e sentidos dá origem ao conceito de sense-ideas (sensações-idéias). A poesia concreta enfrentou o problema detectado por Adorno em relação ao romance – a necessidade de a linguagem verbal emancipar-se do objeto (eis aqui nosso fio de Ariadne) –, transformando a leitura num fenômeno em que a percepção sensível converge com a experiência. Mas o tipo de unidade produzida pelo idealismo concreto provocou, em 1959, a reação neoconcreta. O movimento que aboliu as categorias e introduziu a expressão individual e a subjetividade no pensamento construtivo englobava artistas plásticos e poetas. O poema neoconcreto devolvia o significado à palavra, sua carga simbólica,9 mas a questão da emancipação do objeto aparecia de outra forma. Isso fica claro, precisamente, na Teoria do Não-Objeto, de Ferreira Gullar,10 publicada no ano seguinte. O nãoobjeto é definido como “um objeto especial em que se pretende realizar a síntese de experiências sensoriais e mentais”. No poema concreto, essa síntese era reduzida ao sentido da visão e ao tempo mecânico, e elevada pela racionalidade de um idealismo utópico acima da cultura e da história. A síntese do não-objeto não quer partir de nenhum pensamento a priori, mas ser como uma formulação primeira, que funda seu próprio espaço e sua própria forma. E isso só é possível libertando-se das amarras do nome e do uso, que estabelecem as conotações entre o objeto e o mundo a fim de que o sujeito possa apreendêlo. O não, no caso do não-objeto, refere-se a sua inserção pela cultura numa esfera ideal. É preciso que o tempo nele surja a partir de dentro, como um “tempo duração” no “espaço real”. Numa sociedade que nega ao indivíduo ser 116

9 O concretismo brasileiro, ao contrário do internacional, nunca abdicou completamente da semântica, considerada um elemento a mais na complexidade do poema. Augusto de Campos atribui essa característica da poesia concreta brasileira à forte herança literária portuguesa. Campos, Haroldo de; Campos, Augusto de; Pignatari, Décio. Plano piloto para poesia concreta. In Teoria da Poesia Concreta. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. 10 Gullar, Ferreira. Teoria do Não-Objeto. In Projeto construtivo brasileiro na arte. Rio de Janeiro: Funarte/Minc, MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1977. concinnitas


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sujeito da própria experiência é preciso uma antiarte que devolva esse poder a ele pela “participação”. Ao aproximar-se do antológico poema Lembra (1959), de Gullar, o participador vê um cubo preto sobre uma base branca, levanta-o e lê a palavra “lembra”. A palavra encontrada irradia todo o seu sentido. Ela é empregada em sua carga propriamente simbólica, não é uma imagem a ser decifrada pela percepção visual; mas ganha sua força simbólica na relação com o espaço e o gesto. Em vez de um conceito que unifica os particulares concretos num universal abstrato, ela faz parte de uma simbólica geral do corpo. O modo como a palavra se mistura aos objetos no espaço aspira ao grande labirinto sensorial e ambiental. O contexto de experimentação é diverso daquele da poesia-objeto surrealista,11 que também trabalhou com a palavra e o objeto. Uma unidade formal freqüente das contribuições de artistas plásticos para esse campo de interseção é o livro. É o que ocorre, por exemplo, nos manipuláveis Livro da Criação (1960), de Lygia Pape, Gibis (1970), de Raimundo Colares, e no Livro de Carne (1979), de Artur Barrio, lido pelo corte/ação. Hoje, quando a arte está aberta à manifestação total, e todos os meios estão disponíveis, a palavra pode ser abordada tanto do ponto de vista das artes plásticas, como visualidade conceitual, quanto do ponto de vista literário, como “literatura expandida”.12 11 Hélio Oiticica afirma que a poesia-objeto surrealista mistura palavra e imagem mantendo o objeto intacto, e comenta a respeito dos poemas-objeto de Roberta Oiticica em um de seus Penetráveis: “(...) são como inscrições no material que lhes dá a completa significação – a frase, o poema, estão inscritos numa estrutura-objeto: o tijolo, o isopor, o concreto, a madeira: não se sabe onde começa o material a ser poema ou passa este a ser material. Estes poemas-objeto, entretanto, pedem um lugar (isto já acontecia nos não-objetos de Gullar, de outro modo), um ambiente onde devem ser achados, como algo secreto no seio dele. Essa relação é adquirida depois de o poema ser inscrito, ser ‘escondido’ ou colocado, fugindo assim a certas implicações literárias de cunho surrealista (aliás, os surrealistas fizeram poemas-objeto, mas o sentido destes procurava ser sempre relacionado a problemas literários, vivenciais etc)”. Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, pp. 100-101. 12 O termo “literatura expandida” é utilizado pelo artista e crítico Ricardo Basbaum a respeito de trabalhos de Artur Barrio que utilizam palavras em cadernos-livros e nas paredes do espaço de exposição. Dentro d’água. In Artur Barrio, catálogo, org. Ligia Canongia. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. 13 Trabalho apresentado na XXII Bienal Internacional de São Paulo, em 1994. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

A desintegração/integração da palavra no ato, que permite um paralelo com o desenvolvimento dos trabalhos de Lygia Clark em Caminhando e de Hélio Oiticica nos Parangolés, em 1964, pode ser vista em Particulares visíveis e invisíveis ao longo do caminho para ultramar,13 de Giovanni Anselmo, em que as duas palavras – “visibile” e “particolare” – só se materializam no corpo do espectador/ leitor/participador no exato momento em que ele passa em frente a um projetor de slides, fazendo com que elas entrem em foco. O trabalho é completado por um bloco de pedra com uma bússola incrustada e uma trilha de terra que vai do bloco à parede. O espaço magnético terrestre, invisível, as palavras luminosas, que se tornam visíveis no corpo que se move e voltam a sumir depois que ele passa, criam uma poética em que a visualidade é inseparável da palavra, e esta não elimina o particular e a diferença em detrimento do universal e da semelhança. Pode-se dizer que o trabalho do artista italiano é “o contrário do ícone”, como disse Hélio Oiticica sobre o Parangolé. O ícone transforma a linguagem em objeto, Anselmo transforma o objeto (no caso luminoso e semântico) em algo que não se congela em nenhuma forma, mas é o motor mesmo imaterial do formar-se: uma linguagem que está em movimento, como na dança. Hoje, entre a estetização do instante e a experiência transformadora do agora, um entre muitos caminhos dessa poética da palavra no espaço é atuar sobre o sistema que a inscreve – no caso abaixo, além de artístico e literário, o sistema viário, essa outra forma de movimento na leitura – incorporando suas próprias bases materiais. 117


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Alexandre Vogler. Pintura de retoque – Manhattan, restauração em guache de quebra-cabeça, 37 x 50cm, 2000/04

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O surrealismo do aqui e agora: arte, cultura de massa e interatividade

O surrealismo do aqui e agora: arte, cultura de massa e interatividade Beatriz Pimenta* O Surrealismo como movimento de vanguarda do início do século XX cantou a pedra fundamental da cultura de massa da contemporaneidade. Por suas imagens antecipou a teoria de Walter Benjamin sobre a aura do objeto e o atual debate sobre o termo pósmodernidade. O movimento não dispensou nada em sua pesquisa: imagens da cultura de massa e da história da arte, poesia, artes cênicas, meios técnicos, etc. Informações de origens diversas foram combinadas em obras que objetivaram principalmente apontar a proliferação dos sentidos e a dissolução da Verdade na modernidade. Arte, tecnologia, comunicação, publicidade

Dadaísmo e Surrealismo Enquanto a maioria das vanguardas da arte moderna no início do século XX buscou fazer um contraponto ao objeto industrializado, o Surrealismo, denominado por Benjamin “o último instantâneo da inteligência européia”, ao contrário das outras vanguardas, não buscou diferenciar-se da cultura de massa, mas apropriou-se de seus clichês, criando a partir deles uma poética peculiar. Paralelo a todo o non sense promovido pela guerra, o Dadaísmo, como movimento que deu origem ao Surrealismo, montou, por meio da colagem, um mecanismo de denúncia que dialogava diretamente com a informação impressa. * Beatriz Pimenta é artista plástica e mestre em Linguagens Visuais pela EBA-UFRJ. Foi professora contratada do Instituto de Artes da UERJ em 2004 e atualmente desenvolve pesquisa na área de comunicação no Núcleo de Tecnologias em Educação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio na Fiocruz. 1 Stangos, Nikos. Dawn Ades. Dada e Surrealismo. In Conceitos da arte moderna, trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1994, p. 91. Breton afirma que a origem de seu interesse pelo automatismo foi Freud. O poeta, quando estudante de medicina, esteve ligado a práticas terapêuticas que revelavam o inconsciente dos soldados feridos na Primeira Guerra Mundial. 2 Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/36). In Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

No Dadaísmo, a partir da técnica de fotomontagem, além da produção de imagens totalmente non-sense, também foram criadas colagens com mensagens direcionadas, como as imagens originais do nazismo que foram convertidas em antipropaganda nazista. Posterior ao Dadaísmo, o Surrealismo foi mais neutro politicamente, concentrou-se na subjetividade buscando pesquisar na formação das imagens fatores psicológicos. O Surrealismo em seu tempo encontrou na teoria do inconsciente de Sigmund Freud1 um modelo prático e uma base teórica, mas hoje nas teorias da comunicação interessa mais ver a origem do movimento como efeito da “era da reprodutibilidade técnica”, de que vai falar Benjamin2 no final dos anos 30. Quando Benjamin se refere à perda da aura do objeto, compõe um verdadeiro arauto sobre a arte e comunicação contemporâneas, e, mesmo quando não cita o movimento, aborda diretamente questões que o Dadaísmo e o Surrealismo no campo das artes visuais já vinham explorando desde a primeira década do século XX. Benjamin, apesar de não considerar os movimentos da arte 119


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de vanguarda a questão mais reveladora do seu texto, não deixa de reservar um tópico especial ao Dadaísmo; sobre o qual afirma ter colocado: De novo em circulação a fórmula básica da percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística: tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge. Com isso, favoreceu a demanda pelo cinema , cujo valor de distração é fundamentalmente de ordem tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador.3 No entanto, mais do que simplesmente conter a estética do cinema antes de seu apogeu, nas imagens produzidas no Dadaísmo, podemos perceber prenúncios de teorias diversas que só se concretizaram na segunda metade do século XX, como os estudos de Michel Foucault4 sobre a loucura, a busca da lógica do sentido por Gilles Deleuze5, ou mesmo visões mais pragmáticas, como a lógica do capitalismo avançado, por Frederic Jameson.6 Num sentido comum, esses teóricos ansiavam traduzir em conceitos toda a imageria da modernidade ou pós-modernidade. Contudo, enquanto suas teorias constantemente se debatem em torno de questões semelhantes, afirmando-se, justificando-se ou provando-se verdades, as imagens dadaístas, surrealistas e pós-modernas simplesmente aparecem e desaparecem, desafiando qualquer tentativa de aprisionamento teórico. Benjamin foi um pensador que aceitou o desafio de teorizar a imagem em seu teor material e espiritual; sua análise é baseada na evolução técnica que promoverá mudanças nos conceitos de arte na era moderna. Se compararmos seus dois textos “O último instantâneo da inteligência européia” e “A arte na era da reprodutibilidade técnica”,7 podemos observar no primeiro maior ênfase ao Surrealismo na literatura e até referências às atitudes teatrais do movimento, mas pouca atenção à produção imagética da arte de vanguarda. Já no segundo, que se refere especificamente à imagem, a ênfase não está em obras específicas dessa arte de vanguarda, mas sim na técnica de reprodução da imagem, instaurada pela fotografia e pelo cinema. Nele, Benjamin, parece já estar mergulhado no surrealismo do aqui e agora, cuja falta de sentido foi gerada pela proliferação de um universo técnico. A queda do poder da Igreja ou as grandes guerras mundiais são mais conseqüências do que motivos desse mesmo universo. Como ele mesmo afirma, “pelo desemprego e pela falta de mercados, essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em material humano o que lhe foi negado pela sociedade”.8 Sob esse aspecto, podemos dizer que a principal relação do Dadaísmo e do Surrealismo com a guerra foi a de denunciar o mecanismo de manipulação da informação mediante a montagem de textos e imagens. Esse processo de virtualização do acontecimento promovido pelas novas técnicas de reprodução da imagem é também o início de um processo de transferência da guerra do campo 120

3 Id., ibid., p. 190. 4 Diversos livros de Foulcault tratam do tema da loucura, consultei particularmente Foucault, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2003, pp. 10-21. 5 Diversos livros de Deleuze tratam do tema da proliferação dos sentidos: consultei particularmente Deleuze, Gilles; Guatarri, Félix. Mil Ptôs, Capitalismo e Esquizofrenia, v. I. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. 6 Jameson, Fredric. Pós-modernismo, a lógica do capitalismo tardio. São Paulo: Ed. Ática, 1997. 7 Benjamin, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense. 1985. 8 Id., ibid., p. 196. concinnitas


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físico para o campo virtual, como costuma enfatizar Baudrillard9 em discursos apologéticos sobre sua teoria dos simulacros. Hoje, vendo o Surrealismo a distância, podemos identificá-lo como um sintoma da impotência humana diante da acelerada evolução tecnológica que irá dominar todos os setores da sociedade, e a falta de controle sobre a própria máquina que produz informação via texto e imagem, se quisermos nos referir especificamente à expansão de linguagens. O movimento, que prematuramente elaborou suas imagens dentro desse novo contexto, foi mais uma manifestação da explosão dos sentidos, da quebra da Verdade, do que uma reação ética aos absurdos da guerra. O início do Surrealismo na literatura, segundo Benjamin, 10 seria principalmente uma reação aos decadentes postulados da Igreja, a exemplo da poesia de Rimbaud,11 citado como pertencente à primeira geração da literatura surrealista com sua obra “Saison en enfer”. A poética de Rimbaud é bem diferente da poética surrealista nas artes visuais, visto que ele é diretamente contrário aos postulados católicos e se mantém durante toda a sua vida desafiando esses princípios, radicalizando mais essa negatividade quando vira antagonista de si mesmo, abandonando sua própria obra em prol de vazias expedições de exploração pela África.12 O Surrealismo nas artes visuais é mais plural, não se posiciona exatamente contra nem a favor; parece ter chegado mais perto do futuro tecnológico que apontava para a humanidade: uma posição para além do bem e do mal. De trabalhos mais abrangentes, como os ready-made de Duchamp e as telas de Magritte, às puras imagerias de Salvador Dalí, de uma maneira geral os artistas do Dadaísmo e do Surrealismo prenunciaram os desdobramentos da nossa atual cortina de signos.

O surrealismo do aqui e agora Hoje, quando constantemente objetos, pessoas e culturas se apresentam em múltiplas combinações, nada mais é inusitado, e tudo parece ser possível. 9 Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio D’água, 1991. 10 Benjamin, Walter. O surrealismo, o último instantâneo da inteligência européia (1929). In Magia e técnica, op.cit., p. 22. 11 Rimbaud, Arthur. Una Saison en Enfer (1873). In Obra Poética. Buenos Aires: Efece. 1977. 12 Breton fala que antes do movimento alguns autores já tangenciavam as idéias surrealistas, porém na totalidade de sua obra ainda estavam presos a antigas formulas literárias. “Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na vida vivida e em mais coisas”. Breton, André. Manifesto do Surrealismo, trad. Pedro Tamen. Lisboa: Moraes. 1979, p. 48. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Através de sofisticados aparelhos de captura e transmissão de imagens e sons, podemos considerar que vivemos imersos em um surrealismo integral. A lógica do movimento surrealista, que queria mostrar o absurdo da modernidade, logo foi vorazmente absorvida pelo próprio mercado de produtos industrializados mediante a elaboração de uma nova linguagem publicitária. A mudança de sentido provocada pelo deslocamento de imagens afastadas de seus lugares de origem, associadas a textos que lhes acrescentavam novos sentidos, acabou por colaborar na formação de um sofisticado método de propaganda. As combinações de imagens dadaístas e surrealistas, baseadas em procedimentos de corte e colagem, foram as bases para a construção da nossa atual cortina de signos, discutida de início por Benjamin, e atualmente por Baudrillard e Jameson. 121


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Baudrillard com sua teoria apocalíptica não deixa de representar a nostalgia de Paris como centro da cultura ocidental. Seu pensamento é essencialmente crítico e cético em relação a uma sociedade regida pelo neoliberalismo econômico. Após nos fazer ver o mundo através de uma cortina de signos ilusórios, apresenta-nos o pensamento como única possibilidade de ruptura dessa barreira que cada vez mais automatiza o humano. O pensamento deve representar um papel catastrófico, ser ele próprio um elemento de catástrofe, de provocação, em um mundo que quer depurar absolutamente tudo, exterminar a morte, a negatividade. Mas ele deve, ao mesmo tempo, continuar sendo humanista, preocupado com o humano e para isso reencontrar a reversibilidade do bem e do mal, do humano e do inumano.13 Para Baudrillard, o pensamento está além dos signos e da eficácia tecnológica, de modo que esse pensamento só pode chegar ao senso comum de forma violenta, como uma catástrofe, uma espécie de fenômeno da natureza que será sempre incontrolável, irrecusável. Para o senso comum que cegamente se automatiza por meio de signos-clichês pré-fabricados, o pensamento aparece quase como um negativo, um oposto ao sujeito, e seu imaginário cotidiano, constituído por desígnios ditados por um mercado econômico. Esse pensamento baudrillardiano costuma nos sacudir dentro dessa calmaria, quando nada de surpreendente parece poder acontecer num mundo que busca, pela eficácia tecnológica, tudo apurar. Jameson, diferente de Baudrillard, sente-se mais à vontade mergulhado na idéia da hegemonia norte-americana; situando o mundo em uma era pósmoderna, aponta-nos essa tendência quase como evolução natural do sistema capitalista, o “capitalismo avançado”. No seu artigo “Vídeo, o surrealismo sem inconsciente”,14 considera desnecessário falar de Surrealismo como movimento histórico, mas deixa claro que seu interesse pelo tema está na atual colagem e fragmentação das imagens, na sintonia autêntica da arte com a produção industrial. Em sua teoria, considera a situação pós-moderna um estágio problemático de evolução cultural num mundo que já se encontra globalizado, mediante um mesmo capital circulante e distâncias encurtadas. Jameson afirma que a predominância de manifestações culturais reflexivas, que se refiram diretamente a um contexto sociopolítico, é mais possível em países do Terceiro Mundo, pois, devido a sua dependência econômica e cultural em relação ao Primeiro Mundo, estão “condenados à autoconsciência e a um conhecimento pleno de sua própria situação, o que os países mais privilegiados estão em posição de evitar”.15 Para a cultura hegemônica, surgiu uma espécie de abstração, que resultou do esquecimento da situação nacional possibilitado pelo poder supremo e pela centralidade, mas que foi, também, ideologicamente útil na repressão de traços dessa situação que poderiam conduzir a um pensamento ou conclusões políticas.16 122

13 Baudrillard, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: Difel, 2001, p. 84. 14 Jameson, Fredric. Vídeo, o surrealismo sem inconsciente. In Pós-modernismo, op. cit. 15 Jameson, Fredric. Espaço e Imagem. Transformações da imagem na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004, p. 157. 16 Id., ibid., p.156. concinnitas


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Jameson vê no estágio pós-moderno a arte utópica como única porta aberta para o futuro, quase reconhecendo a utilidade da abstração para a conjuntura norte-americana. Em seus textos prefere analisar filmes que exploram a estética das imagens, incluindo pinturas, inovações narrativas e imagerias futuristas. Jameson dá continuidade a Benjamin em sua reflexão sobre o cinema (incluindo o vídeo e as últimas possibilidades de reprodução da imagem), considerando-o a principal manifestação artística da atualidade. Porém, diferente de Benjamin (judeu perseguido pelo nazismo e teórico hostilizado pela escola de Frankfurt17), Jameson parece estar bem acomodado nos EUA em sua posição de teórico polêmico sobre a estética pós-moderna. O cineasta Michael Moore18 ainda não foi incluído no repertório de Jameson, talvez porque a estética pós-moderna do anti-herói americano não combine com a estética do teórico ou, mais provavelmente, porque Moore aponta furos na cultura hegemônica americana. Moore, quando utiliza tragédias americanas em seus documentários, prova que ainda é possível explorar temas que despertem pensamentos e conclusões políticas no Primeiro Mundo. Em seus filmes 9/11 Fahrenheit e Tiros em Columbine, mostra como é deficiente a autoconsciência americana, principalmente em áreas afastadas dos grandes centros urbanos. Na internet, seu site, além de divulgar e comercializar seus filmes, disponibiliza métodos para que professores forneçam consciência política e histórica a estudantes americanos, que em sua maioria desconhecem razões para um atentado terrorista. Suas colagens cinematográficas, incluem todo tipo de gravação. Moore quando amarra toda a insanidade da cultura americana por meio de artifícios da própria mídia, torna verossímil aos espectadores os seus documentários fragmentários. Seus filmes se parecem com as colagens de Heartfield: a edição das imagens é que nos fornece explicação para o emaranhado das cenas originalmente desconexas que os compõem. Se ele filma, compra ou manipula essas imagens, não fica esclarecido durante a projeção; em seus roteiros, como nas colagens dadaístas, não interessa distinguir o verdadeiro do falso, o que importa é que os espectadores acreditem e se identifiquem com versões apresentadas para histórias que nunca são divulgadas em seus pormenores. 9/11 Fahenheit foi um filme premiado em Cannes, aplaudido no Brasil e divulgado nos EUA nas vésperas da reeleição de Bush. Seu principal objetivo, semelhante às ilustrações de Heartfield na época do nazismo na Alemanha, é 17 Martín-Barbero, Jesús. Dos meios às mediações, comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. No tópico Benjamin versus Adorno, na p. 76, Barbero coloca a impossibilidade teórica de um reconhecimento pleno de Adorno pelos escritos de Benjamin. 18 A resenha de lançamento do livro de Michael Moore no Brasil pode ser encontrada no site: www.michaelmoore.com.br ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

claramente derrubar a política de Bush nos EUA. As obras de Heartfield e de Moore são manipulações contrárias à manipulação institucionalizada, que, mesmo não atingindo diretamente seus respectivos alvos, ainda nos oferecem uma outra versão da história que não pode ser omitida por uma suposta cegueira do centro. Após assistir ao filme de Moore, só podemos entender a vitória de Bush como a manifestação de uma cultura neoliberal que insiste em acreditar que a 123


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máscara republicana e a hipocrisia ainda são o mais seguro para garantir sua hegemonia. Enquanto isso, Baudrillard, de Paris, vibra com a negatividade do 11 de setembro, comparando-o com a imprevisibilidade do pensamento. Em sua empolgação teórica não se prende à tragédia do evento, mas à virtualidade que se atualiza. Baudrillard diz que a própria noção de real não é mais do que uma forma de simulação e que, num mundo visto através dos signos, não é mais possível pensar limites entre sujeito e objeto. Baudrillard questiona se o virtual não seria uma opção de nossa própria civilização. O virtual seria um modo de desaparecer, uma escolha — obscura, mas deliberada — da própria espécie: a de se clonar, corpo e bens, em um outro universo, de desaparecer enquanto espécie humana propriamente dita, para perpetuar-se em uma espécie artificial.19 Manifestações de uma arte que se baseia, e aparentemente enaltece a tecnologia, como as do artista Stelarc, podem estar intimamente ligadas à visão apocalíptica de Baudrillard. O artista, em um texto que muito se

Capa do livro de Moore lançado no Brasil: Cara, cadê o meu país?, 2005

assemelha a um manifesto futurista do primeiro modernismo, afirma que nosso corpo está obsoleto, que os corpos humanos cada vez mais operam com corpos substitutos em espaços remotos. Depois de um longo delírio mais poético do que tecnológico, acaba por concluir que os corpos são efêmeros, mas as imagens são imortais. 20 Não faz mais sentido ver o corpo como um lugar para a psique ou o social, mas sim como uma estrutura a ser monitorada e modificada. O corpo não como um sujeito, mas como um objeto – não um objeto de desejo, mas um objeto de projeto.21 Tanto o corpo objetificado de Stelarc como o pensamento apocalíptico de Baudrillard podem ser vistos positivamente como visões poéticas sobre a superficialidade para a qual o pós-moderno nos aponta. Stelarc nos anos 70 mantém correspondência com Lygia Clark, mas a partir dos 80 faz próteses cada vez mais caricatas para “otimizar” seu corpo. As performances que o acompanham durante toda a sua trajetória representam o desejo humano de superação dos limites do corpo por meio de variantes culturais e tecnológicas. Paul Virilio, diferente de Stelarc, já não encara com tranqüilidade a velocidade em que se processam as imagens atuais. De maneira geral, vê tecnologia em oposição à vida humana. Os títulos de suas obras já desvendam a base de suas idéias: A bomba informática, A máquina da visão e A inércia polar. Os escritos de Virilio marcam sua desconfiança em relação à própria possibilidade de uma teoria da tecnologia, pois a aceleração das mudanças promovidas por ela motivam um pensamento situado sob o signo de uma “dromologia”. Uma aceleração que é inversamente proporcional à inércia que se torna a atividade humana.22 124

19 Baudrillard, 2001, op. cit. 20 Domingues, Diana (org.). Stelarc. Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota. In Arte e Tecnologia no século XXI. São Paulo: Unesp, 1997, p. 62. Imagens são imortais, corpos são efêmeros. 21 Id., ibid., pp. 54-55. 22 Mattelart, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1999, p. 180. concinnitas


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No entanto, a cultura de massa pós-moderna parece, ironicamente, já se apropriar das teorias da comunicação jogando com a óbvia dualidade movimento/congelamento para vender seus produtos. Numa das muitas propagandas espalhadas pela cidade para a inovação tecnológica da imagem transmitida pelo celular, o slogan era “seu oi ganha movimento, você fica paralisado”. Nesse ponto voltamos a Jameson e a sua teoria que procura não fazer distinções entre alta cultura e cultura de massa. A cultura de massa produzida pelo capitalismo avançado tem o poder de tudo assimilar e recombinar fragmentos culturais diversos em suas constantes apropriações. É ponto pacífico que o mundo atual, por muitos considerado pósmoderno, está fundamentado na fragmentação, na ruptura e no deslocamento de símbolos culturais diversos. O sujeito, antes formado a partir de um território fixo e uma cultura local, está agora em constante mutação,

Stelarc. Suspensões, 1978/85 Fonte: www.stelarc.va.au

desempenhando identidades múltiplas e cambiantes. Na identidade pósmoderna, torna-se inviável fixar uma identidade ou território; o sujeito é composto de “várias identidades, algumas vezes contraditórias ou nãoresolvidas”.23 No entanto, Stuart Hall, logo após apresentar essa definição, reconhece-a como reducionista, pois nada garante que a tal pós-modernidade ocorra em um período fixo na história, simultâneo para todas as pessoas, localidades e culturas. Hall, nesse ponto, contrapõe-se à idéia de Jameson, que se esforça para situar a pós-modernidade como um período histórico determinado pelos países de economia hegemônica. Hall faz questão de posicionar sua visão desvinculada de um território e de uma cultura específica, quando se apresenta como um negro de origem jamaicana

23 Hall, Stuart. Identidades culturais na PósModernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1992, p. 12. 24 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2003. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

que imigra para a Inglaterra a fim de aprofundar seus estudos.24 A exemplo da história de Hall, temos que constantemente examinar as fronteiras flutuantes que a toda hora aparecem a nossa volta. O Terceiro Mundo também está inserido 125


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no Primeiro Mundo, como facilmente podemos ver nas famílias americanas do Estado do Missouri dos filmes de Moore.25

Outdoor da oi, Botafogo, 2004 Foto: Beatriz Pimenta

Independente de territórios e culturas locais, podemos considerar que no cinema, na livraria, na banca de jornais, na tevê ou na internet, estamos sob uma cascata de imagens e informações que não deixa muito tempo para links – vemos muito e imaginamos pouco, sonhamos acordados em uma desconexa sucessão de imagens. Além de agentes, não seriam os meios de comunicação o verdadeiro tempo e espaço do pós-moderno? Em especial a internet apresenta-se como o espaço construído sob medida para uma estética pós-moderna, um espaço que se diz interativo, essencialmente formado de possibilidades que eventualmente se atualizam. Na rede, apresentamonos essencialmente como imagem, seja por textos, fotos ou vídeos, circulando além das barreiras impostas por leis da física. Estamos na internet, por extensão, no surrealismo do aqui e agora, para além do corpo físico, da moral, do bem e do mal. O dado mais surrealista desse novo espaço é o fato de dependermos da física do corpo e da eletricidade para manter toda a sua virtualidade em movimento.

Bibliografica Livros BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: Difel, 2001. ______. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’água, 1981. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. (1935/ 36) O surrealismo, o último instantâneo da inteligência européia. (1929) in Magia e Técnica, arte e política. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense. 1985. BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad.: Pedro Tamen. Lisboa: Moraes. 1979. p. 48. DELEUZE, Gilles. Guatarri, Félix. Mil Paltôs, Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. I. Rio de Janeiro: 34. 1995. DOMINGUES, Diana (org.) Stelarc. Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota in Arte e Tecnologia no século XXI. São Paulo: Unesp, 1997. 126

25 Michael Moore, semelhante a Stuart Hall, também se apresenta como referência em seus filmes; especialmente em Tiros em Columbine e 9/ 11 Fahrenheit, ele faz questão de declarar sua profunda relação com os lugares remotos que nos apresenta. concinnitas


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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. HALL, Stuart. Identidades culturais na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1992. ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem. Transformações da imagem na pós-modernidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. ______. Pós-modernismo, a lógica do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações, comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1999. STANGOS, Nikos. Dawn Ades. Dada e Surrealismo. In Conceitos da arte moderna. trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1994. VIRILIO, Paul. A máquina da visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

Sites www.michaelmoore.com www.michaelmoore.com.br www.stelarc.va.au

TV Baudrillard, Jean. Entrevista com o filósofo na Universidade Candido Mendes transmitida pelo Canal Universitário, Rio de Janeiro, julho de 2003.

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Concurso para o Grande Prêmio de Roma em 1805 na Classe das Artes do Instituto de França em Paris. Tema escolhido para Pintura Histórica: Morte de Demóstenes. Obras dos candidatos: 1 - Boisselier (ganhador); 2 e 3 – anônimos; 4 - Rouget; 5 e 6 - Drölling. Fonte: Grunchec, Philippe. La peinture à l’Ecole des Beaux-Arts; les concours des Prix de Rome 1797-1863. Paris: Ecole nationale supérieure des Beaux-Arts, 1986, tome II (Pièces d’archives et oeuvres documentées), p. 34. 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890 128 concinnitas 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890


História, arte e estilo no século XIX

História, arte e estilo no século XIX Sonia Gomes Pereira* A partir da constatação das limitações da historiografia tradicional sobre a arte brasileira no século XIX, o artigo reflete sobre a importância fundamental que a noção de estilo assumiu na constituição da disciplina História da Arte, suas diferentes abordagens em autores da época e a retomada dessa discussão na pós-modernidade. Historiografia do século XIX, arte brasileira, conceito de estilo

Grande parte da historiografia sobre a arquitetura brasileira do século XIX apresenta a tendência dominante de trabalhar com divisões rígidas entre estilos, enfatizando a oposição entre o barroco/rococó e o neoclassicismo no início do século XIX e, em seguida, entre o neoclassicismo e o ecletismo no final do século XIX / início do XX. Essa postura decorre de outra noção, ainda generalizada na literatura sobre arte brasileira: a idéia de que há uma correspondência “natural” entre as linguagens artísticas e os períodos históricos; assim o barroco predominaria na colônia, o neoclassicismo no Império, e o ecletismo na Primeira República. Esses esquemas redutores sobrevivem na historiografia tradicional, apoiados numa metodologia fundamentada basicamente na “pinçagem” de alguns fatos históricos relevantes, tais como a chegada da Missão Francesa e a abertura da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro ou a vinda de alguns arquitetos destacados, como Grandjean de Montigny, em torno dos quais toda a narrativa histórica é construída. No entanto, suspendendo, mesmo que temporariamente, a questão das atribuições ou as preocupações meramente estilísticas, é possível observar, na prática arquitetônica do século XIX, um conjunto muito mais complexo, em que vários elementos estão interligados: a persistência de formas e técnicas coloniais; a necessidade de novos programas e funções; a incorporação de materiais importados; a diversificação dos agentes; os novos processos de formação profissional de arquitetos e engenheiros; além da sincronicidade de várias linguagens formais, mediante a recorrência aos estilos do passado (barroco e rococó) e a apreensão dos estilos então contemporâneos (neoclassicismo e outros revivalismos, além do ecletismo e do art nouveau). Portanto, em lugar * Sonia Gomes Pereira é professora titular da Escola de Belas Artes da UFRJ. Fez mestrado na Universidade de Pennsylvania, doutorado na UFRJ e pós-doutorado no Laboratoire de Recherches sur le Patrimoine Français/CNRS em Paris. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

de uma só feição dominante, coexistem técnicas, programas e estilos do passado e do presente, evidenciando a permanência da tradição colonial, entrelaçada ao desejo de modernização e à necessidade de construção imaginária da nova nação. 129


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Os mesmos esquemas redutores podem ser encontrados na maioria das obras de referência sobre pintura e escultura do século XIX no Brasil. Essa historiografia, produzida a partir das idéias modernistas e comprometida com sua militância, construiu uma narrativa dicotômica, enraizada no confronto radical entre vanguarda e academicismo. A compactação da arte desse século sob o único rótulo de acadêmico desfigurou o reconhecimento de suas diferenças internas e afastou o interesse dos estudiosos do confronto direto com as obras e os artistas. Além disso, a superposição, quase unânime, entre as noções de neoclássico e acadêmico acarretou também vários problemas: resultou na dificuldade de verificar, na produção brasileira, as claras ressonâncias dos movimentos europeus contemporâneos (romantismo, realismo, impressionismo e simbolismo); induziu a que fossem tomadas como expressões menores, incapazes de atingir o grau de qualidade da matriz européia – idéias e formas fora do lugar;1 e ofuscou o entendimento do processo de academização daqueles movimentos na própria Europa. A partir dos anos 60, com a pós-modernidade e a contestação dos paradigmas modernistas, retomou-se o interesse pelo século XIX. Essa produção crítica recente tem revelado alguns pontos fundamentais, como o equívoco em generalizar territórios estanques para a vanguarda e o academicismo e, sobretudo, uma compreensão mais profunda de como se colocava na época o dilema entre tradição e modernidade. No entanto, a dificuldade em entender a diversidade artística do século XIX, tanto na Europa quanto no Brasil, não se deve apenas às interpretações da historiografia comprometida com o modernismo. No próprio século XIX, muitos artistas e teóricos mostravam-se perplexos, sobretudo no caso da arquitetura, com a falta de um estilo próprio, característico de seu tempo, e com a dificuldade em conciliar a tradição com as demandas e conquistas contemporâneas. Na verdade, essa dificuldade tem raízes mais profundas, relativas à própria constituição da história da arte e a importância primordial que a noção de estilo assumiu em sua definição como disciplina autônoma. O objetivo deste artigo é exatamente refletir sobre essa relação entre história, arte e estilo no século XIX, destacando, no contexto em que esses conceitos foram então colocados, dois fatores primordiais: a problematização da tradição clássica e o desenvolvimento do historicismo. Sabemos que, etmologicamente, a palavra estilo vem do latim stilus, que, entre os romanos, designava o instrumento usado para a escrita. Por metonímia, passou a designar também a maneira de escrever de um escritor. Toda essa discussão de estilo entre os antigos pertencia ao campo da retórica, que analisava, sobretudo, a escolha das palavras e sua pertinência às diferentes ocasiões, seguindo a doutrina do decorum. Essas noções da retórica espalharam-se para outros campos, como a música, a arquitetura e as artes plásticas. Da mesma forma, a associação entre poesia 130

1 Expressão tomada de Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1981. concinnitas


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e pintura – a célebre Ut pictura poesis, estabelecida por Horácio no século I – manteve-se praticamente inquestionável, até ser repelida por Lessing em seu ensaio Laokon, de 1766, que estabeleceu as fronteiras entre os dois campos, atribuindo às artes plásticas uma linguagem específica. Mas é a partir do Renascimento que os termos estilo, maneira e gosto aparecem com mais freqüência, alternando-se com significações praticamente simétricas. Giorgio Vasari utilizava a palavra maneira, como fica evidente em sua obra principal, Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, publicada em 1550.2 Já Giovanni Pietro Bellori empregava estilo, que definia da seguinte forma: “maneira particular ou ainda modo de pintar e desenhar nascido do gênio particular de cada um na aplicação e no emprego das idéias”.3 Denis Diderot, por sua vez, preferia gosto, termo que também foi usado por Johan Joachin Winckelmann em vários de seus ensaios.4 Para acompanhar a genealogia da noção de estilo, é interessante analisar melhor como Vasari entende estilo. Ele atribui à maniera uma variedade de significados para identificar tanto um artista ou grupo de artistas quanto um período cronológico, mas certamente a questão de um estilo nacional está fora de suas preocupações. Imprime a sua teoria do belo ideal um sentido de continuidade, em analogia à natureza. Assim, organiza as biografias dos artistas em seqüência, o que evidencia uma lógica interna: sua concepção de que a arte segue o mesmo ritmo dos seres vivos, passando pelo processo de infância, maturidade e declínio. Estando Vasari convencido da finalidade da arte como construção do belo ideal, seu maior interesse volta-se logicamente para a fase do apogeu, que ele localiza nos romanos, entre os antigos, e em Michelangelo, entre seus contemporâneos. Naturalmente, a discussão de estilo ou maneira, nesse momento, está inteiramente circunscrita ao campo mais amplo daquilo que se constituía, naquela época, a tradição clássica. É necessário destacar aqui alguns traços constitutivos da concepção de classicismo, que são importantes para a discussão da noção de estilo. Uma das noções fundadoras da tradição clássica é a prioridade do desenho. Daí decorre a formulação da doutrina acadêmica em torno da importância do desenho 2 Vasari, Giorgio. Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos de Cimanue ao nosso tempo, descritas em língua toscana por Giorgio Vasari, pintor aretino, com uma introdução útil e indispensável sobre as diferentes artes,1550, 2 v. 3 Bellori, Giovanni. Osservazione de Nicolò Pussino, 1672. 4 Como exemplo: Winckelmann, Johan Joachin. Riflessioni sulla bellezza e sul gosto della pintura, publicado em alemão em 1762 e em italiano em 1780. 5 Panofsky, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

na constituição da obra de arte, motivando sua prioridade na formação do artista. Mas é preciso destacar que o desenho é tomado aqui não apenas como técnica, mas, sobretudo, como projeto inicial da obra. Mantinha-se intacto, portanto, o conceito, originado na Antigüidade e retomado no Renascimento, de que as artes visuais eram precedidas por uma idéia e era exatamente esse a priori mental que justificava a reivindicação de reclassificá-las como liberais, e não mais como mecânicas, como se fazia até então.5 O método de ensino acadêmico – que se implantou na Europa a partir do século XVI justamente para combater a tradição empírica das corporações de ofícios medievais e fortalecer a teoria clássica na formação dos artistas – estava 131


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estruturado em clara separação entre o projeto da obra e sua realização posterior.6 Não deixa de ser interessante pensar na repercussão desse tipo de treinamento conceitual do artista para o desenvolvimento futuro de algumas das vanguardas modernas, apesar da ruptura do impressionismo e sua condenação de vários dos elementos constitutivos dessa metodologia de ensino: o esboço a priori e a obra dentro do ateliê. No caso da arquitetura, uma historiografia recente tem enfatizado a importância na formação do arquiteto desse sistema de ensino e a repercussão desse método de trabalho na formulação da teoria modernista, colocando em evidência o fato de toda a primeira grande geração de arquitetos modernos ter sido formada no sistema Beaux-Arts.7 Outra noção fundamental na tradição clássica é a importância da composição. Por composição, porém, entendia-se muito mais do que a simples solução formal da obra. Logicamente, o resultado formal do conjunto era muito importante, pois o artista deveria demonstrar a habilidade em reunir os diversos elementos constitutivos da obra, atendendo às regras de proporção e harmonia. A composição, no entanto, envolvia também a adequação da solução formal ao tema, respeitando as exigências de natureza iconográfica para os diversos gêneros: religioso, mitológico, alegórico, histórico, retrato, natureza-morta, paisagem, entre outros. Além disso, a composição exigia do artista o conhecimento de toda uma tradição, compreendida, sobretudo, pelos modelos antigos e do Renascimento, e que ilustrava como os grandes mestres resolveram os problemas de adequação da forma às características do tema. Isso implicava, em termos de formação do artista, a necessidade de ver os modelos; daí o esforço de realizar, sempre que possível, as viagens à Itália e de copiar aqueles modelos, fosse in loco, fosse por meio de reproduções pintadas, gravadas, esculpidas ou moldadas. As academias de arte, mesmo as mais afastadas dos modelos europeus, sempre procuraram prover suas coleções desse material didático, imprescindível nessa estrutura de ensino.8 Tomando, assim, a composição como uma escolha complexa, muito além da simples solução formal, é preciso enfatizar que ela estava integrada à idéia a priori da obra. Daí o método de ensino acadêmico dar tanta importância ao esboço inicial, destacando-o de sua realização posterior. Sabemos que os concursos realizados nas academias – tanto os simples exercícios de aprendizagem quanto os concursos para premiações e mesmo os de escolha de professores – estruturavam-se claramente em duas fases: a realização, em tempo determinado, de um esboço, no interior da academia, num espaço isolado e sem comunicação com o exterior; e a realização posterior da obra, o que, no caso francês, ocorria fora da escola, nos ateliês particulares, devendo o candidato apenas retornar com a obra pronta no prazo determinado. Essa estruturação dos concursos evidencia que a importância do esboço inicial deve-se ao fato de ele revelar a capacidade do candidato na escolha da composição da obra. 132

6 Pereira, Sonia Gomes. “Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão”. In Arte & Ensaios, PPGAV/EBA/UFRJ, n. 8, 2001, pp. 73-83. Pereira, Sonia Gomes. “O ensino de arquitetura e a trajetória dos alunos brasileiros na École des Beaux-Arts em Paris no século XIX. In Pereira, Sonia Gomes, org. 185 anos da Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: EBA/ UFRJ, 2002, pp. 93-177. Pereira, Sonia Gomes. “Desenho, composição, tipologia e tradição clássica – uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19”. In Arte & Ensaios, PPGAV/EBA/UFRJ, n. 10, 2003, pp. 40-57. 7 Egbert, Donald Drew. The Beaux-Arts tradition in French architecture illustrated by the Grand Prix de Rome. Princeton: Princeton University Press, 1980. Comas, Carlos Eduardo Dias. “Teoria acadêmica, arquitetura moderna, corolário brasileiro”. Revista Gávea, n. 11, 1994, pp. 181-193. 8 O Museu D. João VI da EBA/UFRJ, que conserva parte do acervo da antiga Academia Imperial de Belas Artes, depois Escola Nacional de Belas Artes, possui uma coleção desses recursos didáticos. As moldagens em gesso foram encomendadas ao Museu do Louvre (que fornecia essas cópias para academias de vários continentes, constituindo significativa fonte de renda para o museu). As cópias pintadas de obras dos mestres europeus foram, em geral, executadas pelos alunos ganhadores dos prêmios de viagem. E as gravuras européias foram sendo adquiridas ao longo do tempo para suprir as lacunas da coleção didática da Academia. concinnitas


História, arte e estilo no século XIX

A composição, portanto, estava circunscrita à fase projetual. É importante agora enfatizar que ela constituía, na época, um saber em geral não codificado teoricamente e restrito à prática dos ateliês. Tratando do ensino de arquitetura, David Van Zanten9 destaca a importância dessa prática projetual, evidenciando que, no âmbito da École des Beaux-Arts, em Paris, a composição era ensinada nos ateliês e permaneceu sem teorização até o século XVIII10. As tentativas de codificação desse saber só surgiram a partir do século XIX: inicialmente, com as obras de Jean-Nicholas-Louis Durand,11 que foram adotadas pelos alunos tanto de arquitetura quanto de engenharia, e, mais tarde, com as publicações de Julien Guadet, professor de Teoria da Arquitetura na École de 1894 a 1908.12 9 Van Zanten, David. “Architectural composition at the École des Beaux-Arts from Charles Percier to Charles Garnier”. In The Architecture of the École des Beaux-Arts. New York: Museum of Modern Art, 1977, pp. 111-324. 10 No final do século XVIII, um novo método de composição foi sendo refinado na prática dos ateliês, principalmente nos concursos para o Grand Prix de Rome , e permaneceu basicamente inalterado por todo o século XIX. Este novo método de composição caracterizavase pela combinação de uma rede de eixos cruzados com uma trama ortogonal modulada, garantindo grande versatilidade às possibilidades de adaptação do projeto a programas e mesmo estilos diferenciados. Foi exatamente a versatilidade desse método compositivo que fez a fama da Beaux-Arts, facilitando, aliás, sua internacionalização. Van Zanten, op. cit., pp. 162 e 191. 11 Jean-Nicholas-Louis Durand (1760-1834), arquiteto formado pela Academia Real de Arquitetura de Paris, foi professor de arquitetura na Escola Politécnica a partir de 1796. Escreveu duas obras que se tornaram manuais obrigatórios para os estudantes de arquitetura e engenharia em todo o século XIX: Recueil et parallèle des édifices en tout genre, anciens et modernes, remarquables par leur beauté, par leur grandeur ou par leur singularité, et dessinés sur une même échelle. Paris, 17991801. Durand, Jean-Nicholas-Louis. Précis des leçons d’architecture données à l’École Polytechnique. Paris, 1802-1805. 2 v. 12 De 1901 a 1904 Julien Guadet publicou os quatro volumes de Élements et théorie de l’architecture. 13 Loyer, François. “Ornement et caracterère”. In Le siècle de l’ eclectisme: Lille 1830-1930. Paris/ Bruxelles: Archives d’architecture moderne, 1977; Patetta, Luciano. “Considerações sobre o ecletismo na Europa”. In Fabris, Annateresa, org. Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

No caso da arquitetura do século XIX, muito se avançou a partir de alguns trabalhos de reavaliação crítica do ecletismo, como os de François Loyer e de Luciano Patetta.13 Suspendendo o ponto de vista modernista, esses estudos retomavam o ecletismo como um sistema diferenciado de valores e práticas, destacando, entre outros, a função do ornamento como elemento que confere caráter à arquitetura. Seria uma verdadeira architecture parlante, em que o ornamento tem um valor associativo, conotando certas linguagens a determinadas funções. Assim, um dos traços recorrentes da arquitetura historicista é a associação entre programas e estilos, tais como os prédios religiosos e os estilos medievais; ou os monumentos públicos e o neoclássico ou o neo-renascimento; ou os pavilhões voltados para o lazer e os estilos exóticos. Constitui-se, assim, numa verdadeira tipologia definida pela relação entre estilo e função ou entre estilo e partido. A questão da tipologia mostra-se, nesse contexto, muito importante, sendo, naquela época, recurso historiográfico freqüente. A partir do século XVIII, tornaram-se bastante comuns os levantamentos de monumentos históricos, agrupados por tipologias, que tanto podiam ser ditadas pela função comum quanto pela recorrência a um mesmo padrão formal. Certamente, esse procedimento foi sugerido pelos novos métodos científicos da época, em que a exposição conjunta dos espécimes era fundamental para a identificação de semelhanças e diferenças, levando a sua classificação. É nessa direção que se pode analisar o uso que Durand fez da tipologia, apoiado no levantamento histórico e concretizando-a em catálogos de prédios com funções ou partidos similares, em que ficavam evidenciados os padrões comuns. Para Durand, o tipo era uma composição característica de projeto, que, apesar de não ter mais a autoridade de um cânone, concentrava a força de uma tradição histórica. É importante assinalar, porém, que essas pranchas de Durand, apesar de decorrentes de conhecimento histórico, acabavam gerando uma tipologia acima da história e da geografia, exatamente o contrário da noção de estilo, pois, se o estilo era determinado temporal e espacialmente, tal não acontecia com o tipo, que se 133


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ancorava em características comuns, em termos de função ou partido. Diante dessas pranchas, é como se o arquiteto tivesse exposto diante de si toda uma tradição arquitetônica a sua disposição para ser reutilizada nos prédios contemporâneos. Mais do que imitar simplesmente o passado, trata-se de tirar proveito de sua notável experiência. Sua exemplaridade avaliza as escolhas do arquiteto e garante a legitimidade de sua arquitetura. Temos aqui, também, todo um processo de escolha entre alternativas possíveis, como aquela que Gombrich indica como sendo específica do trabalho artístico, como será visto adiante. Assim, a composição passava a ser entendida como a escolha do artista entre várias soluções possíveis, tomadas dos modelos nobres da tradição européia, que constituíam uma verdadeira tipologia. Recorrer a essa tipologia não constituía desmérito, nem implicava plágio, como alguns críticos posteriores acreditaram; ao contrário, significava alinhar-se a uma tradição memorável, dando-lhe continuidade. O mesmo ocorria em relação à pintura e à escultura, em que tanto o aprendizado nos ateliês quanto os diversos concursos destacavam a importância de uma tradição de tipologias compositivas, que entrelaçam soluções formais com gêneros, temáticas e iconografia. Acreditamos que falte aos estudos atuais sobre as artes plásticas do século XIX maior compreensão do papel dessas tipologias. A literatura nesse campo ainda fica muito restrita à discussão dos estilos, ignorando que, na prática dos artistas da época, na maioria das vezes, as escolhas eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Essa carência torna-se mais problemática no enfrentamento da produção do século XIX, quando verificamos que a expansão do sistema de ensino acadêmico ampliou a divulgação dessa tipologia, praticamente internacionalizando-a. Também na pintura e na escultura, esse saber era construído e transmitido na prática dos ateliês e, em geral, não foi codificado nem nos tratados teóricos nem nos escritos dos próprios artistas, como nos de Ingres.14 A maioria dos escritos sobre arte, desde o Renascimento até praticamente o século XIX, trata apenas de assuntos doutrinários, integrando-se ao objetivo geral da criação das academias. O artista sempre aprendeu a prática de seu ofício no ateliê, como havia sido desde os tempos medievais. Só as teorias – no caso as idéias clássicas – eram divulgadas e defendidas nas palestras nas academias e nos tratados doutrinários. Assim, não cabia a esses textos ensinar ou fazer referência aos problemas práticos da execução da obra. No entanto, esse saber prático existia de fato e era produzido e ensinado no cotidiano dos ateliês. Apesar de não codificado nos tratados contemporâneos, era transmitido pelos mestres de ateliê e constituía a base conceitual para o julgamento dos trabalhos nos concursos. A enunciação dos princípios que regiam a composição pode ser parcialmente revelada pelos pareceres dos júris desses concursos, embora restritos, em geral, a fórmulas estilizadas e sucintas.15 134

14 Ingres, Jean-Auguste-Dominique. “Commentaries on Art”. In Taylor, Joshua C. (ed.) Nineteenth-century theories of art. Berkeley: University of California Press, 1987, pp. 105-120. 15 Na documentação da Academia Imperial de Belas Artes, depois Escola Nacional de Belas Artes, conservada no Museu D. João VI da EBA/UFRJ, nos Livros de Atas da Congregação, aparecem esses pareceres relativos aos concursos de diversos níveis: comuns, para aferição do adiantamento do aluno, para prêmios de viagem e para professor. concinnitas


História, arte e estilo no século XIX

Outro ponto importante a ser destacado na constituição da tradição clássica é a própria conceituação da palavra clássico e sua aderência inicial a uma determinada concepção de mundo. A simetria entre sistema acadêmico e tradição clássica parece óbvia, mas um exame mais detalhado evidencia a diferenciação no interior do próprio conceito de clássico a partir do século XVIII. O termo clássico sempre envolveu a idéia de forma de expressão que atingiu o apogeu, passando a ter caráter exemplar e normativo. É com esse sentido que aparece na Enciclopédia, correspondendo, no caso da França, à arte e sobretudo à literatura do tempo de Luís XIV. O conceito fundador do classicismo, porém, sempre foi a aderência a uma concepção de mundo imutável, cabendo à arte imitar a ordem da natureza, pautando-se pelo exemplo dos antigos, que haviam conseguido realizar essa imitação da forma mais perfeita possível. Esse pensamento foi hegemônico, desde o Renascimento até o século XVIII, com poucas dissidências. No caso da arquitetura, por exemplo, a aceitação desse conceito foi praticamente geral desde Leon Battista Alberti até Jacques-François Blondel, sendo raras as discordâncias.16 No entanto, a partir do século XVIII, a hegemonia desse classicismo vai ser abalada pelo desenvolvimento do pensamento iluminista e da ciência, pela crise da metafísica clássica e pelo aparecimento da história. O relativismo e o evolucionismo serão a base tanto do historicismo quanto do movimento moderno. A problematização da tradição clássica vai tornar-se aparente sob várias formas. Uma delas é a tomada de consciência da diversidade dos modelos clássicos e as discussões sobre suas validade e hierarquia. Mesmo em meio àqueles que continuam fiéis à doutrina clássica, há uma grande discussão sobre as fontes e os modelos históricos a serem seguidos. Para o já citado JacquesFrançois Blondel, que em 1762 tornou-se professor da Academia Real de Arquitetura, o clássico significava a Antigüidade romana, o Renascimento italiano e a própria tradição francesa a partir do século XVII. Mas seu professor adjunto Julien-David Leroy, que em 1774 se tornou professor na Academia, incluía a Antigüidade grega entre aquelas fontes – certamente resultado de sua viagem à Grécia e da publicação, em 1758, de seu livro: Les ruines des plus beaux monuments de la Grèce. A discussão sobre os modelos mais pertinentes continuou ao longo do século XIX. A famosa polêmica, no final dos anos 20, entre o arquiteto Henri Labrouste e o secretário da Academia Quatremère de Quincy girou em torno da excelência das fontes clássicas. Labrouste mostrava-se surpreso em verificar que 16 São poucas as vozes dissidentes: uma delas é a de Claude Perrault (1613-1688), o notável naturalista e arquiteto que polemizou com Nicolas-François Blondel (1617-1686), primeiro diretor da Academia de Arquitetura em Paris em 1671. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

os monumentos gregos contradiziam muitas das regras clássicas e passava a ver em Roma a academização da arquitetura grega – esta, sim, original e digna de admiração. Quatremère, apesar de tomar a arquitetura grega como ideal, considerava-a ainda na infância, enquanto os romanos, acreditava, ofereciam os 135


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exemplos mais desenvolvidos, sobretudo no período imperial. Além disso, se a arte clássica era a imitação da natureza, manifestando valores eternos e constantes, apenas um pequeno número de exemplos poderia ser tomado como modelos – e deveriam ser buscados em Roma, pois só lá a arte atingira o grau mais elevado de magnificência.17 Durante todo o século XIX, é possível acompanhar o processo longo e conflituado de rompimento com a tradição clássica – na verdade, de sua descontrução –, em que se alternam posturas mais ou menos radicais. Para Durand, o rompimento com o classicismo é mais profundo. Ele não aceitava mais a idéia da arquitetura como imitação da natureza ou dos antigos; ao contrário, acreditava que as ordens e demais formas históricas só eram importantes pela força do hábito e do costume. Assim, elaborou, como vimos, um método de projeto, que se apoiava numa tipologia, construída a partir de exemplos, fornecidos pela tradição arquitetônica e organizados segundo função ou partido. Ao contrário de Durand, Quatremère de Quincy, que foi secretário da classe das Belas Artes (depois Academia de Belas Artes) de 1816 a 1839, aceitava a validade da tradição clássica, acreditando na permanência de uma essência na arquitetura, que estaria localizada em suas origens. A diferença é que essa origem não estaria apenas na cabana primitiva, como antes se afirmava, mas em três elementos: a gruta usada pelos caçadores, a tenda dos pastores e a cabana dos camponeses – tendo esses elementos sido desenvolvidos por diferentes povos: a gruta pelos egípcios, a tenda pelos chineses, e a cabana pelos gregos. Assim, fica evidenciado que Quatremère, apesar de ainda atrelado ao pensamento clássico, já incorporara uma visão histórica e relativista. Também em relação à imitação, é possível verificar essa historicização do classicismo. Quatremère estabeleceu uma diferença entre modelo, que é uma coisa, e tipo, que é uma idéia e que constituiu a única base válida para a imitação. A essência do tipo é um princípio elementar, espécie de núcleo, mas apresenta-se diferente em cada país.18 Colocado, portanto, esse contexto geral de desconstrução progressiva da tradição clássica em confronto com o historicismo, é importante, agora, retornar à genealogia do conceito de estilo. Winckelmann, em sua obra mais importante, História da arte antiga, de 1764, retoma várias das posições de Vasari. Sua teoria também repousa na procura do belo ideal. Entendia igualmente a arte como um processo contínuo, seguindo o ciclo vital de desenvolvimento na natureza. Em outros pontos, contudo, sua postura difere totalmente de Vasari. Considera que o padrão mais alto de beleza havia sido alcançado pelos gregos, e não pelos romanos, como defendia Vasari, acompanhando, assim, o interesse crescente pela Grécia por parte de vários contemporâneos seus. Explica o gênio grego pela influência do clima: “Minerva escolheu por residência de seu povo 136

17 O regulamento para os alunos ganhadores do Grand Prix e pensionistas em Roma não mencionava claramente quais os exemplos a serem estudados, mas em geral havia o consenso de restringir-se a Roma e seus monumentos antigos, incluindo o estudo do Renascimento para reforçar a idéia de continuidade da tradição clássica, à qual estaria atrelada a arquitetura francesa a partir de Luís XIV. Henri Labrouste (1801-1875) foi o primeiro pensionista da Academia que resolveu dedicar o exercício de quarto ano (uma proposta de restauração de monumento antigo) a um exemplo grego: o templo dórico de Pestum. Neil Levine examina detalhadamente essa controvérsia entre Labrouste e o secretário da Academia, Quatremère de Quincy (17551849), incluindo seus desdobramentos na atividade posterior de Labrouste como mestre de ateliê e sua oposição à Academia (Levine, Neil. “The romantic idea of architectural legibility: Henri Labrouste and the neo-grec”. In The architecture of the École des Beaux-Arts. New York: Museum of Modern Art, 1977, pp. 325-329). 18 O verbete Type foi publicado originalmente na Encyclopédie méthodique: Architecture. Paris: Panckoucke, 1788-1825. concinnitas


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19 Winckelmann (1713-1783) e Goethe (17491832) pertenciam à geração que iniciou o romantismo na Alemanha. Gerd Bornheim chama atenção para o isolamento em que a Alemanha tinha vivido até então em relação à cultura latina, propiciando, em muitos casos, um verdadeiro sentimento de inferioridade cultural. Winckelmann tinha imperiosa necessidade de afastar-se de seu país, pois dizia-se incapaz de suportar sua “terrível e deprimente paisagem”. Sofria de uma “perene e insubstituível nostalgia – quase mórbida – pelo sol mediterrâneo”. Bornheim, Gerd. “Introdução à leitura de Winckelmann”. In Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: Uapê, 1998, pp. 78-113. 20 Aparece, por exemplo, em Montesquieu, em L’esprit des lois, de 1748. Diretamente relacionada à atividade artística, já havia aparecido em 1719, em Refléxions critiques sur la poésie et la peinture, do padre Du Bos. Bazin, Germain. História da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989, pp. 111-115. 21 Um século antes de Winckelmann, já aparecera uma história das artes: em 1698 Pierre Monier escrevera Histoire des arts qui sont rapport avec le dessin idivisée en trois livres, où il est traité de son origine, de son progrès, de sa chute et de son rétablissment, incorporando vários povos: egípcios, hebreus, babilônios, gregos, romanos, decadência da arte romana, gosto gótico, Idade Média e Renascimento (Bazin, op cit., p. 56). Não há, entretanto, em Monier, o mesmo conceito de cultura global, como em Winckelmann. 22 Gottfried Semper (1803-1879) era arquiteto, teórico e historiador da arte. Exilado da Alemanha, esteve na França e na Inglaterra, onde visitou a 1a Exposição Universal de Londres, em 1551, que muito o impressionou. No ano seguinte, publica Arquitetura e civilização. De 1855 a 1871, dirigiu a seção de arquitetura da Escola Politécnica de Zurique. Pretendia escrever obra bastante mais ampla, mas publicou apenas a primeira parte: os dois volumes de O estilo nas artes técnicas e arquitetônicas de 1861 a 1863. 23 Georges Cuvier (1769-1832) foi o criador da anatomia comparada. Criou vários princípios, como a lei da subordinação dos órgãos e a lei da correlação das formas. 24 Charles Darwin (1809-1882), após viagem à América do Sul em 1831-1836, escreveu Da origem das espécies pela via da seleção natural, publicada em 1859 – obra que teve, de imediato, imensa repercussão em vários campos do conhecimento. 25 Hippolyte Taine (1828-1893) foi professor de história da arte e estética na École des Beaux Arts de 1864 a 1874. Substituiu Viollet-le-Duc, que ficara nessa cátedra pouco tempo (de 1863 a 1864). Seu livro Philosophie de l’art, de 1865, foi acolhido quase genericamente nos ambientes acadêmicos na França e também no exterior, seguindo em paralelo a expansão das idéias francesas ligadas ao positivismo. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

favorito o clima aprazível da Grécia como o mais apropriado aos progressos do espírito e do gênio, graças à temperatura amena e ditosa que reina ali durante as diferentes estações do ano”. A valorização dos antigos, como sendo os povos que tinham atingido o mais alto grau de perfeição na construção do belo ideal, era unanimidade entre praticamente todos os artistas e teóricos desde o Renascimento. Mas quase todos localizavam essa fase áurea da Antigüidade entre os romanos, como vimos no exemplo de Vasari. No século XVIII, sobretudo em meio aos românticos alemães, cresce o interesse pela Grécia. Goethe já compartilhava desse mesmo sentimento: em sua viagem à Itália, fez questão de dirigir-se até as “praias da Sicília, onde, de pé, nas margens do Mediterrâneo, voltado para a Grécia, recitava os versos de Homero”.19 Winckelmann não foi o inventor dessa teoria que relaciona a cultura ao meio geográfico, pois a idéia da influência do clima sobre a cultura dos povos já fora formulada.20 Essa relação, entretanto, em seu sistema, tomou significativo relevo. No entanto, em outro aspecto, a abordagem de Winckelmann é completamente inovadora e terá enorme repercussão no desdobramento futuro das teorias sobre arte: ela não considera a arte grega isoladamente, mas, sim, no contexto da civilização grega tomada como uma totalidade.21 Portanto, nessa época, ao se constituir como disciplina, a história da arte consolidou uma série de noções já esboçadas – como belo ideal, estilo, continuidade e analogia com o ciclo vital –, a elas acrescentando algumas idéias contemporâneas, tais como influência do clima, concepção de povo e cultura e interesse pela história. Portanto, imbricado nas noções de relativismo, evolução e nacionalidade, o objetivo da história da arte concentra-se em torno do conhecimento dos estilos artísticos históricos e sua diferenciação regional. Ao longo do século XIX, essas mesmas noções – belo ideal, continuidade, evolução, ciclo vital, clima, povo, cultura e história – são retomadas, servindo de base a posturas bastante diferentes, mas sempre gravitando em torno do conceito de estilo. Examinemos agora algumas dessas diferentes interpretações. O arquiteto Gottfried Semper22 acreditava que todas as formas artísticas, desde as artes decorativas até a arquitetura, obedeciam aos mesmos princípios, que retiravam sua lógica das aplicações da técnica. Apoiava sua teoria nas idéias da biologia da época, especialmente nos princípios anatômicos de Cuvier23 e no evolucionismo de Darwin.24 Para Semper, o estilo geométrico, encontrado nos exemplos artísticos mais antigos então conhecidos, seria devido ao uso predominante das artes têxteis na época neolítica. Assim, a origem da arte era puramente material, regulada apenas pelas questões práticas do avanço técnico. Hippolyte Taine25 também procurou articular a arte a uma explicação materialista, mas centrou sua teoria no meio físico e social. Construiu todo um sistema histórico, cujo método consiste em procurar a causalidade da criação 137


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artística nas reações do meio sobre a arte. Embora Taine não tenha sido o inventor dessa teoria, pois, como vimos, Winckelmann já insistira nessa idéia, ele atribuiu às influências climáticas um caráter imperativo, tentando impor à história e à arte os métodos próprios das ciências. De um lado, apoiou-se na biologia, sendo sua teoria do meio uma adaptação da teoria evolucionista darwiniana e do método experimental de Claude Bernard;26 por outro lado, dá destaque ainda maior à ação dos agentes sociais sobre a produção da obra de arte, alinhando-se a idéias que se vão consolidar na Escola de Durkheim e nas ciências sociais.27 Para Taine, todas as manifestações artísticas, intelectuais, morais, religiosas e institucionais de uma época guardam entre si uma certa relação: é o que ele denominou lei das dependências mútuas. Estabeleceu entre todas elas uma relação causal, em que a arte é sempre conseqüência do meio, sendo a ação individual do artista praticamente nula. Essas teorias de Taine sobre a influência do meio físico e social sobre a arte deixaram marca profunda e persistente na história da arte, tanto na França quanto fora dela, instalando-se em vários países, na época, culturalmente francófilos – é o caso do Brasil no século XIX e boa parte do XX, como veremos adiante. Muito diferente é a posição de Alois Riegl.28 Formado no Instituto de Pesquisas Históricas de Viena, Riegl apoiou-se no método de análise histórica e comparativa, derivado da tradição filológica, e atribuiu grande importância à análise da obra em si, dando-lhe a posição central em seus estudos. Além disso, procurou sempre, na seleção de seus objetos de estudo, inserir-se nos temas polêmicos de sua época, refutando teorias consagradas e defendendo posições bastante inovadoras, que terão grande repercussão na produção teórica posterior, sobretudo nos países de língua alemã. Em sua publicação Stilfragen (Questões de estilo), de 1893, ele se dedica à análise do ornato vegetal, combatendo a teoria da primazia da técnica, exatamente discutindo sobre as artes têxteis, que tinham, como já visto, importância fundadora na teoria de Semper. Ao mesmo tempo, essa obra insere-se na polêmica da época entre o Art Nouveau (Jugendstil), muito atuante em Viena, e as idéias modernistas de combate ao ornamento, como as de Adolf Loos, que logo depois serão reunidas num manifesto: Ornament und Verbrechen (Ornamento e crime), redigido em 1908 e publicado em 1912 na revista Der Sturm. Novamente em 1901, ao escrever As artes aplicadas na época romana tardia segundo descobertas na Áustria-Hungria, Riegl rejeita as noções de que a arte romana decorra da arte grega e que o romano tardio represente o declínio da cultura latina. Não aceita a idéia de decadência e acredita que a arte romana e o período romano tardio são culturas autônomas, sem estar necessariamente relacionadas entre si numa seqüência evolutiva. Por esses motivos, Damisch questiona a crítica posterior que considera Riegl evolucionista e determinista, 138

26 Antes de se dedicar aos estudos históricos, Taine freqüentou por dois anos os cursos do Museu de História Natural de Paris. Deve decorrer daí sua familiaridade com o método experimental de Claude Bernard (1813-1878) – célebre fisiologista que descobriu as funções do pâncreas, do fígado e do sistema nervoso, sendo o mais ilustre representante da ciência experimental do final do século XIX. 27 Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o líder da sociologia francesa na corrente do naturalismo sociológico. Foi diretor da Sorbonnne, escreveu várias obras e foi diretor de L’année sociologique. 28 Alois Riegl (1858-1905) formou-se no Instituto de Pesquisas Históricas de Viena, que mantinha estreita ligação com a filologia e a Escola Francesa de Chartres. Dirigiu o Departamente de Artes Têxteis do Museu de Artes Decorativas durante 12 anos (de 1885 a 1897). Assumiu a cátedra de história da arte na Universidade de Viena em 1897. Publicou várias obras. Em 1893, Stilfragen (Questões de estilo). Em 1901, As artes aplicadas na época romana tardia segundo as descobertas na ÁustriaHungria. Em 1902, O retrato de grupo na Holanda do século XVII. Deixou manuscrita a Gramática Histórica das artes plásticas, produzida em 18971898 e publicada por Swoboda e Otto Pächt em 1963. concinnitas


História, arte e estilo no século XIX

acreditando que ele cite Darwin justamente para manter distância, pois rejeita totalmente a noção de seleção natural.29 Certamente, porém, a teoria de Riegl está centrada na idéia de continuidade, e não na de ruptura. Para ele, há uma criatividade contínua, identificada por uma série de transformações, menos pelo desejo de imitar a natureza e muito mais pelas possibilidades virtuais das formas, que constituem as leis do estilo. Segundo Riegl, não há imperativo técnico, mas, sim, uma Kuntswollen, que Otto Pächt traduz por “aquilo que determina a arte”: muito mais do que vontade, como se traduz normalmente, trata-se de uma pulsão, como no conceito freudiano. Assim como Alberti, Riegl enfatiza o ornato como arte de superfície. A passagem das artes plásticas para as artes de superfície sempre implica uma maneira de projeção, na significação geométrica do termo: representação gráfica de linhas. Essas linhas, em geral, não existem na natureza, com poucas exceções, como nas folhas, por exemplo. Mais do que a invenção do contorno, do traço e da impressão, é o ato de traçar que importa em todo desenho – indício de uma pulsão artística. Essa dimensão pulsional, entretanto, está sempre sujeita a limitações externas, do meio ou do próprio artista, e também à observância de regras e princípios, que caracterizam o estilo. Outros teóricos poderiam ser aqui mencionados, mas estes três autores – Semper, Taine e Riegl – já nos bastam para evidenciar a diversidade de abordagens em que a noção de estilo é tomada no século XIX. É bastante significativo o fato de que o problema do estilo e suas implicações para a história e crítica da arte sejam retomados nos anos 50 e 60, justamente quando se avolumam as críticas ao modernismo e começa a se constituir o PósModernismo. Meyer Schapiro escreve em 1955 o artigo Style, que se tornou clássico na área.30 Nele, Schapiro enumera as várias dimensões e conotações da palavra estilo, finalizando por reafirmar aquela que constitui, em sua opinião, a abordagem mais importante: muito mais do que o material ou o meio, é a análise da forma 29 Damisch, Hubert. “Le texte mis à nu”. In Riegl, Alois. Les questions de style. Paris: Hazan, 1992. Prefácio, pp. IX-XXI. Damisch acredita que Riegl esteja mais próximo de Lamarck (1744-1820), que apresentou a teoria da vontade animal, também examinada por Freud. 30 Meyer Schapiro (1904-1995) foi professor da Columbia University em Nova York. Esse artigo foi publicado pela primeira vez em Kroeber, Alfred, ed. Anthropology today. Chicago: University of Chicago Press, 1953. 31 Ernst Gombrich (1909-2001) foi professor do Warburg Institute, em Londres, e seu diretor de 1959 a 1976. Foi também professor nas Universidades de Oxford e Cambridge. O artigo Style foi publicado na International Encyclopaedia of the Social Sciences. New York: Marmillan, 1968, tomo 15. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

como expressão que distingue a obra de arte. O conceito é colocado em termos individuais ou, no máximo, em termos de escolas artísticas, mas ele não estende a noção para nenhuma idéia de cultura global. Relaciona essa abordagem diretamente com a teoria de arte moderna, o que parece coerente numa década em que o informalismo se revigora, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Ernst Gombrich 31 publica um artigo também intitulado Style em 1968. Sua posição é de intenso questionamento das teorias do estilo, tanto as materialistas quanto as idealistas. Na verdade, seu argumento está centrado no caráter holístico dessas teorias, que implicam sempre um a priori, que dá sentido à arte e à cultura como um todo, submetidas, assim, a um determinismo inexorável. Não aceita as tentativas de determinar a lógica interna de uma evolução, tomando-a como inevitável e genérica, pois, 139


Sonia Gomes Pereira

para ele, os estilos traçados numa evolução são sempre recortes arbitrários. Recusa também as tentativas de caracterizações sincrônicas, que vêem o estilo como expressão do espírito coletivo, criticando o Kunstwollen (“vontade” da arte), o Zeistgeist (espírito de época) e o Volksgeist (espírito do povo). Identifica em Hegel a origem dessa idéia e acredita que “toda a historiografia do XIX e parte do XX tentou se livrar dos traços embaraçosos da metafísica de Hegel, sem sacrificar sua visão unitária”. 32 Assim, todas essas teorias que têm um caráter a priori fundam-se sobre uma presumida interdependência entre estilo e sociedade, constituindo, em sua opinião, generalizações questionáveis. Para Gombrich, o futuro está em aberto, e o artista, sempre compelido a fazer escolhas. A questão central de toda a teoria da expressividade é, portanto, o conceito de escolha, estando a sinonímia na raiz de todo o problema de estilo. Logicamente essas escolhas não são ilimitadas: há restrições impostas pelas diversas situações pessoais ou do meio, mas o artista tem sempre um grau de latitude de atuação. Na opinião de Gombrich, são exatamente essas limitações e escolhas que devem ser observadas. A maneira de identificar os estilos decorre, em parte, da familiaridade com suas convenções e o preenchimento ou não dessas expectativas. Apesar dos esforços de uma morfologia científica, que pretende dar conta da constituição dos estilos, a tomada intuitiva do especialista, para ele, ainda é o melhor caminho, embora não infalível. Antes de finalizar, é interessante analisar a historiografia da arte no Brasil em relação às discussões sobre estilo apontadas na Europa. É possível verificar que a influência de Taine foi também grande no Brasil, devendo ser a referência teórica mais importante no final de XIX e início do XX, em autores como Duque Estrada e Araújo Viana. A idéia da prioridade da influência do meio sobre cultura acompanhava o movimento positivista, tão influente em meio à elite brasileira da época. Era, também, a base ideológica para um novo modelo de leitura do país, como em Os Sertões, de Euclides da Cunha: o conhecimento do território e a valorização do sertanejo. O contraponto a essas interpretações materialistas da arte demoraria a aparecer na crítica das artes visuais no Brasil. A influência dos teóricos da chamada Escola de Viena parece só despontar a partir dos anos 40 e surge em torno das discussões sobre o barroco. Os historiadores e críticos de arte do século XIX e início do XX, de maneira geral, não se preocuparam com o barroco, como pode ser visto em Araújo Porto Alegre, Duque Estrada, Araújo Viana e Morales do los Rios Filho. A valorização do barroco surge entre os pesquisadores do SPHAN, criado em 1937. Aí, porém, é importante ressaltar que o barroco é tomado, mais do que como um estilo histórico, sobretudo como uma categoria estética. Daí o interesse pelas idéias da chamada Escola de Viena, mais especificamente as de Heinrich Wolfllin: esse 140

32 Gombrich, op. cit., 1968. O pensamento de Gombrich foi muito influenciado por K. R. Popper, especialmente pela obra Pobreza do Historicismo, de 1957, que critica e refuta o holismo cultural. concinnitas


História, arte e estilo no século XIX

deve ser, um dos motivos da acolhida à pesquisadora alemã Hanna Levy e do espaço que lhe foi aberto nas publicações daquela instituição. Paralelamente, é possível observar que, desde o primeiro modernismo, havia a intenção de retomar e valorizar o colonial, que não é ainda chamado de barroco, pois nele se reconhecem a espontaneidade e a despreocupação em relação aos cânones clássicos e acadêmicos. Os estudiosos do urbanismo, durante muito tempo, trabalharam no confronto radical entre as matrizes espanhola e portuguesa para a implantação urbana em suas colônias. À racionalidade e ortodoxia do padrão “tabuleiro de xadrez” das cidades espanholas, ditadas pelas Leis das Índias, corresponderia a espontaneidade da cidade brasileira, num sistema colonial como o português, em que nenhuma legislação foi codificada a esse respeito. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, insiste nesse ponto em Raízes do Brasil, publicado em 1936. Nas últimas décadas, essas teorias têm sido questionadas por estudos recentes, que evidenciam a formação teórica e racional dos engenheiros militares portugueses – fator que garantiu a homogeneidade e a funcionalidade da arquitetura e do urbanismo coloniais, constituindo peça importante na estratégia política do império português. Assim, interessa ressaltar aqui a maneira como estes dois conceitos – primeiro, a espontaneidade da arte colonial luso-brasileira e, mais tarde, a compreensão do barroco como uma categoria estética em oposição ao clássico – vão-se acoplar, dando origem à construção de um padrão que domina nossa historiografia da arte até os dias de hoje: a idéia de que o Brasil é barroco “por natureza” e que todas as manifestações “realmente legítimas” no Brasil – sejam elas Aleijadinho, Glauber Rocha ou Oscar Niemeyer – são do campo do barroquismo. Enfim, a superação do modernismo e a confrontação com a arte e a crítica pós-modernas têm obrigado os historiadores da arte a revisões profundas em seus embasamentos teóricos e metodológicos. Superar a pretensão de que seria possível reconstituir o passado totalmente e com a máxima verdade possível; compreender a sincronicidade de processos de longa, média e curta duração, em lugar da sucessão e superação dos estilos; entender também a sincronicidade de tendências estéticas opostas (clássicas e anticlássicas, por exemplo), em lugar da sua ocorrência cíclica, todos esses passos, enfim, têm sido um desafio para o historiador da arte na passagem do século XX para o século XXI. Também no caso do Brasil estão sendo exigidas do historiador da arte uma nova postura teórica e uma compreensão mais clara dos paradigmas que embasaram e, de certa maneira, engessaram nossa historiografia.

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Luciano Vinhosa SimĂŁo

Figura 1 - Ă rvore, 2003 Foto do autor

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Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

Da prática da arte à prática do artista contemporâneo1 Luciano Vinhosa Simão* Em face do lugar que o objeto “sem qualidade” artística ocupa na cena contemporânea, adotei o ponto de vista do público e refleti sobre a singularidade da prática do artista, assim como do objeto dessa prática: a obra de arte. Se referir-se à prática artística implica reconhecer seu estatuto diferencial no campo social, seria porque o objeto dessa prática tem um modo particular de funcionamento, o qual lhe assegura autonomia. A filosofia do uso esboçada por Jean-Pierre Cometti2 e a noção de horizonte de expectativa do receptor avançada por Hans Robert Jauss 3 constituirão o fundamento teórico da discussão. Estética, arte contemporânea, poética

Por uma filosofia dos usos

* Luciano Vinhosa Simão é professor adjunto do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense e colaborador na Pós-Graduação em Artes Visuais de EBA/ UFRJ. É doutor em Études et Pratiques des Arts pela Université du Québec à Montréal. É mestre em História e Crítica da Arte pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 Uma versão deste artigo foi publicada na revista de estudos estéticos Figures de L’art n 10, l’esthétique aujourd’hui, sob o título Penser l’œuvre dans son sens élergi, na França. 2 Art, modes d’emploi: esquisses d’une philosophie de l’usage. Bruxelles : La lettre volée, 2000. 3 Pour une esthétique de la réception. Paris : Gallimard, 1978. 4 Talvez tenha sido isso que levou Baudrillard a denunciar o complô da arte: L’art contemporain joue de cette incertitude, de l’impossibilité d’un jugement de valeur esthétique fondé, et spécule sur la culpabilité de ceux qui n’y comprennent rien, ou qui n’ont pas compris qu’il n’y avait rien à comprendre. (Baudrillard, Jean. Le complot de l’art. Paris : Sens et Tonka, 1977, p. 27) (A arte contemporânea joga com a incerteza, com a impossibilidade de se ter um julgamento estético fundamentado, e especula acerca da culpabilidade daqueles que não a compreendem, ou que ainda não compreenderam que, nesse tipo de arte, não há nada para se compreender). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Considerações preliminares Para o público não especializado, um número considerável de objetos de arte expostos nos museus e galerias não passa de objetos ordinários. O readymade vem a ser o paradigma dessa situação porque, aos olhos do receptor, ele não revela nenhuma “qualidade” que se possa atribuir à prática do artista. Os fatos levam a crer que o estatuto de arte do objeto seja simples efeito dos “espaços protegidos”4. Ora, contexto e objeto, entretanto, formam uma só entidade no momento da experiência, constituindo assim a condição da recepção. Além disso, a concepção de contexto toma um sentido mais amplo do que o associado apenas às condições físico-simbólicas dos lugares de exposição; ela remete também às condições de aprendizagem dos indivíduos. Noções como a de “arte”, por exemplo, encontram seu limite nas convenções que concernem às práticas culturais. Em seu cotidiano, o grupo social apreende os objetos mediante seus modos de emprego ao mesmo tempo que os organiza em exemplos de classe ao compará-los no momento da experiência. Por outro lado, mais do que corresponder a um objeto, toda prática engendra seus objetos. Dessa forma, no centro da prática artística encontra-se a prática da obra de arte. De saída, diferentes atores sociais colaboram de diversas maneiras para a produção da obra: o fabricante engaja-se na produção material, indispensável a sua concretização; os técnicos colaboram com os procedimentos 143


Luciano Vinhosa Simão

executivos.5 De um ponto de vista mais estreito, porém, a prática da obra institui-se por duas vertentes: de um lado, concerne à prática do artista, de outro, à da recepção. A relação comum às regras é o que atravessa a obra e une os dois lados da produção. Assim, artista e público são cúmplices de um mesmo mundo: o mundo da arte. Fica evidente que, se as convenções são compartilhadas tacitamente por um grupo social, qualquer membro desse grupo poderia, servindo-se de uma delas, instaurar um evento artístico. Contudo, embora o recurso a certas convenções possa promover um tal evento, esse não seria suficiente para evidenciar a singularidade da prática do artista. Penso que o artefato pode impor-se como obra de arte mais pelo que revela do modo “fazer” do artista do que por possuir um eventual caráter “artístico” ou, ainda, por ser apreciado por uma instituição social (um mundo da arte)6. Os atributos não artísticos que integram as proposições artísticas de Duchamp, por exemplo, nos dão a prova de sua atitude iconoclasta e corrobora sua visão de mundo. Desta forma, tudo que a obra revela em sua aparência aponta também para uma ética. Uma breve comparação entre Beuys e Duchamp esclarecerá essa consideração. Ninguém contestaria que o pedaço de feltro com gordura exposto num museu tira proveito da estratégia artística de Duchamp. Mas, ao contrário desse último, Beuys investe o objeto de uma perspectiva metafórica, digamos, edificadora. Nele, a matéria da qual o objeto é composto, a gordura, vem a ser o símbolo encarnado do que a constitui: energia condensada, ponto de convergência entre isto que é visível e aquilo que não o é. Dessa forma, as obras dos artistas em questão investem em representações de mundo distintas. Fica evidente que existe uma diferença fundamental entre um simples objeto artístico e uma obra. Donde a seguinte premissa: uma crítica do objeto de arte deve hoje levar em conta um novo estatuto de obra, muito além daquele centrado no objeto. A obra deve ser abordada a partir de um ponto de vista ampliado. Enfim, penso que o ready-made possui, sim, um caráter artístico, que não seria um meio efeito dos espaços da arte. Na verdade, sendo o objeto ordinário que ele é, a Fontaine, por exemplo, incorpora em sua forma tanto as condições ambientais quanto os discursos aí produzidos. Em outras palavras, as contingências espaçotemporais são constitutivas da forma final do ready-made. Antes que se constituir como um “objeto de arte”, o ready-made é um evento artístico, na medida em que tira proveito das condições ambientais para instaurar suas qualidades. Essa reflexão, apresentada até o momento de maneira condensada, será desenvolvida ao longo deste artigo. No momento, farei uma aproximação da filosofia do uso desenvolvida por Cometti (2000)7 àquela de Jauss (1978)8, relativa ao horizonte de expectativa do receptor – as quais me servirão de embasamento teórico. 144

5 Becker, H. S. Les mondes de l’art. Paris: Flammarion, 1988. 6 Para Dickie (1973) « Une œuvre d’art au sens classificatoire est 1) un artefact 2) auquel une ou plusieurs personnes agissant au nom d’une certaine institution sociale (le monde de l’art) ont conféré le statut de candidat à l’appréciation. » (Dickie, George. Définir l’art. In: Genette, Gerard. Esthétique et poétique. Paris: Seuil, 1992. p. 22) (Uma obra de arte, em termos de classificação, é 1) um artefato 2) ao qual um ou mais indivíduos, agindo em nome de uma determinada instituição social (o mundo da arte), conferiram o estatuto de candidato à apreciação). 7 Op. cit. 8 Op. cit. concinnitas


Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

Das funções, dos usos e das regras Admitindo com Dickie (1973)9 que, no sentido amplo, a arte seja uma instituição social, ao orientar-se para o público, a obra se erige ao centro de uma arena pública em que as regras têm curso. No entanto, segundo Cometti, certas dificuldades se impõem quando aplicamos as regras às artes. Uma delas consiste em reduzir as regras aos cânones e, dessa maneira, torná-las acessíveis à razão; outra consitiria em reduzir sua compreensão aos critérios convencionais limitados a uma comunidade, de maneira que se admita que qualquer tipo de prática possa ser arte. A partir de uma abordagem dos usos secundários que estendem o emprego das palavras para além do campo das regras gramaticais, Cometti contribui para a compreensão dos usos suscitados pelas práticas artísticas no contexto de nossa cultura. Ora, se há regras, há também um “resto” que lhes escapa. Este, próprio da arte, não se concebe como linguagem primordial funcionando paralelamente à linguagem ordinária. As linguagens ordinária e poética são uma e só se diferenciam pelo uso: primário e secundário. Mais do que linguagem metafórica, há o uso metafórico da linguagem. As nuanças dependem das diferentes experiências relativas ao emprego da linguagem. Para satisfazer à exigência do “resto”, Cometti vai desenvolver uma teoria que põe em paralelo as teorias de Wittgenstein e as de Merleau-Ponty sobre a experiência do sentido na prática da linguagem. Compara os “jogos de linguagem” de um à fenomenologia do outro. O “resto” seria subjacente à noção de “expressão”, compreendida no contexto da experiência. O que ultrapassa as regras se alojaria na experiência do sentido, em que o sentimento e a cognição estão unificados. Por outro lado, há uma produtividade presente no ato de aplicação das regras que é imanente a uma “forma de vida”. Assim, as regras postas em práticas no contexto de uma comunidade participam de uma entidade coletiva ao mesmo tempo em que se somam às experiências individuais. Para Wittgenstein, as condições de aplicação das regras residem nas capacidades associdas a sua aprendizagem, e as aprendizagens são suas únicas condições.10 Se a palavra possui uma “fisionomia”, um caráter próprio, o contexto em que ela é empregada é, no entanto, o fundamental. Porque, mesmo que ela conserve os traços originais de sua fisionomia, esta entraria, nos usos, em interação com as outras palavras (outras “fisionamias”). Por conseqüência, a palavra adquire expressão sempre atual, o que lhe confere uma “qualidade especial”. Cometti enfatiza o paradoxo aparente da experiência: mesmo que ela evoque um tipo de experiência dita privada, a “qualidade” que a palavra adquire não deve nada à subjetividade, mas “evoca uma ‘interioridade’ sem instância interior”11 porque, segundo Wittgenstein, a experiência 9 Genette, G. (1992). Op. cit. 10 Cometti, op. cit., p. 12. (TA) 11 Id., ibid., p. 85. (TA) 12 Id., ibid., p. 86. (TA) ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

da linguagem se ancora em uma “forma de vida”. Cometti observa que a “experiência da palavra” em Wittgenstein está ligada à imediaticidade: “o que se exprime não está dissociado da expressão”.12 145


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Do outro lado, Merleau-Ponty distingue dois tipos de linguagem: falada e falando. Em resumo, uma linguagem aprendida e outra que se constrói no momento da expressão, de onde emerge o sentido. No discurso corrente, constituindo o que excede à gramática pura, as palavras não são os únicos elementos em jogo, porque também está ali o corpo inteiro daquele que fala: “o sotaque, o tom, os gestos, a fisionomia”.13 Segundo Cometti, o “momento da expressão” em Merleau-Ponty vai ao encontro da “forma de vida” em Wittgensttein: “nos dois casos, toda expressão é da ordem do gesto, e um só sentido que ‘saia da linguagem’ é o que a relaciona ao horizonte não-formulado, e em certa medida mudo, das circunstâncias, dos atos e dos contextos compartilhados que constituem seu pano de fundo”.14 Para Cometti, “a origem da significação” situa-se mais na emergência das regras no momento de sua aplicação e de sua aprendizagem do que numa linguagem paralela com significação predeterminada. Neste momento, eu creio ser possível fazer uma aproximação das teorias de Cometti e de Jauss, porque, na medida em que a experiência artística implica o horizonte de expectativa do receptor,15 um objeto artístico qualquer só funciona como obra caso satisfaça às exigências do receptor em relação à arte e ao mundo. Nesse caso, as experiências pessoais do indivíduo, seus desejos, suas necessidades, suas aspirações investem-se na forma artística do objeto. Se, de certa maneira, pode-se afirmar que o receptor “produz” a obra, é porque ele a reconstitui segundo suas expectativas ao mesmo tempo em que a apreende. Por outro lado, como a obra procede de intencionalidade, o confronto com ela leva o receptor a redimensionar seu universo de referências e, por conseguinte, seu horizonte de expectativas. A experiência do sentido provém então, por um lado, do objeto da experiência e, por outro, daquele que o experimenta. Nesse campo exploratório, a obra escapa às regras em seu sentido restrito. Podemos sustentar, então, que a relação artística de fato põe em curso uma produtividade. Se, para Cometti, existe um uso da linguagem e outro na linguagem, usos primário e secundário, pode-se dizer igualmente que existe um uso da arte e outro na arte, o primeiro ligado às regras, revelando a dimensão pública da experiência artística, e o segundo, à experiência do sentido, a do indivíduo em face da obra. Entre a dimensão pública e a privada existe um ponto de interseção em que reside o que Wittgenstein chamou de “forma de vida”. Essa noção remete à idéia de uma comunidade dentro da qual nos inscrevemos tão logo aspiramos a valores comuns. Posto que uma experiência coletiva participa também da experiência pessoal, um elemento de coesão social encontra-se na experiência privada do sentido. Assim, mesmo que ela se constitua em uma dimensão do coletivo, a forma de vida abraça também nossas expectativas pessoais em relação à arte e ao mundo. Lá onde aspiramos a uma forma de vida, a experiência privada nos religa ao mundo e nos subtrai da alienação. 146

13 Id., ibid., p. 100. (TA) 14 Id., ibid., p. 101. (TA) 15 Jauss (1978) sustenta que o horizonte de expectativa do receptor é modelado tanto estética quanto sociologicamente. Assim, esse horizonte diria respeito tanto aos códigos estéticos compartilhados por um grupo social quanto aos interesses e às necessidades do grupo, condicionados pela situação histórica e econômica. No entanto, a insistência de Jauss em relacionar o horizonte de expectativas às determinações de classe social inspira reserva. Mesmo que o horizonte de expectativas reenvie aos códigos estéticos compartilhados por um grupo determinado, os indivíduos, antes de agirem em nome de uma classe, agem segundo seus interesses particulares. Ora, a noção de «comunidade», tal como sugerida por Wittgenstein, demonstra-se mais adequada a apreender a noção de horizonte de expectativa. concinnitas


Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

Se a obra de arte se erije em uma arena pública, é possível afirmar, ao menos de maneira relativa, que a arte ganha autonomia segundo o modo de funcionamento de seu objeto.

Da autonomia da arte O sistema sociossimbólico da arte Se estamos de acordo quanto ao fato de que toda prática agrupa indivíduos em torno de uma ordem produtiva comum, podemos conceber a autonomia da arte por simetria entre o modo “fazer” e o modo de emprego. A partir do momento em que essa ordem engendra objetos, eles se articulam intrinsecamente e se inscrevem num sistema de representação simbólica. Circulando nos limites desse sistema, tais objetos compartilham traços comuns, representam idéias, adquirem valor e se endereçam, em seguida, a um modo singular de compreensão do espaço e do tempo. Não surpreende, assim, que todo sistema simbólico se instaure enquanto instituição no centro de uma sociedade. Se toda instituição social engendra uma tradição, o sistema da arte não é diferente. Para Becker,16 que adota o ponto de vista de Kubler, “uma tradição representa uma cadeia de soluções para um problema comum”.17 Quando um mesmo problema se reconstitui em um novo contexto, ele se insinua sobre novos parâmetros. Por conseqüência, avança por soluções diferentes. Segundo essa lógica, em vez de estática, a tradição integra a dinâmica da sociedade. Assim, acumulando experiências até nossos dias, o sistema simbólico da arte ocidental inscreve-se em uma longa tradição que tem suas origens na Grécia antiga. De transformações em depurações, o que hoje resta intocável na prática artística é o modo estético de apreensão de seus objetos. Como todo sistema simbólico implica um grupo de indivíduos, ele induz à organização de um campo mais ou menos autônomo dentro da sociedade, no qual esse grupo adquire representatividade. Com efeito, todo sistema simbólico engendra assentos funcionais em que atores sociais específicos têm lugares reservados. Em se tratando da prática das artes, o artista e o público são os componentes fundamentais, no momento mesmo em que ocupam lugares simétricos em relação à produção da obra. Associando o sistema de representação simbólica ao sistema de representações sociais, a prática da arte dá lugar a um sistema de representações sociossimbólico. Assim, os símbolos não são jamais dissociados do contexto dos usos sociais. É possível que, no interior de um sistema sociossimbólico, proliferem continuamente objetos materiais e ideais, além de técnicas operacionais. É 16 Becker, op. cit. 17 Id., ibid., pp. 333-334. (TA) 18 Tais como as igrejas, os museus e os estádios olímpicos. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

igualmente possível que ali se elaborem certos discursos e conceitos respectivos à organizações de seus objetos; que se edifiquem lugares específicos para sua ritualização;18 que se criem esquemas simbólicos para a transmisão e socialização 147


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do sistema19 e que, enfim, se estabeleçam redes de reflexões críticas20 e de trocas de produtos.21 De fato, na medida em que uma prática se organiza e se singulariza socialmente, opera-se uma recrudescência em seu aparelho funcional. Então, uma prática simbólica espontânea, vivida por um grupo social enquanto experiência cotidiana, tende a ser absorvida e reelaborada pela máquina institucional. Isso significa que, entre a produção e sua destinação, instâncias antes interligadas, se instala outra instância, mediadora, que as distancia. Tão logo os parceiros sociais, que até então participavam organicamente de um sistema de trocas simbólicas, são substituídos pelos agentes emblemáticos que se investem do poder institucional, o produto importa mais do que a produção. Tão logo a autoridade do savoir-faire, antes legitimada pelo grupo social diretamente implicado, é substituída pela caução do especialista, o discurso crítico tende a reorientar a experiência comum. No campo da arte contemporânea, os curadores, os comissários, os críticos, os colecionadores, os conservadores, os marchands representam sua parte forte, enquanto artistas e público, a parte fraca. Um tipo de prática que se impõe enquanto modelo hegemônico tende, no entanto, a apagar a diversidade. Seria ingênuo acreditar que se possa falar a respeito de arte hoje sem pressupor a existência de um “campo social autônomo” fortemente amparado pelas instâncias de poder.22 De fato, falar em obras, artistas e público enquanto entidades é já estabelecer uma estrutura funcional no centro de um sistema francamente singularizado. Mas, se, de um lado, o campo assegura a permanência do sistema simbólico e permite ao artista profissionalizar-se, propiciando as condições de produção, circulação e difusão de sua obra, de outro, esse mesmo campo reduz esse sistema a seus interesses imediatos. Assim, embora um vasto número de objetos e de métiers integrem o sistema da arte, o campo, ao se manifestar pelas decisões individuais de seus agentes, atua como receptor coletivo e os seleciona segundo suas expectativas em relação à arte. Todavia, tomada no largo quadro das tradições, antes que ater-se ao campo, a autonomia funcional da arte emerge do sistema simbólico, o qual assegura ao objeto sua forma de apreensão no campo social em geral.

O objeto de arte e seu contexto total Para Goodman,23 é mais importante saber como um objeto funciona como obra do que conhecer a essência da arte. De acordo com o autor, quando um objeto é utilizado como arte, torna-se um símbolo. Nesse sentido, funcionar como obra é fazer referência, seja representando, seja exprimindo, seja exemplificando. Ainda que, para Goodman, a função simbólica implique ao menos um dos três modos de referir, eles não são exclusivos das obras de arte. Para autor, o símbolo artístico possuiria certas características particulares. 148

19 Tais como as partituras e os planos de arquitetura. 20 Tais como as universidades, as publicações especializadas, os seminários e os colóquios. 21 Tais como o circuito e o mercado de arte. 22 Chateau, Dominique. L ‘art comme fait social total. Paris: L’Harmattan,1998. 23 Goodman. Manières de faire des mondes. Paris: J. Chambon, 1992. concinnitas


Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

Certos sintomas estéticos como a densidade sintática e semântica, a saturação, a exemplificação e a referência múltipla e complexa participam do modo simbólico da arte. Por outro lado, o fato de que ele apresente tais sintomas não nos permitiria afirmar em que medida um objeto é estético. Na experiência estética, antes que se faça atenção ao referente, existe um apego ao símbolo em si: “não podemos simplesmente atravessar o símbolo para ir direto àquilo a que ele se refere, como o fazemos quando respeitamos os semáforos, ou quando lemos os textos científicos.”24 Na arte, a opacidade do símbolo constituiria a singularidade do seu modo de funcionamento. Como Goodman, penso que um objeto, antes de “ser” arte, funciona como obra. Todavia, visto que não possui essência artística, o que de fato lhe permite se constituir e funcionar como obra é o contexto total em que a experiência tem lugar. No contexto total, objeto e receptor não estão dissociados das contingências ambientais que dão lugar à experiência. De um lado, esse contexto remete o receptor ao interior de um sistema de representação simbólica, e, de outro, suas competências individuais fornecem o “tom” à experiência. Posto de outra forma, tão logo a função de todo objeto dependa do contexto, o que determina seu uso artístico é tanto as contingências espaço-temporais de sua apresentação quanto as condições de aprendizagem do receptor. Ora, se Cometti25 tem razão, significado ordinário e significado artístico constituem um só significado, o qual procede a uma diferenciação de funcionamento simbólico segundo o uso do objeto. Se a função ordinária implicaria uma ação direta, uma verdadeira instrumentalização do objeto enquanto ferramenta, a função artística o remete antes a uma metáfora. O modo de funcionamento dependeria das circunstâncias em que a experiência se realiza. Haveria então um ponto em que as dimensões ordinária e metafórica do objeto convergem no sentido da obra, ainda que assumindo funções simbólicas diferentes. Se, numa dada situação, por exemplo, a forma de um artefato se adapta àquela da fechadura, dele me sirvo a fim de abrir a porta do cômodo em que estou involuntarimente trancado. Essa representação se deverá a uma prática quase atávica, que me impele a empregar o objeto como ferramenta. Se, em outra situação, as contingências espaço-temporais me sugerissem o uso artístico, o objeto seria antes apreendido metaforicamente, por exemplo, se eu o encontrasse sobre um praticável no museu. Bem entendido, da dimensão artística participa também a dimensão ordinária do objeto, pois o sentido metafórico que ele assume é uma co-extensão do sentido trivial. De fato, no contexto simbólico total em que a experiência tem lugar, o modo de funcionamento do objeto não está separado das condições espaço-temporais, assim como essas não se dissociam de um sistema de representação intrínseco 24 Id., ibid., p. 92. (TA) 25 Cometti, op. cit. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

a uma prática. Tão logo a experiência artística se encontre na interseção entre o objeto, o sujeito e o meio ambiente, o contexto total reterá a experiência 149


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para o evento, mais do que para o objeto.26 Em suma, uma obra de arte só o “é” na condição de ser proposta e, então, recebida como arte em consideração às conjunturas de sua aparição.

Da prática do artista Do estético ao artístico Na prática cotidiana, as noções de relação estética e de relação artística, de objeto artístico e de obra de arte acham-se confundidas. Com isso, algumas distinções conceituais tornam-se, de saída, úteis. Segundo Genette,27 a relação estética define-se primeiro por uma atenção dirigida às propriedades aspectuais28 do objeto. Em seguida, essa atenção nos conduz a uma apreciação da experiência. Se todo objeto de arte é um objeto estético, por outro lado, nem todo objeto estético é forçosamente um objeto de arte. De tal maneira que, enquanto o objeto de arte é o objeto singular porque prometido à relação estética, o objeto estético pode ser um objeto qualquer, pois não importa qual seja, sempre se pode prestar à experiência estética. Assim, a relação estética do tipo artístico diferencia-se da outra por possuir, a priori, seu próprio objeto. Se, por outro lado, o que, para Genette, define as obras de arte é o caráter estético deliberado,29 a relação estética com as obras de arte dependeria do reconhecimento por parte do receptor dessa intenção, pouco importando que ela seja factual ou apenas suposta. Ora, supor uma intenção implica antes admitir que um dado objeto da relação seja o portador evidente de uma ação humana orientada a um fim, sendo essa ação, como afirma Dickie,30 o gesto que faz de um objeto o candidato à apreciação de um grupo social – o mundo da arte. Se tal ação produz um efeito particular sobre um grupo, isso se deve à evidência de certas convenções. No conjunto, tais convenções constituem estratégias de indução sobre a forma de apreensão do evento. Assim, as estratégias vêm a ser o que chamo “artístico”. Gestos tão simples quanto banais, como fazer um desenho, assiná-lo, emoldurá-lo, pendurá-lo na parede, independentemente do resultado, são estratégias que corroboram na constituição de um evento estético do tipo artístico. Assim, pode-se compreender o “artístico” como o conjunto das operações convencionais aplicadas a um objeto particular tendo por finalidade implicar o outro (o receptor) em um modo singular de relação estética: a relação artística. Por outro lado, como estão disponíveis no campo social, qualquer um pode fazer uso de uma estratégia artística em seu cotidiano e evidenciar uma intencionalidade estética. De fato o artístico está por quase toda parte, seja na moda, nos penteados, na ornamentação, na cirurgia plástica, nas vitrinas, nas prateleiras dos supermercados e onde quer que se observe ao redor. Eu não concluiria, porém, como o fez Chateau, afirmando que a publicidade, por 150

26 Peirce afirma que a “coisa” à qual a noção de experiência melhor se aplica é o evento. (Écris sur le signe. Paris: Seuil, 1978). 27 Genette, G. L’œuvre de l’art: la relation esthétique. Paris: Seuil, 1997. 28 O autor emprega o termo “aspectuel” no lugar de “formel” ou “perceptuel” porque acredita que aquele primeiro qualificaria melhor a relação estética que abraça simultaneamente certas informações laterais (conceituais), as quais não estão sujeitas à percepção direta. 29 “(…) car il est pour moi spécifique, et donc définitoire, des œuvres d’art de procéder d’une intention esthétique, et donc d’exercer une telle fonction, là où les autres sortes d’objets ne peuvent provoquer qu’un effet esthétique purement attentionnel”. (Genette, 1997, op. cit., p. 7) (…porque é para mim específico, e então definitório, das obras de arte que elas procedam de intencionalidade estética, e então de exercerem esta função enquanto os outros tipos de objetos só podem provocar um efeito estético puramente atencional.) 30 Dickie, op. cit. concinnitas


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exemplo, não poderia ser recebida como arte,31 porque, apesar de artística, ela não caberia, segundo o autor, no universo dos objetos de arte. Eu não saberia, por conseguinte, encerrar a prática da arte dentro de um só quadro de valores, dentro de um só campo da arte. A partir do fato notório de que ela participa do sistema simbólico da arte, a peça publicitária pode, potencialmente, funcionar como arte. No entanto se a publicidade pode funcionar como arte sob certos aspectos, esse funcionamento depende dos parâmetros em que se funda a orientação artística do receptor. Assim, embora Genette32 sustente que proceder de uma intencionalidade estética seja uma condição necessária à definição de obra de arte, essa condição não me parece suficiente. Para que o evento funcione como obra, será necessário que o receptor dele se sirva como arte.33 Pode-se então supor que haja uma correspondência implícita entre as estratégias artísticas empregadas e as expectativas do receptor em relação à arte. Dessa forma, são suas próprias expectativas que estabelecem o parâmetro para que use um determinado objeto como arte. Assim, um penteado ou uma ornamentação podem muito bem vir a ser um objeto da relação artística e funcionar como obra tão logo eles satisfaçam a suas exigências.

Das intenções do receptor às intenções do artista Como vimos, nenhum artefato humano pode funcionar fora do contexto total no qual ele é apreendido. A fim de agrupar as condições ideais de experiência e instaurar um evento artístico para um certo público, o artista se serve de estratégias específicas as quais têm um determinado efeito sobre esse público. Assim, onde quer que ele se ache nem sempre o objeto funciona como arte em face de qualquer indivíduo. Seria, primeiramente, prudente perguntar em quais circunstâncias um objeto se erige como obra para “um” público. Se a estratégia artística salienta a intencionalidade estética, segundo o grau de inserção dessa estratégia numa prática social ampla, a obra seria mais ou menos destinada ao público em geral. De fato, a obra exposta só vem a ser 31 “Ainsi, l’utilisation en publicité d’un style Pop Art (individuel ou collectif) ne désigne aucune changement de destination du message, pas la moindre substitution d’une visée spécifiquement artistique à la finalité publicitaire…” (Chateau, op. cit., p. 76). (Assim, a utilização em publicidade de um estilo Pop Art (individual ou coletivo) não designa qualquer mudança de destinação da mensagem, o menor desvio que seja da finalidade publicitária para o ponto de vista especificamente artístico.) 32 Genette, 1997, op. cit. 33 Quantos não são os artefatos que encontramos nos lojas “R$1,99”, por exemplo, que foram realizados para fim decorativo, então estético? Esse fato evidente não nos impele a tomá-los automaticamente por obras de arte. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

pública no momento em que se erige como obra em face da experiência do público. Por outro lado, ao selecionar certas estratégias, o artista estabelece as condições públicas de recepção da obra. Dessa maneira, é possível que uma obra instalada num lugar público só possa se constituir como tal alhures, onde as condições reunidas a tornem “obra” publicamente. Assim, um artista iconoclasta pode propor uma ação fora de toda evidência; por exemplo, um objeto qualquer da paisagem natural que ele tenha fotografado e em seguida exposto numa galeria declarando que se trata de uma apropriação. De fato, essa ação só vem a configurar-se como evento artístico para o artista que assim a declarou e, com certeza, para o pequeno grupo de iniciados sobre o qual age a declaração. Os textos e as fotos, antes de constituírem simples registros, são os verdadeiros objetos da relação artística, porque são atuais. É 151


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evidente que a proposição em questão funciona como obra para aqueles que podem ter acesso às informações e, desde então, às intenções do artista. Genette34 nos ensina que o técnico (o concebido) e o estético (o percebido) fundem-se no quadro de uma relação artística. Nesse caso, certos dados conceituais considerados secundários à experiência porque atribuídos à competência do indivíduo,35 estão, de fato, a ela integrados. Retomando o exemplo do artista iconoclasta na ordem inversa, pode-se, desde que se tenha assimilado as intenções do artista, ir ao lugar geográfico em que o objeto natural se acha e ali não ver outra coisa senão um evento artístico: o gesto de apropriação da natureza pela arte, ou seja, a paisagem que o artista inventou e nos dá a ver agora. Segue-se que as informações assimiladas pelo receptor instauram as condições simbólicas no justo momento em que ele as integra às condições espaço-temporais atuais. Por essa razão, só percebemos “qualidades” no objeto se estamos em contexto. Assim, embora uma obra seja apresentada em lugar público, talvez seu público não seja diferente do público específico com o qual o artista compartilha suas idéias. Se bem que o público seja uma figura a princípio indiscernível, desde que o artista participe de uma comunidade, ao menos em certa medida, o público se lhe torna semelhante. Nesse caso, antes de agir individualmente, o artista age coletivamente ao elaborar sua obra. É possível mesmo afirmar que, em sua prática, ele se guia por manobras e meios escolhidos de um vasto repertório que a tradição lhe oferece, podendo ainda inventar outras tantas, que ele recombina às antigas. Servindo-se de umas e afastando-se de outras, o artista encarna o receptor hipotético, ainda que este seja simultaneamente genérico e específico: um mundo da arte no qual ele age e suas estratégias atingem resultado. Nesse sentido, nenhuma prática artística saberia ser neutra. Tomemos agora a Figura 1. Encontrei essa árvore por acaso, num passeio pela rua Duluth, em Montreal. A princípio, isso me parecia ser um território inventado por um “operador de sentidos”.36 Em seguida, considerando-se a prática contemporânea, ela poderia ser interpretada como uma instalação realizada por um artista de vanguarda ou, segundo outra hipótese, uma brincadeira de criança que, sem pretensões, pensava simplesmente em embelezar a cidade. Emergem várias motivações diferentes para um só fenômeno. Conhecer as causas implicaria mudanças nas condições de recepção. Essa equívoca situação lembra-me a proposição do SYN-atelier d’explorations urbaines, um coletivo de artistas: várias mesas de piquenique são instaladas nos mais improváveis lugares públicos da cidade de Montreal, acorrentadas à base de algum corpo inerte como, por exemplo, uma árvore (Figura 2). Talvez poucas pessoas as tenham em conta, mas quem as tem pode perguntar-se por que razão as mesas estão assim acorrentadas e lançar-se em diversas hipóteses, o que me parece constituir a própria razão da intervenção, cujo título, antes inabordável, não deixa nenhuma dúvida: Hypothèses d’Amarrages. Assim, se a proposição em 152

34 Genette, 1997, op. cit. 35 Por exemplo, dizer que uma tal pintura é a óleo implica não só o conceito de pintura, mas também o discernimento do pigmento – tudo isso está invariavelmente integrado à experiência perceptiva. 36 Eu chamo de “operador de sentidos”, essas pessoas que adaptam o mundo a suas necessidades expressivas e fazem de seu habitat, de seu modo de vida, um éthos. concinnitas


Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

questão demarca uma intenção, revelaria também o mundo da arte do artista. Saber de onde ele fala e, em certa medida, para quem fala, nos esclarece sobre as intenções e modifica o modo de percepção do evento.

Da intenção de obrar Umberto Eco37 levanta a hipótese de que na prática da arte contemporânea é notável que as obras estejam voltadas para a proposição de novas poéticas. A poética, para o autor, define-se como intenções guiando as operações artísticas, o que implicaria um modelo operacional abstrato assim como uma estrutura conceitual que a gere formalmente. Com efeito, para compreender as proposições contemporâneas, é necessário compreender as poéticas que elas engendram. O autor observa que, desde o Romantismo, a questão da poética não se inscreve toda e simplesmente na obra feita e acabada: na arte moderna “o problema da arte prevaleceu sobre o problema da obra enquanto coisa feita e concreta” (p. 248). Assim, a obra é proposta enquanto tentativa real de formulação de uma poética. Por exemplo, “Mallarmé fez poesia para discutir a possibilidade da poesia e as posibilidades de uma poesia da poesia (…)” (p. 246). Se as observações de Eco são pertinentes, a mudança radical que as práticas de vanguarda implementaram nos anos 50 e 60 foi a de considerar obra a intenção presidindo o evento, mais do que o próprio evento em si. Em 1964, Lygia Clark propõe a ação Caminhando. Servido-se de uma simples instrução, a artista propunha ao sujeito participante pegar um fita de papel e unir em seguida suas extremidades, colando-as de modo a configurar um anel de Moëbius. Em outro momento, indicando um certo caminho, ela pedia ao participante que cortasse continuamente a fita no sentido longitudinal, advertindo-o sempre de que tomasse cuidado de deslocar a tesoura quando, no percurso, ele reencontrasse o ponto de partida. Nesse momento, o sujeito deveria decidir tomar a direita ou a esquerda. O participante, ao manipular o objeto, deveria seguir cortando-o até onde não fosse mais possível. Para a artista, “o único sentido desta experiência reside no ato de fazê-la. A obra é seu ato”.38 Ela justifica assim a escolha do anel de Moëbius: “se utiliso uma fita de Moëbius para a experiência, é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita–esquerda ; avesso–direito, etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo”.39 Talvez tenha sido nesse sentido que Eco tenha compreendido que a noção de obra fora deslocada do evento para o modelo operacional que o tem gerado. Fica evidente que, se o modelo operacional fosse extraído da obra e enunciado, digamos, num texto crítico, o evento em si perderia boa parte do 37 Duas hipóteses sobre a morte da arte (1963). In: Eco, U. A definição de arte. São Paulo: Martins Fontes,1986. 38 Clark, L. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p. 26 , Col. Arte Brasileira Contemporânea. 39 Idem. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

interesse. Eco, consciente do problema imposto por sua teoria, apressa-se em corrigi-la. Para ele, uma obra terá êxito quando objeto formado e modelo formador constituírem uma totalidade. No entanto, o problema que persiste na teoria de Eco é a redução da poética a um só modelo operacional, quer dizer, a 153


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uma só estrutura ou plano conceitual passível de enunciação dissociada da prática. Na minha opinião, a poética, constituindo-se como “fazer”, de fato apresenta-se como uma modalidade complexa em que os conceitos e as teorias, francamente destacados, só constituem um aspecto da prática. Contudo, ocupome da teoria de Eco porque ela me ajuda a modelizar um novo parâmetro para a prática da obra, o qual ultrapassa os limites impostos pelo objeto de arte.

A obra ampliada É pertinente nos perguntarmos se hoje seria admissível considerar artista alguém que tenha realizado apenas uma obra, para nos convencer de que o estatuto de obra do objeto assume uma dimensão mais ampla em que a poética tem lugar. Se, no quadro particular da prática de um artista, uma proposição pode ser vivida de forma singular, também se pode supor que a intenção do artista só se manifeste plenamente na medida em que essa proposição entre em interação com outras de suas proposições. Dir-se-ia que as proposições têm lugar e, ao mesmo tempo, dão lugar a uma rede; no conjunto, elas induzem um complexo representacional. Talvez o leitor argumente que a consciência desse aspecto tenha sido sempre importante para nos aproximar da obra de qualquer artista, como, por exemplo, Rafael. Eu replicaria que, conquanto efetivamente se trate de um critério relevante para abordar a obra de qualquer artista, temos que na obra contemporânea a condição de “complexo” é uma demanda da própria lógica do processo criativo. O exemplo seguinte esclarecerá sobre essa idéia: um pedaço de feltro lambuzado de gordura, na obra de Joseph Beuys, não engendraria uma totalidade se fosse tomado fora do quadro de referências que o artista nos fornece, suas outras proposições, como o conceito de transferência de energia, o de escultura social e, finalmente, sua mitologia pessoal. De toda evidência, fora do contexto auto-referencial de criação, o pedaço de feltro seria um fragmento, ao passo que uma pintura de Rafael constituiria sempre uma totalidade. Além disso, se hoje enfocamos a obra de Rafael a partir do conjunto de suas idéias, seria necessário questionar se tal concepção não seria, antes, uma exigência dos parâmetros atuais. Por essa razão, evidencia-se que a condição ampliada é o próprio pressuposto da obra contemporânea. Com efeito, essa condição permitiria ao artista concebêla enquanto campo de produção heterogênea. Tal campo engloba as ações, os objetos, as teorias, as proposições e as atitudes cotidianas do artista. Nesse sentido, em vez de puramente ater-se ao objeto, a obra ampliada remete ao contexto auto-referencial de criação no qual se insinua o princípio de arte.

O contexto auto-referencial de criação Ainda que ele faça apelo aos amplos condicionantes da prática, tal como o momento histórico e cultural impõe, o contexto ao qual me refiro é mais estreito 154

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Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

e diz respeito ao complexo produtivo do artista. Ao reunir uma diversidade de objetos e ações, o contexto auto-referencial dá lugar a um campo amplo de representações em que certas manifestações particulares ganham força. Assim, os sentidos que uma proposição adquire emergem do espaço intersticial que a rede das manifestações proporciona. Pode-se supor que, em se articulando uma às outras, as proposições engendrem a totalidade representacional da obra ampliada. Se ao realizar sua obra o artista a tecesse como uma rede em que o fragmento se desloca para o todo, a proposição para o conjunto, o objeto para o conceito, o fazer para a reflexão, o passado para o presente, e também vice-versa, as formas da obra ampliada resultariam de seu próprio tecido contextual. Assim, embora se apresente em superfície por uma ordem perturbada pela deriva e fuga de sentidos (pois é um corpo heterogêneo), a obra ampliada conjuga-se em várias formas organizadas segundo o poder formador do receptor. Também, quanto mais o contexto auto-referencial proceda da dinâmica do tecer, mais a totalidade representacional se desloca e se reorganiza à deriva das novas manifestações. O modelo formal sugerido só se poderia ater ao da rede estruturante: o gesto de obrar, ao tentar harmonizar as partes ao todo, procura a unidade representacional, quer dizer, o princípio de arte. Supondo que as linhas das ações artísticas cruzem ortogonalmente as linhas das intenções, o contexto auto-referencial apresentar-se-ia como uma rede ético-artística. Se a cada cruzamento se encontra uma manifestação, o princípio de arte, ao realçar a poética da obra, se alojaria nos intervalos entre manifestações. A estrutura da rede, cuja continuidade é assegurada pelo tempo, se desdobra na medida em que a prática avança. O que une as proposições, atravessa o princípio de arte e, alhures, destaca do tecido contextual uma figura são as formas que a obra ampliada assume quando o receptor se representa. Obrar segundo o princípio de arte é assim estabelecer um amplo campo de representações, em vez de dar forma íntegra ao objeto. Quem se dedica a criar a obra ampliada, tão logo se engaje em um processo permanente de formação, de formulação, de reformação e reformulação, aspira ao princípio de arte e busca encontrar a unidade ético-artística. Mais do que alcançá-la de imediato, esse indivíduo por ela anseia, pois o princípio de arte, ao ater-se à dinâmica do processo estruturante, é sobretudo um devir. Esse aspecto particular da obra ampliada impulsiona a prática para um futuro do presente, cujo caminho se desenha à medida que avança.

O princípio de arte O princípio de arte, ao proceder do modo “fazer” do artista, afirma-se na zona de interseção entre as regras de um mundo da arte e as regras instauradas pela obra. Um modo de “fazer” abraça um processo e um procedimento. Toda ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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prática de artista pressupõe então o estabelecimento de uma conduta operacional, além do domínio de certas técnicas expressivas. Assim, é últil estabelecer algumas diferenças entre processo e procedimento.

Figura 2 - Hypothères dámarrages - SYN, 2001 Foto do autor

A conduta operacional, antes de ser uma mecânica, implica a elaboração contínua de uma disciplina interior que ministra uma prática objetiva. Assim, certas ocupações rotineiras, como passear pela cidade, fotografar, conceitualizar, classificar, ler um livro, podem muito bem derivar de uma conduta operacional, pois podem nutrir a criação. À diferença do método científico, em que o a priori epistemológico exerce controle sobre o objeto e a validade da experiência, o artista joga com o acaso e a imaginação ao apreender seus objetos. Ao nutrir-se das ações lúdicas que a experiência sugere, as inflexões de sentido assumem grande importância no processo criativo. Mais do que visar a conclusões, o processo do artista atém-se à experiência em si. Por outro lado, dominar um ou vários procedimentos técnicos e conhecer os recursos de material e de equipamentos disponíveis são medidas fundamentais para transpor em arte o que está na base de um processo. No entanto, enquanto o técnico se limita aos contratos que prescrevem as normas, o artista tira proveito conceitual e expressivo da técnica. Com efeito, o artista, menos do que circunscrever sua prática pela técnica, dela faz uso, reinventando-a segundo suas necessidades. Tão logo a manipulação da técnica esteja a serviço de sua intenção, é permitido ao artista cometer “erros”, na condição de que eles concorram para a emancipação de uma forma artística, e essa forma, à emergência de uma ética. Notadamente, o medium concerne à prática do artista em boa parte devido a seu embasamento sobre componentes conceituais. Por exemplo, para realizar uma fotografia de boa qualidade, à primeira vista bastaria dominar a técnica, mas para desenvolver um trabalho em fotografia é necessário conhecer os princípios dessa linguagem. Por outro lado, certas intenções são mais bem 156

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Da prática da arte à prática do artista contemporâneo

realizadas num medium específico. Assim, procurando produzir uma arte impessoal e indiferente, Warhol encontra na serigrafia a abordagem técnica que lhe permitirá a reprodução macanicista da imagem. Vê-se igualmente que, se uma postura se traduz mais pelos conceitos trazidos pelo medium do que pelo medium em si, o artista pode potencialmente mudar de medium preservando suas intenções. Desse modo, ao servir-se da câmera fixa, Warhol realiza filmes em tempo real, sem variações de planos nem montagem. Perpetuando a atitude blasé, Warhol também integra a sua obra a fotografia instantânea e as imagens de imprensa. Além disso, o nome de seu ateliê – Factory – reflete essa atitude. Dessa forma, ao aliar processo e procedimentos, técnicas e conceitos, comportamentos e produtos, o princípio de arte ressalta as regras intrínsecas da obra. Por outro lado, Chateau40 nos lembra que o modo de ser e de agir do artista é induzido pelas regras do campo, o que faz com que ele as traga subjetivadas. Por exemplo, o inconformismo, erigido enquanto moral da arte moderna, integra e define a atitude do artista moderno. Fica evidente que essa atitude não reside apenas no comportamento do sujeito, mas é também ressentida na obra tão logo sua forma artística a torne evidente. Pode-se presumir que a forma que Warhol encontrou para exprimir seu ponto de vista tenha correspondido às expectativas de um campo de arte particular. Assim, supõe-se que o “sujeito artista” seja um efeito paradoxal do campo. Por uma determinada perspectiva, espera-se que a obra enfatize a postura do sujeito, porque, no limite, obrar é representar um mundo do ponto de vista singular. Por outra, esse mundo participa também de um lugar comum. Quando num dado momento, para um dado mundo da arte, certas questões se tornam mais pertinentes do que outras, elas podem motivar a produção e induzir um medium preferencial, assim como uma forma artística particular. Isso explicaria em parte a onipresença da fotografia e do vídeo nas práticas contemporâneas, ao mesmo tempo a atual dificuldade de realizar boas pinturas. Por outro lado, é sempre um prazer descobrir certos artistas que conseguem pintar e desenhar atualizando tais procedimentos.

Conclusão A obra tendo saído de uma experiência de mundo que ultrapassa a do mundo da arte, e sendo este mais amplo do que o campo, a relação com a obra pode ter uma entrada ao mesmo tempo mais ampla e mais estreita. Mais ampla, porque a prática poderá sempre se valer de estratégias notadamente públicas. Mais estreita, porque a comunidade, antes de ser uma entidade a priori, se funda na experiência do sentido. Na condição que o receptor partilhe da visão de mundo do artista, os mundos deste e daquele entram em interface no momento mesmo em que o receptor “produz” a obra. Assim, da atitude de artista à atitude do artista, a forma artística proposta pode escapar aos limites impostos pelo 40 Chateau, op. cit. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

campo e se lançar no mundo. 157


Andy Warhol. Ambulance disaster, 1963

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Hal Foster e o debate sobre o pós-moderno: uma introdução à tradução do texto “O retorno do real”

Hal Foster e o debate sobre o pós-moderno: uma introdução à tradução do texto “O retorno do real” Claudia Valladão de Mattos* Professor do Departamento de Arte e Arqueologia da Universidade de Princeton, Hal Foster pode ser considerado hoje um dos mais importantes críticos da arte contemporânea nos Estados Unidos. Aluno de Rosalind Krauss, Foster pertence a uma linhagem de críticos de arte norte-americanos que inclui nomes como Michael Fried e Clement Greenberg. Como aluno de Krauss, familiarizou-se com as novas abordagens semióticas e psicanalíticas que renovaram o debate teórico e a prática artística nos anos 70 e 80, aproximando o mundo da crítica de arte das discussões acadêmicas de seu tempo. Assim como Rosalind Krauss, Foster sempre defendeu a idéia de que uma verdadeira compreensão das artes moderna e contemporânea dependeria dessa aproximação entre teoria, crítica e arte, uma vez que, desde o início do século XX, se tornou impossível separar tais termos – “Com relação a esse aspecto, a expansão horizontal da arte impôs um enorme fardo ao artista e ao público: ao se mover de projeto em projeto, eles devem igualmente aprender o âmbito discursivo e histórico de muitas representações diferentes – como um antropólogo que entra em uma nova cultura a cada nova exposição.”1 Fazendo jus a tal convicção, Hal Foster defendeu sua tese de doutorado sobre o tema das relações entre o Surrealismo e teorias psicanalíticas, trabalho que foi publicado em 1993 sob o título Compulsive Beauty (Beleza Compulsiva). Seu comprometimento com o projeto intelectual de sua professora e colega Rosalind Krauss2 levou-o a ativa participação na revista October, da qual se tornou co-editor. Sua atividade de * Claudia Valladão de Mattos é professora de Historia da Arte do Instituto de Artes da Unicamp. Fez mestrado na Universidade de São Paulo, doutorado na Universidade Livre de Berlim e pós-doutorado no Courtauld Institute de Londres. 1 Hal Foster, introdução ao livro The Return of the Real, Cambridge e Londres: MIT Press, 1996, p. XII. 2 Apesar das afinidades apontadas entre o pensamento teórico de Rosalind Krauss e Hal Foster, ele mesmo reconhece algumas diferenças de geração entre ambos: “Historiadores da arte proeminentes, como Michael Fried, Rosalind Krauss e T.J. Clark, diferem com respeito a métodos e temas, mas eles compartilham profunda convicção com relação à arte moderna, e essa convicção é de alguma forma ligada a sua geração. Críticos formados em minha geração são mais ambivalentes com relação a essa arte (...).” Id., ibid., p. XIII. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

crítico estende-se também a contribuições regulares para outras revistas, como London Review of Books, Los Angeles Times Book Review e New Left Review, por exemplo. Desde a década de 1980, Hal Foster dedica-se ao estudo do fenômeno conhecido como “pós-modernidade”. Sua primeira publicação apareceu em 1983, sob o título The Anti-Aesthetics: Essays on Postmodern Culture (Anti-Estética: Ensaios sobre a Cultura Pós-Moderna), uma coletânea de ensaios sobre o tema com contribuições de intelectuais como Jürgen Habermas, Kenneth Frampton, Edward Said, Jean Baudrillard, Douglas Crimp e da própria Rosalind Krauss. Dois anos depois, Foster afirma-se como crítico de arte contemporânea com seu livro Recodings: Art, Spectacle, Cultural Politics (Recodificações: Arte, Espetáculo, Políticas Culturais) que aborda mais uma vez o tema da pós-modernidade em arte e arquitetura, polemizando contra as teorias sobre o simulacro. Seu livro mais importante do ponto de vista de uma contribuição para as teorias da arte 159


Claudia Valladão de Mattos

contemporânea, porém, apareceu em 1996, sob o título The Return of the Real (O retorno do real), cujo capítulo de mesmo nome encontra-se traduzido a seguir. Em atento exame dos rumos da arte contemporânea ao longo dos anos 60 a 90, Hal Foster discute a relação entre modernidade e pós-modernidade ao traçar diversas genealogias: a minimalista, a pop, etc., centrando-se no jogo de ressignificação mútua entre esses dois momentos: “Pois mesmo quando a vanguarda recua para o passado, ela também retorna do futuro, reposicionada pela arte inovadora do presente”.3 Esse projeto é explicitado na introdução do livro com as seguintes palavras: “Parcial em interesse (silencio sobre muitos acontecimentos) e paroquial nos exemplos (continuo sendo um crítico localizado em Nova York), esse livro não é uma história: ele apenas focaliza uma série de modelos de arte e teoria presentes nas últimas três décadas. No entanto, ele não celebra o falso pluralismo do museu, do mercado e da arte pós-históricos, nem uma academia onde tudo vale (enquanto formas aceitáveis predominarem). Ao contrário, o livro insiste no fato de que genealogias específicas de arte e teorias inovadoras existem ao longo desse período, acompanhando essas genealogias por meio de transformações em seus signos”.4 Nesse contexto, o Capítulo 5, que recebe o mesmo título do livro, “O retorno do real”, parece ocupar uma posição estratégica, pois nele, ao tratar do que poderíamos chamar de “genealogia pop”, Hal Foster detecta uma virada fundamental da cultura visual do final do século XX em direção ao que ele conceitualiza no texto como “o real”, a partir das teorias de Lacan e Julia Kristeva. Para traçar essa genealogia, Hal Foster parte de uma interpretação nova da arte de Andy Warhol, descartando as interpretações “tradicionais” de sua arte como puro simulacro e vendo-a como uma arte calcada sobre a experiência do trauma. Para tanto, Hal Foster focaliza a idéia de repetição, considerada por Freud o sintoma principal da experiência traumática. Referindo-se à compulsão à repetição presente na obra de Warhol, o autor conclui: “Aqui a repetição é tanto uma drenagem do significado quanto uma defesa contra o afeto, e essa estratégia já guiava Warhol desde cedo, como na entrevista de 1963: ‘Quando se vê uma imagem medonha repetidamente, ela não tem realmente um efeito’”. Porém, apesar da defesa proporcionada pela repetição de imagens, o real traumático tende a aparecer nas obras através da presença daquilo que Roland Barthes denominara em sua Câmara Lúcida (1980) punctum, “esse elemento que nasce da cena, é lançado para fora dela como uma flecha e me atinge”. Para Hal Foster, portanto, a genealogia pop estabelece-se como uma arte do trauma, do encobrimento/desvelamento do real que estaria para além de todo o significado e de toda a cultura. (Foster aponta um mesmo mecanismo em funcionamento na arte super-realista e na approporationa art). A fim de traçar a genealogia pop em suas afinidades com a produção da arte contemporânea mais recente, Hal Foster lança mão do pensamento teórico de Lacan, particularmente de seu seminário sobre o real, realizado em 1964, em que 160

3 Id., ibid., p. X. 4 Idem. concinnitas


Hal Foster e o debate sobre o pós-moderno: uma introdução à tradução do texto “O retorno do real”

o autor propõe um olhar-do-objeto sobre o sujeito e a negociação desse olhar com o olhar-do-sujeito sobre o objeto na instância geradora da imagem (isto é, na instância do simbólico), chamada de anteparo. Foster procurará demostrar, usando a artista Cindy Sherman como exemplo central, que a arte dos anos 90 busca ocupar a posição do olhar-do-objeto, identificando-se com aquilo que é o não-sujeito por excelência, ou melhor, com aquilo que foi abjetado no processo de formação da identidade, segundo Julia Kristeva. O corpo, ou melhor, o cadáver, encontra-se sob a mirada da arte, um argumento largamente comprovado por um veio importante da produção artística desde os anos 90. Apesar das dificuldades por vezes impostas pelo jargão psicanalítico do autor, Hal Foster demonstra possuir grande sensibilidade e inteligência para identificar e interpretar uma tendência então ainda nova e hoje largamente presente em nossa cultura visual: o desejo de tocar esse real, o fascínio pelo abjeto. As possíveis razões para esse desejo são arroladas pelo autor ao final do texto: “(...) há uma insatisfação com o modelo textual da cultura assim como com a visão convencional de realidade – como se o real, reprimido no pós-modernismo pós-estruturalista, tivesse retornado como traumático. Além disso, há a desilusão com a celebração do desejo enquanto passaporte aberto para um sujeito móvel – como se o real, descartado por um pós-modernismo performático, tivesse sido mobilizado contra um mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo. Mas há forças intensas trabalhando igualmente em outras partes: desespero diante da crise persistente da Aids, doenças invasivas e morte, pobreza sistemática e crimes, a destruição do estado de bem-estar social, de fato, a quebra do contrato social (quando os ricos optam por sair, da revolução, por cima, enquanto os pobres são descartados, tornando-se miseráveis, por baixo). A articulação dessas diferentes forças é difícil, porém juntas elas impulsionam a preocupação contemporânea com o trauma e com o abjeto”. Apesar dos 10 anos passados, essas palavras parecem não ter perdido sua atualidade, fazendo do texto de Hal Foster um clássico da crítica contemporânea. Esperamos que a tradução ora apresentada sirva de introdução ao pensamento do autor que, devido à carência de traduções, permanece ainda pouco conhecido do público brasileiro.

ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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Richard Prince. Sem tĂ­tulos (sunset e cowboy), 1981 e 1989

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concinnitas


O retorno do real

O retorno do real* Hal Foster** Em minhas leituras dos modelos críticos em arte e teoria desde os anos 60, tenho enfatizado a genealogia minimalista da neovanguarda. Na maior parte, artistas e críticos dessa genealogia permanecem céticos com relação ao realismo e ao ilusionismo. Dessa forma, eles continuaram a guerra da abstração contra a representação com outros meios. Como observado no Capítulo 2, minimalistas como Donald Judd viam traços de realismo também na abstração, no ilusionismo ótico de seu espaço pictórico, apagando estes últimos vestígios da velha origem da composição idealista – um entusiasmo que os levou a abandonar a pintura como um todo.1 Significativamente, essa postura antiilusionista foi mantida por muitos artistas envolvidos com arte conceitual, crítica institucional, arte corporal, performance, site-specific, arte feminista e de apropriação. Mesmo que realismo e ilusionismo tenham significado coisas adicionais nos anos 70 e 80 – o prazer problemático do cinema hollywoodiano, por exemplo, ou o elogio ideológico da cultura de massas –, eles continuaram sendo coisas ruins. Porém outra trajetória da arte desde os anos 60 estava comprometida com o realismo e/ou idealismo: algo da pop arte, a maior parte do super-realismo * O presente texto corresponde ao Capítulo 5 do livro de mesmo nome: Hal Foster, The Return of the Real, Londres: MIT Press, 1996. ** Hal Foster é professor Townsend Martin de arte e arqueologia na Universidade de Princeton. É autor dos livros The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century e Compulsive Beauty (ambos editados pela MIT Press). 1 De certa forma, a crítica ao ilusionismo continua a velha história da arte ocidental como a procura da representação perfeita, tal como foi contada de Plínio a Vasari e de John Ruskin a Ernst Gombrich (que escreveu contra a arte abstrata); só que, aqui, o objetivo está invertido: abolir em vez de atingir essa representação. Mesmo assim, essa inversão carrega a estrutura da velha história — seus termos, valores, etc. 2 “Deth in America foi o título de um show projetado para Paris das imagens electric chair (cadeira elétrica), dogs in Birmingham (cachorros em Birmingham) e car wrecks (carros destruídos), e algumas suicide pictures (imagens de suicídio)” (Warhol, citado em Grene Swenson, “What is Pop Art? Anawers from 8 painters, Part I”, ArtNews 62 [novembro 1963]; 26). Nos capítulos 2 e 4 compliquei a oposição da história da arte entre representação e abstração com o terceiro termo do simulacro. A seguir complicarei a oposição representacional entre referente e simulação de forma semelhante, com o terceiro termo do traumático. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

(também chamado de fotorrealismo), algo da arte de apropriação. Freqüentemente desbancada pela crítica de genealogia minimalista na literatura crítica (ou mesmo no mercado), essa genealogia pop é hoje novamente de interesse, pois ela complica as noções redutoras de realismo e ilusionismo propostas pela genealogia minimalista – e, de certa forma, igualmente ilumina o trabalho contemporâneo, que passa a ser renovado com essas categorias. Nossos dois modelos básicos de representação são praticamente incapazes de compreender o argumento dessa genealogia pop: de que imagens são ligadas a referentes, a temas iconográficos ou coisas reais do mundo, ou, alternativamente, de que tudo que uma imagem pode fazer é representar outras imagens, de que todas as formas de representação (incluindo o realismo) são códigos auto-referenciais. A maior parte das análises da arte do pós-guerra baseadas na fotografia faz a divisão, de alguma forma, ao longo desta linha: a imagem é referencial ou simulacro. Esse “ou isto/ou aquilo” redutivo determina as leituras dessas artes, especialmente da arte pop – uma tese que vou testar inicialmente nas imagens Death in America (“Morte na América”), de Andy Warhol, do início dos anos 60, imagens que inauguram a genealogia pop.2 Não é surpresa a leitura do pop warholiano como simulacro por parte de críticos associados ao pós-estruturalismo, para quem Warhol é pop e, mais importante, para quem a noção de simulacro, crucial à crítica pós-estruturalista da representação, parece às vezes depender do exemplo de Wahrol como pop. “O 163


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que a pop art quer”, escreve Roland Barthes em “That Old Thing, Art” (“Aquela velha coisa, arte”, 1980), “é dessimbolizar o objeto”, libertar a imagem de qualquer significado profundo e situá-la na superfície enquanto simulacro.3 Nesse processo, o autor também é libertado: “O artista pop não se encontra por detrás de sua obra”, continua Barthes, “e ele mesmo não tem qualquer profundidade: é apenas a superfície de suas imagens, nenhum significado, nenhuma intenção em lugar algum”.4 Com algumas variações, essa leitura na chave do simulacro é realizada por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean Baudrillard, para quem profundidade referencial e interioridade subjetiva são igualmente vítimas da pura superficialidade pop. Em “Pop – An Art of Consumption?” (“Pop – uma arte de consumo?”, 1970), Baudrillard concorda que o objeto na pop “perde seu significado simbólico, seu status antropomórfico de muitos séculos”, mas, onde Barthes e outros vêem um rompimento vanguardista com a representação, Baudrillard vê o “fim da subversão”, a “total integração” da obra de arte na economia política do signo de consumo.5 A visão referencial do pop warholiano é defendida por críticos e historiadores que ligam a obra a temas diversos: os mundos da moda, da celebridade, da cultura gay, a Warhol Factory, etc. Sua versão mais inteligente encontra-se em Thomas Crow que, em seu “Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol” (1987), questiona as análises de Warhol ligadas ao simulacro, que afirmam serem as imagens indiscriminadas, e o artista, indiferente. Sob a superfície glamourosa do fetiche das mercadorias e estrelas das mídias, Crow encontra “a realidade do sofrimento e da morte”; as tragédias de Marlyn, Liz e Jackie”, em particular, vistas como desencadeando a “expressão direta de sentimentos”.6 Aqui Crow encontra não apenas um objeto referencial para Warhol, mas um tema empático em Warhol, e aqui ele situa o caráter crítico de Warhol – não num ataque à “velha coisa, arte” (como Barthes o queria) mediante a aceitação do signo da mercadoria (como queria Baudrillard), mas antes numa exposição do “consumo complacente” por meio do “fato brutal” do acidente e da mortalidade.7 Dessa forma, Crow empurra Warhol para além de sentimentos humanistas em direção ao engajamento político. “Ele se sentia atraído pelas feridas abertas da vida política americana”, escreve Crow numa leitura das imagens de cadeiras elétricas como propaganda de agitação contra a pena de morte e das imagens da race-riot como um testemunho em favor dos direitos civis. “Longe de ser um puro jogo do significante libertado de qualquer referência”, Warhol pertence à tradição popular americana do truth telling (contar a verdade).8 A leitura do Warhol empático, até mesmo engajado, é uma projeção, mas não mais do que a do Warhol superficial e indiferente, ainda que essa fosse sua própria projeção: “Se quiser saber tudo sobre Warhol, apenas olhe para a superfície de minhas pinturas e filmes, e de mim mesmo, e lá estou. Não há nada por detrás disso”.9 Ambos os partidos criam o Warhol que precisam ou obtêm o Warhol que 164

3 Roland Barthes, “That Old Thing, Art”, in: Paul Taylor, ed. Post-Pop (Cambridge: MIT Press, 1989), pp. 25-26. Por significado profundo Barthes quer dizer tanto associações metafóricas, como conexões metonímicas. 4 Id., ibid., p. 26. 5 Jean Baudrillard, “Pop – An Art of Consumption?”, in: Post-Pop, 33, 35. (Esse texto foi extraído de La societé de consummation: ses mythes, ses structures [Paris: Gallimard, 1970], 174-85.) 6 Thomas Crow, “Staurday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol”, in: Serge Guilbaut (org.), Reconstructing Modernism (Cambridge: MIT Press, 1990): 313, 317. Essa é uma segunda versão; a primeira apareceu em Art in America (May 1987). 7 Id., ibid., p. 322. 8 Id., ibid., p. 324. 9 Gretchen Berg, “Andy Warhol: My True Story,” Los Angeles Free Press, 17 de março de 1963, 3. Warhol continua: “Não havia nenhuma razão profunda para fazer uma série sobre morte, nenhuma vítima de seu tempo; não havia nenhuma razão mesmo, apenas uma razão de superfície”. Claro que essa insistência pode ser lida como uma negação, como um sinal de que há “uma razão profunda”. Esse transitar entre a superfície e a profundidade é constante no pop e pode ser caracterísitco do realismo traumático. O que, afinal, faz de Warhol o local de tanta projeção? Ele posava como uma tela em branco, com certeza, mas Warhol era muito consciente dessas projeções, de fato muito consciente do mecanismo da identificação como projeção; é um de seus principais temas. concinnitas


O retorno do real

merecem; não há dúvida de que isso ocorre com todos nós. E nenhuma das duas projeções está errada. Acho ambas igualmente persuasivas. Mas ambas não podem estar corretas... ou será que podem? Será que podemos ler as imagens de Death in America como referenciais e simulacros, conectadas e desconectadas, afetivas e indiferentes, críticas e complacentes? Acho que devemos e podemos, se as lermos de uma terceira maneira, nos termos do realismo traumático.10

Realismo traumático Uma forma de desenvolver essa noção é pelo famoso moto da persona warholiana: “Quero ser uma máquina”.11 Normalmente essa declaração é entendida como confirmação da inexpressividade tanto do artista quanto da arte, mas ela pode talvez apontar menos para um sujeito indiferente do que para um sujeito 10 Por razões que se esclarecerão, não pode existir um realismo traumático enquanto tal. No entanto a noção é útil do ponto de vista heurístico – mesmo apenas como uma forma de superar as oposições contidas na nova história da arte (semiótica versus métodos sóciohistóricos, texto versus contexto) e na crítica cultural (significante versus referente, sujeito construído versus corpo natural). 11 Swenson, “What is Pop Art?”, p. 26. 12 Hesito entre “produto”e “imagem”, “fazer” e “consumir” porque Warhol parece ocupar uma posição liminar entre as ordens de produção e consumo; ao menos, as duas operações se embaralham em seu trabalho. Essa posição liminar também explica minha hesitação entre “choque”, um discurso que se desenvolve em torno de acidentes no contexto da produção industrial, e “trauma”, um discurso no qual o “choque” é repensado por meio de sua eficiência psicanalítica e fantasia imaginária – e, portanto, um discurso talvez mais pertinente a um sujeito consumidor. 13 Sewenson, “What is Pop Art?,” p. 26. 14 Para niilistas captalistas no Dadá, ver meu artigo “Armor Fou”, October 56 (Spring 1991); para o caso de Wahol, ver Benjamin Buchloh, “The Andy Warhol Line,” in Gary Garrels (org.), The Work of Andy Warhol (Seattle: Bay Press, 1989). Sugiro a seguir que hoje esse niilismo freqüentemente assume um aspecto infantil, como se “atuar” (acting out) fosse o mesmo que “fazer performance.” 15 Declaração não datada de autoria de Andy Warhol, lida por Nicholas Love na missa celebrativa em memória de Andy Warhol, St. Patrick’s Cathedral, Nova York, em primeiro de abril de 1987, citado em Kynaston McShine (org.), Andy Warhol: A Retrospective (Nova York: Museum of Modern Art, 1989), 457. 16 Andy Warhol e Patt Hackertt, POPism: The Warhol’60s (Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980), 50. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca, como uma defesa mimética contra o choque: Sou também uma máquina, faço (ou consumo) imagens-produto em série também, dou tão bem (ou tão mal) quanto recebo.12 “Alguém disse que minha vida me dominou”, declarou Warhol ao crítico Gene Swenson em uma famosa entrevista de 1963. “Gosto dessa idéia.”13 Aqui Warhol acaba de admitir entregar-se ao mesmo almoço todos os dias nos últimos 20 anos (o que mais senão sopa Campbell?). No contexto, então, as duas declarações podem ser lidas como a predominância da compulsão a repetir colocada em jogo por uma sociedade de produção e consumo seriais. Se você não os pode vencer, sugere Warhol, junte-se a eles. Mais, se você entrar totalmente no jogo talvez possa expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo, por meio de seu próprio exemplo exagerado. Usado de forma estratégica no Dadá, esse capitalismo niilista era encenado de forma ambígua em Warhol e, como vimos no Capítulo 4, muitos artistas jogam com ele desde então.14 (Evidentemente isso é uma performance, há um sujeito “atrás” dessa figura de não-subjetividade que a apresenta como uma figura. De outra forma, o sujeito em choque seria um oximoro, pois não há um sujeito presente para si mesmo no choque, quanto mais no trauma. Apesar disso, a fascinação em Warhol é que nunca se tem certeza sobre esse sujeito por detrás: há alguém em casa, dentro do autômato?) Essas noções de subjetividade em choque e repetição compulsiva reposicionam o papel da repetição na persona warholiana e nas imagens. “Gosto de coisas tediosas” é outro moto famoso dessa persona quase autista. “Gosto que as coisas sejam exatamente as mesmas sempre.”15 Em POPism (1980), Warhol esboça essa aceitação do tédio, repetição e dominação: “Não quero que seja essencialmente o mesmo – quero que seja exatamente o mesmo. Pois quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa, tanto mais ela perde seu significado, e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”.16 Aqui a repetição é tanto uma drenagem do significado quanto uma defesa contra o afeto, e essa estratégia já 165


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guiava Warhol desde cedo, como na entrevista de 1963: “Quando se vê uma imagem medonha repetidamente, ela não tem realmente um efeito”.17 Claramente essa é uma das funções da repetição, ao menos da forma como foi compreendida por Freud: repetir um evento traumático (nas ações, nos sonhos, nas imagens) de forma a integrá-lo à economia psíquica, que é uma ordem simbólica. Mas as repetições de Warhol não são restauradoras nesse sentido; não se trata do controle sobre o trauma. Mais do que uma libertação paciente por meio do luto, elas sugerem uma fixação obsessiva no objeto da melancolia. Pense apenas em todas as Marilyns, o cultivo, coloração e listagem dessas imagens: na medida em que Warhol retrabalha essas imagens de amor, uma melancólica “psicose-desejada” parece entrar em jogo.18 Porém essa análise não está também exatamente correta. Pois a repetição de Warhol não apenas reproduz efeitos traumáticos; ela também os produz. De alguma forma, nessas repetições, então, ocorre uma série de coisas contraditórias ao mesmo tempo: uma evasão do significado traumático e uma abertura em sua direção, uma defesa contra afetos traumáticos e sua produção. Aqui devo explicitar o modelo teórico que esteve subentendido até agora. No começo dos anos 60, Jacques Lacan estava preocupado em definir o real em termos do trauma. Intitulado “O Inconsciente e a Repetição”, tal seminário ocorreu mais ou menos contemporaneamente à criação das imagens de “Death in America” (no início de 1964).19 Porém, à diferença da teoria do simulacro de Baudrillard e companhia, a teoria do trauma de Lacan não foi influenciada pelo pop. Ela é, no entanto, informada pelo surrealismo, que aqui apresenta seu efeito retardatário sobre Lacan, alguém associado ao surrealismo desde seu início, e abaixo afirmarei que a arte pop é relacionada ao surrealismo enquanto um realismo traumático (certamente minha leitura de Warhol é surrealista). Nesse seminário, Lacan define o traumático como um desencontro com o real. Enquanto perdido, o real não pode ser representado; ele só pode ser repetido. De fato ele deve ser repetido. “Wiederholen”, escreve Lacan em referência etimológica à idéia de repetição em Freud, “não é Reproduzieren” (50): repetição não é reprodução. Isso pode valer como epítome também de meu argumento: repetição em Warhol não é reprodução no sentido da representação (de um referente) ou simulação (de uma pura imagem, um significante desprendido). Antes, a repetição serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas exatamente essa necessidade também aponta para o real, e nesse ponto o real rompe o anteparo proveniente da repetição. É uma ruptura menos no mundo que no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem. Numa alusão à idéia de causalidade acidental de Aristóteles, Lacan chama esse ponto traumático de touché; em Camera Lucida (1980) Barthes chama-o de punctum.20 “É esse elemento que nasce da cena, é lançado para fora dela como uma flecha e me atinge”, escreve Barthes. “É aquilo que acrescento à fotografia e que mesmo assim já estava lá.” “É preciso, porém abafado. Grita em 166

17 Swenson, “What is Pop Art?,” 60. Isto é, tem um efeito , mas não realmente. Uso “afeito” não para reinstaurar uma experiência referencial, mas, ao contrário, para sugerir uma experiência que precisamente não pode ser localizada. 18 Sigmund Freud, “Mourning and Melancholia” (1917), in: General Psycological Theory, Philip Rieff (org.), (Nova York: Collier Books, 1963), 166. O trabalho de Crow é especialmente bom no que diz respeito ao memorial de Warhol a Marilyn, porém ele o lê no sentido de um luto, em vez de lhe atribuir um sentido de melancolia. 19 Ver Jacques Lacan, The Four Fundamental Concepts of Psycoanalysis, trad. Alan Sheridan (Nova York: W.W. Norton, 1978), 17-64; outras referências estarão incluídas no texto. O seminário sobre o olhar (gaze), “Of the Gaze as Objet Petit a” tem recebido mais atenção do que o seminário sobre o real, porém o último tem a mesma relevância para a arte contemporânea quanto o primeiro (de qualquer forma, os dois textos devem ser lidos em conjunto). Para um uso provocante do seminário sobre o real em escritos contemporâneos, ver Susan Stewart, “Coda: Reverse Trompe L’Oeil / The Eruption of the Real,” in Crimes of Writing (Nova York: Oxford University Press), 273-90. 20 “Estou tentando entender aqui como o touché é representado na apreensão visual”, diz Lacan. “Mostrarei que é ao nível do que chamo de “mancha” que o ponto de tiche é encontrado na função escópica” (77). Esse ponto de tiche, então, está no sujeito, mas o sujeito enquanto um efeito, uma sombra de uma “mancha” lançada pelo olhar do mundo. concinnitas


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silêncio. Estranha contradição: um raio flutuante.”21 Essa confusão sobre o local da ruptura, touché, ou punctum, é uma confusão entre sujeito e mundo, entre o dentro e o fora. É um dos aspectos do trauma; de fato, pode ser que essa mesma confusão seja o traumático. (“Onde está sua ruptura?”, pergunta Warhol em uma pintura de 1960, baseada em uma propaganda de jornal, com uma série de flechas voltadas para o buraco entre os seios de uma mulher). Em Camera Lucida Barthes está preocupado com fotografias simples, assim, ele situa o punctum em detalhes de conteúdo. Esse raramente é o caso em Warhol. Porém há para mim um punctum (Barthes estipula que ele é um efeito pessoal) na indiferença do passante em White Burning Car III (“Carro Branco Queimando III”, 1963). Tal indiferença em relação ao acidentado lançado sobre o poste de telefone é ruim o suficiente, mas sua repetição é insuportável e aponta para a forma de funcionamento do punctum em geral em Warhol. Ele funciona menos por meio do conteúdo do que da técnica, especialmente pelos 21 Roland Barthes, Câmera Lúcida, trad. Richard Howard (Nova York: Hill and Wang, 1981), 26, 55, 53. 22 Ainda outra situação desse pipocar (poping) é o apagamento da imagem (que freqüentemente ocorre nos dípticos, isto é, um monocromo próximo de um painel de um acidente de carro ou de uma cadeira elétrica), como se ele fosse um correlativo de um blackout. 23 Esse é, aliás, um tema modernista importante, de Baudelaire ao surrealismo e além. Ver Walter Benjamin, “On Some Motifs in Baudelaire” (1939), in Illuminations, trad. Harry Zohn (Nova York: Schocken Books, 1969), assim como também Wolfgang Schivelbusch, The Railway Journal (Berkeley: University of California Press, 1986). Como aponto na nota 7, esse choque é tátil em Benjamin, como ele é, de outra maneira, em Warhol: “Vejo tudo daquela forma, a superfície disso, uma espécie de Braille mental, apenas passo minhas mãos sobre a superfície das coisas” (Berg, “Andy: My True Story,” 3). 24 De fato Benjamin apenas toca brevemente a questão em “A Short History of Photography” (1931), in Alan Trachtenberg (org.), Classic Essays on Photography (New Haven: Leete’s Island Books, 1980) e “The Works of Art in the Age of mechanical Reproduction” (1936), in Illuminations. 25 Isso é igualmente verdade para Richter, especialmente em seu conjunto de pinturas de 1988, October 18, 1977, no que diz respeito ao grupo de Baader-Meinhof. O punctum dessas pinturas, que são baseadas em fotografias de membros de grupos, celas de prisão, cadáveres e funerais, não é um assunto privado, porém tampouco pode ser explicado por um código público (ou studium no léxico barthesiano). Isso igualmente fala a favor de uma confusão traumática das esferas pública e privada. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

“raios flutuantes” do processo do silkscreen, o escorregar e marcar, o alvejar e esvaziar, o repetir e colorir das imagens. Para tomar outro exemplo, um punctum aparece para mim em Ambulance Disaster (“Desastre de Ambulância”, 1963) não na mulher jogada na imagem de cima, mas na gota obscena que apaga sua cabeça na imagem de baixo. Nos dois casos – exatamente como o punctum em Gerhard Richter aparece menos nos detalhes do que no desfocar esparramado das imagens – assim o punctum em Warhol aparece não nos detalhes, mas no pipocar (poping) repetitivo da imagem.22 Esses pops, como falhas no registro ou uma diluição na cor, servem como equivalentes visuais de nosso desencontro com o real. “O que é repetido”, escreve Lacan, “é sempre algo que acontece... como por acaso”. Portanto, é como esses pops: parecem acidentais, mas também parecem repetitivos, automáticos, mesmo técnológicos (a relação entre acidente e tecnologia, crucial para o discurso sobre o choque, é um tema importante em Warhol).23 Dessa forma, ele intervém sobre o nosso inconsciente óptico, um termo introduzido por Walter Benjamin para descrever o efeito subliminar das modernas tecnologias de imagem. Benjamin desenvolve essa noção no início dos anos 30, respondendo à fotografia e ao cinema; Warhol a atualiza 30 anos mais tarde, respondendo à sociedade do espetáculo do pós-guerra, aos meios de comunicação de massa e à mercadoria.24 Nessas imagens do começo de sua carreira, vemos o que é o sonhar a vida e o tempo na era da televisão – ou, antes, o que é ter pesadelo enquanto vítimas que se preparam para desastres que já chegaram, pois Warhol seleciona momentos em que o espetáculo racha (o caso do assassinato de JFK, o suicídio de Monroe, ataques racistas), mas racham apenas para se expandir. Portanto, o punctum em Warhol não é nem estritamente privado, nem público.25 Nem tem conteúdo trivial: uma mulher branca atirada para fora de uma ambulância ou um homem negro atacado por um cão da polícia é um 167


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choque. Mas, novamente, essa primeira ordem do choque é protegida pela repetição da imagem, ainda que essa repetição possa também produzir uma segunda ordem do trauma, agora no nível da técnica, em que o punctum rompe o anteparo e permite ao real se expor.26 O real, diz Lacan usando um trocadilho, é troumatic, e notei que para mim a gota no Ambulance Disaster é um tal buraco (trou), ainda que não consiga dizer que perda está figurada ali. Através desses buracos ou pops, temos a impressão de tocar o real, que a repetição da imagem ao mesmo tempo afasta e aproxima de nós. (Às vezes a coloração da imagem produz esse mesmo estranho efeito.)27 Dessa forma, tipos diferentes de repetição estão em jogo em Warhol: repetições que se fixam no real traumático, que o protege, que o produz. E essa multiplicidade dá conta do paradoxo não apenas das imagens, que são ao mesmo tempo afetivas e sem afeto, mas também dos observadores, que nem estão integrados (o que é o ideal da maior parte da estética moderna: o sujeito composto na contemplação), nem dispersos (o que é o efeito de grande parte da cultura popular: o sujeito entregue à intensidade esquizóide da mercadoria). “I never fall apart”, comenta Warhol em The Philosophy of Andy Warhol (“A Filosofia de Andy Warhol”, 1975), “because I never fall together” (jamais caio aos pedaços (fall apart), porque não sou coerente (fall together).28 Esse é igualmente o efeito de seu trabalho sobre o sujeito, e ele ressoa na produção artística que elabora o pop: novamente, em uma parte do super-realismo, da appropriation art (arte de apropriação) e em algumas obras contemporânea envolvidas com o ilusionismo – uma categoria, tal como a do realismo, que esse tipo de arte nos convida a repensar.

Ilusionismo traumático Em seu seminário de 1964 sobre o real, Lacan faz uma distinção entre Wiederholung e Wiederkehr. O primeiro é a repetição do reprimido, enquanto sintoma ou significante, que Lacan chama de automaton, também em alusão a Aristóteles. O segundo é o retorno discutido acima: o retorno do encontro traumático com o real, algo que resiste ao simbólico, que não é de forma alguma um significante, chamado por Lacan, como dissemos, de touché. O primeiro, a repetição do sintoma, pode conter ou proteger o segundo, isto é, o retorno do real traumático, que, no entanto, existe para além do automaton dos sintomas, “para além da insistência do signo”. De fato, para além do princípio do prazer.29 Acima relacionei essas duas formas de recorrência aos dois tipos de repetições na imagem warholiana: a repetição de uma imagem a fim de proteger contra um real traumático, que, apesar disso, retorna, acidental e/ou obliquamente, no próprio anteparo. Agora me aventurarei em outra analogia com referência à arte super-realista: às vezes seu ilusionismo é tão excessivo que parece ansioso – ansioso para encobrir o real traumático –, mas essa ansiedade nada mais faz do 168

26 O choque pode existir no mundo, mas o trauma se desenvolve apenas no sujeito. Como observamos nos capítulos 1 e 7, são necessários dois traumas para efetuar um trauma: pois para que um choque se transforme em trauma, ele deve ser recodificado por um evento posterior; isto é o que Freud quis dizer com ação atrasada (nachträglich). Com relação a Warhol, isso sugere que o choque do assassinato de JFK ou o suicídio de Monroe tornou-se trauma apenas posteriormente, après-coup, para nós. 27 O colorir pode lembrar o vermelho histérico que Marnie vê no filme epônimo de Hitchcock (1964). Porém esse vermelho é muito codificado, seguro por ser simbólico. As cores de Warhol são arbitrárias, ácidas, eficientes (especialmente nas imagens da cadeira elétrica). 28 Warhol, The Philosophy of Andy Warhol, 81. Em “Andy Warhol’s One-Dimensional Art: 19561966”, Benjamin Buchloh argumenta que “consumidores (...) podem celebrar nas obras de Warhol seu próprio status de ter sido apagado enquanto sujeitos” (in McShine, Andy Warhol: A Retrospective, 57). Essa posição é a oposta à de Crow, que afirma que Warhol denuncia o “consumo complacente”. Novamente, em vez de escolher entre as duas, devemos pensá-las em conjunto. 29 O sintoma nos puxa de volta ao mesmo ponto (os trocadilhos de Lacan sobre a etimologia de Wiederholen puxam novamente), mas ao menos essa repetição nos oferece uma consistência, até mesmo um prazer. O real, ao contrário, retorna violentamente ao simbólico (novamente, ele não pode ser assimilado ali) para nos derrubar. Enquanto ruptura, ele é ao mesmo tempo extático e mortífero, precisamente além do princípio do prazer, e deve ser vinculado de alguma forma – pelo sintoma, se por mais nada. concinnitas


O retorno do real

que indicar igualmente esse real.30 Tais analogias entre o discurso psicanalítico e as artes visuais valem pouco, se nada fizer a mediação entre os dois. Porém, aqui, tanto a teoria quanto a arte relaciona a repetição à questão da visualidade e do olhar (gaze). Mais ou menos contemporâneo à divulgação do pop e ao nascimento do super-realismo, o seminário de Lacan sobre o olhar sucede àquele sobre o real; ele é muito citado, mas pouco compreendido. É possível que haja um olhar masculino e que o capitalismo esteja voltado para o sujeito masculino, mas esses argumentos não encontram sustentação nesse seminário de Lacan, para quem o olhar não está incorporado a um sujeito, pelo menos numa primeira instância. Numa certa medida, à semelhança de Jean-Paul Sartre, Lacan distingue entre o ver (ou o olho) e o olhar, e em certa medida, como Merleau-Ponty, ele 30 Como veremos, esse ponto troumático pode ser associado com o ponto central na perspectiva linear, a partir do qual o mundo retratado retribui o olhar do observador. A pintura de perspectiva tem formas diferentes de sublimar esse buraco: em pinturas religiosas o ponto freqüentemente representa a infinidade de Deus (na Última Ceia, de Leonardo ele toca o halo de Cristo), na pintura de paisagem, a infinidade da natureza (existem muitos exemplos americanos no século XVIII), e assim por diante. A pintura super-realista, eu sugiro, sela ou mistura esse ponto com a superfície, enquanto muito da arte contemporânea procura apresentá-lo dessa forma – ou ao menos opor-se a sua forma de sublimação tradicional. 31 Lacan apóia-se, em particular, no Sartre de Being and Nothingness (1943) e no Merleau-Ponty de The Phenomenology of Perception (1945). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

situa esse olhar no mundo.31 Em Lacan, o que ocorre com a linguagem também ocorre com o olhar: ele preexiste ao sujeito, que, “olhado por todos os lados”, não é mais do que uma “mancha” no “espetáculo do mundo”. Portanto, posicionado, o sujeito tende a sentir o olhar como uma ameaça, como se o questionasse, e é por isso que, de acordo com Lacan, “o olhar, qua objet a, pode vir a simbolizar essa falta central expressa no fenômeno da castração”. Ainda mais do que Sartre e Merleau-Ponty, portanto, Lacan desafia o velho privilégio do sujeito na visão e na autoconsciência (o vejo-me vendo a mim mesmo que fundamenta o sujeito fenomenológico), assim como o velho domínio do sujeito sobre a representação (“esse aspecto de pertença a mim da representação, tão sugestivo de propriedade”, que imbui o sujeito cartesiano de poder). Lacan subjuga esse sujeito na famosa anedota da lata de sardinha que boiava no mar, brilhando ao sol, parecendo olhar para o jovem Lacan que estava 169


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no barco de pesca “ao nível do ponto de luz, o ponto a partir do qual tudo o que olha para mim está situado”. Portanto, visto de seu ponto, figurado como ele/ ela o figura, o sujeito lacaniano está fixo numa dupla posição, o que leva Lacan a sobrepor ao cone tradicional da visão que emana do sujeito outro cone que emana do objeto, no ponto da luz que ele chama de olhar. O primeiro cone é familiar a partir dos tratados de perspectiva do Renascimento: o sujeito é evocado como o mestre do objeto, ordenado e focado como uma imagem posicionada para ele/ela, a partir de um ponto de vista geométrico. Porém, Lacan acrescenta imediatamente, “não sou simplesmente esse sujeito puntiforme localizado no ponto geométrico a partir do ponto em que a perspectiva é compreendia. Não há dúvidas de que no fundo de meus olhos, a figura está pintada. A figura está certamente dentro de meus olhos. Mas eu, eu estou na figura”.32 Isto é, o sujeito também está sob a consideração do objeto, fotografado por sua luz, figurado por seu olhar: portanto, a sobreposição dos dois cones, com o objeto também no ponto da luz (do olhar), o sujeito também no ponto da figura, e a imagem também alinhada com o anteparo. O significado deste último termo é obscuro. Entendo que ele se refira à reserva cultural da qual cada imagem é uma instância. Podemos chamá-la de convenções da arte, a schemata da representação, os códigos da cultura visual; o anteparo faz a mediação entre o olhar-do-objeto e o sujeito, mas também protege o sujeito do olhar-do-objeto. Isto é, ele capta o olhar, “pulsante, estonteante e espalhado” e o domestica em uma imagem.33 Esta última formulação é crucial. Para Lacan, os animais estão presos no olhar do mundo, estão apenas à disposição ali. Os humanos não estão tão reduzidos a essa “captura imaginária”, pois temos acesso ao simbólico – nesse caso, ao anteparo enquanto lugar de fabricação e visualização das figuras, onde podemos manipular e moderar o olhar. “O homem, de fato, sabe como jogar com a máscara enquanto aquilo para além do qual existe o olhar”, afirma Lacan. “O anteparo é aqui o locus da mediação”. Dessa forma, o anteparo permite ao sujeito, a partir do ponto da figura, apreender o objeto, que se encontra no ponto da luz. De outra forma seria impossível, pois ver sem o anteparo seria deixar-se cegar pelo olhar ou tocar pelo real. Assim, mesmo que o olhar capture o sujeito, o sujeito pode domesticar o olhar. Esta é a função do anteparo: negociar uma rendição do olhar, como em uma rendição de alguém armado. Note os tropos atávicos de pregações e domesticações, lutas e negociações. São atribuídas atividades estranhas, tanto ao olhar quanto ao sujeito, e eles são posicionados de forma paranóica.34 De fato, Lacan imagina o olhar não apenas como malévolo, mas também como violento, como uma força que pode deter ou mesmo matar, se não for primeiramente desarmado.35 Portanto, quando urgente, a realização de imagens é apotrópica: seus gestos contêm essa detenção do olhar antes do fato. Quando “apolínea”, a realização de imagens é pacificadora: suas perfeições pacificam o 170

32 Curiosamente a tradição de Sheridan acrescenta um “não” (“Mas não estou na imagem”) onde o original dizia “Mais moi, je suis dans le tableau” (Le Seminaire de Jacques Lacan, Livre XI [Paris: Editions du Seuil, 1973], 89). Esse acréscimo tem apoiado o engano quanto ao lugar do sujeito, mencionado na próxima nota. Lacan é bastante claro nesse ponto; por exemplo: “o primeiro [sistema triangular] é aquele que, num campo geométrico, coloca o sujeito da representação no nosso lugar, e o segundo é aquele que me coloca na imagem” (105). 33 Alguns leitores situam o sujeito na posição do anteparo, talvez tomando como base esta declaração: “E se sou algo na imagem, será sempre na forma do anteparo, que chamei anteriormente de mancha ou ponto” (97). O sujeito é um anteparo no sentido de que, observado por todos os lados ele/ela bloqueia a luz do mundo, lança uma sombra, é uma “mancha” (paradoxalmente esse anteparo é o que permite ao sujeito ver, em primeiro lugar). Porém esse anteparo é diferente da imagem-anteparo, e situar o sujeito apenas lá contradiz a superposição dos dois cones, em que o sujeito é igualmente observador e imagem. O sujeito é um agente da imagem-anteparo, e não um único com ela. Em minha leitura, o olhar não é já semiótico, como para Norman Bryson (ver Tradition and Desire: From David to Delacroix [Cambridge University Press, 1984], 64-70). Em alguns sentidos ele melhora Lacan, que, usando MerleauPonty, torna o olhar quase animista. Por outro lado, ler o olhar como já sendo semiótico é domesticá-lo antes do fato. Para Bryson, no entanto, o olhar é benigno, “uma plenitude luminosa”, e o anteparo “mortifica” em vez de proteger o sujeito (“The Gaze is in the Expanded Field”, in Hal Foster (org.) Vision and Visuality [Sattle: Bay Press, 1988], 92). 34 Sobre o atavismo desse nexo de olhar, reza e paranóia, considerem a seguinte observação do romancista Philip K. Dick: “Penso que, em alguns aspectos, a paranóia é um desenvolvimento nos dias modernos de um sentido antigo, arcaico, que os animais ainda têm – animais de luta – de que estão sendo observados... Digo que a paranóia é um sentido atávico. É um sentido em declínio, que tínhamos há muito tempo, quando éramos – quando nossos ancestrais eram – muito vulneráveis a predadores, e esse sentido lhes diz que estão sendo observados. E estão provavelmente sendo observados por algo que irá pegá-los... E freqüentemente meus personagens têm esse sentimento. Mas o que realmente fiz foi tornar a sociedade deles atávica. E ainda que se passe no futuro, em muitas formas eles estão vivendo – há uma qualidade de retrocesso em suas vidas, sabe? – Estão vivendo como nossos ancestrais viviam. Quero dizer, as ferramentas concinnitas


O retorno do real

são do futuro, o cenário está no futuro, mas as situações são realmente do passado” (trecho de uma entrevista de 1974, usada como epígrafe em The Collected Stories of Philip K. Dick, vol. 2 [Nova York: Carol Publishing, 1990]). Bryson discute a paranóia do olhar em Sartre e em Lacan em “The Gaze in the Expanded Field,” no qual ele sugere que, mesmo ameaçado pelo olhar, o sujeito é também confirmado por ele, fortalecido precisamente por sua alteridade. De forma semelhante, numa discussão de Thomas Pynchon, Leo Bersani declara que a paranóia é o último refúgio do sujeito: “Na paranóia, a função primeira do inimigo é prover uma definição do real que faz a paranóia necessária. Devemos assim começar a suspeitar que a estrutura da paranóia, em si, é um mecanismo pelo qual a consciência mantém a polaridade entre o eu e o não-eu, preservando assim o conceito de identidade. Na paranóia, dois textos verdadeiros se confrontam: existência subjetiva e um mundo de alteridade monolítica. Essa oposição só poderá ser derrubada se renunciarmos à crença confortadora (ainda que perigosa) em identidades localizáveis. Apenas então, talvez, os duplos simulados da visão paranóica poderão destruir precisamente a oposição que ela parece sustentar” (“Pynchon, Paranóia, and Literature,” Representations 25 [Winter 1989]: 109. Há um aspecto paranóico em outros modelos de visualidade – o olhar masculino, vigilância, espetáculo, simulação. O que produz essa paranóia e ao que ela serve, isto é, para além dessa estranha in/segurança do sujeito? 35 Lacan relaciona o olhar maleféfico ao olho mau, que ele vê como um agente de doença e morte, com o poder de cegar e de castrar: “É uma questão de retirar a posse que o olho mau tem sobre o olhar, para reduzir sua força. O olho mau é o fascinum [feitiço]. Ele é aquilo que tem o efeito de detenção do movimento e, literalmente, de matar a vida... É precisamente uma das dimensões em que o poder do olhar é exercido diretamente.” (118). Lacan afirma que o olho mau é universal, sem qualquer olho benevolente que lhe equivalha, nem mesmo na Bíblia. Porém em representações bíblicas existe o olhar da Madonna sobre a Criança e da Criança sobre nós. Apesar disso, Lacan opta pelo exemplo da inveja em Santo Agostino, que relata sobre seus sentimentos assassinos de exclusão diante da visão de seu irmão menor no seio da mãe: “Isso é verdadeira inveja – a inveja que faz o sujeito empalidecer diante da imagem de um eu completo e fechado sobre si mesmo, diante da idéia de que o petit a, o a separado no qual ele está pendurado, pode ser a possessão que traz satisfação a um outro.” (116). Aqui Lacan pode ser contrastado com Walter Benjamin, que imagina o olhar aurático e repleto de dentro da díade mãe e criança, em vez de ansioso e invejoso, na posição de um terceiro ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

olhar, “relaxam” seu domínio sobre o observador (esse termo nietzscheano projeta novamente o olhar como dionisíaco, cheio de desejo e morte). Isso é a contemplação estética segundo Lacan: algumas obras podem tentar um trompel’oeil, um engodo do olhar, mas toda arte aspira a um dompte-regard, a uma domesticação do olhar. A seguir irei sugerir que uma parte das obras contemporâneas recusa o velho mandamento da pacificação do olhar, a fim de unir o imaginário e o simbólico contra o real. É como se essa arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a glória (ou horror) de seu desejo pulsante, ou ao menos que evocasse essa condição sublime. Com esse objetivo, ela não somente se move para atacar a imagem, mas para romper o anteparo, ou sugere que este já se encontra roto. Porém, por enquanto, quero continuar com as categorias do trompe-l’oeil e do dompte-regard, pois uma parte da arte póspop desenvolve truques ilusionistas e domesticações de maneira que se distingue do realismo não apenas no antigo sentido referencial, mas também no sentido do traumático delineado acima.36 Em seu seminário sobre o olhar, Lacan reconta a anedota clássica da competição de trompe-l’oeil entre Zeuxis e Parrhasius. Zeuxis pinta uvas de forma a ludibriar os pássaros, mas Parrhasius pinta uma cortina, de forma a iludir Zeuxis, que pede para ver o que se encontra por trás da cortina e reconhece com embaraço sua derrota. Para Lacan a história diz respeito à diferença entre captações imaginárias de animais ludibriados e homens enganados. Verossimilhança provavelmente tem pouca relação com ambas as situações: o que parecem uvas para uma espécie pode não parecer para outra. A coisa importante é o signo apropriado para cada uma delas. Mais significativo aqui é que o animal é ludibriado com relação à superfície, ao passo que o humano é enganado no que diz respeito ao que se encontra por trás. E atrás da figura, para Lacan, encontra-se o olhar, o objeto, o real, com o qual “o pintor, enquanto criador ... estabelece um diálogo”. Portanto, uma ilusão perfeita não é possível e, mesmo que fosse possível, não responderia à questão sobre o real, que sempre permanece atrás e além, para nos ludibriar. Isso ocorre porque o real não pode ser representado; de fato ele é definido como tal, como o negativo do simbólico, um desencontro, uma perda do objeto (a pequena parte do sujeito perdido para o sujeito o objeta). “Esta outra coisa [por trás da figura e além do princípio do prazer] é o petit a, em torno do qual se desenvolve um combate cujo trompe-l’oeil é a alma”. Enquanto a arte do trompe-l’oeil, o super-realismo está igualmente envolvido nesse combate, porém ele é mais do que um engodo do olho. Ele é um subterfúgio contra o real, uma arte empenhada não só em pacificar o real, mas também em selá-lo por trás da superfície, embalsamá-lo em suas aparências. (Obviamente essa não é a compreensão que eles têm de si mesmos: o super-realismo procura revelar a realidade como aparência. Porém, fazê-lo, quero sugerir, é postergar o 171


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real – ou, novamente, selá-lo.) O super-realismo empreende esse selar por meio de pelo menos três formas. A primeira é representando a realidade aparente como um signo codificado. Com freqüência baseado manifestamente na fotografia ou em cartões-postais, esse super-realismo mostra o real como já absorvido no simbólico (como nas primeiras obras de Malcom Morley). A segunda é representando a realidade aparente como uma superfície fluída. Mais ilusionista que a primeira, esse surper-realismo desrealiza o real, com efeitos de simulacro (relacionada às pinturas pop de James Rosenquit, essa categoria inclui Audrey Flanck e Don Eddy, entre outros). A terceira é representando a realidade aparente como um enigma visual com reflexos e refrações de todos os tipos. Nesse superrealismo, que se relaciona com os dois primeiros, a estrutura do real é forçada para o ponto de implosão, de colapso sobre o observador. Diante dessas pinturas, nos sentimos submetidos ao olhar, observados de muitos lados: daí a dupla perspectiva impossível que Richard Estes intentava em Union Square (1985), que converge mais sobre nós do que se estende a partir de nós, ou seu igualmente impossível Double Self-Portrait (Auto-Retrato Duplo, 1976), no qual olhamos por uma vitrina de lanchonete em completa perplexidade com relação ao que se encontra dentro ou fora, o que está diante ou atrás de nós. Se Union Square pressiona o paradigma renascentista da perspectiva linear como na The Ideal City (A Cidade Ideal), o Double Self-Portrait pressiona um paradigma barroco de reflexibilidade pictórica, como em Las Meninas (não é surpreendente que, na ação de usar linhas e superfícies para amarrar e amaciar o real, o super-realismo se voltasse para os intrincamentos barrocos de um Velazquez). Nessas pinturas, Estes transporta seu modelo histórico para um anúncio comercial e para uma vitrina de loja em Nova York; e, de fato, como no pop, é difícil imaginar o super-realismo apartado das linhas embaralhadas e superfícies lúcidas do espetáculo capitalista: a sedução narcisista das vitrinas de lojas, o brilho lascivo dos carros esporte – enfim, o apelo sexual do signo da mercadoria, com a feminilização da mercadoria e a mercantilização do feminino, de tal forma que, ainda mais que o pop, o super-realismo celebra mais do que questiona. Como reproduzidas nessa arte, essas linhas e superfícies freqüentemente se distendem, dobram-se sobre si mesmas, achatando a profundidade pictórica. Mas terão elas o mesmo efeito sobre a profundidade psíquica? Em uma comparação entre o pop e o super-realismo de um lado, e o surrealismo de outro, Frederic Jameson diz o seguinte: Precisamos apenas justapor o manequim, como símbolo [surrealista], aos objetos fotográficos da arte pop, as latas de sopa Campbell, as pinturas de Marilyn Monroe, ou às curiosidades visuais da op art; precisamos apenas trocar, aquele ambiente de pequenos ateliês e balcões de lojas, pelo marché aux puces e o barulho das ruas, pelos postos de gasolina ao longo das superestradas americanas, as brilhantes fotografias 172

excluído. De fato, Benjamin imagina o olhar benevolente que Lacan se recusa a ver, um olhar mágico que reverte o fetishismo e desfaz a castração, uma aura redentora baseada na memória do olhar e do corpo materno: “A experiência da aura, portanto, repousa sobre a transposição de uma resposta comum ao relacionamento humano para o relacionamento entre um objeto inanimado ou natural e o homem. A pessoa que olhamos, o que sente que está sendo olhada, revida nosso olhar. Perceber a aura de um objeto que olhamos significa investi-lo da habilidade de nos retornar o olhar. Essa experiência corresponde ao fato da mémoire involontaire.” (“Sobre Alguns temas em Baudelaire”...) Para discussão mais ampla sobre o tema, ver meu Compulsive Beauty (Cambridge: MIT Press, 1993), 193-205. 36 Para Lacan, o olhar enquanto objeto a, enquanto o real, é a questão não apenas da pintura de trompe-l’oeil, mas de toda pintura (ocidental), da qual ele oferece uma curta história. (Aqui ele pode ser novamente contrastado com Benjamin, que apresenta uma história diferente em “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”) Lacan relaciona três regimes sociais – religioso, aristocrático e comercial – a três olhares pictóricos, que ele denomina “sacrificial” (o olhar de Deus; seu exemplo são os ícones bizantinos), “comunal” (o olhar de líderes aristocráticos; seu exemplo é o retrato de grupo dos doges venezianos) e “moderno” (“o olhar do pintor, que reivindica se impor como sendo o único olhar” [113]; aqui ele alude a Cézanne e Matisse). Para Lacan, cada olhar pictórico impõe uma apresentação do olhar como objeto a. Argumentarei abaixo que algumas formas de arte pós-moderna querem quebrar essa negociação, essa sublimação do olhar – que para Lacan seria romper com a própria arte. concinnitas


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nas revistas ou o paraíso de celofane de uma farmácia americana, para nos dar conta de que os objetos do surrealismo desapareceram sem deixar traços. Daqui para frente, naquilo que podemos chamar de capitalismo pós-industrial, os produtos com os quais somos supridos são, em última instância, sem profundidade: seu conteúdo de plástico é totalmente incapaz de servir como condutor de energia psíquica.37 Aqui Jameson marca uma virada na produção e no consumo que afeta a arte e igualmente a subjetividade; mas será que é uma “quebra histórica de um tipo absoluto e inesperado?”38 Esses velhos objetos podem estar deslocados (já para os surrealistas eles eram atraentemente fora de moda), mas não se foram sem deixar traço. Certamente os sujeitos relacionados a esses objetos não desapareceram; as épocas do sujeito, quanto mais do inconsciente, não são tão pontuais.39 Resumindo, o super-realismo retém uma conexão subterrânea com o surrealismo no registro do sujeito, e não apenas porque ambos jogam com fetichismos sexual e de mercadoria. George Bataille comentou certa vez que seu tipo de surrealismo envolvia mais o sub do que o sur, mais o baixo materialista do que o alto idealista (que ele associava a André Breton).40 Meu tipo de surrealismo envolve também mais o sub do que o sur, mas no sentido do real que se encontra por debaixo, que esse surrealismo procura atingir, deixar eclodir, como que por acaso (o que novamente é uma forma de aparição pela repetição).41 O super-realismo está também envolvido com o real que se encontra por debaixo, mas, como um super-realismo, está preocupado em ficar em cima dele, deixá-lo por baixo. À diferença do surrealismo, portanto, quer esconder mais do que revelar o real. Assim, ele acumula suas camadas de signos e superfícies retirados do mundo do consumo não só contra a profundidade representacional, mas igualmente contra o real traumático. No entanto, esse movimento ansioso para encobrir esse real aponta, apesar disso, para ele. O super-realismo permanece uma arte “do olho, feito 37 Frederic Jameson, Marxism and Form (Princeton: Princeton University press, 1971), 105. 38 Idem, ibidem (grifo meu). 39 Um e outro não são modos produtivos, muito menos relações sociais, formas representacionais, etc., o que Jameson sabe. 40 Ver Georges Bataille, “The ‘Old Male’ and the Prefix Sur in the Words Surhomme and Surrealist,” in Visions of Excess, Allan Stoekl (org.) (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985). 41 O objetivo é raramente alcançado no Surrealismo; de fato, mesmo sua possibilidade foi questionada nos primeiros tempos do movimento (ver Compulsive Beauty, XV-XVI). Em outras palavras, o surrealismo poderia estar do lado do automaton, da repetição do sintoma como significante, mais do que no ponto do touché, do irromper do real, onde uma parte da arte contemporânea aspira a estar. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

desesperado pelo olhar”, e o desespero aparece. Como resultado, sua ilusão fracassa não só enquanto um truque do olho, mas enquanto uma domesticação do olhar, uma proteção contra o real traumático, isto é, ela falha em não nos lembrar do real e, nesse sentido, ela também é traumática: uma ilusão traumática.

O retorno do real Se o real está reprimido no super-realismo, ele também retorna ali, e esse retorno rompe com a superfície super-realista dos signos. Porém, assim como essa ruptura é inadvertida, também o é o pequeno distúrbio do espetáculo capitalista que ele pode causar. Esse distúrbio não é tão inadvertido na appropriation art (arte de apropriação), que, especialmente na versão simulacral associada com Richard Prince, pode assemelhar-se ao super-realismo, com seu excesso de signos, fluidez de superfície e envolvimento do observador. Porém, as diferenças entre as duas são mais importantes do que as semelhanças. Ambas 173


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as artes usam a fotografia, mas o super-realismo explora alguns valores fotográficos (como ilusionismo) no interesse da pintura e exclui outros (como reprodução), não compatíveis com esse interesse, que até ameaçam valores pictóricos, como o da imagem única. A appropriation art, por outro lado, usa a reprodutibilidade fotográfica para questionar a singularidade da pintura, como nas primeiras cópias de mestres modernos de Sherrie Levine. Ao mesmo tempo, ela ou leva a ilusão fotográfica para um ponto de implosão, como nas primeiras refotografias de Prince, ou provoca uma reviravolta nessa ilusão para questionar a verdade documental da fotografia, o valor referencial da representação, como nos primeiros textos-fotos de Barbara Kruger. Daí a crítica excessiva da representação nessa arte pós-moderna: uma crítica de categorias artísticas e de gêneros documentais, de mitos da mídia e protótipos sexuais. Assim, também as duas artes posicionam o observador de forma diferente: em sua elaboração da ilusão, o super-realismo convida o observador a devanear de forma quase esquizofrênica em sua superfície, enquanto em sua exposição da ilusão a appropriation art pede ao observador para olhar criticamente para além de sua superfície. Porém, por vezes, as duas se encontram aqui, como quando a appropriation art envolve o observador em uma maneira super-realista.42 Mais importante, as duas se aproximam no seguinte aspecto: no super-realismo a realidade é apresentada como sobrecarregada de aparência, e na appropriation art, como construída pela representação. (Assim, por exemplo, as imagens de Malboro de Prince figuram a realidade da natureza norte-americana por meio do mito do cawboy do Oeste). Essa visão construcionista da realidade é a posição básica da arte pós-moderna, ao menos em sua visada pós-estruturalista, e ela encontra um paralelo na posição básica da arte feminista, ao menos em sua vertente psicanalítica: de que o sujeito é ditado pela ordem simbólica. Tomadas em conjunto, essas duas posições levaram muitos artistas a se concentrar na imagem-anteparo (refiro-me novamente ao esquema lacaniano de visualidade), freqüentemente negligenciando o real, de um lado, ou o sujeito, de outro. Assim, nas primeiras cópias de Levine, por exemplo, a imagem-anteparo é praticamente tudo o que existe; não é muito perturbada pelo real nem muito alterada pelo sujeito (nessas obras, pouca importância é dada ao artista e ao observador). Porém, a relação da appropriation art com a imagem-anteparo não é tão simples: ela pode ser crítica do anteparo, até mesmo hostil, e fascinada por ele, quase enamorada. E, por vezes, tal ambivalência sugere o real, isto é, na medida em que a appropriation art trabalha para expor a ilusão da representação, ela pode furar a imagem-anteparo. Consideremos as imagens de pôr-de-sol de Prince, que são refotografias de propagandas de férias tiradas de revistas, imagens familiares de jovens amantes e crianças graciosas na praia, com o sol e o mar oferecidos como tantas outras mercadorias. Prince manipula a aparência super174

42 O envolvimento do observador (por exemplo, nas imagens de entretenimento de Prince) é uma propriedade do simulacrum definido por Deleuze: “O simulacrum implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que não podem ser dominadas pelo observador. É porque não as pode dominar que ele tem a impressão de semelhança. O simulacrum inclui em si mesmo o diferencial de pontos de vista, e o espectador transforma-se em parte do simulacrum, que é transformado e deformado de acordo com o seu ponto de vista. Resumidamente, entrelaçado no interior do simulacrum existe um processo de enlouquecimento, de falta de limites.” (Plato and the Simulacrum,” October 27 (Winter [1983]: 49). Esse entrelaçamento do observador também concerne às confusões do eu e da imagem, dentro e fora, na fantasia consumista, como explorado em muitas imagens de propaganda e em algumas appropriation art. “Seus próprios desejos tinham muito pouco a ver com o que vinha de si mesmo,” escreve Prince em Why I Go to the Movies Alone (1983), pois o que ele pôs para fora, (ao menos em parte) já estava fora. Sua maneira de fazê-lo novo era fazê-lo novamente, e fazê-lo outra vez era o suficiente para ele e certamente, de um ponto de vista pessoal, quase ele.” (New York: Tanam Press, 63). Às vezes essa ambigüidade faz seu trabalho ser provocativo de uma forma que a appropriation art, confiante demais em sua capacidade crítica, não consegue ser, pois Prince está envolvido na fantasia consumista que ele desnaturaliza. Isto é, às vezes sua crítica é eficiente precisamente porque ela é comprometida – pois nos deixa ver uma consciência dividir-se diante de uma imagem. Por outro lado, esse dividir-se também pode ser outra versão da razão cínica. concinnitas


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realista dessas propagandas a ponto de elas se tornarem desrealizadas no sentido da aparência, mas realizadas no sentido do desejo. Em várias imagens, um homem levanta uma mulher para fora da água, mas a pele dos dois aparece queimada — como em uma paixão erótica que é também uma irradiação fatal. Aqui o prazer imaginário da cena de férias vai mal, torna-se obsceno, deslocado por um êxtase real de desejo acompanhado de morte, jouissance que espia por detrás do princípio do prazer da imagem-propaganda ou, em geral, da imagemanteparo.43 Essa mudança na concepção – da realidade como um efeito da representação para o real como uma coisa do trauma – pode ser definitiva na arte contemporânea e tanto mais na teoria contemporânea, na ficção e no cinema. Pois com essa mudança na concepção veio uma mudança na prática, que desejo enfatizar aqui, novamente numa relação com o diagrama lacaniano da visualidade, como uma mudança do foco, da imagem-anteparo para o olhar-do-objeto. Essa mudança pode ser acompanhada na obra de Cindy Sherman, que fez tanto quanto qualquer artista para prepará-la. De fato, se dividirmos sua obra em três grupos, ela parecerá mover-se ao longo das três principais posições do diagrama de Lacan. Nos primeiros trabalhos de 1975-82, das cenas congeladas de filmes até as projeções de fundo (rear projections), encartes e testes de cor, Sherman evoca o sujeito sob o olhar, o sujeito-como-figura, que é igualmente o lugar principal de outros trabalhos feministas do começo da appropriation art. Seus sujeitos vêem, é lógico, mas são muito mais vistos, capturados pelo olhar. Freqüentemente, nas cenas congeladas de filmes e nos encartes, esse olhar parece vir de outro sujeito, que poderia indicar o observador. Às vezes, nas projeções de fundo, ele parece vir do espetáculo do mundo. Porém, freqüentemente também, o olhar parece vir de dentro. Aqui, Sherman mostra seus sujeitos femininos como autoobservados – não em uma imanência fenomenológica (me vejo me vendo), mas em um estranhamento psicológico (não sou o que imaginava ser). Assim, na 43 Considere esta observação apositiva de Slavoj Zizek: “Aqui se encontra a ambigüidade fundamental da imagem no pós-modernismo: ela é um tipo de barreira que permite ao sujeito manter distância do real, protegendo-o de sua irrupção, porém seu ‘hiper-realismo’ intrusivo evoca a náusea do real” (“Grimaces of the Real,” October 58 [Fall 1991]: 59). Richard Misrach também evoca esse real obsceno, especialmente em sua série “Playboy” (19891991). Com base em imagens de revistas usadas como alvo de tiro em testes de alcance nucleares, essas fotografias revelam uma agressão poderosa à visualidade na cultura contemporânea. (Algumas décollages dos anos 50 e 60 também dão testemunho dessa agressão na sociedade do espetáculo.) Seria essa antivisualidade relacionada com a paranóia do olhar mencionada na nota 34? ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

distância entre a jovem mulher arrumada e sua face no espelho, em Untitled Film Stil #2 (1977), Sherman capta a distância entre corpo imaginado e corpo real, imagens que existem em cada um de nós. A distância do (mal)reconhecimento em que a moda e a indústria de entretenimento operam dia e noite. Nos trabalhos intermediários de 1987-90, das fotos de moda, passando pelas ilustrações de contos de fada e pelos retratos de história da arte, até as fotos de desastres, Sherman move para a imagem-anteparo, para seu repertório de representação. (Falo apenas de foco: ela também se volta para a imagemanteparo nos primeiros trabalhos, e o sujeito-como-figura, igualmente não desaparece nesses trabalhos intermediários.) As séries de moda e história da arte retomam dois topos da imagem-anteparo que afetaram profundamente as autoapresentações, presentes e passadas. Aqui Sherman faz a paródia do design de vanguarda com uma longa série de vítimas da moda e ridiculariza a história da 175


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123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345678901234567890123456789012123456789012345678901 arte com uma galeria de horríveis aristocratas (em uma substituição de tipos do Cindy Sherman. Sem títulos (#2 e #153), 1977 e 1985 renascimento, barroco, rococó e neoclassicismo, com alusões a Rafael,

Caravaggio, Fragonard e Ingres). A brincadeira torna-se perversa quando, como em algumas fotografias de moda, a distância entre o corpo imaginado e o corpo real torna-se psicótica (um ou dois modelos não parecem ter qualquer percepção egóica) e quando, em algumas fotografias da história da arte, a desidealização é levada a ponto de dessublimação: com sacos marcados por cicatrizes no lugar de bustos e furúnculos no lugar de narizes, esses corpos rompem os limites da representação com propriedade, rompem, de fato, com a própria subjetividade.44 Essa virada em direção ao grotesco é acentuada nos contos de fada e imagens de desastres, alguns dos quais mostram terríveis acidentes de nascimento e aberrações da natureza (uma jovem mulher com nariz de porco, uma boneca com cabeça de um velho homem imundo). Aqui, como ocorre freqüentemente em filmes de terror e histórias de ninar, o horror significa, em primeiro lugar e acima de tudo, horror à maternidade, ao corpo da mãe tornado estranho, mesmo repulsivo, na repressão. Esse corpo é igualmente a cena primária do abjeto, uma categoria do (não)ser definida por Julia Kristeva como nem sujeito, nem objeto, mas antes de se tornar o primeiro (antes da inteira separação da mãe) ou depois que se tornou objeto (como um cadáver entregue à condição de objeto).45 Essas condições extremas são sugeridas por algumas das cenas de desastres, infiltradas como estão de significantes de sangue menstrual e descarga sexual, vômito e 176

44 Rosalind Krauss concebe, em Cindy Sherman, essa dessublimação como um ataque à verticalidade sublimada da imagem artística tradicional (New York: Rizzoli, 1993). Ela igualmente discute a obra numa relação com o diagrama da visualidade de Lacan. Ver também a discussão de Sherman em Kaja Silverman, The Threshold of the Visible World (New York: Routledge, 1996), que apareceu tarde demais para que eu o pudesse consultar. 45 Ver Julia Kristeva, Powers of Horror, trad. Leon S. Roudiez (New York: Columbia University Press, 1982). concinnitas


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merda, decadência e morte. Tais imagens evocam o corpo virado ao avesso, o sujeito literalmente abjetado, jogado fora. Mas também evocam o fora tornado dentro, o sujeito-como-figura invadido pelo olhar-do-objeto. A essa altura, algumas imagens passam para além do abjeto, que freqüentemente se relaciona com substâncias e significados não só em direção ao informe – uma condição descrita por Bataille, em que a forma significativa se dissolve porque a distinção fundamental entre figura e fundo ou eu e outro se perde –, mas também em direção ao obsceno, em que o olhar-do-objeto é apresentado como se não houvesse uma cena para encená-lo, nenhuma moldura representativa para contê-lo, nenhum anteparo.46 Esse também é o universo das obras pós-1991, as imagens da guerra civil e de sexo, pontuadas por close-ups em corpos e/ou partes de corpos simuladamente deformados e/ou mortos. Às vezes o anteparo parece tão rasgado, que o olhardo-objeto não só invade o sujeito-como-figura, mas o domina. E em algumas imagens de desastres e guerra civil intuímos o que seria ocupar a terceira posição impossível no diagrama lacaniano, receber o olhar pulsante e mesmo tocar o objeto obsceno, sem a proteção do anteparo. Em uma de suas imagens, Sherman fornece a esse olho mau sua própria visada terrificante. Nesse esquema, o impulso para destruir o sujeito e rasgar o anteparo levou Sherman de seus primeiros trabalhos, em que o sujeito é captado no olhar, via trabalhos intermediários, em que ele é envolvido pelo olhar, até os mais recentes, em que ele é obliterado pelo olhar, apenas para retornar como partes de bonecos desconjuntados. Mas esse ataque duplo sobre o sujeito e sobre o anteparo não ocorre apenas com Sherman; acontece em várias frentes na arte contemporânea, nas quais ele é colocado, quase abertamente, a serviço do real. Esse trabalho evoca o real de diferentes formas. Começarei com duas abordagens que beiram o ilusionismo. A primeira envolve um ilusionismo praticado menos em imagens do que em objetos (se ele se relaciona com o super-realismo, é então referindo-se às figuras de Duane Hanson e John de Andrea). Essa arte faz de forma intencional o que alguma arte super-realista e appropriation art faziam de forma inadvertida, ou seja, empurra o ilusionismo até o ponto do real. Aqui, o ilusionismo é usado não para encobrir o real com uma superfície de simulacro, mas para descobri-lo em coisas misteriosas, que são freqüentemente também incluídas em performances. Com esse fim, alguns artistas provocam o estranhamento com relação a objetos cotidianos relacionados com o corpo (como os urinóis selados e as pias esticadas de Robert Gober, a mesa com natureza-morta que recusa ser morta, de Charles Ray, e os aparatos quase atléticos, desenhados como elementos de performance por Matthew Barney). Outros artistas tornam estranhos alguns objetos infantis retornados do passado, 46 Com respeito a essas diferenças, ver: “Conversations on the Inform and the Abject,” October 67 (Winter 1993). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

freqüentemente distorcidos em escala ou proporções, com um toque de sinistro (como nos pequenos caminhões ou nos enormes ratos de Katarina Fritsch) ou de 177


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patético (como nos ‘animais de pelúcia do exército da salvação’ de Mike Kelley), de melancólico (como nos pardais mortos com casacos tricotados de Annete Messager) ou de monstruoso (como no berço que se torna uma cadeia psicótica, de Gober). Porém, ainda que provocativa, tal abordagem ilusionista pode tornarse um surrealismo codificado. A segunda abordagem é oposta à primeira, mas tem o mesmo fim: ela rejeita o ilusionismo, de fato, qualquer sublimação do olhar-do-objeto, numa tentativa de evocar o real enquanto tal. Esse é o âmbito principal da arte abjeta, que é atraída pelo derrubamento dos limites do corpo violentado. Freqüentemente, como na estrutura agressivo-depressiva de Kiki Smith, esse corpo é materno e serve como medium de um sujeito infantil ambivalente que o estraga e restaura em seguida: em Trough (Através, 1990), por exemplo, o corpo encontra-se secionado, um recipiente vazio, enquanto em Womb (Útero, 1986) ele parece um objeto sólido, quase autônomo, mesmo autogenético.47 Freqüentemente também, o corpo aparece como um duplo direto do sujeito violentado, cujas partes são apresentadas como os resíduos da violência e/ou traços do trauma: as pernas de botas de Gober que se estendem para cima e para baixo, como se cortadas pela parede, às vezes com as coxas implantadas com velas ou as nádegas tatuadas com música, são, assim, humilhadas (em geral de forma hilária). A ambição estranha dessa segunda abordagem é a de livrar-se do trauma do sujeito, aparentemente calculando que, se seu objeto a, perdido, não pode ser reconquistado, pelo menos a ferida que ele deixou pode ser explorada (em grego “trauma” quer dizer “ferida”).48 Porém essa abordagem também tem seus perigos, pois a exploração da ferida pode cair em um expressionismo codificado (como na expressiva dessublimação da arte de diário de Sue Williams e outros) ou em um realismo codificado (como no romance boêmio das fotografias verité de Larry Clark, Nan Goldin, Jack Pierson e outros). Porém, esse mesmo problema pode ser provocativo, pois levanta a questão, crucial para a arte abjeta, da possibilidade de uma representação obscena, isto é, de uma representação sem uma cena que encene o objeto para o observador. Seria essa uma diferença entre o obsceno, no qual o objeto, sem uma cena, chega perto demais do observador, e o pornográfico, em que o objeto é encenado para o observador que está, portanto, distanciado o suficiente para ser seu voyeur?49

O artifício do abjeto De acordo com a definição canônica de Kristeva, o abjeto é do que preciso livrar-me para tornar-me um eu (mas o que seria esse eu primordial que expulsa em primeiro lugar?). É uma substância fantasmática não só estranha ao sujeito, mas íntima dele – de fato, demasiadamente –, e esse excesso de proximidade produz pânico no sujeito. Dessa forma, o abjeto toca a fragilidade de nossos limites, a fragilidade da distinção espacial entre nosso dentro e fora, assim 178

47 Para uma excelente análise desse tipo de obra, ver Mignon Nixon, “Bad Enough Mother,” October 71 (Winter 1995). Nixon pensa essa obra do ponto de vista de uma preocupação kleiniana com a relação objetal. Eu a vejo como uma virada na arte feminista que se relaciona com uma virada no interior da teoria lacaniana, do simbólico para o real, uma virada que Slavoj Zizek tinha proposto. À vezes o aspecto de “objeto” dessa arte expressa não mais do que um essencialismo do corpo (quando não, como em Smith, uma iconografia do sentimentalismo), enquanto o aspecto “real” expressa pouco mais do que a nostalgia por uma fundamentação experimental. 48 É quase como se esses artistas não pudessem representar o corpo senão violentado – como se ele apenas fosse registrado quando representado nessa condição. De forma semelhante, a encenação do corpo também orientou a arte da performance nos anos 70 em direção a cenários sadomasoquistas – novamente, como se ele se registrasse como representado quando amarrado, amordaçado, e assim por diante. 49 “Obsceno” pode não significar “contra a cena”, mas sugere o ataque. Muitas imagens contemporânea apenas encenam o obsceno, tornam-no temático ou cênico e, assim, o controlam. Dessa forma, situam o obsceno a serviço do anteparo, e não contra ele, que é o que a maior parte da arte abjeta faz, contrariando seus próprios desejos. Porém, pode-se argumentar que o obsceno é a maior defesa apotropaica contra o real, o último reforço da imagem-anteparo, e não sua dissolução final. concinnitas


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como da passagem temporal entre o corpo materno (novamente o local privilegiado do abjeto) e a lei paterna. Tanto espacial como temporalmente, portanto, o abjeto é a condição na qual a subjetividade é perturbada, “em que o sentido entra em colapso”; daí sua atração para artistas de vanguarda que desejam perturbar tais ordenações do sujeito e da sociedade.50 Isso apenas resvala a superfície do abjeto, por mais crucial que ele seja para a construção da subjetividade, racista, homofóbica, etc.51 Aqui apontarei apenas as ambigüidades da noção, pois o valor cultural-político da arte abjeta depende dessas ambigüdades, de como são elas decididas (ou não). Algumas já são familiares a esse ponto. Será que o abjeto pode ser representado? Se ele é oposto à cultura, será que pode ser exposto na cultura? Se ele é inconsciente, será que pode ser feito consciente e permanecer abjeto? Em outras palavras, é possível um abjeto consciente? ou será que isso é tudo o que pode existir? Será que a arte abjeta poderá algum dia escapar a um uso instrumental, de fato, moralista do abjeto? (Em certo sentido, essa é a segunda parte da questão: é possível evocar o obsceno sem ser pornográfico?) A ambigüidade crucial em Kristeva é seu escorregar entre a operação de abjetar e a condição para ser abjeto. Novamente, abjetar é expulsar, separar; ser abjetado, por outro lado, é ser repulsivo, preso, sujeito suficiente apenas para sentir a ameaça a essa subjetividade.52 Para Kristeva a operação de abjetar é fundamental à manutenção do sujeito e igualmente da sociedade, enquanto a condição de ser abjeto é corrosiva de ambas as formações. Será o abjeto, então, destruidor do sujeito e da ordem social? ou, de certa forma, fundamental para eles? Se um sujeito ou uma sociedade abjeta o estranho que se encontra dentro, não seria a abjeção uma operação reguladora? (Em outras palavras, será que o 50 Kristeva, Powers of Horror, 2. 51 Ver, em particular, Judith Butler, Gender Trouble (New York: Routledge, 1990) e Bodies That Mater (New York: Routledge, 1993); ambos contêm elaborações críticas referentes ao abjeto kristevano. Kristeva tende a priorizar o nojo; em seu mapeamento do abjeto em direção à homofobia, Butler tende a priorizar a homofobia. No entanto, ambos podem bem ser primordiais. 52 Ser abjeto é ser incapaz de abjetar, e ser completamente incapaz de abjetar é estar morto, o que faz do cadáver o derradeiro (não)sujeito da abjeção. 53Bataille, Erotism: Death and Sensuality (1957), trans. Mary Dalwood (San Francisco: City Lights Books, 1986), 63. Uma terceira opção é a de que o abjeto é duplo e que seu caráter transgressivo reside nessa ambigüidade. 54Kristeva, Powers of Horror, 18. 55 Mas, então, quando ela não existe? A noção de hegemonia sugere que ele está sempre ameaçada. Nesse sentido, o conceito de uma ordem simbólica talvez projete uma estabilidade que o social não possui. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

abjeto está para a regulação assim como a transgressão para o tabu? “A transgressão não nega o tabu”, lê-se na famosa formulação de Bataille, “mas o transcende e completa”.)53 Ou poderia a condição de abjeção ser mimetizada de tal forma, que, para perturbar, invoca a operação de abjeção? Na escrita moderna, Kristeva considera a abjeção conservadora, mesmo defensiva. “Juntamente com o sublime”, o abjeto testa os limites da sublimação. Mas mesmo escritores como Louis-Ferdinand Céline sublimam o abjeto, o purificam. Concordando ou não com esse relato, Kristeva de fato aponta para uma virada cultural em direção ao presente. “Em um mundo em que o Outro desapareceu”, ela coloca de forma enigmática, a tarefa do artista não é mais a de sublimar o abjeto, de elevá-lo, mas de testar o abjeto, medir “a ‘primazia’ sem fundo, constituída pela repressão primária.”54 Em um mundo em que o Outro desapareceu: aqui está implicada, para Kristeva, uma crise na lei paterna que sustenta a ordem social.55 Em termos da visualidade delineada aqui, isso implica igualmente uma crise na imagem-anteparo, e alguns artistas de fato a atacam, enquanto outros, assumindo que ela já está rasgada, procuram por detrás dela o 179


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obsceno olhar-do-objeto do real. Enquanto isso, em termos do abjeto, outros artistas ainda exploram a repressão do corpo materno, considerado subjacente à ordem simbólica, isto é, exploram o efeito de ruptura de seus restos maternais e/ou metafóricos. Aqui a condição da imagem-anteparo e igualmente da ordem simbólica é de grande importância. Localmente, a valência da arte abjeta depende dela. Se for considerada intacta, o ataque à imagem-anteparo pode reter um valor transgressivo. Por outro lado, se for considerada rota, tal transgressão pode não fazer sentido, e essa velha vocação da vanguarda pode estar no fim. Mas existe ainda uma terceira opção, e essa é a de reformular essa vocação, repensando a transgressão não como uma ruptura produzida por uma vanguarda heróica de fora da ordem simbólica, mas como uma fratura traçada por uma vanguarda estratégica, dentro da ordem.56 Desse ponto de vista, a meta da vanguarda não é romper de forma absoluta com essa ordem (esse velho sonho foi abandonado), mas o de expô-la em crise, registrando seus pontos não só de falência (breakdown), mas de passagem (breaktrough), as novas possibilidades que uma tal crise poderia abrir. Em sua maior parte, no entanto, a arte abjeta tem tendido para duas outras direções. Como sugerido, a primeira é a de identificar-se com o abjeto, aproximando-se dele de algum modo – explorando a ferida do trauma, tocando o obsceno olhar-do-objeto no real. A segunda é a de representar a condição do abjeto para provocar sua operação – para pegar o abjeto em seu ato, para tornálo reflexivo, até mesmo repelente, em sua condição própria. Porém essa mimese pode também reconfirmar uma determinada abjeção. Tal como o velho e transgressivo surrealista evocou certa vez a polícia religiosa, assim também um artista abjeto (como Andres Serrano) pode evocar um senador evangélico (como Jessy Helms), a quem é permitido, de fato, completar o trabalho negativamente. Além do mais, assim como a direita e a esquerda podem concordar sobre os representantes sociais do abjeto, elas podem sustentar-se mutuamente em uma troca pública enojante, e esse espetáculo pode inadvertidamente dar suporte à normatividade da imagem-anteparo e igualmente da ordem simbólica. Essas estratégias da arte abjeta são, portanto, problemáticas, tal como eram 60 anos atrás no surrealismo. O surrealismo também fora atraído pelo abjeto como forma de testar a sublimação; de fato ele reivindicava como seu o ponto em que impulsos dessublimatórios confrontam imperativos sublimatórios.57 Porém foi também nesse ponto que o surrealismo rompeu, dividindo-se nas duas facções dirigidas por André Breton e Bataille. De acordo com Breton, Bataille era um “filósofo do excremento” que recusava elevar-se acima de grandes dedos do pé, de pura causa, de pura merda, elevar o baixo para o alto.58 Para Bataille, por outro lado, Breton era “uma vítima juvenil envolvido em um jogo edípico, com “pose de Ícaro” assumida menos para desfazer a lei do que para provocar seu 180

56 Arte e teoria radicais freqüentemente celebram figuras fracassadas (especialmente de masculinidade) como transgressoras da ordem simbólica; porém essa lógica vanguardista pressupõe (afirma?) uma ordem estável contra a qual tais figuras são posicionadas. No My Own Private Germany: Daniel Paul Schreber’s Secret History of Modernity (Princeton: Princeton University Press, 1996), Eric Santner oferece brilhante reavaliação dessa lógica: relocaliza a transgressão dentro da ordem simbólica, em um ponto de crise interna, que ele define como uma “autoridade simbólica em estado de emergência”. 57 “Tudo tende a nos fazer crer”, escreveu Breton no Second Manifesto of Surrealism (1930), “que existe um certo ponto da mente em que vida e morte, o real e o imaginado, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, alto e baixo deixam de ser percebidos como contradições. Agora, por mais que se procure, não se encontrará outra força motivadora nas atividades dos surrealistas do que a esperança de encontrar e fixar esse ponto.” (in Manifestoes of Surrealism, trans. Richard Seaver e Helen R. Lane [Ann Arbor: University of Michigan Press, 1972], 123-24). Várias obras significativas do modernismo fixam esse ponto entre a sublimação e a dessublimação (há exemplos em Picasso, Jakson Pollock, Cy Twombly, Eva Hesse, entre outros). Eles são privilegiados porque precisamos dessa tensão – precisamos tratá-la de algum modo, ao mesmo tempo incitada e suavizada, administrada. 58 Ver Breton, Manifestoes of Surrealism, 18087. A certo ponto Breton acusa Bataille de “psychastenia” (ver mais sobre isso abaixo). concinnitas


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castigo: apesar de todas as suas confissões de desejo, ele era tão comprometido com a sublimação quanto qualquer outro esteta.”59 Em outra parte, Bataille deu a essa estética o nome de le jeu des transpositions (o jogo de substituições) e, em um aforismo muito celebrado, dispensou-o como incapaz de equiparar o 59 Ver Bataille, Visions of Excess, 39-40. Para mais informação sobre essa oposição, ver meu texto: Compulsive Beauty, 110-114. 60 Georges Bataille, “L’Esprit moderne et le jeu des transpositions,” Documents, n. 8 (1930). A melhor discussão relativa a Bataille nesse ponto encontra-se em Denis Hollier, Against Architecture (Cambridge: MIT Press, 1989), especialmente pp. 98-115. Em outro lugar, Hollier especifica o aspecto fixo do abjeto de acordo com Bataille: “É o sujeito que é abjeto. É aqui que se introduz seu ataque à metaforicidade. Se você morre, você morre, não se pode obter um substituto. O que não pode ser substituído é aquilo que liga o sujeito ao abjeto. Ele não poder ser apenas um substituto. Deve ser uma substância que se reporta a um sujeito, que o coloca em risco, em uma posição da qual ele não pode escapar.” (Conversation on the Informe and the Abject”). 61 A divisão não é absoluta. Algumas artistas de sexo feminino também zombam da lei paterna a partir de um ponto de vista infantilizado, mas esse zombar tende a apoiar-se em um vocabulário oral-sádico (por exemplo, Pondick, Hayt), e não num anal-sádico, como ocorre com a maior parte dos artistas do sexo masculino. Da mesma forma, alguns artistas homens também evocam o corpo materno (por exemplo, os brinquedos e cobertores aconchegantes de Kelley, que, no entanto são solidificados, ou mesmo esvaziados, como para registrar uma agressão originada no abandono). Em outro registro, não são apenas homens que querem ser maus meninos, algumas mulheres também o desejam, uma ambição registrada na exposição “Bad Girls”, apresentada em 1994 em Nova York (New Museum) e em Los Angeles (UCLA Wight Art Gallery). Sobre essa inveja do mau menino, Mary Kelly comentou: “Historicamente, a vanguarda tem sido sinônimo de transgressão, então o artista homem já assumiu o feminino, como uma forma de ‘seu outro’, mas, em última instância, ele o faz como uma forma de exposição viril. Então o que as más meninas fazem e que é tão diferente das gerações anteriores é adotar a máscara do artista masculino como feminino transgressivo, de forma a expor sua virilidade. Em jargão Zine, se diria: “uma coisa de menina sendo uma coisa de menino para ser uma coisa má” (“A Conversation: Recent Feminist Practices,” October 71 [Winter 1995]: 58). 62 “Sou a favor de uma arte de cheiros infantis. Sou a favor de uma arte de mama-balbucio.” (Claes Oldenburg, Store Days [Nova York: The Something Else Press, 1967]). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

poder das perversões: “Desafio qualquer amante de pintura a amar um quadro tanto quanto um fetichista ama um sapato”.60 Relembro essa velha oposição pela perspectiva que ela lança sobre a arte abjeta. Em certo sentido, tanto Breton quanto Bataille estavam certos, pelo menos um sobre o outro. Freqüentemente Breton e seus amigos de fato agiam como vítimas juvenis que provocavam a lei paterna para garantir que ela continuasse lá– no melhor dos casos em um desejo neurótico de punição, no pior, numa exigência paranóica de ordem. E essa pose de Ícaro é assumida por artistas e escritores contemporâneos, que se mostram quase desejosos demais de falar palavrão dentro do museu, quase preparados demais para ser atacados por Hilton Kramer ou espancados por Jesse Helms. Por outro lado, o ideal de Bataille – o de optar pelo sapato fedorento em vez do belo quadro, o de fixarse na perversão ou se prender ao abjeto – também é adotado por artistas e escritores contemporâneos, descontentes não apenas com o refinamento da sublimação, mas com o deslocamento do desejo. Serão estas então as opções que o artifício do abjeto nos oferece – travessuras edípicas ou perversão infantil? Atuar de forma suja com o desejo secreto de ser espancado ou rolar na merda com a crença secreta de que o mais nojento pode converter-se no mais sagrado, o mais perverso no mais potente? No testar a ordem simbólica pelo abjeto, uma grande divisão de trabalho se desenvolveu, de acordo com o gênero: os artistas que exploram o corpo materno em oposição à lei paterna tendem a ser mulheres (por exemplo, Kiki Smith, Maureen Connor, Rona Pondick, Mona Hayt), enquanto os que assumem uma posição infantilizada para ridicularizar a lei paterna tendem a ser homens (por exemplo, Mike Kelley, John Miller, Paul McCarthy, Nayland Blake).61 Essa mimese da regressão é forte na arte contemporânea, mas ela tem muitos precedentes. A personae infantilista predominou no Dadá e no neoDadá: na criança anarquista em Hugo Ball e Claes Oldenburg, por exemplo, ou no sujeito autista em “Dadamax”, de Ernst e Warhol.62 Porém figuras relacionadas apareceram igualmente na arte reacionária: em todos os palhaços, marionetes e equivalentes da arte neofigurativa dos anos 20 e começo dos 30, e na pintura neo-expressionista do final dos anos 70 e início dos 80. Portanto, a valência política dessa mimese regressiva não é estável. Nos termos de Peter Sloterdijk, discutido no Capítulo 4, ela pode ser kynical (ironia cínica), em que a degradação individual é levada até o ponto de acusação social, ou cynical (razão cínica), em que o sujeito aceita tal degradação como proteção e/ou lucro. O avatar principal do infantilismo contemporâneo é o palhaço obsceno que aparece em Bruce Nauman, Kelly, McCarthy, Blake e 181


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outros; uma figura híbrida que parece ao mesmo tempo kynical e cynical, em parte um psicótico internado, em parte um performático de circo. Como sugerem tais exemplos, a personae infantilizada tende a realizar sua performance em tempos de reação político-cultural, como indícios de alienação e reificação.63 Porém, essas figuras da regressão podem ser também figuras de perversão, isto é, de père-version, de um afastar-se do pai que é uma torção de sua lei. No início dos anos 90 esse desafio foi manifestado num excesso geral de merda (ou substitutos de merda: a coisa em si raramente era encontrada). Certamente Freud entendia a disposição à ordem, essencial para a civilização, como uma reação contra o erotismo anal e em O Mal-Estar na Civilização (1930) ele imaginou um mito de origem envolvendo uma repressão semelhante, que provocou a ereção do homem de quadrúpede para bípede. Com essa mudança na postura, segundo Freud, ocorreu uma revolução nos sentidos: o olfato foi rebaixado, e a visão, privilegiada; o anal, reprimido, e o genital, destacado. O resto é literalmente história: com seus genitais expostos, o homem sintonizouse a uma freqüência sexual constante, não periódica, e aprendeu a ter vergonha: e essa junção de sexo e vergonha impeliu-o a procurar uma esposa, formar família, fundar civilização, ir aonde nenhum outro homem jamais havia estado antes. Por mais heterossexual que essa divertida história possa ser, ela de fato revela como a civilização é concebida em termos normativos – não apenas como uma renúncia geral e sublimação dos instintos, mas como uma reação específica contra o erotismo anal, que implica uma abjeção específica do homossexualismo.64 Sob essa luz, o movimento da merda na arte contemporânea pode estar pretendendo uma reversão simbólica desse primeiro passo para dentro da civilização, da repressão do anal e do olfativo. Enquanto tal, ele pode também estar pretendendo alcançar uma reversão simbólica da visualidade fálica do corpo ereto como o modelo primordial para a pintura e para a escultura tradicionais – a figura humana como sujeito e moldura da representação ocidental em arte. Esse duplo desafio da sublimação visual e da forma vertical é uma forte corrente subterrânea da arte do século XX (que poderia receber o título: “Visualidade e seus Descontentes”)65 e por vezes é expresso em um excesso de erotismo anal. “O erotismo anal encontra uma aplicação narcísea na produção do desafio”, escreveu Freud em um artigo sobre o tema em 1917 – no desafio de vanguarda também, poder-se-ia acrescentar, da máquina de moer chocolate de Duchamp, passando pelas latas de merde de Piero Manzoni, até as pilhas de substitutos de merda de John Miller.66 Esses diferentes gestos têm valências distintas. Na arte contemporânea o desafio do erotismo anal é com freqüência autoconsciente, e mesmo autoparódico. Ele não apenas testa a autoridade repressora do anal da cultura museológica tradicional (o que em parte é uma projeção edípica), mas também ridiculariza o narcisismo erótico 182

63 Ver Benjamin H.D. Buchloh, “Figures of Authority, Ciphers of Regression,” October 16 (Spring 1981): “Esse ícone do palhaço só é equiparado, em freqüência, nas pinturas daquele período [os anos 20] pela representação do manichino, a boneca de madeira, o corpo reificado, originário tanto de decorações de vitrinas quanto do ateliê de artistas acadêmicos. Se o primeiro ícone aparece no contexto do carnaval e do circo, como a mascarada da alienação da história presente, o segundo aparece no palco da reificação”. (53) 64 Abjetado e reprimido, “fora” e “embaixo”; esses temos tornam-se críticos, capazes de revelar o aspecto heterossexista dessas oposições. Porém essa lógica pode também aceitar uma redução da homossexualidade masculina a um erotismo anal. Além disso, como no zombar infantilizado da lei paterna, ela pode eventualmente aceitar a dominância dos próprios termos aos quais se opõe. 65 Para uma leitura incisiva desse modernismo descontente, ver Rosalind Krauss, The Optical Unconscious (Cambridge: MIT Press, 1992); e, para uma história compreensiva dessa tradição antiocular, ver Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought (Berkeley: University of California Press, 1993). 66 Sigmund Freud, “On Transformations of Instinct as Exemplified in Anal Erotism,” in: On Sexuality, Angela Richards (org.) (Londres: Penguin, 1977), 301. Sobre o primitivismo desse desafio vanguardista,ver meu texto “Primitive Scenes”, Critical Inquiry (Inverno 1993). Evocações do erotismo anal, como no “Black-Painting”, de Rauschenberg, ou nos graffitis iniciais de Twombly, podem ser mais subversivos do que declarações de desafio anal. concinnitas


O retorno do real

anal dos artistas rebeldes de vanguarda. “Falemos da desobediência” está escrito em um cartaz com um pote de biscoito, do artista Mike Kelley. “Cagador de calças e orgulhoso disso” lê-se em outro que escarnece a autocelebração do incontinente institucional. (“Cai fora também” acrescenta esse rebeldebobalhão, como para completar seu sarcasmo à civilização, de acordo com Freud).67 O desafio pode ser patético, mas, novamente, também pode ser perverso, uma torção da lei paterna da diferença – sexual e generacional, ética e social. Essa perversão é freqüentemente realizada por uma regressão mimética a um mundo anal, em que as diferenças dadas poderiam ser transformadas.68 Tal é o espaço fictício no qual artistas como Kelley e Miller construíram seu jogo crítico. Em Dick/Jane (1991) Miller tinge uma boneca loura de olhos azuis de marrom e enterra profundamente seu pescoço em uma substância semelhante... à merda. Conhecidos de velhas cartilhas, Dick e Jane ensinaram várias gerações de americanos a ler – e como ler diferenças sexuais. Porém, na versão de Miller, Jane ‘é transformada em um Dick (“pau”), e o compósito fálico é enfiado em um monte anal. Assim como a barra no título, a diferença entre homem e mulher é transgredida, apagada e desvalorizada ao mesmo tempo, assim como a diferença entre branco e negro. Resumindo, Miller cria um mundo anal que testa os termos da diferença simbólica.69 Kelley também coloca seus seres em um mundo anal. “Interligamos tudo, construímos um campo”, diz o coelho ao ursinho em Theory, Garbage, Stuffed 67 Kelley empurra o desafio infantilista em direção à disfunção adolescente (ele se aprofunda bastante na subcultura jovem): “Um adolescente é um adulto disfuncional, e a arte é uma realidade disfuncional, do meu ponto de vista” (citado em Elisabeth Sussman (org.), Catholic Taste [Nova York: Whitney Museum of American Art, 1994], 51). 68 Ver Janine Chasseguet-Smirgel, Creativity and Perversion (Nova York: W.W. Norton, 1984). Chasseguet-Smirgel considera a analidade problemática, de fato, homofóbica, um espaço em que as diferenças são abolidas. 69 No entanto, esse testar realiza-se sob o risco da velha associação racista entre negritude e fezes. 70 Mike Kelley, Theory, Garbage, Stuffed Animals, citado em Sussman (org.), Catholic Tastes, 86. 71 Freud, “On Transformations of Institct”, 298. Kelley joga com conexões antropológicas e psicanalíticas com estes termos – fezes, dinheiro, presentes, bebês, pênis. 72 Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, em: Surveys fom Exile, David Fernbach (org.) (Nova York: Vintage Books, 1974), 197. 73 Bataille, Visions of Excess, 15. Senão, Bataille adverte, “o Materialismo será visto como um idealismo senil”. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

Animals, Christ (Teoria, Lixo, Animais de Pelúcia, Cristo, 1991), “portanto não existe mais diferenciação”.70 Ele também explora o espaço no qual os símbolos são instáveis, “em que o conceito de faeces (dinheiro, presente), bebês e pênis estão mal-distinguidos um do outro e são facilmente intercambiáveis”.71 E ele também o faz menos para celebrar a pura indistinção do que para complicar a diferença simbólica. Lumpem, a palavra alemã para “trapo”, que nos dá Lumpensammler (o catador de trapos que interessava tanto a Baudelaire) e Lumpenproletariat (a massa esfarrapada demais para formar uma classe própria, que tanto interessava a Marx – “o resto, o que sobra, o recusado de todas as classes”),72 é uma palavra-chave no dicionário de Kelley, que ele desenvolve como um terceiro termo, como o obsceno, entre o informe e o abjeto. De certa fora, ele faz o que Bataille queria fazer: pensa o materialismo por meio de “fatos psicológicos ou sociais”.73 O resultado é uma arte de formas lumpem (animais de pelúcia sujos, costurados uns aos outros em feias massas, pedaços de pano imundos jogados sobre formas ruins), temas lumpem (imagens de sujeira e lixo) e personae lumpem (homens disfuncionais que constroem aparatos estranhos, encomendados de obscuros catálogos de subsolos e quintais). A maior parte dessas coisas resiste a um moldar formal, mais ainda a uma sublimação cultural ou releitura social. À medida que tem um referente social, então, o Lumpem de 183


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Kelley (à diferença do Lumpem de Louis Bonaparte, Hitler ou Mussolini) resiste à modelação, mais ainda à mobilização. Mas será essa indiferença uma política? Freqüentemente, no culto do abjeto, ao qual se relaciona a arte abjeta (o culto do desleixado e do perdedor, do grunge e da Geração X), essa postura de indiferença expressa pouco mais do que um cansaço com a política das diferenças (social, sexual, étnica). Às vezes, no entanto, ela impõe um cansaço mais fundamental: um estranho impulso em direção à indiferenciação, um desejo paradoxal de não ter desejo, de acabar com tudo, uma chamada da regressão para além do infantil em direção ao inorgânico.74 Em um texto de 1937, crucial para a discussão lacaniana sobre o olhar, Roger Caillois, outro associado ao surrealismo de Bataille, considerou esse impulso em direção à indiferenciação, em termos de visualidade – especificamente nos termos da assimilação de insetos ao espaço por mimese.75 Aqui Caillois argumenta que não existe a questão da ação (como adaptação protetora), menos ainda a da subjetividade (tais organismos “não possuem [esse] privilégio”), uma condição que pode apenas aproximar-se, no âmbito do ser humano, da extrema esquizofrenia: Para essas almas despossuídas, o espaço parece ser uma força devoradora. O espaço as persegue, as circunda, as digere em uma gigantesca fagocitose [consumo de bactérias]. Termina repondo-as. Então o corpo se separa do pensamento, o indivíduo rompe a barreira de sua pele e ocupa o outro lado de seus sentidos. Ele tenta ver a si mesmo de um ponto qualquer do espaço. Ele se sente a si mesmo tornando-se o espaço, espaço escuro onde as coisas não podem ser postas. Ele é semelhante; não semelhante a algo, mas apenas semelhante. E ele inventa espaços nos quais ele é “a possessão pela convulsão”.76 A quebra do corpo, o olhar devorando o sujeito, o sujeito tornando-se o espaço, o estado de pura similitude: essas condições são evocadas na arte recente – em imagens de Sherman e outros, em objetos de Smith e outros. Elas relembram o ideal perverso da beleza, redefinido em termos do sublime, apresentado pelos surrealistas: uma possessão convulsiva do sujeito entregue à mortífera jouissance. Se essa possessão convulsiva pode ser relacionada à cultura contemporânea, ela deve ser dividida em suas partes constituintes: de um lado, um êxtase na quebra imaginada da imagem-anteparo e/ou da ordem simbólica; de outro, o horror diante desse evento fantasmal, seguido de um desespero em relação a ele. Algumas das primeiras definições do pós-modernismo evocam essa estrutura extática do sentimento, por vezes numa analogia com a esquizofrenia. De fato, para Frederic Jameson, o principal sintoma do pós-modernismo é uma quebra esquizofrênica da linguagem e da temporalidade, que provoca um investimento compensatório na imagem e no instante.77 E muitos artistas de fato exploraram intensidades do simulacro e pastisches a-históricos nos anos 80. Em intimações mais recentes do pós-modernismo, no entanto, a estrutura melancólica do 184

74 Sobre o que era a música do Nirvana senão sobre o princípio do Nirvana, uma canção de ninar embalada pelo ritmo sonhador do impulso de morte? Ver meu “The Cult of Despair”, New York Times, 30 de dezembro de 1994. 75 Roger Caillois, “Mimicry and Legendary Psychasthenia”, October 31 (Winter 1984). Denis Hollier classifica “psychasthenia” da seguinte forma: “uma queda no nível de energia psíquica, uma espécie de detumescencia subjetiva, uma perda de substância egóiga, uma exaustão depressiva próximo daquilo que um monge chamaria de acedia” (“Mimesis and Castration in 1937”, October 31: 11). 76 Idem, ibidem, 30. 77 Isso foi divulgado pela primeira vez em “Postmodernism and Consumer Society”, in Hal Foster (org.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture (Seattle: Bat Press, 1983). Para uma crítica de tais usos psicanalíticos, ver Jacqueline Rose, “Sexuality and Vision: Some Questions,” in Foster (org.) Vision and Visuality. Essa versão extática não pode ser diferenciada do boom do início dos anos 80, nem a visão melancólica pode ser diferenciada do explosão do final dos anos 80 e início dos 90. concinnitas


O retorno do real

sentimento predomina, e, às vezes, como em Kristeva, também é associada a uma ordem simbólica em crise. Aqui os artistas são levados não para as alturas da imagem do simulacro, mas para o baixo do objeto depressivo. Se alguns modernistas tardios queriam transcender a figura referencial e alguns primeiros pós-modernistas queriam deleitar-se na pura imagem, alguns pós-modernistas tardios querem possuir a coisa real. Hoje esse pós-modernismo bipolar está sendo empurrado em direção a uma mudança qualitativa: muitos artistas parecem motivados por uma ambição de habitar um lugar de afeto total e esvaziar-se totalmente de afeto; a possuir a vitalidade obscena da ferida e ocupar a radicalidade niilista do cadáver. Essa oscilação sugere a dinâmica do choque psíquico, aparado pelo escudo protetor que Freud desenvolveu em sua discussão do impulso de morte e Walter Benjamin elaborou em sua discussão do modernismo de Baudelaire – mas agora levado para muito além do princípio do prazer. Puro afeto, nenhum afeto: It hurts, I can’t feel anything (dói, não sinto nada).78 Por que tal fascinação com o trauma? Por que essa inveja do abjeto hoje? É certo que motivos existem dentro da arte e da teoria. Como foi sugerido, há uma insatisfação com o modelo textual da cultura assim como com a visão convencional de realidade – como se o real, reprimido no pós-modernismo pósestruturalista, tivesse retornado como traumático. Além disso, há a desilusão com a celebração do desejo enquanto passaporte aberto para um sujeito móvel – como se o real, descartado por um pós-modernismo performático tivesse sido mobilizado contra um mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo. Mas há forças intensas trabalhando igualmente em outras partes: desespero diante da crise persistente da Aids, doenças invasivas e morte, pobreza sistemática e crimes, a destruição do estado de bem-estar social, de fato, a quebra do contrato social (quando os ricos optam por sair, da revolução, por cima, enquanto os pobres são descartados, tornando-se miseráveis, por baixo). A articulação dessas diferentes forças é difícil, porém juntas elas impulsionam a 78 Ver Sigmund Freud Beyond the Pleasure Principle (1920), trad. James Strachey (Nova York: W. W. Norton, 1961) e Walter Benjamin, “On Some Motifs in Baudelaire” (1939), in Illuminations. Essa bipolaridade do extático e do abjeto talvez seja a afinidade, por vezes mencionada na crítica social, entre o barroco e o pós-moderno. Ambos são atraídos por uma fragmentação extática que é também um quebrar traumático; ambos são obcecados com figuras do estigma e da mancha. 79 Questionar essa indiferença não significa descartar uma política não comunitária, uma possibilidade explorada tanto pelas críticas culturais (por exemplo, Leo Bersani), quanto pela teoria política (por exemplo, Jean-Luc Nancy). ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

preocupação contemporânea com o trauma e com o abjeto.” Um resultado é este: para muitos, na cultura contemporânea, a verdade reside em temas traumáticos ou abjetos, no corpo doente ou danificado. Podemos estar certos de que esse corpo é a base da evidência de um importante testemunho da verdade, do testemunho necessário contra o poder. Porém, há perigos nessa localização da verdade, como a restrição de nosso imaginário político a dois campos: o dos abjetores e o dos abjetados, e a pressuposição de que, para não sermos contados ao lado dos sexistas e racistas, devemos nos tornar o objeto fóbico de tais sujeitos. Se há um sujeito da história para o culto da abjeção, ele não é o trabalhador, nem a mulher, nem a pessoa de cor, mas o cadáver. Essa não é apenas uma política da diferença levada à indiferença; é uma política de alteridade, levada ao niilismo.79 “Tudo morre”, diz o ursinho de Kelley. “Como 185


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nós”, responde o coelho.80 Porém seria esse ponto niilista a epítome do empobrecimento, que o poder não pode penetrar? Ou seria ele um lugar de onde emana o poder em uma forma nova? Será a abjeção uma recusa do poder, o seu estratagema, ou sua reinvenção?81 Finalmente, seria a abjeção um espaçotempo para além da redenção? ou o caminho mais rápido em direção à graça para estrategistas-santos contemporâneos? Por meio das culturas artística, teórica e popular (no SoHo, em Yale, na Oprah), há uma tendência a redefinir a experiência, individual e histórica, em termos do trauma. De um lado, na arte e na teoria, o discurso sobre o trauma continua a crítica pós-estruturalista do sujeito, por outros meios, pois, novamente, num registro psicanalítico, não existe o sujeito do trauma: a posição é evacuada, e nesse sentido a crítica do sujeito é, aqui, a mais radical. De outro lado, na cultura popular, o trauma é tratado como um acontecimento que garante o sujeito, e nesse registro psicologizante, o sujeito, por mais perturbado, retorna como testemunho, atestador, sobrevivente. Aqui se encontra de fato um sujeito traumático, e ele tem autoridade absoluta, pois não se pode desafiar o trauma do outro, só se pode acreditar nele, até mesmo identificar-se com ele, ou não. No discurso sobre o trauma, portanto, o sujeito é ao mesmo tempo evacuado e elevado. E dessa forma, o discurso do trauma resolve magicamente dois imperativos contraditórios da cultura hoje: análise desconstrutivista e política de identidade. Esse estranho renascimento do autor, essa condição paradoxal de autoridade ausente, é uma virada significativa na arte contemporânea e na política cultural. Aqui o retorno do real converge com o retorno do referencial, e agora voltar-meei para esse ponto.82

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80 Kelley, citado em Sussman (org.), Catholic Tastes, 86. 81 “O autodesinvestimento nesses artistas é também uma renúncia de autoridade cultural”, escreveram Leo Bersani e Ulysse Dutoit sobre Samuel Beckett, Mark Rothko e Alain Resnais, em Arts of Impoverishment (Cambridge: Harvard University Press, 1993). No entanto, eles perguntam: “Haverá, talvez um ‘poder’ nessa impotência?” Se positivo, ela não deveria ser, por sua vez, questionada? 82 Alguns comentários suplementares: (1) Se há, como observaram alguns, uma virada autobiográfica na arte e na crítica, ela é sempre um gênero paradoxal, pois é possível que não exista um “eu” lá. (2) Da mesma forma que o depressivo é duplicado pelo agressivo, também o traumatizado pode tornar-se hostil, e o violado, por sua vez, violar. (3) A reação contra o pós-estruturalismo, o retorno do real, também expressa uma nostalgia por categorias universais de ser e de experiência. O paradoxo é que esse renascimento do humanismo ocorreria no registro do traumático. (4) Em alguns momentos deste capítulo, permiti que os conceitos de trauma e abjeto se tocassem, como ocorre na cultura, ainda que sejam teoricamente distintos, desenvolvidos em diferentes correntes da psicanálise. concinnitas


Ainda há esperança?

Ainda há esperança? Edson Luiz André de Sousa* O princípio esperança I. Ernst Bloch. Rio de Janeiro: Eduerj: Contraponto. 2005. Ainda não é noite o dia todo, ainda há uma manhã para cada noite. Ernst Bloch “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!” Essa pérola de Walter Benjamin esquecida em um dos labirintos do monumental Paris, capital do século XIX talvez seja uma das imagens mais precisas do que venha a ser o espírito do princípio esperança que nos Ernst Bloch anuncia. Vivemos entre essa catástrofe apontada por Benjamin com sua força destruidora que nos joga abruptamente de volta aos ritmos já conhecidos da melodia do mundo triste, sempre tão igual, e a esperança de uma outra manhã que surpreenda como algo novo. Bloch (1885-1977) é um dos grandes pensadores da utopia e construiu em seus 92 anos de vida uma surpreendente reflexão sobre a esperança, mostrando o quanto esse afeto/conceito foi negligenciado. Ao delinear uma breve e densa história da filosofia, da história e da política, Bloch mostra como o adestramento dos espíritos, pela maquinaria do funcionamento social, enclausurou os sonhos em algumas vitrinas coloridas e esvaziou de tal forma o espírito das utopias, que hoje usamos essa palavra quase para desqualificar uma ação. Com esse livro, primeiro de uma série de três volumes, ele aposta ainda na esperança e reafirma a força dos resistentes. Foi escrito entre 1938 e 1947 enquanto Ilustração capa: Luis Trimano

a humanidade vivia tempos de grande destruição, e alguns sonhos foram queimados de forma cruel em campos de extermínio. Bloch produz o texto como forma de eco à tecnologia do mal que se desenhava em seu país. O livro, começa com cinco perguntas que secas, diretas, essenciais – “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? O que esperamos? O que nos espera?” – soube esperar, pois só foi publicado em 1959 com algumas revisões que o autor ainda pôde fazer. Bloch, assim, foi muito cauteloso para penetrar a escuridão e poder sair, como ele mesmo diz, da paralisia de nosso miserável conhecimento. Ele insiste em vários momentos do livro em afirmar que há uma proximidade que turva o olhar da mesma forma como ao pé do farol não há luz. Sem um horizonte que nos acorde de nossa letargia acomodada não podemos ver mais nada. Sem a provocação do amanhã não poderemos sair do castelo das fatalidades descrito por Leibniz. Mas o fundamental é que se trata de um horizonte que nos joga no aqui e no agora. Esse é, aliás, o princípio motor das utopias desde Tomas Morus e sua ilha de sonhos. As utopias sempre foram ficções críticas que queriam pensar o agora e transformá-lo. Bloch não se conforma a uma realidade que

* Edson Luiz André de Sousa é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da UFRGS. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

nos indica que “sonho” precisamos sonhar para nos manter funcionando como máquinas que esqueceram seu princípio de funcionamento. Há sonhos que paralisam. 187


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Critica, portanto, o sonho diurno contemplativo disfarçado com as roupagens do grande saber e que joga o sujeito contemporâneo em um eterno adiamento do viver. É surpreendente que tenhamos esperado quase 50 anos para ter a tradução dessa obra no Brasil. Como um livro que aborda o futuro demora tanto para chegar em um país profetizado por Stefan Zweig como o país do futuro? Por isso, essa publicação surge como a luz de uma estrela distante, mas ainda em tempo. Certamente serão poucos seus leitores, pois ninguém, infelizmente, tem mais tempo e fôlego para um livro de mais de 400 páginas. Os três volumes somam mais de mil páginas. Aqueles, contudo, que se aventurarem nessa experiência fantástica encontrarão imagens surpreendentes que Bloch vai buscar em inúmeros campos do conhecimento e sobretudo na literatura. Imagens que nos convocam à ação e tentam substituir o bafio do porão pelo ar da manhã, como nos lembra o filósofo. Assim, podemos recuperar as imagens do sonho que move a vida e que nos faz acreditar ainda em um outro mundo possível. Vivemos contaminados pelo ontem, pelo senso comum que anestesia as potências criativas que todos em algum canto da alma possuem. A utopia está tanto nos grandes movimentos sociais que a história já conheceu como nos pequenos atos que podem revolucionar o dia de qualquer um de nós. Superar o velho hábito confortável que nos conduz à mesma trilha no meio do deserto, dizer o que ainda não se disse, imaginar o que ainda não existe é o que alimenta a esperança. Bloch não negligencia esses detalhes em seu livro, mesmo que construa como pano de fundo de sua reflexão uma densa análise das amarras que o capitalismo teceu e, como contraponto, um outro pensamento inspirado sobretudo em Marx, que apostava em uma humanidade socialmente possível. Recorre à arte indicando a criação como a revolta necessária que nos conduz ao amanhã. Percorre inúmeras obras na literatura, na música, no teatro, na dança, no cinema, nas artes . Reconhece que é no ato de criação que a vida é possível, e assim podemos nos poupar um pouco da morte, já que viver cada dia as mesmas coisas vai matando aos poucos. São poucos os livros de Bloch disponíveis nas livrarias brasileiras, e a maior parte de sua obra ainda continua inédita em português. Bloch quer pensar como se constroem as realidades, as categorias do possível, o verniz das ideologias, o desperdício das forças vitais capturadas no fatalismo interesseiro que diz: não há saída! “Quando não se consegue achar uma saída para a decadência, o medo se antepõe e se contrapõe à esperança”, diz Bloch. Medo e esperança são palavras presentes em nossa história política recente. Diante panorama de catástrofe que país vem vivendo entre a violência da esquina e a indecência nos bastidores da política, reação possível é apostar na idéia de Bloch de que pensar é transpor. Pensamos com imagens. Assim precisamos de novas imagens que redesenhem nossas vidas com o cuidado de não aquecer a mesma sopa na panela nova. É catastrófico o relato de Thomas Bernhard de que, retornando à escola depois da guerra, percebeu substituindo a fotografia de Hitler um crucifixo. O prego, contudo, era o mesmo. Mudar o prego significa sonhar para frente, já que o princípio esperança de Bloch aposta no que ainda não veio a ser. 188

concinnitas


Bruce Nauman e a razão da experiência

Bruce Nauman e a razão da experiência Fábio Luiz Oliveira* Em visita à exposição de Bruce Nauman no CCBB, um sujeito, diante de trabalhos como Puxando boca e Batendo bolas – e suas ações exageradamente lentas, quase inexistentes – poderia objetar: “Mas quem possui tempo hoje para ver algo assim?”. É justamente isto que Nauman nos devolve – a possibilidade de experiência. Mais do que simplesmente darmos tempo às coisas, nós recuperamos o tempo das coisas. Tendo nosso familiar corpo em formas estranhas, dilatadas em uma temporalidade muito particular, esses trabalhos permitem apreciações da obra de arte na contramão da velocidade à qual estamos acostumados em nossa vida, nestes dias. E Nauman não só dá as costas à velocidade a qualquer preço, como também evidencia outros detalhes incomuns de nossa comum experiência cotidiana. Circuito Fechado – Filmes e Vídeos de Bruce Nauman esteve em cartaz no supracitado CCBB, no Rio de Janeiro, de 19 de julho até 18 de setembro de Puxando boca (Pulling mouth), filme 16mm transferido para vídeo (preto-ebranco e sem som), dimensões variáveis, duração: 8min (Cortesia Electronic Arts Intermix - EAI, Nova York), 1969

2005, com 19 de seus trabalhos. Entre referências à história da arte e experimentos sobre os limites nos meios público e privado, os espectadores encontraram uma insuspeita atração pelo estranho, o absurdo e – por que não? – o repulsivo. O real valor dessas obras concentra-se em seu lugar de direito – a mensagem, o que nelas está contido, mesmo que tais atributos não clamem necessariamente por um discurso direto. O visitante é deixado à própria sorte em uma busca de conclusões. Cada jornada, assim, faz parte, de forma fundamental, daquilo que esses trabalhos podem oferecer. Procurar algum sentido é tão ou mais importante que a velha vontade de tentar afirmar o que é a obra. O vídeo é utilizado pelo artista como mais um suporte, entre vários em sua carreira. Tal se evidencia nos trabalhos originalmente realizados em película e posteriormente transferidos para o registro em fita, em que nada da potência e significância originais é perdido. Embora fazendo uso de meios eletrônicos, as obras em questão descolam-se da discussão específica sobre a mediação por esses instrumentos. Não é somente o documento de uma ação; as cenas surgidas nas telas não são, sozinhas, dadas como arte. Os trabalhos são construções cujos significados ultrapassam seus limites físicos; são como palavras utilizadas para expressar ou indicar um sentimento – a última interpretação sobre o que é dito, se alguma for necessária, cabe ao espectador, a nós. Um dos aspectos mais instigantes nos trabalhos de Nauman é a espécie de recorte que ele produz em uma realidade indefinida a princípio, mas que, com

* Fábio Luiz Oliveira é bacharel em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ. Partcipa atualmente do grupo de pesquisa "Arte Como Tecnologia" do IART/UERJ. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

tempo e entrega, eventualmente nos parece familiar. São registros de ações absurdas, repetidas exaustivamente, reproduzidas em loop contínuo como gestos obsessivos. É o caso de Tocando uma nota no violino enquanto ando pelo estúdio (Playing a Note 189


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on the Violin While I Walk Around The Studio, 1967-68) e Dança ou exercício sobre o perímetro de um quadrado (Dance or Exercise on the Perimeter of a Square, 196768), cujos títulos são descrições das ações empreendidas – no caso do segundo, a “dança” realiza-se sobre um quadrado desenhado com fita adesiva no chão do estúdio de Nauman. Em Tocando uma nota... a imagem do artista atacando seu violino por vezes some do enquadramento da câmera, enquanto o incômodo som do instrumento ainda pode ser ouvido. A atividade prossegue mesmo quando não podemos ver mais do que uma imagem estática, e a reprodução contínua desse vídeo possui natureza semelhante – o que ali se mostra se poderia produzir indefinidamente, a despeito de nossa presença. A solidão de Nauman no estúdio, a atividade incansável e repetida só são confrontadas pelo deslocamento de seu corpo no espaço e, no caso de Dança ou exercício..., pelo tempo marcado por um metrônomo que acompanha a ação. Não existem implicações de sujeito aqui, enquanto objeto de um discurso em arte. O que há é uma noção de acontecimentos sem início e fim, dos quais observamos fragmentos, trechos. Essas obras evocam uma idéia de trabalho que se realiza em seu processo, abdicando de perseguir fronteiras exatas para aquilo que irá ele conter. Por mais tempo que permaneçamos diante dessas obras, nunca as teremos de todo. Nessa experiência, entretanto, somos capazes de processar nossos próprios pensamentos e sentimentos a respeito do que vemos e, em última instância, experimentamos. O corpo do artista apreendido como uma parte integrante da obra está também em Arte/Maquiagem (Art Make-Up, 1967-68), em Coxando (azul) (Thighing (Blue), 1967), e nos citados Puxando boca (Pulling Mouth, 1969) e Batendo bolas (Bouncing Balls, 1969). No primeiro Nauman integraliza a natureza da pintura com as progressões próprias da arte. Aplicando sobre si quatro diferentes camadas de tinta (branca, vermelha, verde e preta), ele realiza gestos que se constroem sobre outros, criações surgidas da adição de elementos pré-formados. Nos outros trabalhos, o corpo é manipulado como matéria escultórica. Nos dois últimos, parte dos chamados Slo-Mo Films de Nauman, a velocidade da imagem é drasticamente reduzida, de modo que a apreciação desses trabalhos, em toda a sua duração, faz do visitante um espectador irremediavelmente hipnotizado. Em Manipulando um tubo fluorescente (Manipulating a Fluorescent Tube, 1969), novamente a atenção escultórica é aplicada ao corpo humano, tratado com o mesmo valor que a lâmpada fluorescente utilizada na criação de formas variadas no espaço, em luz e matéria. É em trabalhos realizados a partir de 1970 e durante os anos 80 que as projeções de Nauman sobre cenas públicas, vigiadas, e determinados aspectos das relações básicas do homem assumem características perturbadoras. Enquanto Corredor de vídeo gravado ao vivo (Live-taped Video Recorder, 1970) e Obra de vídeo para vigilância (sala pública, sala privada) (Video Surveillance Piece (Public Room, 190

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Private Room), 1969-70) roubam nossas imagens para arremessá-las em algum estranho ponto distante de nós, Bom menino menino mau (Good Boy Bad Boy, 1985), Incidente violento: segmento homem-mulher (Violent Incident: Man-Woman Segment, 1986) e Tortura do palhaço (Clown Torture, 1987) fascinam por nossa própria repulsa. Eles nos cativam e nos atraem mesmo contra todos os nossos bons-sensos. Os trabalhos com vídeos registrados ao vivo nos fazem notar que os estranhos somos nós, que as aparências externas produzem nossos distanciamentos. Em Corredor de vídeo..., somos levados a percorrer uma estreita passagem em cujo final se encontram dois monitores: um registra a imagem pré-gravada do corredor vazio; em outro, é exibida a nossa imagem, capturada por trás. Quanto mais próximo tentamos chegar de nossa imagem na tela, mais distante ficamos da câmera e, portanto, da imagem filmada. Perder sua própria figura enquanto se tenta alcançá-la é, no mínimo, uma sensação angustiante. Nesse caso, reforçada pela natureza claustrofóbica do exíguo corredor. Em Obra de vídeo para vigilância, uma câmera de vigilância registra em tempo real a presença do espectador numa sala ocupada apenas por um monitor de tevê. Em sua tela, é exibida a imagem de outro aparelho, localizado em aposento idêntico e oculto, este sim recebendo o registro do visitante, em uma resolução desfocada, nublada, o corpo reduzido a uma sombra. Nauman antecipa assustadoramente, com três décadas de vantagem, as questões atuais sobre a manipulação da imagem pública, até por meio da programação televisiva. O que hoje é um conflito em busca da preservação de uma privacidade cada vez menor, em Nauman trata-se do nosso direito e da nossa vontade de recolhimento postos à prova. Mas não só. O trabalho parece tocar também a ansiedade presente nas relações com dispositivos e processos relacionais ocultos. Não saber em qual sala exatamente está sendo projetada nossa imagem nos tira a segurança de que, sim, dominamos o espaço que ocupamos naquele momento. Esses dois trabalhos tangenciam limites muito delicados sobre o que e o quanto estamos dispostos a ceder, a exibir de nós mesmos, o que desejamos ocultar de tudo isso e o alcance que os outros possuem sobre nossa própria imagem; além de nos propiciarem novos, reveladores pontos de vista a partir do furto do nosso corpo visual – a forma como somos percebidos, enfim. Bom menino menino mau e Incidente violento baseiam-se num crescendo de nervosismo e agressividade. Neste último, os gestos interpretados por dois atores – um homem e uma mulher que se agridem com tapas, insultos, até que por fim ela o esfaqueia – tornam-se cíclicos pela repetição continuada e pela câmera, que descreve uma espécie de círculo/espiral violenta, partindo e terminando no mesmo ângulo. Somos espectadores aqui, mas nem por isso imunes ao que se passa na tela – a observação contínua das imagens gera no observador o mesmo grau de tensa expectativa. Não temos escolha a não ser ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

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afastar-nos do trabalho, do contrário somos envolvidos, mais e mais, no clima de neurose e paranóia. Em Bom menino menino mau passamos de testemunhas distantes para interlocutores diretos da obra. Novamente dois atores, de ambos os sexos, nos dirigem frases aparentemente sem sentido, utilizando-se de opostos e de uma excitação que cresce até explodir em declarações raivosas. A palavra direta assume função rara na obra de Nauman, mas nem por isso mais clara. A inquietação de quem acompanha esses vídeos passa de um estado latente para aflorar em seguida, de forma indisfarçável.

Tortura do palhaço (Clown torture), quatro monitores, quatro alto-falantes, quatro aparelhos de vídeo, dois projetores, quatro fitas de vídeo (cor e som), dimensões variáveis, 1987 (Coleção The Art Institute of Chicago. Waston F. Blair Prize Fund; Wilson L. Mead and Twentieth-Century Purchase Fund; por meio de doação anterior de Joseph Winterbotham; doação da Lannan Foundation, 1997)

Ainda assim, a obra nos atrai. Ainda que de forma relutante, queremos participar. O torpor sensorial acomete o visitante de maneira ainda mais intensa na sala em que está instalada a obra Tortura do palhaço. São quatro monitores e duas projeções que exibem um palhaço submetido a várias situações humilhantes e tortuosas – às vezes, auto-impostas. O patético de todas essas cenas não consegue suprimir a angústia de penetrar a sala – e nela se manter –, tomada pelas expressões de desespero do pobre palhaço. Nessas obras de Nauman, intuímos algo que se encontra oculto – as violentas tensões que varremos para debaixo de nossos tapetes. Reconhecemos sua existência, embora não as enfrentemos diretamente. Com Nauman, essa relação se completa. Sabemos, e vemos, que estão ali. Circuito Fechado foi uma oportunidade única de encontro com a obra de um dos mais instigantes e influentes artistas norte-americanos surgidos na década de 1960. A lamentar somente, em contraposição à bela seleção de trabalhos, a forma como a exposição foi montada, com o som de algumas obras interferindo em outras. Particularmente, a sala em que se encontravam 192

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trabalhos como Bom menino menino mau e Incidente violento apresentava uma confusão tamanha em sua organização, com tantas informações e ruídos lutando pelo mesmo espaço, que prejudicava significativamente a imersão nas obras. Em um dos trabalhos mais recentes apresentados, Armando um bom canto (alegoria e metáfora) (Setting a Good Corner (Allegory & Metaphor), 1999), Bruce Nauman aparece, aos 58 anos e fora de seu estúdio, construindo um canto para esticar uma cerca e instalar uma porteira em seu rancho, no Novo México. A filmagem com uma câmera fixa acompanha, sem pressa, a realização da tarefa. O vídeo aparentemente simplório esconde pistas importantes. O tempo de duração é o mesmo da tarefa realizada. A experiência, de praticar a ação, de observá-la e daí deixar-se envolver, intensamente, é fundamental aqui. Diferente de tendências várias de relaxamento e concentração, em que buscamos produzir algo em nós, nas obras de Nauman a situação simplesmente está lá. Como os mocinhos de velhos filmes de aventura, que esperam uma brecha nas clássicas armadilhas de pêndulos com lâminas, que vão e vêm cortando o espaço, para poder enfim escapar, devemos encontrar nosso próprio nicho de penetração nesses trabalhos. O resultado, o sentimento que deles advem não é de placidez, entretanto. Essas obras nos permitem antever o absurdo, doses de estranhamento e movimentações inspiradas por gestos inusitados. O resto, a experiência do contato, é a nossa parte.

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Homem-cavalo, madeira, 48,5cm, s/d Homem-boi (O Ermit達o), madeira, 46cm, 1986

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O grande e o pequeno

O grande e o pequeno Ricardo Gomes Lima* Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Lélia Coelho Frota. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005; 440p.: il., 14 x 19cm. O que torna uma obra pequena? O que faz com que um dicionário seja classificado como pequeno dicionário? Seu tamanho reduzido, medido em número de páginas? A curta extensão do assunto que aborda? A pouca profundidade com que o autor trata a matéria? A importância relativa do tema em questão? Certamente quem toma nas mãos o Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX, publicado pela Editora Aeroplano em 2005, apenas em parte concordará com o título que Lélia Coelho Frota, sua autora, deu às 440 páginas de texto denso e rico em ilustrações. Arte do povo brasileiro, sem dúvida. Pequeno dicionário? A expressão é, no mínimo, discutível. Lélia é um dos maiores nomes no que se refere à reflexão sobre o campo da arte no país. A presente publicação comprova isso, embora nem fosse preciso. Sua extensa obra como curadora de exposições, pesquisadora, escritora, autora de trabalhos clássicos como Mitopoética de nove artistas brasileiros são atestações suficientes da competência e da sensibilidade com que aborda o universo da arte e cultura. Um de seus grandes feitos foi ter estado à frente do Instituto Nacional do Folclore, atual Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan, no Rio de Janeiro, conduzindo a instituição a uma profunda mudança conceitual que a aproximou do campo da antropologia e onde dirigiu a equipe responsável pela transformação das galerias de exposição permanente do Museu de Folclore Edison Carneiro. É também mérito seu a criação, em 1983, da Sala do Artista Popular, espaço de pesquisa, divulgação e comercialização de objetos de fatura popular, cujos princípios de funcionamento inauguraram postura mais digna das instituições públicas na relação com os denominados artesãos e artistas populares do país. O livro que ora publica tem a forma de um dicionário, estruturado em verbetes organizados de A a Z. Seu conteúdo, no entanto, vai muito além do que se poderia esperar de uma obra do gênero. A título de introdução, a * Ricardo Gomes Lima é Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, IFCS/UFRJ e Mestre em História da Arte/Antropologia da Arte, EBA/UFRJ. É professor do Instituto de Artes da UERJ e pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan/Ministério da Cultura. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

autora apresenta um instigante ensaio sobre as artes populares no país, discorrendo sobre a origem e a transformação desse campo ao longo dos cinco séculos da história brasileira. Em meio aos vários aspectos que aborda, reporta-se à constituição do conceito de popular que, estreitamente vinculado ao universo do folclore – em determinados contextos os termos se equivalem 195


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–, é também herdeiro do movimento romântico e do nacionalismo europeus. Problematizando dicotomias como erudito e popular, elite e povo, urbano e rural, contemporaneidade e passado, a autora é partidária da visão de que, no mundo atual, não há sentido na reificação das fronteiras a separar esses universos, há muito rompidas. Enfatizando a circularidade entre os diferentes níveis de cultura, Lélia, no entanto, reconhece o tratamento desigual que é dado às artes derivadas dos estratos de baixa renda quando comparadas àquela produzida por seus pares das camadas altas da sociedade, feitas para deleite das elites ou segundo os cânones hegemônicos vigentes. Daí sua escolha por chamar arte do povo, expressão inclusiva, ao que tem sido designado como arte popular, campo problemático, por vezes desconhecido ou ignorado por estudiosos das artes no país, quando não sujeito a discriminações e preconceitos. Dona de discurso singular, nesse dicionário não basta à autora arrolar artistas, em ordem alfabética, citar seus nomes, locais e datas de nascimento e morte, listar as exposições que realizaram, as “escolas” e os “movimentos” que integraram e reproduzir a opinião da crítica que os consagrou, como é comum encontrar em obras similares. Esses dados são importantes e estão presentes no livro, porque situam o indivíduo na rede de relações pessoais e profissionais que estabelece no decorrer da vida e que, muitas vezes, no caso do artista popular, se fundem completamente. Lélia, no entanto, vai além. Havendo mergulhado nas águas da antropologia, percebe o objeto artístico, escultura ou pintura, assemblage ou instalação, música ou representação cênica (que a autora prefere denominar dramática) como realidades que, em sua efemeridade, não se contêm em si mesmas. Sabendo que a arte não é instância isolada e autônoma da realidade, que, ao contrário, tem no social o suporte da expressão e do sentido, a autora permeia a biografia do artista com referências ao contexto de origem da obra e a seu meio de fruição, não necessariamente coincidentes, em especial num país como o Brasil, que se faz de múltiplas realidades. Assim, pela leitura de um discurso conseqüente, o leitor descobre dados que não são meras ilustrações sobre os artistas do povo, mas que, plenos de significado, constituem informações preciosas para o conhecimento de sua vida e de sua obra, e, por extensão, configuram questões relevantes para o entendimento do universo da arte brasileira. Tendo em vista os vários contextos que dão forma e significado a muitas expressões da arte, o livro traz registrada uma dúzia de verbetes que se mesclam às biografias e que evidenciam a relação arte/contexto: fachadas de casas, muros, arquitetura, paredes de bares, bares, sociabilidade, quadras de escolas de samba, samba, carnaval, futebol, festa, ritual, religião, exvotos, proas de barcos, carrancas. 196

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O grande e o pequeno

Idílio. Óleo s/ tela, 79 x 116cm, 1966

Com esse Dicionário, uma vez mais, Lélia Coelho Frota inova. O estatuto de poeta lhe garante a liberdade de brincar com as palavras, fazendo delas real instrumento de comunicação. Só assim podemos aceitar o qualificativo pequeno aplicado a esse grande livro. Pequeno no sentido de obra primeira, que aborda de modo sistemático a criação plástica de cerca de uma centena e meia de artistas. Pequeno no sentido de ser apenas mais um passo que se soma a outros no longo caminho que vem sendo percorrido por estudiosos da arte, como Mário de Andrade, Augusto Rodrigues, Aloisio Magalhães e outros que buscaram o reconhecimento pleno para a obra de tantos criadores brasileiros que – talvez por não integrarem o mundo da “Arte”, não criarem voltados exclusivamente para as elites, não perseguirem o circuito das galerias na ânsia da consagração, do incenso da crítica “especializada” – não têm suas obras reconhecidas, embora sejam, certamente, grandes criadores da verdade da vida.

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Roberto Conduru

Hassan Musa. Grande nu americano, tinta s/ tecido, 204 x 357cm, 2002

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O mundo é uma tribo

O mundo é uma tribo Roberto Conduru* Njami, Simon et alii (editores). Africa Remix. L’art contemporaine d’un continent. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. Atualmente, quando pessoas, idéias, formas, textos e imagens fluem intensamente pelo mundo, parece não haver razão para insistir no vício historiográfico de estruturar identidades artísticas a partir de limites geográficos, especialmente os de grandes regiões continentais. Mas há quem pense o contrário. A julgar pelo título, essa é uma das premissas de “Africa Remix. L’art contemporaine d’un continent”, exposição que começou em Dusseldorf, em 2004, seguiu para Londres e, depois, para Paris, em 2005, e chegará a Tóquio, em 2006, mas, estranhamente (?), não será apresentada no continente africano. Entretanto, Marie-Laure Bernadac, uma das curadoras da mostra,1 esclarece de saída: “Mais do que um continente, [África] é uma imagem, um ‘conceito’, uma forma híbrida, inacessível, um espaço de fantasmas e de projeções subjetivas e passionais, oscilando entre atração e repulsa”.2 Para o poeta Abdelwahab Meddeb, o termo é mais do que uma designação geográfica: “Ele pode também ter a dignidade de um conceito cujo campo é a questão da relação entre história e antropologia”3 – marcando os pólos entre os quais são produzidos a maioria das obras em exposição e os textos do catálogo. Africa Remix investe em uma geografia ainda mais totalizante da África ao incorporar regiões como o Norte do continente e a África do Sul, usualmente excluídas da caracterização da identidade artística africana, mas o faz, * Roberto Conduru é historiador da arte e professor no Instituto de Artes da UERJ. 1 Os curadores da exposição são: Simon Njami, curador-geral, Marie-Laure Bernadac, do Centre Pompidou, David Elliot, do Mori Art Museum, Roger Malbert, da Hayward Gallery, e Jean-Hubert Martin, do Museum Kunst Palast. Njami, Simon et alii (ed.). Africa Remix. L’art contemporaine d’un continent. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005, p. 2. 2 Bernadac, Marie-Laure. “Remarques sur ‘l’aventure ambiguë’ de l’art contemporaine africaine”. In: Njami et alii, op. cit., p. 10. 3 Meddeb, Abdelwahab. “L’Afrique commence au Nord...”. In: Njami et alii, op. cit., p. 45. 4 Oguibe, Olu. “In the ‘Heart of Darkness’”. In: Fernie, Eric (editor). Art history and its methods. London: Phaidon, 1995, p. 320. 5 Martin, Jean-Hubert. “La réception de l’art africain contemporain et son évolution”. In: Njami et alii, op. cit., p. 27. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

paradoxalmente, para explorar a diversidade das partes que constituem o todo. Assim, parece fazer eco às observações de Olu Oguibe contra a crítica à construção de uma unidade africana, a qual, a seu ver, não seria destituída de pertinência política: “Culturalmente, a questão é não apenas reconhecer a pluralidade de africanidades, mas, também, aspirar à formulação ativa de uma ‘identidade’ singular africana, de algum modo paralela ao pan-europeísmo e à construção do Ocidente”.4 E o todo não é homogêneo, já que não há obrigação, nem mesmo possibilidade, de selecionar ao menos um artista de cada um dos 54 países africanos; segundo Jean-Hubert Martin, há “lacunas que os nossos sucessores deverão preencher”5 (o projeto de historiografia totalizante resiste...). Abrandando a premissa geográfica, a exposição e seu catálogo evitam as subdivisões regionais na apresentação das obras, estruturando-as em quatro seções que atravessam o continente e além: identidade e história; corpo e espírito; cidade e terra; moda, design e música. 199


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Se logo fica evidente que a África ultrapassa limitações físicas, é múltipla, porosa, esgarçada, inter e extraconectada, o termo remix remete imediatamente à heterogeneidade, às reincidências e misturas da cultura de massas. Mas o universo pop não é, aqui, muito mais do que certos ritmos, expressões e imagens, pois basta olhar um pouco mais atentamente para perceber que a maioria das obras e dos textos deriva das cartilhas do pós-colonialismo. Nada nostálgicos, exposição e catálogo recusam o elogio da pureza mágica anti ou pré-racional que se tornou lugar-comum na abordagem da produção artística do continente, embora não consigam evitar um chavão atual: a mélange de culturas, idéias, práticas – em duas palavras, a “arte híbrida”. Se Magiciens de la Terre6 atualizou a imagem pura e encantadora da arte africana, Africa Remix configura um campo artístico complexo, up-to-date, ao mesmo tempo saturado e potente. A despeito da embaçada conjuntura pós-colonial, a África continua sendo vista, apesar de todos esforços, como um manancial (não exclusivo) de pujança primitiva. Situada entre a tribo e o mundo, preserva a imagem de lugar exótico e perfeito para a regeneração do cul-de-sac em que se meteu a arte contemporânea.7 Suscita, assim, um interesse que não é só artístico. Entre as justificativas da exposição, Bernadac diz ser a África “a peça que faltava do novo mapa mundial da arte” e “que, 15 anos após Magiciens de la Terre, se tornou urgente fazer um balanço da criação africana e dar conta de sua contemporaneidade”, embora também reconheça que “o interesse pela arte e pela cultura africana vai de par com uma verdadeira tomada de consciência política de destruições econômicas e do empobrecimento desastroso causado por numerosos países, do qual o continente 8

é objeto”. Uma “fascinação repulsiva”, no entender de Jean-Loup Amselle: “Se a África, uma certa África, está em voga no Ocidente, se ela fascina, é ao preço de um desinteresse profundo pelo continente”.9 Africa Remix não tem como objetivo a descoberta de valores puros supostamente perdidos no continente africano, passando ao largo do “gosto pronunciado por uma forma de neo-exotismo ou de primitivismo fim-deséculo que leva a pensar que o artista africano pós-colonial está sempre em situação de alteridade em relação ao do Ocidente”.10 Fora uma única exceção – Wim Botha –, cujo currículo resumido não indica participação em eventos fora da África do Sul, os demais 87 artistas já representaram seus países e/ ou o continente nas bienais que proliferam atualmente pelo mundo 11 e também apresentaram suas obras em instituições de prestígio no sistema de arte mundial. 12 Se alguns são autodidatas, e suas produções transitam sem problemas entre os universos da religião e da arte, como tende-se preconceituosamente a esperar de um artista africano, há muitos com formação parcial ou integral em instituições artísticas na Europa e nos EUA. A isso some-se que, sendo apenas 10% dos artistas nascidos na Europa, 53% vivem e trabalham na África, 16% têm residências na África e no 200

6 Mostra também exibida no Centre Pompidou, em 1989, que se tornou um dos marcos da arte contemporânea e, em particular, uma referência especial do campo da arte contemporânea africana. 7 Amselle, Jean-Loup. “L’Afriche”. In: Njami et alii, op. cit., p. 68. 8 Bernadac, op. cit., p. 11. 9 Amselle, op. cit., p. 67. 10 Boutoux, Thomas; Vincent, Cédric. “‘Africa Hoy’ ou ‘Africa Now’”. In: Njami et alii, op. cit., p. 243. 11 Havana, Kwangju, Liverpool, Lyon, São Paulo, Sarjah, Sidney, Tel-Aviv e Veneza. 12 Centre Pompidou e Fondation Cartier pour l’Art Contemporaine, em Paris, P. S. 1 Contemporary Art Center, em Nova York, Witte de With, Center for Contemporary Art, em Rotterdam, Museum Ludwig, em Colônia, Documenta de Kassel, entre outras. No Brasil, além da presença de Abdoulaye Konaté na Bienal Internacional de São Paulo, em 1998, aparecem no catálogo as participações de Tracey Derrick no 4o Encontro de Fotografia Africana, realizado no Museu de Arte Moderna de Salvador, em 2003, e de Otobong Nkanga na manifestação Internacional de Performance que aconteceu em Belo Horizonte, em 2003. concinnitas


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exterior (também Europa e EUA), e 31% já estão radicados fora do continente africano (idem). Não espantam, portanto, a diversidade das obras expostas nem a especial fluência no esperanto da arte atual,13 com a predominância da fotografia e do vídeo ou DVD em instalações (as quais não significam propriamente uma novidade, sobretudo no contexto africano, como bem observa John Picton).14 O que leva a pensar na observação de Hans Belting sobre o prestígio das novas tecnologias entre os artistas não ocidentais devido à (suposta) ausência de normas estéticas rígidas nessas mídias.15 Prevalece o enfrentamento de questões locais de alcance global, posto que pensadas na condição pós-colonial, com meios artísticos difundidos internacionalmente, embora não dissociados de práticas tradicionais africanas. Não causa surpresa, contudo, alguns artistas trabalharem com objetos e temas não africanos ou não imediata e exclusivamente africanos, ainda que não distantes de sua problemática, outros, com objetos locais ou não com enfoques universalizantes, ao lado de atualizações das tradições artísticas locais e da presença quase imediata do fotojornalismo. Muitas obras acendem a vontade de conhecer melhor o trabalho de seus autores. Grande parte delas também deixa em dúvida se a arte distingue-se hoje de uma reflexão sobre temas de extensão ilimitada, elaborada com meios técnicos não mais exclusivos nem especificamente artísticos. Africa Remix reincide na condição complementar entre exposição e catálogo, que se tornou comum no meio de arte atualmente. Com certeza, o volume impresso está aquém da exposição, pois parece ser cada vez mais difícil traduzir em páginas bidimensionais impressas a extensão multissensorial das obras de arte contemporâneas. Contudo, também vai além. Aprofunda reflexões que norteiam a mostra com três apresentações das instituições promotoras e uma da empresa patrocinadora – a petrolífera Total –, dois textos introdutórios da curadoria, oito ensaios analíticos (sobre história cultural, ação curatorial, recepção da arte, cinema, moda, performance e até obras de arte), uma entrevista, uma breve enciclopédia da arte contemporânea africana, textos de apresentação das seções da mostra, reproduções das obras expostas, verbetes biográficos dos artistas, dos curadores e dos autores dos textos, bibliografia de referência e informações técnicas das obras, da exposição e do catálogo. Nessa profusão de dados e análises, as obras de arte, que ocupam pouco menos 13 Sobre o esperanto artístico contemporâneo, ver Kudielka, Robert. “Arte do mundo – arte de todo o mundo?”. In: Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n. 67, nov. 2003, pp. 131-142. 14 Picton, John. “Made in Africa”. In: Njami et alii, op. cit., p. 64. 15 Belting, Hans. “Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais”. Arte & Ensaios, UFRJ, ano IX, n. 9, 2002, p. 170. ano 6, volume 1, número 8, julho 2005

da metade do catálogo, correm o risco de se tornar meros pretextos: ou se as evita, ou se as ultrapassa. Apenas algumas delas são analisadas brevemente, com tamanho de letra e espacejamento de parágrafo menores em relação ao restante do catálogo, longe das imagens, junto aos verbetes biográficos, em que se priorizam a trajetória e a produção geral dos artistas. Interpretações que privilegiam a abertura das obras a contextos variados (geopolíticos, históricos, antropológicos, filosóficos) aos 201


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modos como complexos problemas plasmam-se nas obras. Visada mais centrífuga do que centrípeta; crítica menos de arte do que cultural. É esse também o tom característico dos textos de apresentação das seções da mostra. Os três pares de noções – identidade e história; corpo e espírito; cidade e terra – são genéricos: não foram concebidos a partir da especificidade das obras em questão, mas, sim, da problemática cultural contemporânea; constituem uma “grade de leitura” aplicável a outros conjuntos e contextos artísticos, embora sejam pertinentes em relação à África e iluminem razoavelmente as obras expostas. A quarta seção abarca duas áreas a princípio inesperadas – moda e design –, que reforçam o sentido de atualização de tradições africanas, e a música, que acompanha a abertura das artes plásticas aos outros sentidos, prestando tributo ao campo artístico africano com maior ressonância mundial; o som é dado por uma juke-box cujo título – “Ah-Freak-Iya” – tenta dar o tom do evento articulando dois termos da música pop norte-americana dos anos 70 com uma expressão iorubá. Também os ensaios discutem mais os contextos de produção e recepção do que propriamente as obras. Mas esse pode ser um erro de visão do resenhista; talvez os textos apenas sigam a maioria das obras, que não se constituem independentemente do cerco da cultura. É obrigatória a rima conjuntura póscolonial, arte e crítica pós-cultural? O catálogo é desde já uma obra de referência, pois, além de apresentar um panorama da arte atual referida à África, tem um dicionário sucinto e parcialmente ilustrado da história recente dessa produção artística. “A la manière d’un sampler”, são apresentados 130 verbetes relativos a pessoas, idéias, instituições, coleções, eventos, exposições, revistas, grupos e movimentos artísticos e culturais que participaram da construção do campo da arte contemporânea africana, desde o final do século XIX, que se adensa em meados dos século XX e se avoluma nos anos 90. Em sua grande maioria, as entradas referem-se a realizações na África; quase um terço delas, na Europa;16 aproximadamente 5%, nos EUA; duas, no Oriente.17 O único verbete relativo à América Central – a Conferência de Povos da Ásia, da África e da América Latina, conhecida como Tricontinental – não destaca que o evento aconteceu em Havana, em 1966. Configura-se, portanto, uma geografia que privilegia as conexões da África com a Europa e os EUA, reforçando a centralidade dessas regiões e a dependência africana. Por um lado, parece não ter havido interesse em saber se e como a constituição desse campo contou com esforços na América Latina, na Oceania e no Oriente; uma vez mais, um mapa feito pelo e para o Ocidente, que se dispõe a olhar o outro para nele se ver. Por outro lado, é preciso reconhecer que certas nações européias e os EUA continuam sendo os pólos dinamizadores do sistema de arte internacional, por onde passa e se pensa a produção artística com pretensões mundiais. Pode-se, ainda, a partir da experiência brasileira, perguntar: há algum esforço local para olhar outra produção artística contemporânea que não a referendada e, sobretudo, produzida nos contextos europeu e norte-americano? Alguém quer ver a África aqui? 202

16 Inglaterra, Espanha, Alemanha, França, Bélgica, Holanda e Itália. 17 Indonésia e Japão. concinnitas









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