O Resgate da Existência

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O Resgate da ExistĂŞncia Um romance sobre os efeitos da autodisciplina terceirizada

Wagner Matias de Andrade

Belo Horizonte 2010


Dedico este livro aos personagens desta história, pelos caminhos que me mostraram e pela companhia nas caminhadas. Pela leitura dos originais, comentários ou estímulos, sou grato ao Jairo, João Batista, Clara, Ana, Carolina, Beatriz, Lacy, Frederico, Aparecida, Hiago, Jéssica, Isadora, Berenice, Raquel e Antonita.

Andrade, Wagner Matias de A553 O resgate da existência: um romance sobre os efeitos da autodisciplina terceirizada / Wagner Matias de Andrade. – Belo Horizonte: Soluções Criativas, 2010. 400p.

1. Romance brasileiro. I. Título.

CDD: B869.35 CDU: 869.0(81)-31 Elaborada por: Maria Aparecida Costa Duarte CRB/6-1047

Projeto gráfico, diagramação, logotipo, fotos e capa: Wagner Matias de Andrade Revisão: João Batista de Freitas Impressão: O Lutador © Wagner Matias de Andrade ISBN: 978-85-85645-17-5 Editora: Soluções Criativas em Comunicação Ltda. R. Catanduva, 550 – Renascença 31130-600 - Belo Horizonte - MG Tel.: 31 3421-9070 site: www.solucoes-criativas.com.br


Esta história aconteceu em 2009, consequência de um passado que não pode ser ignorado.

Sumário 1.

Apresentação................................. 9 Formações

11. Os espelhos................................. 36 Acontecendo

2.

As mulheres................................ 12 Recordações

12. Jardins franceses.......................... 38 Dois anos atrás

3.

O enigma e o estercorário............14 Acontecendo

13. A sopa..........................................41 Acontecendo

4.

A ponte móvel e suas conexões...17 Acontecendo

14. A missão do Pedro...................... 42 Dois anos atrás

5.

As esposas de Lourival.................18 Acontecendo

15. Para não abrir a boca.................. 45 Acontecendo

6.

Na manhã de espera................... 23 Acontecendo

16. Salão nobre do museu.................47 Dois anos atrás

7.

Bichos e sobrinho de Manoel..... 25 Algumas lembranças

17. No auditório............................... 48 Acontecendo

8.

Os nomes dos gêmeos de Adélia.27 Acontecendo

18. Retorno....................................... 50 Dois anos atrás

9.

O grito do Ipiranga..................... 29 Dois anos atrás

19. Grito de guerra........................... 53 Acontecendo

10. No caminho do grito.................. 32 Ainda, dois anos atrás

20. O anúncio dos campeões............ 54 Acontecendo


21. A engenheira............................... 56 Acontecendo

38. O velho banqueiro...................... 94 Trinta e sete anos atrás

22. Retorno a Belo Horizonte.......... 60 Dois anos atrás

39. A rua como testemunha............. 96 Acontecendo

23. Noite fria..................................... 62 Vinte e quatro anos atrás

40. Cicatrizes..................................... 99 Trinta e sete anos atrás

24. Segundo lugar............................. 64 Acontecendo

41. Amor perdido............................101 Trinta e seis anos atrás

25. Namoro....................................... 66 Histórico

42. Pontos perdidos........................ 102 Acontecendo

26. Primeiro lugar............................. 68 Acontecendo

43. Romeu e Patrícia........................107 Trinta e sete anos atrás

27. A culpa........................................ 70 Recentemente

44. O coração...................................110 Acontecendo

28. Autodisciplina terceirizada......... 72 Acontecendo

45. A república.................................112 Trinta e sete anos atrás

29. Exame..........................................74 Acontecendo

46. Volume do corpo.......................114 Acontecendo

30. Dentes..........................................76 Acontecendo

47. Lourival e Julieta........................117 Trinta e sete anos atrás

31. Alimentação................................ 78 Recentemente

48. Na piscininha............................ 120 Acontecendo

32. A moto.........................................81 Acontecendo

49. Romeu ou Lourival................... 123 Trinta e sete anos atrás

33. Diferença de saldo...................... 84 Acontecendo

50. Lançamentos terceirizados........ 125 Acontecendo

34. A autodisciplina de Antenor...... 87 Acontecendo

51. Cândido e Peri.......................... 129 Trinta e sete anos atrás

35. Sob pressão................................. 88 Acontecendo

52. Pedido de casamento.................131 Ainda trinta e sete anos atrás

36. A fome........................................ 90 Acontecendo

53. Na cama.................................... 134 Acontecendo

37. O avô........................................... 93 Quarenta e oito anos atrás

54. Caminhada................................137 Acontecendo


55. Voando.......................................176 Trinta e sete anos atrás

72. Adão.......................................... 243 Acontecendo

56. Em família..................................181 Acontecendo

73. O velho bruxo........................... 246 Vinte e seis anos atrás

57. Romeo e Cecília.........................186 De trinta e sete a trinta e seis anos atrás

74. Lourival e Adélia....................... 248 Vinte e cinco anos atrás

58. O enigma do sonho...................191 Acontecendo 59. Sinais do Brasil......................... 195 Trinta e seis anos atrás 60. Caminhada com Pedro............. 198 Acontecendo 61. Um dia no Brasil....................... 206 Trinta e seis anos atrás 62. O sonho do Manoel..................212 Acontecendo 63. Na empresa................................213 Acontecendo

75. Diagnóstico............................... 252 Acontecendo 76. Pedro e Valdélia........................ 256 Dezenove anos atrás 77. Carrinho e caminho................. 259 Acontecendo 78. Reencontro............................... 260 Nove anos atrás 79. Epaminondas desaparece.......... 264 Acontecendo 80. Realidade...................................267 Nove anos atrás

64. Mais que humano......................218 De trinta e seis a vinte e seis anos atrás

81. Aprendendo.............................. 270 Acontecendo

65. Divino....................................... 224 Nove meses atrás

82. Marília e Manoel....................... 272 Acontecendo

66. Motivos..................................... 226 Acontecendo

83. Descoberta................................ 282 Algumas semanas atrás

67. Lourival volta ao Brasil............. 228 Vinte e seis anos atrás

84. Confirmação............................. 286 Ainda alguns dias atrás

68. O celular................................... 232 Acontecendo

85. Compreendendo....................... 290 Ainda alguns dias atrás

69. A morte de Lourival................. 236 Vinte e seis anos atrás

86. Poder voar................................. 298 Ontem, sábado

70. Luto........................................... 238 Ainda vinte e seis anos atrás

87. Transformações......................... 304 Ainda ontem, sábado

71. Resgate...................................... 242 Acontecendo

88. Reencontro............................... 309 Ainda ontem, sábado


89. Epaminondas e Luana...............314 Acontecendo, manhã de domingo

96. Caminhos de Luana................. 338 A partir de trinta e sete anos atrás

90. Marília e Dirceu......................... 317 Acontecendo

97. Fantasias.................................... 345 Ao longo do tempo

91. Lua-de-mel..................................321 Noite de ontem, de sábado para domingo

98. A filha de Luana........................347 Acontecendo – noite de domingo

92. Independência.......................... 324 Madrugada de domingo 93. Luana acorda............................ 328 Acontecendo – meio dia de domingo 94. Paradoxos.................................. 332 Acontecendo – após meio-dia de domingo 95. Que se saiba.............................. 336 Acontecendo – meio da tarde de domingo

99. Revendo os campeões............... 358 Acontecendo 100. Deus bonsai.............................. 368 Acontecendo 101. O resgate de Adélia....................376 Acontecendo 102. Caminhada ao centro................381 Acontecendo 103. Pampulha.................................. 387 Epílogo


“Penso, logo existo.” Descartes

1. Apresentação Formações

No Dia de Homenagem aos Campeões, o mecânico Lourival chega ao trabalho de cabeça baixa e quase mudo. Não quer que seus velhos amigos Manoel e Epaminondas descubram que não tem os dentes frontais superiores. É um segredo que escondeu durante vinte e três anos com uma ponte dentária móvel muito bem-feita. Ao ver os dois homens esperando por ele, sentados ao lado da bancada da oficina, suas lembranças se voltam ao tempo em que era menino e podia sorrir com todos seus dentes naturais. “O sorriso mais bonito de Belo Horizonte”, diziam os frequentadores da Lagoa da Pampulha, na década de 1960. Transpirando saúde, Lourival mergulhava na lagoa para evitar o assédio das pessoas, com quem não sabia se relacionar. Debaixo d’água, ele fugia do mundo e se envolvia com o passeio dos peixes, a dança das algas, a melodia surda e misteriosa que reverberava das profundezas. Depois de longos minutos, após se esquecer que lá fora havia curiosos, ele subia extasiado e sorria para o vento e o sol. – Ele é um menino-peixe, o príncipe das águas – dizia Manoel, o mais novo dos três. Epaminondas, o mais velho, afirmava que Lourival iria se tornar um grande campeão olímpico.

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Lourival nunca pensou em ser campeão de coisa alguma. Manoel pegava gorjeta dos meninos bem vestidos e bem calçados, que desciam dos carros reluzentes, para serem fotografados com o futuro herói brasileiro. A pedido dos fotógrafos, Lourival sorria. Suas bochechas tremulavam em tique nervoso, encabulado, quando as meninas elogiavam seu sorriso. Seu sorriso foi eternamente preservado em imagens em preto e branco, em fotografias que se amarelaram com o tempo em caixas e álbuns espalhados pelo mundo. A imagem que Lourival guarda em sua memória é colorida, tem cheiro de água e alga, tem calor do sol. Ao colocar os objetos pessoais em seu armarinho, o pensamento de Lourival salta do tempo de criança para alguns anos depois, quando, ainda inseparáveis, os três amigos trocaram os passeios à Pampulha pelo trabalho. Epaminondas aprendeu o ofício de pedreiro e azulejista e levou os dois para ajudá-lo no acabamento de casas da classe média da capital mineira. Durante a adolescência viveram o eterno presente, sem se preocupar com o futuro. O dinheiro de cada semana, eles gastavam na sexta-feira com bebida, rodas de música e dança nos bares da região do Mercado Central. Foi lá que Epaminondas encontrou Luana, que seria o grande e único amor de sua vida. Foi lá que Lourival e Patrícia se conheceram e se apaixonaram profundamente, para se casarem dois dias depois, às pressas, porque ela estava de mudança para o exterior. Na Londres nebulosa, Lourival não soube como informar a Epaminondas e Manoel que nasceram seus filhos gêmeos Romeo e Cecília. Também não havia como se comunicar com eles quando sofria de solidão nos apartamentos de Nova Iorque, Paris, Roma, Atenas e Madrid. Não conseguiu procurá-los quando voltou sozinho ao Brasil, sem Patrícia e sem seus dois filhos. Epaminondas e Manoel desconhecem que Lourival virou mendigo nas ruas de Belo Horizonte e que perdeu seus dentes frontais quando levou uma paulada na boca, antes de ser jogado nas águas turbulentas, em uma noite de chuva. Alguns anos de sua vida e a falta dos dentes naturais são incômodos de que ele nunca fala, em que evita pensar. No entanto, mesmo que nada se diga, o que aconteceu naqueles tempos desencadeou o que não há como esconder: sua obesidade e tremendo medo de passar fome. 10

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Daquela época, Lourival contou aos amigos somente que conheceu um velho bruxo. Foi ele que lhe ensinou como sintonizar o compasso de seus impulsos vitais com as batidas dos pistões dos automóveis, com as engrenagens das máquinas e com o zumbido dos fios elétricos. Quando o velho morreu, Adélia, que se tornaria sua segunda esposa, resgatou-o da miséria. Pagou em prestações sua ponte dentária, restituindolhe o sorriso, e conseguiu para ele um emprego de faxineiro na fábrica de máquinas agrícolas. Certo dia, quando varria o chão da fábrica, Lourival entendeu o lamento de uma máquina, graças aos ensinamentos do velho bruxo. Descobriu que ela não estava bem, angustiada com regulagens inadequadas. Chamou a atenção dos operadores. Eles riram dele. E a máquina se quebrou com um grito metálico, seguido do suspiro das engrenagens e correias arrastadas. Isso cortou o coração de Lourival, única pessoa capaz de entender essa dor. Depois, ele disse que os fios estavam chorando dentro das tubulações, estressados pela corrente excessiva. Os eletricistas verificaram e descobriram que Lourival estava certo. E se evitou um incêndio. Então, tiraram o carrinho de lixo e vassoura de suas mãos e lhe deram uma caixa de ferramentas. Lourival se tornou um excelente mecânico. Bem empregado, com o sorriso resgatado, Lourival e Adélia começaram a namorar e se casaram. Ela deu-lhe colo, carinho, conforto, seu corpo e mais um casal de gêmeos, Pedro e Valdélia. E Lourival teve família mais uma vez. Com atenção permanente, Adélia conseguiu abafar o sentimento de abandono de Lourival. Com tempero exuberante e mesa farta, Adélia ergueu as barricadas para evitar que a fome atacasse seu marido. Quando seus filhos chegaram à mesma idade que ele tinha quando nadava na Lagoa da Pampulha, Lourival procurou pelos amigos Epaminondas e Manoel, que não via e de quem não teve notícias nos últimos vinte e nove anos. Encontrou-os desempregados e desiludidos com a vida. Conseguiu que fossem contratados pela fábrica como seus assistentes, formando a melhor equipe de manutenção de toda a história da empresa. No Dia de Homenagem aos Campeões, Lourival não pode sorrir. A ponte dentária está quebrada. As poucas palavras que Lourival murmura saem sopradas, como se não fossem dele.

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Manoel acha isso estranho e pergunta ao amigo se está sentindo alguma coisa. Aos 57 anos de idade, sedentário, obeso e com dificuldade para respirar, as coisas que Lourival pode sentir são previsíveis e temíveis. – Você precisa se cuidar, senão morre! – alerta Manoel. Lourival não considera. Manoel insiste, amparado na própria experiência com a morte, quando foi dilacerado em um acidente de trabalho.

2. As mulheres Recordações

Durante meses, Manoel equilibrou-se na estreita faixa em que é difícil distinguir os vivos dos mortos. Perdeu a confiança no próprio corpo e, beirando a hipocondria, só não morreu porque se segurou na leitura. A leitura que aprendeu a gostar sozinho, ainda menino. Lia toda noite, madrugada adentro. Na infância, somente encostava os livros para passear e nadar com os amigos na Pampulha. Na adolescência, deixava de lado as letras para acompanhá-los nas noites de sexta-feira ou sábado, nos bares e boemia, à procura de mulheres. Na noite em que Patrícia conheceu Lourival, ela se fez Julieta e o chamou de Romeu, inspirada na peça de Shakespeare. Depois, ela descobriu que ele é como Cândido, de um conto de Voltaire. E como Peri, do livro O Guarani, de José de Alencar. Inspirado, Manoel procurou na biblioteca pública cada um destes autores. Não eram eles nem seus personagens que ele buscava. Seguia o rastro de Patrícia, na esperança de que pudesse encontrar, no mesmo caminho, uma Patrícia quatro anos mais nova, que o chamaria de Romeu, Cândido e Peri. Manoel não encontrou sua Patrícia porque Patrícia só existia uma, madura, companheira de um dos seus grandes amigos. Pouco mais de um ano depois que Lourival se foi com Patrícia, Manoel e Epaminondas também se separaram. Só retomaram o convívio diário quando foram resgatados da solidão por Lourival. 12

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Manoel se enfurnou na biblioteca. Tornou-se um homem solitário. Por anos, trabalhou em oficinas mecânicas durante o dia e, à noite, mergulhava nos livros. À procura da mulher de seus sonhos, descobriu que as escritas indicam infinitos caminhos, decorados com surpresas, desafios, convites, atrações que nos cativam e nos carregam. Se não encontrou a mulher que imaginava, Manoel sobrecarregou-se de sabedoria. Epaminondas seguiu os passos de Luana, que conseguiu emprego em uma construtora logo que se graduou em contabilidade. Sua função era cuidar da papelada da contratação, pagamento e demissão dos peões, saltando de uma cidade para outra. Segui-la, não foi difícil para Epaminondas. Ora trabalhava alguns meses na mesma empresa, ora procurava pequenos consertos de alvenaria, quando se cansava da frieza das relações entre os capatazes e a multidão de trabalhadores desrespeitados. Epaminondas e Luana levavam um namoro brando, de conversas e danças. Vez ou outra pegavam na mão e trocavam beijos e abraços. Começou com uma amizade, pelas conversas descontraídas, sem compromisso, sem propósito. Deram-se tão bem que a afinidade aumentou e se viram namorando. Tudo acabou quando ela aceitou se deitar com ele, fazendo a mais bela declaração de amor que imaginava ser possível uma mulher fazer a um homem: – Quero um filho seu. Permitira que ele entrasse dentro dela, no calor do aconchego que preservou com tanto cuidado durante tantos anos. Poderia depositar ali o seu sêmen, que seria acolhido com carinho e unido a uma parte de si. Luana daria colo ao que seria metade ele, metade ela. Epaminondas retrucou: – Está querendo me encrencar? – Saltou da cama, vestiu a roupa e foi embora. No dia seguinte, arrependido, ele procurou por ela e não a encontrou mais. Há três décadas e meia, Epaminondas sente um vazio dentro do coração. Para não pensar na grande bobagem que fez, que o levou a perder Luana, ele brinca, faz piadas, mantém sua emoção na superfície rasa do humor. Somente Manoel e Lourival sabem que, por dentro do amigo extrovertido e brincalhão, há um homem solitário, amargurado porque havia deixado que a falação dos trabalhadores do canteiro de obras fizesse sua cabeça.

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“Se a mulher falar que quer um filho seu, fuja dela! Senão, vai ter encrenca!” – diziam. Quando Lourival reencontrou Manoel e Epaminondas, vinte e nove anos depois, Patrícia não estava com ele. Lourival não se lembrava que Patrícia existira em sua vida. Isto é um resumo parcial do que levou Lourival e seus dois amigos a serem o que são hoje. Talvez você não os conheça. Porém, o que eles viveram nos últimos cinquenta anos é muito parecido com a vida das pessoas que você conhece. Conhece por ouvir, ver por aí ou nos espelhos. Espelhos do banheiro, das lojas, dos ambientes públicos, que mostram o presente e o passado acumulado. São sinais que interpretamos superficialmente, na correria da vida, corrigindo a falha de ontem, enquanto se falha hoje para corrigir amanhã. Ignoramos que descuidamos do que devíamos ter cuidado, que assumimos o que não é nossa responsabilidade. Ignoramos a autodisciplina que não tivemos, a autodisciplina que deixamos aos cuidados de outros, a autodisciplina dos outros que controlamos. A autodisciplina terceirizada.

3. O enigma e o estercorário Acontecendo

Na manhã do Dia de Homenagem aos Campeões, Manoel está especialmente preocupado com Lourival, misteriosamente silencioso, misteriosamente arredio. Não recebendo explicação, imagina que possa ter ocorrido algum acidente vascular na cabeça do amigo, paralisando parte do rosto e dificultando a fala. – Lourival, se você está sentindo alguma coisa, precisa nos contar! Lourival não responde. – Você está pensando que ele teve um troço, Mané? Acho que não. Ele está bem. Eu vi como ele chegou. Deve estar chateado com alguma coisa e não confia nos amigos para nos contar – desafia Epaminondas. 14

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Lourival enfia o rosto no seu armarinho e fala no meio de roupas emboladas: – Não enche. Hoje eu não vou falar e não interessa por quê! A voz reverbera nas paredes de lata do móvel e vaza abafada pelo cheiro de pintura e suor velho. – Sua voz está parecendo de secretária eletrônica – comenta Epaminondas. – Mas não está mal. Lourival dá uma pancada na porta do armário, tranca o cadeado e sai batendo os pés. Manoel e Epaminondas seguem-no, empurrando os carrinhos de ferramentas. Nos primeiros passos, percorrendo os labirintos entre a sala dos mecânicos e o Galpão Norte da indústria, os três permanecem em silêncio. Lourival não levanta a cabeça nem cumprimenta as pessoas que encontra pelo caminho, acumulando um conjunto de esquisitices. Isso aumenta a curiosidade dos dois mecânicos. Como Lourival caminha com firmeza, Manoel deixa sua preocupação diluir. Diminuir, mas não desaparecer. “Se Lourival não quer dizer, eu descubro por minha conta.” Epaminondas não tem a mesma percepção sobre os riscos que Lourival corre com a obesidade e o sedentarismo. Isso porque não sentiu a proximidade da morte física. Suas dores são outras: a perda de Luana. Finalmente saem dos corredores e entram na pista de tráfego dentro do Galpão Norte da indústria, onde são fabricadas as peças das mais consagradas máquinas agrícolas da empresa. Entre máquinas, tubos e kanbans1, marcham em passos lentos e cadenciados, tendo às costas o sol da manhã. Restos de neblina condensada no piso gelado e partículas de resíduos industriais flutuam em reboliço, refletindo como pirilampos os raios de luz que definem os contornos dos corpos dos três homens, projetando sombras gigantes, tão grandes quanto a lenda viva em que se transformaram. – Missão: alimentar a humanidade! – dizem Manoel e Epaminondas. A frase é pronunciada há cinco anos, como um mantra, todos os dias, antes de

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Engradados e cartões de controle do consumo de peças na indústria. O Resgate da Existência

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começarem o trabalho. É um artifício que Manoel criou para se motivar no emprego, que não é sua razão de existir. – Não sou mecânico. Eu alimento a humanidade! Fazer manutenção é apenas o meio de cuidar de máquinas, que são usadas para produzir equipamentos que, por sua vez, preparam a terra para produzir alimento. A razão de existir de Epaminondas não é a mesma de Manoel. Imitou o amigo porque achou a ideia engraçada. Daí virou protocolo. Lourival nunca disse esta frase porque, para ele, a manutenção de máquinas é viver. “Missão: garantir a saúde das máquinas!” – é o que tradicionalmente proclama, respondendo à fala dos amigos. Desta vez ele não disse nada. – Oh, Lourival! Fala sua missão aí, homem! – cobra Epaminondas. Lourival acelera, sacudindo o corpo roliço. O ruído da sua respiração desafia o arfar do ar comprimido dos equipamentos. As bochechas vermelhas transpiram e brilham como semáforos. Para, finalmente, em frente a uma grande perfuratriz, única máquina desligada em todo o trajeto. Como em um ritual de reverência, curva o corpo e flexiona os joelhos. Ergue o braço esquerdo e, por três vezes, fecha e abre os dedos. – Ester2! – diz, com agilidade. Lourival não está bem e Manoel não quer contrariá-lo, deixando-o esperar. Faz saltar a trava da caixa de ferramentas, pega um alicate. No momento em que Manoel vai lhe entregar o alicate, Lourival abaixa o braço, cansado de sustentar o corpo em apenas três membros. Solta no ar, a ferramenta desce aberta sobre as costas de Lourival, como se o cavalgasse, como se seus cabos fossem as pernas do cavaleiro. As costas de Lourival são muito largas para permitir a montaria. Apenas as pontas dos cabos tocam na carne gordurosa. Lourival se assusta e salta. O alicate voa e percorre um semicírculo, passando acima da cabeça do Epaminondas, que o acompanha com a boca aberta e olhos esbugalhados, até ele se chocar de ponta com o solo, lembrando o mergulho do estercorário sobre outras aves para lhe roubar a presa.

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Ester é abreviatura de estercorário, um pássaro que habita os dois pólos do planeta. Dar nomes de bichos às ferramentas é uma brincadeira de Manoel.

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– ESTERCORÁRIO! – Epaminondas grita. – JÁ SEI! – exclama Manoel. – já sei o que o incomoda, Lourival! – EPAMINONDAS! PEGA O ESTER! O MANÉ ENLOUQUECEU! – grita Lourival, levantando o tronco e os dois braços em direção a Epaminondas, com o rosto mais vermelho que nunca, os olhos faiscando, as ventas abertas, a boca escancarada, o lábio superior flamulando, cortinando o céu profundo da boca. – Lourival! – Manoel o chama com expressão mesclada de alívio e apreensão. – Não precisa dizer. Eu sei o que o está incomodando! Descobri! – Você está banguela! – completa Epaminondas, apontando a boca murcha do Lourival.

4. A ponte móvel e suas conexões Acontecendo

– Anita, peça para entrar o próximo. O dentista Joaquim segura o envelope do próximo cliente a ser atendido e lê, com entonação teatral. “Lourival. Última consulta: há cinco anos. Torcedor do América Mineiro. Cor do time: verde.” Quando sente um vulto a suas costas, cumprimenta, sem virar o rosto, enquanto examina as antigas radiografias contra a luz. – Bom dia, Lourival! Como está o sorriso americano? Espero que esteja em branco tão puro quanto é puro o verde do seu coração. – Bom dia, seu Joaquim – respondeu uma voz feminina. Ele se volta, desconcertado. – Dona Adélia? Ora, acho que a Anita fez uma confusão. Ela marcou que a consulta seria do Lourival e me entregou os registros dele.

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– Não, seu Joaquim. Não é culpa da Anita. A consulta é mesmo para o Lourival. Eu que me ofereci para vir aqui por ele. Hoje é o Dia de Homenagem aos Campeões e ele merecia ir ao trabalho. Joaquim olha Adélia por um momento, enquanto vasculha todos os cantos de sua memória. – Dona Adélia, há décadas que me formei e é a primeira vez que vejo uma pessoa representar outra durante um tratamento dentário. Bem... Os tempos estão mudados e tudo é possível. A senhora trouxe a boca dele? – brinca. – Trouxe. Está aqui – apressa-se em abrir a bolsa e retirar de lá um volume embrulhado em guardanapo de papel. – A boca? – Ah, não. Pensei que o senhor estivesse brincando. Eu trouxe os dentes da frente, a ponte dentária. – Ah, muito bem. O que aconteceu? – Quebrou. Ele pediu para consertar. – Como foi isso? Ele andou brigando no estádio? – Não. Estava machucando e ele tentou consertar. Então quebrou. – Mas, se está machucando, ele deveria ter vindo. – Não precisava. Ele já consertou o que precisa para parar de machucar. É esta ponta aqui que estava machucando. Quando ele forçou, quebrou o dente do meio. – Estranho. Neste ponto, a haste não machucaria. – É que deu uma cárie logo debaixo do ferrinho.

5. As esposas de Lourival Acontecendo

– Quer dizer que a sua mulher foi ao dentista no seu lugar, Lourival? – pergunta Epaminondas. 18

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– Ela se ofereceu para ir – diz Lourival, evitando se virar. – Você é um homem de sorte! Não é qualquer um que encontra uma mulher que vai ao dentista em seu lugar. A Amélia caiu do céu para você, homem! – Adélia! – corrige Lourival, irritado, enquanto termina a montagem do equipamento. Epaminondas tamborilha na caixa de ferramentas e canta: – Adélia é que é mulher de verdade! – Amélia – corrige Manoel. – Na música, é Amélia. – Está bem. Desculpe, Lourival, sua mulher não é a da música. Lourival não responde. – Então? Vai me desculpar ou não vai? Você desculpou o Manoel quando ele chamou a Adélia de Patrícia! – Claro que tinha de perdoar! – defende-se Manoel. – O nosso amigo se casa com a Patrícia e vão embora do país. Não manda um cartão, não dá notícia. Quase trinta anos depois, aparece com a mulher. Como eu ia adivinhar que não era a Patrícia? – Ô, Mané, não dá para confundir as duas mulheres! – diz Epaminondas. – A Patrícia, ah, da Patrícia eu nunca guardei sua fisionomia. Quando Lourival se casou com ela, eu era um garoto, você sabe. Para mim, ela era uma senhora inteligente, de quem eu só podia me aproximar de cabeça baixa e com todo o respeito. No entanto, nunca me esqueci que ela chamou Lourival de Romeu, depois, Cândido e Peri. – Como lembra disso? – pergunta Epaminondas. – O que ela disse marcou a minha vida. Até aquele dia, eu havia lido sobre bichos. Se entendia de pessoas, era pelo quanto são bichos. Eu pensava que encontraria minha mulher pelo cheiro do cio. Eu não imagina que fosse possível uma mulher se apaixonar por um homem comparando-o com personagens da literatura. Você se lembra como Patrícia se apaixonou pelo Lourival? Casaram-se de repente e foram embora. Enquanto os dois estavam no outro lado do mar, vivendo seu grande amor, eu me inspirava nas palavras dela. Virei traça de biblioteca. Devorei os dramas e paixões de Shakespeare, a ironia de Voltaire, o romantismo de José de Alencar. Isso foi só o começo. Depois li outros autores: sobrevoei as ondas do mar nos versos de Castro

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Alves, conheci a loucura humana pela pena de Machado de Assis. Vivi minha juventude no século XIX. Lendo de trás para frente fui à Grécia antiga. – Por isso é que parece o mais velho de nós três, seu rapazinho – brinca Epaminondas. – A Patrícia, sem saber, abriu minha cabeça. Ela foi minha musa inspiradora. Com todo o respeito pelo amigo, eu queria encontrar uma mulher igual a ela, talvez uma irmã mais nova, com quem pudesse ter uma paixão alucinada. Não encontrei e sou um velho solitário – faz uma pausa, pensativo. – O que fazer? – levanta os ombros, observa o amigo montando a máquina. – É, Lourival, você se casou com a única Patrícia que havia no mundo! Lourival suspira, interrompe o que estava fazendo, apoia as mãos nos joelhos flexionados e mergulha a cabeça entre ombros: – Enquanto você sonhava, eu vivia o grande erro da minha vida! Se tivesse jeito, eu ia apagar do meu passado o tempo que fiquei casado com aquela jararaca, aquela cobra peçonhenta! Manoel e Epaminondas se olham. Em silêncio, dialogam com flexões das rugas e concordam que não era boa política continuar elogiando as qualidades inspiradoras de Patrícia. Falar o quê? Lourival termina a manutenção, lacra a máquina e roda a plaqueta, substituindo o aviso “em manutenção” por “liberada”. Levanta-se com dificuldade, devido ao peso, à fraqueza dos músculos das pernas e costas doloridas pela posição desconfortável. Vai embora, sem falar e sem chamar pelos dois companheiros. Eles apertam o passo e o alcançam. Epaminondas aproxima-se dele e o acompanha, tocando-lhe o ombro: – Meu amigo! A vida é assim mesmo. A gente erra uma vez, depois acerta. Não deu certo com a Patrícia, mas deu certo com a... Com a Adélia. Epaminondas percebe que suas palavras não movem um milímetro os sentimentos do amigo. Não adianta ficar rodeando a mesma história, o que se viveu. A falta dos dentes deixou vazar a autoestima do Lourival. Se passasse o dia sem ser descoberto, poderia fingir que nada havia acontecido e retomar a rotina da vida. Enfraquecido, não está para conversa, não escuta, não se interessa nem pelo que deu certo em sua vida. Epaminondas insiste: 20

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– Você pode achar que errou quando casou com Patrícia. Isso acontece. A gente erra na primeira vez. Para não morrer, é só levantar a cabeça, não entregar os pontos. Vou lhe contar sobre um cara. O cara que inventou a máquina de fazer gelo. Quando vamos tomar uísque, basta abrir a geladeira e pegar o gelo. Fácil, né? Só que ninguém pensa que isso só é possível porque um cara não desistiu. Você sabe como se faz um gelo, Lourival? Lourival não responde. – Fala aí, homem! Está me escutando? Você sabe? – Claro que sei! – diz, impaciente. – Pois é. Agora é fácil falar que sabe como se faz gelo. Mas nem sempre foi assim. Ninguém sabia fazer gelo. Precisava esperar cair geada. Aí o homem que inventou a máquina de fazer gelo pensou: “O gelo é água fria e dura. Não basta esfriar, precisa endurecer também.” E criou a máquina e fez o gelo. Chamou todo mundo para comemorar. Sabe o que aconteceu? Foi uma frustração. Todo mundo riu dele. Claro que não tinha dado tudo errado. Eles riram de maldade porque o homem tinha acertado a metade. Se você pensar, também acertou a metade na primeira tentativa. É só valorizar essa metade, o alicerce para colocar seus tijolos. Mais calmo, Lourival se deixa levar pela conversa de Epaminondas e, inspirado pelo seu pensamento mecânico, procura localizar o que seria acertar metade na produção de gelo. Que metade é essa? – Que metade? – Ora, a metade dos seus filhos é do primeiro casamento. Você fala mal da Patrícia, mas foi ela que lhe deu a metade dos seus filhos. – Hummm. ... É. E do gelo? – Ah, sim. Pois na primeira tentativa, a água endurecia. Isso é a metade acertada. A metade que não deu certo: a água não esfriava. Já imaginou tomar uísque com gelo que não gela? É preciso estar muito derrubado para tomar uísque quente. Manoel ouve o diálogo com atenção, atento às reações dos dois homens, lendo os sinais por trás do que se dizia, procurando esclarecer o lampejo de ideia sobre o drama de Lourival, que teve quando o alicate voou como um estercorário.

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Para Epaminondas, os detalhes mais marcantes da cena são o voo do alicate e a ausência dos dentes na boca de Lourival. Para Manoel, a imagem do amigo com as duas mãos e os dois joelhos no chão e o alicate caindo sobre ele como o cavaleiro monta foi a representação ao vivo de um misterioso sonho de Lourival. Um sonho que, se não bastasse ser misterioso, misteriosamente se repete. No sonho, Lourival é um cavalo, montado por seu filho Pedro, que grita “Independência ou Morte!”. Por diversas vezes, Manoel tentou decifrar o que o inconsciente de Lourival estava tentando lhe dizer. Com o tempo, aceitou que o sonho seria resultado de imagens profundamente gravadas na cabeça do amigo, quando ele e o filho visitaram o Museu Paulista, na cidade de São Paulo, onde viram a pintura que representa a independência do Brasil. – Pode ser que você tenha se identificado com D. João VI na comilança, assistindo a alguma reportagem sobre os 200 anos da vinda da família real para o Brasil. Por seu filho ter o mesmo nome de D. Pedro I, você o viu no lugar do príncipe. – Uma boa explicação, Mané – diz Epaminondas. – Nem eu inventaria uma história tão verdadeira. De tantas vezes que Lourival contou a mesma história, ouvi-la deixou de ser novidade. Já não era mais motivo para Manoel mergulhar em suas especulações. O que aconteceu de diferente neste dia, que levou Manoel a sentir que havia decifrado o enigma do sonho do amigo, foram dois fatos. Primeiro, porque Lourival chegou tenso e arredio. Depois, a sua reação exagerada com o alicate. Manoel não deu importância à falta de dentes do amigo. Na sua geração todos perderam dentes. Portanto, para ele, a angústia de Lourival teria outra causa: preocupação com o filho, incômodo por não ver o filho conquistar a própria independência, incômodo por não ter mais força nem para sustentar o próprio peso e ainda ter de suportar o filho. Por todas suas leituras, Manoel aprendeu que nunca poderia saber tudo de qualquer coisa. Qualquer conclusão acontece a partir de algumas evidências. Mesmo que sejam milhares, sempre haverá pontos importantes ignorados. Se no momento do voo do alicate ele pensou que havia decifrado o enigma do 22

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Lourival, agora já não tem tanta certeza. Pode haver algo mais por trás do sonho. Quando alcançam os labirintos em direção à oficina mecânica, Manoel fica para trás. Observa Lourival mais à frente, cujo drama seria a criação do filho. Em seguida, vai Epaminondas, cujo drama é não ter gerado o filho desejado por Luana. Epaminondas ilustrou a brincadeira com Lourival comentando que tomar uísque sem gelo não é agradável. A fala foi mais do que um detalhe para temperar seu argumento. Ao reconhecer que havia perdido Luana para sempre, Epaminondas embebedou-se várias vezes, tomando uísque barato diretamente no bico da garrafa. Nesta conversa com Lourival, Epaminondas brinca mais uma vez para abafar sua culpa de negar um filho à mulher que não sai de seu pensamento. Se Manoel pudesse entrar no sentimento de Epaminondas, em uma profundidade que nem o próprio Epaminondas alcança, encontraria lá a vontade de ter a simplicidade de Lourival, de não prestar atenção na conversa dos outros, a simplicidade com que ele forneceu parte de si para dar dois filhos a cada uma das mulheres que abriram o útero para ele.

6. Na manhã de espera Acontecendo

Sentados ao lado da mesa na área de descanso da oficina de manutenção do Galpão Norte da indústria, Epaminondas, Lourival e Manoel passam as horas como passaram quase todas as manhãs de quase uma década: esperando o intervalo de almoço. Agora, a espera é especial, porque se trata do Dia de Homenagem aos Campeões. Na oficina de manutenção do Galpão Sul da indústria, o movimento é diferente. Sob a coordenação de Antenor, são cinco mecânicos agitados, chegando esbaforidos com peças para consertar ou saindo para consertar alguma máquina quebrada.

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Epaminondas e Manoel já se acostumaram com a pronúncia soprada do Lourival, em que as sílabas saem sombrias. Como também perderam vários dentes ao longo das últimas décadas, os dois amigos não cobraram explicação de como Lourival perdeu os seus. – Você está certo, Epa... Mais do que certo. A Patrícia me deu um casal; a Adélia me deu outro casal. Os dois filhos com Patrícia eram firmes e não eram frios. Os filhos com Adélia são durões, sim, eles são. Mas são de teimosia. E são frios. Duros e frios como gelo. – Ô, Lourival, eu não quis dizer que você é o inventor da máquina de fazer gelo. Não vá ficar sofrendo por isso agora! – O que está acontecendo entre você e Pedro, Lourival? – pergunta Manoel. – Eu e meu filho? Não sei o que está perguntando. – Pergunto por que eu sei que há alguma coisa que o preocupa. Talvez tenha a ver com o seu sonho. – Ah, com o Pedro? – Lourival sorriria, se tivesse os dentes, mas contevese. – Hoje eu resolvo isso de vez, você já sabe. Finalmente vou poder comprar a moto. – Você anda sonhando em comprar uma moto para o Pedro. Já me disse isso. E vai realizar este sonho com o prêmio de hoje. Esse sonho está resolvido. – É. Com a moto ele vai poder trabalhar. – Pois estou falando de outro sonho. Não é esse, que tem acordado. É outro, de quando está dormindo, do grito “Independência ou Morte!”. – Ah. Isso não é nada. Estou acostumado com ele. – O sonho pode significar que temos alguma coisa fora dos eixos. É uma tentativa de encaixar as coisas. Se não é seu filho que o preocupa, deve haver outra coisa. – De que você está falando, Mané? – pergunta Epaminondas. – Hoje, eu disse que havia descoberto por que o Lourival estava tão diferente. Pensei que era por causa do filho dele, já que sonha com ele repetidamente. Agora sei que ele chegou de mau humor porque deixou os dentes com a Adélia. Mas eu sinto que há mais coisas por trás. Nosso amigo está com um problema e não quer abri-lo para nós. 24

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– Claro! – exclama Epaminondas. – Ele apareceu desdentado justamente no Dia de Homenagem aos Campeões!

7. Bichos e sobrinho de Manoel Algumas lembranças

Epaminondas gritou “estercorário!” com todas as letras, cada sílaba bem pronunciada, aumentando o volume em direção à sílaba tônica. A vibração do “r” foi mantida até a última letra “o”, alongada. O grito alcançou as estruturas metálicas do teto e despencou com força, vibrando as tubulações de gases, desafiando e vencendo o alarido das máquinas em funcionamento. Mesmo com protetores auriculares, dois operários ouviram a palavra com toda nitidez. Para eles, esta e outras palavras estranhas seriam termos carregados de conteúdo específico do domínio técnico dos três melhores mecânicos que a empresa já conheceu. – O que é estercorário? – Um pássaro – respondeu Manoel várias vezes. – O que é facócero? – Um animal – respondeu com um sorriso juvenil, aumentando o mistério. O sorriso juvenil de Manoel é um dos enigmas mais comentados pelos operários. Parece mais novo do que quando chegou à empresa. Foi apresentado por Lourival, com o argumento de que o Setor de Recursos Humanos não encontraria melhor profissional do que ele para preencher a vaga. A estagiária do setor examinou a idade indicada na certidão de nascimento, na carteira de identidade e na carteira profissional. – Senhor, a sua idade está certa? – Está diferente em algum dos documentos?

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– Não, senhor. Mas a idade é copiada de um documento para o outro. Se o primeiro estiver com a data errada, os outros também ficam errados. O senhor me desculpe, mas é que precisamos da idade certa. – Mocinha, a idade que se tem é acumulada durante a vida, que é variável durante o tempo. Você nunca conseguirá me ver com a idade que tenho, considerando que a luz viaja a 300 mil km por segundo. Você só verá o que eu era, não o que sou. Se me perguntar a idade, pior ainda. Pois, no diálogo, somos bem mais lentos do que a velocidade da luz. Quando responder, não serei mais o que era. Se me perguntar a minha idade conjugando o verbo no presente, terei de responder conjugando o verbo no passado. Como o tempo é curvo, como descobriu Einstein, não podemos julgar onde está cada um no tempo a partir do que nos indicam nossos olhos. Além disso, quando somos dilacerados em um acidente, a remontagem das partes não garante escrita alinhada para a percepção da idade. Assim, Manoel foi admitido com a observação de que sua idade é acumulada durante a vida, medida pelo tempo curvo de Einstein e deve ser lida nos documentos e não nas partes remontadas no hospital depois do acidente. Se a estagiária entendeu bem o que ele disse, esses mesmos argumentos não serviram, mais tarde, para desabrochar o interesse do seu próprio sobrinho pela leitura. Durante o dia, a missão de Manoel é produzir alimento. À noite, mostrar ao sobrinho Manezinho que se deve devorar livros. Mesmo sendo um menino com bastante curiosidade, aos oito anos de idade, Manezinho ainda tropeçava no uso das vogais e uma dúzia de consoantes. Como a sabedoria dos cientistas era complexa para a cabeça do menino, Manoel pediu ajuda aos seres menos complicados, como mamíferos, aves, invertebrados e uma infinidade de seres vivos e mortos. Inclusive alguns que deixaram descendentes e outras espécies que desapareceram para sempre da face da Terra. Buscou em uma de suas mais antigas relíquias, guardada desde quando era adolescente, no início dos anos 1970: a enciclopédia “Os Bichos”. Com os trocados que recebia na época, aplicando ferragens em rodas de carro de boi, comprou e leu a cada semana um fascículo, mania que o transformou no maior conhecedor do comportamento animal entre as pessoas da sua idade até aonde sua bicicleta o levava. Formou cinco volumes, 26

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costurando fascículo por fascículo com linha de soltar papagaio e colando as capas duras com grude de polvilho cozido. Quase quarenta anos depois, as imagens, os textos e os nomes dos bichos lidos em voz alta pelo sobrinho resgatam pontos que ficaram décadas ignorados em algum lugar da memória. Revolvendo esses pontos escuros, junto com os nomes esquisitos de bichos encontrou paixões, emoções, sonhos, cheiros e sabores. Foram estas lembranças da adolescência que acordaram suas entranhas das lesões provocadas pelo acidente e pelas frustrações, inclusive não ter encontrado a mulher idealizada, uma Patrícia mais nova. A juventude rebrotada forçou e inflou vasos e capilares ressecados, coloides foram dissolvidos, vísceras nutridas, glândulas reanimadas e hormônios segregados em profusão. Associar os nomes dos bichos às ferramentas no trabalho se tornou uma brincadeira juvenil. E pegou. Assim como alicate virou estercorário, alavanca ganhou vida como facócero, um javali africano que arranca raízes com as presas gigantes. Com nomes próprios, as ferramentas se tornaram grandes amigas, com uma linguagem exclusiva da equipe.

8. Os nomes dos gêmeos de Adélia Acontecendo

– Por que seu filho se chama Pedro? – pergunta Epaminondas. – Porque nasceu no dia de São Pedro. – E a sua filha nasceu no dia de santa Valdélia? – Não, seu tatu. Eles são gêmeos! – Oops! É mesmo! Eu sempre me esqueço e fico tentando lembrar qual dos dois é mais velho. Também, a culpa é sua, Lourival. Quando os filhos são gêmeos, é melhor colocar nomes parecidos. Podia ser Manoel e Manoela, homenageando o nosso amigo aqui. Valdélio e Valdélia. Até Pedro e Pedra ia

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