Valença em Questão 40

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VALENÇA EM QUESTÃO // debate / crítica / opinião

ano VII // edição 40 // maio de 2012 // blogdovq.blogspot.com

O impacto do racismo na educação Mais vagas, menos transparência // Quadrinhos dos anos 10 Considerações sobre o fogo // Vale a pena? // Faltam pessoas que acreditem no poder da mudança // Filmes políticos


EDITORIAL

// Cartas dos Leitores

Por um VQ colaborativo

Impunidade

Hoje, 19 de maio, encontro marcado com leitores e amigos no Espaço Open Bar, às 17h

O Valença em Questão chega a sua 40ª edição na busca por mais um desafio: ampliar a sua rede de colaboradores. Para isso, estamos realizando encontros, sempre no dia do lançamento da edição. Além de bate papo, debate sobre o conteúdo e propostas de pautas para as próximas edições, temos apresentações culturais. Uma das parcerias é com o coletivo de poetas que realiza o Sarau Solidões Coletivas. Os microfones também estão abertos a músicos e quem mais quiser passar o seu recado. Este próximo encontro será no Espaço Open Bar, no Benfica, em frente à Delegacia Legal, a partir das 17 horas, e estão todos convidados. Mais do que discutir o conteúdo do VQ, temos a expectativa de que desses encontros possam surgir novas ideias e parcerias para a construção da cidade que queremos. Um exemplo promissor de que encontros dessa natureza podem gerar bons frutos é a própria entrevista desta edição. Para além do diálogo que está sintetizado em nossas páginas, não foram poucas as ideias de atividades possíveis em parceria com o Centro de Educação Musical Cata Vento. Tudo ainda no campo das ideias, mas com força para sair do papel. Além da entrevista com Rafael Motta, idealizador do Cata Vento, esta edição dispensa uma página à reflexão sobre a importância das cotas raciais em universidades brasileiras. Recentemente consideradas constitucionais pelo STF, a jornalista Letícia Serafim discorre sobre a necessidade de reparação do déficit histórico com a população negra no sistema de ensino brasileiro. Outro ponto que dedicamos espaço é a questão do estacionamento rotativo em Valença, mais

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especificamente sobre a transparência de sua instalação, que gerou uma pequena polêmica no Facebook. Tentamos por mais de 20 dias respostas da Prefeitura de Valença, mas ainda não foi dessa vez que tivemos nossas dúvidas dirimidas (as respostas enviadas pela PMV em nada esclareceram os questionamentos). Continuamos a esperar respostas consistentes, pois é preciso uma maior transparência e agilidade da prefeitura em atender os cidadãos e na divulgação de informações de interesse público. Valença parece seguir na contramão da história. Enquanto na última semana entrou em vigor a lei que regulamenta o direito de todo cidadão ter acesso a informações públicas no Brasil, Valença ainda não se mostra preparada para esse tipo de atitude. Com essa nova lei, um cidadão comum poderá solicitar informações sobre despesas com obras, compras, salários e contratos, dentre outras coisas. Como desde a última quarta-feira (16/05) é lei, Valença será obrigada a se enquadrar. Pelo menos assim esperamos. Um exemplo do que a falta de transparência é capaz está na resenha desta edição, de “A Privataria Tucana”. Segundo Eduardo Monteiro, autor da resenha, a obra nos obriga a questionar a passividade do cidadão em relação ao sistema político. Essa nova lei e uma participação mais consistente da sociedade podem ser capazes de grandes transformações? Nosso papel é continuar tentando. Fechando a edição, nossa última página traz na seção Navegando a indicação de um blog que disponibiliza filmes, a poesia de Juliana Guida Maia e uma tirinha dos “Quadrinhos dos anos 10”, de André Dahmer. E a capa da edição é ilustrada pelo companheiro de lutas Carlos Latuff.

Sou moradora do bairro São Francisco e como todos de lá, não me conformo com a morte da minha amiga Grasielle e sua sobrinha Maria Eduarda. Estou falando do acidente que teve perto do Center Plantas causado pelo Eduardo Bastos. Esse cara nem deu depoimento. Fizemos passeata e não valeu de nada. A família delas sofre muito, e ele está escondido fora de Valença. Outro dia eu estava na rodoviária e vi a mulher dele chegando de ônibus cheia de bolsa. Com eles nada aconteceu. Ele é político, e vocês sabem bem como é isso. Não vai dar em nada. Ninguém nem comenta mais. Como que pode, um cara cheio de cerveja na mente matar duas inocentes e não acontecer nada??? Já pedi no Jornal Local, mas nem responderam, nem botaram no jornal. Falaram que vocês falam de tudo, sem medo dos poderosos. A única coisa que eu queria era fazer uma reportagem no blog de vocês com meu desabafo, e que falassem dessa impunidade que está acontecendo. Por favor, nos ajudem!!! Layane Aparecida Miranda da Silva, 27 anos, moradora de São Francisco e amiga de Sielle e Duda, por email.

VALENÇA EM QUESTÃO ano VII // edição 40 // maio de 2012 www.blogdovq.blogspot.com Endereço: R. Francisco Di Biase 26 Torres Homem Valença-RJ CEP 27600-000 valencaemquestao@yahoo.com.br Tel.: 21-8187-7533 Jornalista Responsável: Vitor Castro (30.325 Mtb) Colaboraram nesta edição: André Dahmer, Bebeto, Carlos Brunno, Carlos Latuff, Eduardo Monteiro, Juliana Guida Maia, Letícia Serafim, Marianna Araujo, Patrícia Oliveira e Sanger Nogueira. Projeto Gráfico e Diagramação: Mórula Oficina de Ideias www.morulaideias.com.br

// Deu no Blog do VQ

Tiragem: 1500 exemplares Impressão: Gráfica PC Duboc Ltda.

Repercussão das fotos Cabral/Cavendish na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Foi proposta na Alerj uma CPI para averiguar as viagens do governador Sérgio Cabral com Fernando Cavendish. Quem assinou o projeto: Luiz Paulo, Dionísio Lins, Marcelo Freixo, Aspásia Camargo, Altineu Côrtes, Clarissa Garotinho, Flávio Bolsonaro, Janira Rocha, Lucinha, Miguel Jeovani, Paulo Ramos, Samuquinha e Wagner Montes. Quem não assinou o projeto: André Corrêa, Paulo Melo, André Lazaroni, Coronel Jairo, Rafael do Gordo, Rosângela Gomes, João Peixoto, Alexandre Correa, André Ceciliano, Andréia Busatto, Bernardo Rossi, Chiquinho da Mangueira, Claise Maria Zito, Dica, Domingos Brazão, Edson Albertassi, Gilberto Palmares, Graça Matos, Graça Pereira, Hélcio Ângelo, Gustavo Tutuca, Janio Mendes, Márcio Pacheco, Nilton Salomão, Pedro Augusto, Roberto Dinamite, Robson Leite, Roserverg Reis, Sabino, Xandrinho e Zaqueu Teixeira. Leia as justificativas dos deputados no Blog do VQ Todo o conteúdo da edição anterior do VQ também está disponível no Blog.

O Valença em Questão circula no município de Valença, arredores e Rio de Janeiro, além de enviado via correio eletrônico e disponibilizado na internet.

Colabore com o VQ: Banco Itaú – Agência 0380 Conta Poupança 60713-5/500

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// Política

Mais vagas, menos transparência Para onde vai o dinheiro do Estacionamento Rotativo ainda é uma incógnita que a prefeitura prefere não responder Em funcionamento desde o dia 19 de abril, o Estacionamento Rotativo em Valença, operado pela empresa Central Park 33, gerou dúvidas, reclamações e elogios. Aos que consideram a iniciativa positiva, está principalmente a melhora no trânsito e a facilidade que se encontra agora uma vaga nas ruas do Centro da cidade. Pelo Facebook, onde o tema ganhou repercussão, especialmente na comunidade Valença Passado a Limpo, as dúvidas eram muitas. Desde o tempo de permanência até o valor cobrado foram discutidos.

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Ruas com estacionamento rotativo em Valença

Se sobram vagas onde o estacionamento é cobrado, agora faltam vagas nas ruas próximas ao Centro que não estão na lista do Rotativo (veja no mapa as ruas com Estacionamento Rotativo). Essa é uma alternativa para motoristas que tentam economizar. De fato, o valor cobrado por hora ou fração de hora (R$ 1,20) pode ficar pesado para boa parte das pessoas. Deixar o carro estacionado durante todo o dia custa para o motorista R$ 12. O estacionamento é cobrado das 8h às 18h de segunda a sexta e de 8h às 13h no sábado. Fora desse horário, domingos e feriados o estacionamento é gratuito.

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A justificativa da prefeitura para a cobrança no estacionamento é a “adoção de uma ação pública moderna (...) trazendo a melhoria do trânsito e maior rotatividade de vagas”. De fato diminuiu bastante o número de carros estacionados no Centro. A dúvida que permanece é se essa é a política “moderna” ideal. Simplesmente cobrar pelo estacionamento não significa melhoria no trânsito. A cobrança pode até inibir os motoristas a irem para o Centro de carro, mas privilegia aquele que têm melhor condição financeira e pode pagar por uma vaga. A prefeitura, no entanto, alega ter realizado um estudo para se chegar ao valor cobrado e também para a escolha das ruas onde deveria ser instalado o Rotativo. Mas apenas informa que o estudo foi feito, sem apresentar nenhum dado. O valor cobrado em Valença é superior ao cobrado na cidade do Rio de Janeiro, onde é cobrado R$ 2 por duas horas ou fração de hora nos pontos mais caros. Em alguns pontos o valor cobrado é de R$ 2 por quatro horas e em outros R$ 2 por um período de 12 horas. Sobre a arrecadação, a prefeitura informa ainda que um percentual do valor fica com o município, e outro com a empresa. Mas também não informou qual o valor desses percentuais. Em Barra do Piraí, cidade vizinha a Valença, 2% do valor arrecadado é repassado para instituições filantrópicas. Em Valença nada parecido parece ter sido pensado. Como base de comparação, a arrecadação em Barra do Piraí, descontados os impostos, gira em torno de R$ 35 mil por mês. Para onde vai esse dinheiro destinado ao município ainda é uma incógnita que a prefeitura preferiu não responder. Em contato realizado pelo VQ no dia 25 de abril, a assessoria de comunicação da Prefeitura respondeu algumas questões apenas no dia 4 de maio. Como as respostas foram incompletas, novos questionamentos foram enviados, e até o fechamento da edição (17 de maio, 22 dias depois do primeiro contato) não houve retorno. Além da Central Park Rio 33 Estacionamento Automotivo Ltda., participaram da licitação as empresas Rotativo Barra Ltda., Sinart Sociedade Nacional de Apoio Rodoviário e Turistico Ltda. e Locanty Com. Serviços Ltda. A prefeitura não informou os valores oferecidos por nenhuma delas, nem mesmo pela Central Park 33, vencedora da licitação.

No blog do VQ está disponível a íntegra das respostas da prefeitura e as perguntas que não foram respondidas. Acesse www.blogdovq.blogspot.com

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// Resenha

Vale a pena? No final da década de 80 e início da década de 90 os líderes na América Latina pareciam competir entre si em relação à velocidade com que enviavam as empresas geridas pelo Estado às mãos do setor privado Por

Amaury Ribeiro Jr. Geração Editorial, 344 páginas, 2011.

Eduardo Monteiro

Serão realmente tão poucos e perenes os protagonistas desta trama obscura e corrupta no Brasil a partir do final da década de 80, aparentemente justificada pela alcunha do neoliberalismo? Finalmente diante da última página de A privataria Tucana, esta pergunta se apresenta como justificativa pelo fato de sermos impelidos pela ânsia de revisitar rapidamente na memória os escândalos de corrupção brasileiros mais recentes. Não só a renda é concentrada neste país; também são as oportunidades, lícitas ou ilícitas. A ingenuidade nos induz a concluir, inclusive, que se de fato meia dúzia de cidadãos brasileiros carecessem milagrosamente da oportunidade de terem nascido, este país provavelmente estaria em melhores condições. Infelizmente, como bem mostra o livro, tratam-se de oportunistas dentro de um sistema que envolve muito dinheiro e baixo risco. Não fossem eles, seriam certamente outros, pois os corrompidos estão em número um tanto maior. Classificada pelos próprios personagens do livro como “literatura menor”, “infâmia”, “oportunismo”, “irresponsabilidade”, “redundância”, “crime organizado travestido de jornalismo” e “coleção de calúnias”, a obra, lançada no final de 2011, realmente incomodou. Nos primeiros meses, a mídia televisiva e impressa tentara escondê-la, num claro manifesto da usual tática de mantê-la ignorada nos meios públicos. Tentativa inútil, pois em pouco menos de um mês a obra já estava na lista dos livros mais vendidos no Brasil, mantendo-se no topo por um bom tempo. Além disso, em menos de dois meses, a editora já estava em sua 5ª reimpressão e hoje o livro já é considerado um best-seller do jornalismo investigativo. Pois bem, a base de toda a obra é construída no final da década de 80 e início da década de 90, época cuja dissuasão neoliberalista europeia e norte-americana se impusera sobre os governos latino-americanos. O Estado Mínimo representava a terceirização de tudo e os líderes na América Latina pareciam competir entre si em relação à velocidade com que enviavam as empresas geridas pelo Estado às mãos do setor privado. Sabemos muito mais sobre o resultado disto tudo hoje. No entanto, o autor se preocupa menos com a dicotomia muito discutida entre privatização e estatização. Ele na verdade se concentra e coordena toda sua investigação nos processos de venda das empresas brasileiras ao setor privado e nos benefícios adquiridos por alguns pou-

cos através de simples assinaturas irresponsáveis. Neste emaranhado podre, surgirão empresas conhecidas do nosso passado ou do nosso cotidiano como a Vale, a Telemar, o Banco do Brasil, o Citibank, a Telebras, o Banestado e a Petrobras; aparecerão partidos políticos famosos como o PSDB, o PMDB e o PT; e, enfim, surgirão os personagens que dão vida às instituições e que manipulam através do poder, da influência e da chantagem. A primeira vertente desta genealogia obscura inicia-se com José Serra, na época ministro do Planejamento do governo de Fernando Henrique Cardoso, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, candidato à presidência deste país por duas vezes e, atualmente, candidato a um segundo mandato à prefeitura de São Paulo; sua filha Verônica Allende Serra; seu genro Alexandre Burgeois; seu primo Gregório Preciado; e seu ex-tesoureiro e “eminência parda das privatizações” Ricardo Sérgio de Oliveira. Do outro lado, encontra-se Carlos Jereissati, megaempresário, dono do grupo La Fonte que, por sua vez, é irmão de Tasso Jereissati, ex-governador e ex-senador pelo PSDB do Ceará, atualmente presidente do Instituto Teotônio Vilela, órgão de formação política do PSDB. Caminhando juntos neste imbróglio nepotista vêm Daniel Dantas, o primeiro dono do banco Opportunity, e sua irmã Verônica. Ambos protagonistas da operação Satiagraha, desencadeada pela Polícia Federal em 2004, contra desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro. Fazem também parte do grupo Paulo Maluf e Ricardo Teixeira, dispensados aqui de suas respectivas e desnecessárias nomeações. Enfim, poucos nomes, grandes estragos.

“Somos obrigados a questionar nosso próprio grau de passividade em relação ao sistema que nos rege e procurar a razão que ainda mantém determinados cidadãos impunes, invioláveis, elegíveis e gozando de toda sorte absorvida através de processos oriundos da promiscuidade e do peculato”

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Bom, se gera espanto o tamanho do rombo criado por tão poucos, logo nas primeiras páginas da obra, somos obrigados a questionar nosso próprio grau de passividade em relação ao sistema que nos rege e procurar a razão que ainda mantém determinados cidadãos impunes, invioláveis, elegíveis e gozando de toda sorte absorvida através de processos oriundos da promiscuidade e do peculato. Lançar luz a este tema me parece ser o principal motivo da existência deste livro, pois eis que se assim for, “tudo o que houve terá valido a pena”, finaliza Amaury.

Eduardo é engenheiro e pai de João e Maria


// Educação

O impacto do racismo na educação Relações discriminatórias no ensino geram uma série de dificuldades na permanência e desempenho dos negros na escola e no ensino superior Por

Letícia Serafim

Nos dias 25 e 26 de abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade pela constitucionalidade da adoção das cotas raciais para o ingresso nas universidades brasileiras. A decisão é uma vitória histórica para os movimentos negros e sociais que vêm lutando para garantir a igualdade de direitos da população negra e o fim do racismo no Brasil. Apesar desta vitória, a discussão em torno da adoção de cotas pelas universidades sempre gerou resistência por parte da população, especialmente de setores da elite conservadora e da mídia hegemônica. O discurso dos que se opõem às cotas raciais baseia-se desde argumentos sobre a meritocracia do ingresso – que afirma que todos têm acesso livre à educação, logo cabe ao indivíduo se dedicar aos estudos para merecer o ingresso no ensino superior – até argumentações sobre o critério de seleção que deveria levar em conta fatores sociais e econômicos e não raciais. Estes discursos desconsideram um problema chave para a discussão sobre as cotas, que é a existência do racismo e de relações discriminatórias em todas as instituições sociais, em especial dentro do sistema de ensino, que gera uma série de dificuldades na permanência e desempenho dos negros na escola desde o ensino fundamental até o superior. O resultado é um número bastante reduzido de negros que chegam à universidade, cerca de 10% da população universitária do país. A resistência às cotas para negros tem a ver com a maneira como o brasileiro encara a questão

racial, silenciando o racismo através do mito da democracia racial e da “cordialidade” do povo. Em seu livro “Raça e Gênero no sistema de ensino”, Ricardo Henriques afirma que “essa naturalização da desigualdade deriva de origens históricas e institucionais, entre outras coisas, ligadas à escravidão e sua abolição tardia, passiva e paternalista”. Esta forma de tratar a questão esconde uma estratégia maniqueísta que tem como objetivo perpetuar relações de desigualdade que garantem privilégios para alguns em detrimento de outros. Dois Brasis Podemos justificar a importância da adoção das cotas raciais utilizando os dados analisados pelo economista Marcelo Paixão, em 2005, onde afirma que se dividíssemos o país em dois, um só formado pela população branca, e outro só com a população negra (pardos e pretos de acordo com denominações do IBGE), e se analisássemos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desses dois “países”, o “Brasil branco” estaria situado na 47ª posição em um ranking mundial. Já o “Brasil negro” ocuparia a 92ª posição. Esta constatação indica que a questão da desigualdade econômica e social no país está intimamente ligada à questão racial. Para além da questão social e econômica, que se reflete nas condições de vida, oportunidades de acesso à educação, saúde, trabalho e cultura, a população negra depara-se com outro fator que os colocam em situação de desvantagem em relação aos brancos: o racismo. De fato, o Brasil não viveu um apartheid como a África do Sul, onde o convívio e o acesso aos mesmos direitos dos brancos era negado por lei aos negros. O que temos é um apartheid dissimulado, que limita com cercas invisíveis os espaços em que é conveniente ao negro circular e as relações sociais que podem estabelecer. As práticas de discriminação racial estão presentes nas mais corriqueiras situações, desde a indicação do elevador de serviço, as piadas de desvalorização da estética negra, ditados racistas como “negro de alma branca”, até os mecanismos que dificultam o acesso dos negros às universidades e, consequentemente, às mesmas profissões de prestígio e ao mesmo status social que os brancos.

“O ‘Brasil branco’ estaria situado na 47ª posição em um ranking mundial. Já o ‘Brasil negro’ ocuparia a 92ª posição”

Desigualdades na educação Nas últimas décadas, evidencia-se no país a elevação da escolaridade média da população, a redução na taxa de analfabetismo e o aumento do número de matrículas. Porém, esses avanços não se traduzem em qualidade do ensino, nem em redução das diferenças na educação entre brancos e negros. Ricardo Henriques aponta que em 1999 o número de brancos com curso superior completo (15 anos ou mais de estudo) superava em 5 vezes o de negros. A escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade em 1999 girava em torno de 6,1 anos. Já um jovem branco da mesma idade tinha cerca de 8,4 anos de estudo. Essa diferença de 2,3 anos de estudo é bastante significativa se considerarmos que a escolaridade média de um adulto é de 6 anos. E mais assustador é que apesar de a escolaridade média entre brancos e negros ter evoluído ao longo do século XX, a diferença de 2,3 anos de estudo entre jovens brancos e negros de 25 anos de idade é praticamente a mesma observada entre os pais e avós desses jovens. Ou seja, apesar dos avanços na educação, apresenta-se um quadro de desigualdade constante ao longo do século XX entre brancos e negros. No domingo 13 de maio, O Globo apresentou em matéria de capa as consequências dos preconceitos múltiplos que colocam negros e pardos ocupando apenas 13% das profissões de maior prestígio, como juízes, médicos e engenheiros, e quando ocupam os mesmos cargos ganham cerca de 14% a menos do que os colegas brancos. Mesmo nos trabalhos de pouca qualificação, os salários dos brancos superam os dos negros em 55%. Como a discriminação tem caráter acumulativo, as mulheres negras ocupam as piores colocações no mercado de trabalho, recebendo apenas 39% do que recebem os homens brancos. A desigualdade na distribuição da educação impacta decisivamente na desigualdade da distribuição de renda do país. É fundamental que continue havendo pressão social para ampliação de universidades com sistema de cotas, assim como de projetos para a manutenção de estudantes cotistas. Atuar com mecanismos de reparação do déficit histórico com a população negra no sistema de ensino significa não só atuar para a superação do racismo, mas também contribuir para a distribuição de renda e para o desenvolvimento de um país justo e igualitário.

Letícia é negra, jornalista e estudante de pedagogia maio de 2012

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// Entrevista

Faltam pessoas que acreditem no poder da

mudança’

‘Sempre estudei música’ Nasci no Rio de Janeiro, mas vim pra Valença com 6 anos, em 1992. Sou mais valenciano do que carioca. Fiz os ensinos Fundamental e Médio, e naquela ânsia de fazer uma faculdade, comecei Odontologia, fiz dois anos, mas larguei. Vi que estava indo por um caminho esquisito, que não combinava comigo. Parei a faculdade e fui pro Rio estudar música. Desde os 14 anos eu já tocava com o Aríete, isso em 2000. Eu sempre estudei música, meu pai desde cedo me colocou em aulas de música, com cinco, seis anos já fazia aula de órgão, teclado, piano. Com 11 anos decidi ir pro violão e comecei a tocar guitarra.

Com pouco mais de um ano à frente do Centro de Educação Musical Cata Vento, Rafael Motta é formado pelo Conservatório Brasileiro de Música. Atualmente com 26 anos, está inserido no cenário musical valenciano desde os 14, quando entrou para a banda Aríete. A Cata Vento, fundada em fevereiro de 2011, hoje conta com cinco professores – Rafael entre eles – e com cursos de violão, guitarra, piano, bateria, musicalização e canto, além de cursos personalizados para professores e profissionais da área. “Eu tinha uma questão para voltar para Valença, porque aqui não tinha um ponto de referência musical. Então pensei, vamos criar esse cenário”, assim explica o que o motivou a voltar para Valença depois de se formar como músico. Na sequência veja os principais trechos da entrevista.

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Arquivo Cata Vento e VQ

Aríete O que me incentivou a caminhar com a música foi a banda Aríete. Na banda eu era o mais novo quando entrei, tinha 14 anos, e a média do pessoal era 20, 21 anos. Acabei entrando porque meu irmão participava, e precisaram de um guitarrista. No início meu irmão nem queria, porque a gente não se dava tão bem nessa época. Mas quando cheguei, já no primeiro ensaio sabia um monte de músicas e o pessoal gostou. A primeira formação da Aríete tinha, além de mim, Luiz Gustavo, o Santos, Alexandre, o Bacalhau, Felipe Duboc e Daniel Silvares. A gente ficou um bom tempo juntos e tocamos em vários lugares. Depois disso decidi ir pro Rio, fiz bacharelado em violão no Conservatório Brasileiro de Música. Estudei violão por quatro anos e depois fiz licenciatura e estou no meio de uma pós-graduação em educação musical, também no Conservatório. Música e ensino Quando fiz a licenciatura percebi que essa coisa de ensinar, de dar aulas, me interessava bastante. Consegui nesse momento visualizar que poderia mudar alguma coisa. Quando terminei a faculdade eu tinha que decidir o que fazer. Se permanecia no Rio, fazia um mestrado na área de educação, ou se vinha pra Valença fazer alguma coisa. A minha única questão em voltar para Valença era porque aqui não tinha um ponto de referência musical, não valorizavam a música como arte. Então pensei, vamos criar esse cenário musical. Consegui um espaço legal aqui, e abri uma escola. A ideia da escola não é apenas ensinar, mas criar uma metodologia diferente.


O diferente da nossa metodologia é que a gente consegue integrar todos os cursos. O aluno que entra aqui não fica isolado na sala estudando apenas o seu instrumento. A prática é fundamental nesse processo. A pessoa pratica e a partir daí ela tem o interesse em se aprofundar. A partir do momento que a criança começa a estudar, quer tocar alguma coisa e ela vê que não consegue, automaticamente ela começa a estudar mais para conseguir tocar. A teoria vem depois do despertar. A gente deixa bem aberto para a criação dos alunos, não é um processo rígido como o ensino de música vem sendo aplicado há algum tempo nas escolas. Acredito que as pessoas ainda vejam a escola de música como uma coisa conservadora, acha que vai entrar e ter que ler partitura. Mas na verdade a gente faz o caminho inverso. Você tem que pegar situações do cotidiano da pessoa. Não adianta chegar para uma criança de oito anos e querer que ela aprenda a ler partitura e que toque música clássica, que é uma coisa que ela nunca ouviu na vida. Ela quer tocar o que ela ouve, o que ela conhece. A partir daí o papel do professor é apresentar coisas novas, acrescentar outros estilos. Uma das coisas da Escola é a diversidade. Uma outra questão é que, como a Escola é paga, acabo atingindo um público específico. Eu gostaria de conseguir fazer as duas coisas, ter a escola particular, e ter um espaço para alunos que não têm condições de pagar. Acho que futuramente a gente vai conseguir, estamos tentando viabilizar parcerias para isso. Desejo de mudança Faltam pessoas que acreditem mais no poder da mudança. Às vezes as próprias pessoas não acreditam que seja possível. Eu estou fazendo isso porque eu acredito que é possível criar uma mudança, fazer a música chegar num patamar de maior visibilidade, de maior respeito. Em qualquer lugar isso é possível, mesmo sendo numa cidade do interior. Mas é preciso perseverança, porque não é algo rápido. Falta um pouco às pessoas pensarem em um projeto que seja de longo prazo. Hoje está sendo difícil, mas se a gente fizer um trabalho bem feito, daqui a pouco fica mais fácil. No futuro teremos nossos alunos tocando, vão entrar outros. Não podemos deixar de fazer. A gente está tentando criar um cenário novo, pensar numa nova forma de encarar a situação, de criar um centro que reúna o ensino de música, de forma que chegue até um nível avançado. Eu vim pra cá já sabendo que esse cenário precisa ser construído. É uma ideia nova, é o estudo da música, o consumo à música.

“Quando vem uma banda que vai tocar na Festa da Glória, o artista de fora tem um palco super profissional. Quando vai fazer com banda de Valença, coloca um tablado, aluga um som mais ou menos. A gente precisa valorizar o que é nosso” Sempre tivemos uma visão de que a música é para poucos, para a pessoa que tem o dom. E não é. Todo mundo que se dedique o mínimo por dia em estudar um instrumento, vai tocar. O dom vai fazer o cara ser um grande compositor, vai conseguir visualizar certas coisas que outros não conseguem, mas qualquer um é capaz. Essa visão de que a música é algo sobrenatural, que é para poucos, que a gente quer combater. Qualquer um pode fazer música, você não precisa ser um profissional. Você pode estudar música simplesmente para tocar pra você mesmo. As pessoas têm que entender que você não precisa ser o melhor violinista do mundo. Tudo é treino, prática, e vai depender de quanto você quer se profissionalizar. Música como arte? Uma coisa que se perdeu é a pessoa parar para ouvir música. Hoje você quase não vê uma pessoa parada ouvindo música. Está todo mundo com fone, andando, caminhando, no carro, de bicicleta. Mas ninguém para pra ouvir música. A música se tornou uma trilha sonora. As pessoas desaprenderam a ver a música como arte. Por isso as músicas com refrão fácil, que a pessoa guarda ao ouvir pela primeira vez, são as que fazem sucesso. Cenário musical de Valença Há dez anos a acessibilidade às coisas era mais difícil. Quando a banda Aríete começou, há 12 anos, a gente ainda ouvia música em fita k7. Depois você começa a ter mais acesso, a internet já te abre outras possibilidades. No cenário rock, quando começamos tínhamos algumas bandas. Essas bandas de rock – Delta Mood, Aríete, Apologia, Província já no final, Tribo Urbana – tiveram uma duração e com isso estimularam muito o pessoal a tocar. Tem uma foto do Bar do Santana, que ainda era no Casarão que pegou fogo, e nas fotos antigas você vê que o público são as pessoas que estão tocando hoje. É essa coisa de ter uma referência. Porque surgem várias bandas de rock? Porque várias bandas de rock se mantiveram, criaram público. Mais recentemente, o que também estimulou esse crescimento foi o Pesqueiro do Vitinho se firmar como um ponto de show ao vivo. Porque antes disso a gente não tinha um local, a gente tocava no Marley e a polícia vinha e parava o som. Isso tudo é um círculo. A banda que está procurando um espaço

para tocar, a casa de show que abre o espaço e o garoto novo que está assistindo e gostando, que já almeja montar uma banda para tocar ali. No Vitinho também passaram a pagar bem os músicos, antes disso era bem complicado. E isso serviu também como incentivo pra galera querer tocar. Nos últimos quatro, cinco anos surgiram várias bandas. Valença como referência musical Valença pra mim é muito forte em música. Em outras cidades é difícil encontrar três, quatro lugares com música ao vivo e Valença tem isso hoje. A música ao vivo em Valença se tornou uma atração. Se Valença está bem nessa questão, acho que agora é preciso valorizar, incentivar, aproveitar esse potencial como uma atração turística, se tornar uma referência na região como a cidade que tem vários shows legais. Mas pra isso é preciso ter uma organização. Você tem shows acontecendo em vários lugares, mas falta um pouco mais de produção no sentido de ter um palco, um som, uma iluminação de qualidade, algo que envolva mais o público, para que o público também entenda o porquê de valorizar aquilo. Começar a tratar a música não como som ambiente, mas ser a atração da noite. Saber valorizar esse ponto. Valorizar o que é nosso Em Valença temos vários poetas, pintores, músicos. Porque não começar a valorizar essas pessoas de Valença? Posso dar um exemplo comum aqui, que é quando vem uma banda que vai tocar na Festa da Glória, o artista de fora tem um palco super profissional. Quando vai fazer com banda de Valença, coloca um tablado, aluga um som mais ou menos. A gente precisa valorizar o que é nosso. Se vamos fazer um show com as bandas de Valença, vamos montar uma estrutura de qualidade. Na maioria dos carnavais, por exemplo, temos dois palcos. O profissional para os artistas de fora, e onde tocam os grupos de Valença, um tablado com iluminação precária. Porque o grupo de Valença é tratado sempre de forma menor? Essa diferenciação é esquisita. O Centro de Educação Musical Cata Vento fica na Rua dos Mineiros, 143 – Centro. (24) 2452-4541 http://www.facebook.com/cataventocem contato@cataventocem.com

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// Poesia

Preparamos uma trilogia da cultura para celebrar o início desta seção no VQ. Assim, na edição passada a dica foi de música. Este mês a dica é cinematográfica e já fica a promessa para a edição de junho que será literária. A indicação da vez é:

Considerações sobre o Fogo

reprodução do cartaz de “O discreto charme da burguesia”

// Navegando

www.filmespoliticos.blogspot.com.br Com um acervo que até o fecha-

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Se você visitou o blog Filmes Políticos escreva contando se gostou e o que baixou por lá. E se tem algo para recomendar, escreva também. Esta é uma sessão aberta a sugestões. valencaemquestao@yahoo.com.br

Foi numa manhã inevitável E o efeito devastador do fogo Tocou-me pela primeira vez. Muitos choravam bares e jogos Outros choravam dinheiro Enquanto eu chorava arte. Minhas lágrimas, nossas lágrimas Não apagaram o fogo. Eu tinha um ar tão menina E o efeito sufocante do fogo Envelheceu minha respiração. Versos nunca mais foram gritados A música nunca mais tocou alta E nas pinturas nunca mais cores vibrantes. Minha juventude, nossa juventude Não apagaram o fogo. Era só um dia de trabalho E o efeito inebriante do fogo Atrasou-me por tempo demais.

No seio da princesa Tanta Memória incendiava grandiosa Num último espetáculo. A minha história, a nossa História Não apagaram o fogo. Tanta arte pulsava em mim E o efeito destrutivo do fogo Matou o acervo do meu olhar. Dizem que algo nasce do fogo... Naquela esquina nunca mais ninguém nasceu. Artistas sem-teto, Esse poema, nossa poesia Não reergueram as ruínas que sobraram do fogo.

André Dahmer // www.malvados.com.br

mento desta edição reunia mais de 340 filmes de diversos países, o blog tem cinema político para todos os gostos. Estão lá diversos filmes de Charles Chaplin e também do documentarista Michael Moore. Mas engana-se quem pensa que filmes políticos são apenas documentários independentes. No blog é possível encontrar filmes de ficção e comerciais como o americano “Os Bons Companheiros”, do diretor Martin Scorsese (1990), ou o brasileiro “Quase dois irmãos”, de Lúcia Murat (2004). São muitos os filmes disponíveis sobre a política brasileira e sobre fatos marcantes em outros países, como a Comuna francesa e a República de Cromwell. Diretores clássicos como Luis Buñuel também estão

presentes e um bom exemplo é “O discreto charme da burguesia”, do diretor espanhol (1972). Há ainda raridades como o filme “Lula”, produzido pela Frente Brasil Popular (1989), e “What Hitler Wants”, uma produção soviética (1941) com animações feitas durante a segunda guerra com enfoque na propaganda antinazista. Como sempre, tudo gratuito, fácil de baixar e de encontrar.

Por Juliana Guida Maia


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